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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

TEMA: TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E REGULAMENTAÇÃO

 

Algumas reflexões sobre a prática clínica e a formação analítica

 

Some reflections on the clinical practice and the analytical education

 

Algunas reflexiones sobre la práctica clínica y la formación analítica

 

 

Carmen C. Mion

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

A autora faz uma reflexão sobre a vocação da psicanálise para conter paradoxos desde a sua origem, como um campo do saber transicional entre ciência e arte, e os consequentes desdobramentos e repercussões sobre a formação analítica. A "impossível função" a que se propõem os Institutos será a de oferecer uma formação capaz de transitar entre um saber que se pode avaliar objetivamente, cujos métodos e teorias são objetiváveis e transmissíveis, remetendo ao campo das ciências; e um outro saber que envolve criatividade, intuição psicanalítica e uma transformação pessoal que transcende teoria e técnica, uma experiência estética que remete ao campo das artes. Frente à complexidade dessa tarefa, são levantadas algumas questões que inevitavelmente perpassam nossos Institutos, ano após ano, independentemente das regulamentações e diretrizes contidas em nossos três modelos.

Palavras-chave: formação analítica, transmissão de conhecimento, paixão, análise didática


ABSTRACT

The author reflects on psychoanalysis' vocation to contain paradoxes since its origin as a transitional area of knowledge between science and art, and the consequences and repercussions of it on analytic training. The "impossible function" proposed by the Institutes is to support an education able to transit between a knowledge referring to the field of science, meaning that it can be objectively evaluated and presents well-defined and communicable methods and theories; and another knowledge referring to the field of arts, which involves creativity, psychoanalytic insight, a personal transformation that transcends theory and technique, an aesthetic experience. Considering the complexity of this task, some questions that inevitably pervade our Institutes, year after year, regardless of the rules and guidelines contained in our three models, are raised.

Keywords: analytical education, transmission of knowledge, passion, training analysis


RESUMEN

La autora aborda el tema de la formación analítica, reflexionando sobre las consecuencias y repercusiones que tienen sobre esta formación la vocación del psicoanálisis, desde su origen, para contener paradojas, entendido como una zona de transición de conocimientos entre ciencia y arte. La función imposible que tienen los Institutos es ofrecer una formación capaz de transitar entre un conocimiento que puede ser evaluado objetivamente, cuyos métodos y teorías son objetivables y transmisibles, referenciados al campo de la ciencia; y otro conocimiento que implica creatividad, intuición psicoanalítica y una transformación personal que trasciende la teoría y la técnica, una experiencia estética que nos lleva al campo de las artes. Teniendo en cuenta la complejidad de esta tarea, se plantean algunas cuestiones que inevitablemente impregnan los Institutos, año tras año, independientemente de las normas y directrices que figuran en los tres modelos.

Palabras clave: formación analítica, transmisión del conocimiento, pasión, análisis didáctico


 

 

Alguns amigos docentes acadêmicos envolvidos com a tarefa de ensinar e formar alunos em diferentes campos do conhecimento expressam certa estranheza ao não entenderem por que, desde Freud, a formação em psicanálise não é feita nas universidades, restringindo-se aos Institutos no interior das Sociedades de Psicanálise em todo o mundo. Costumo dizer-lhes que indubitavelmente as obras completas de Freud são patrimônio da humanidade e acessíveis a quem as desejar estudar. As teorias psicanalíticas são ensinadas nas faculdades de psicologia, medicina, filosofia e ciências sociais. Certamente a psicanálise tem uma extensa e fértil área de aplicação nos campos da saúde, da educação, da cultura e da ação social. No entanto, todo analista praticante sabe que o simples fato de se aplicar a teoria e consequente terminologia psicanalítica na descrição da relação entre duas pessoas não transforma a experiência numa experiência psicanalítica. Não é necessário um psicanalista para ensinar as nossas teorias, mas é necessário um psicanalista para a transmissão da psicanálise, possível apenas através da experiência pessoal psicanalítica. Ou seja, feliz ou infelizmente, a psicanálise não está contida nas suas teorias, na sua metapsicologia.

A impossível função a que se propõem os institutos de psicanálise é exatamente a de propor e favorecer um "vir a ser psicanalista" que envolva não só o conhecimento da teoria e método psicanalíticos, mas um projeto de autonomia pessoal fundado em uma atitude de interrogação e busca permanente que jamais termina e se constitui como uma peculiaridade única no âmbito do saber e do fazer humano.

Ao abordar o sonho como via régia para o inconsciente, Freud inaugurou um campo de conhecimento que tem o sonho como seu paradigma, tanto no que se refere ao objeto como à sua dinâmica. O campo onde a prática da psicanálise se desenvolve é o campo da subjetividade, do sonho e da experiência estética. No entanto, Freud nunca desistiu de tentar inserir a psicanálise no campo das ciências, desenvolvendo sua metapsicologia a partir da aplicação de um método de observação do psiquismo humano e enunciando, a partir de suas observações e experiências clínicas, as hipóteses teóricas sobre as quais se fundamentaria a psicanálise.

Um dos pressupostos epistemológicos do novo campo de conhecimento desenvolvido por ele será sempre a referência clínica. A clínica era a sustentação que permitiu Freud contestar cientificamente os imperativos teóricos do neopositivismo e da lógica do seu tempo. Com sua metapsicologia, Freud tencionava separar e diferenciar a psicanálise da psicologia da época, colocando-se de saída como além da psicologia. Na segunda metade do século XIX e início do século XX, a biologia como um todo se pautava pela física. A psicologia de então, uma ciência experimental na linha da psicofísica que norteava as ciências, era totalmente voltada para a consciência, considerada a faculdade mais nobre do homem, e o Eu consciente reinava soberano. Freud propôs um psiquismo que iria muito além da consciência e do Eu, trazendo novos conceitos, como um inconsciente como espaço psíquico fundamental de um aparelho psíquico de grande complexidade. O próprio conceito metapsicológico da pulsão evidencia algo da ordem do ser que estaria além da biologia e da psicologia, além da representação (Garcia-Roza, 1993). Ele se inscreve em outro espaço, entre o somático e o psíquico, nos seus limites.

Histórica e epistemologicamente, portanto, a teoria psicanalítica origina-se da experiência: refere-se a um método de observação e aproximação ao psiquismo, que implica duas subjetividades, em que aquele que investiga está sendo constantemente investigado e um corpo teórico crescente que organiza essas experiências relacionando-as ao desenvolvimento emocional do homem. Um método que inevitavelmente resulta em um corpo teórico psicanalítico em constante desenvolvimento. Muda a época, muda a cultura, muda o conteúdo das repressões ou as questões que vão emergir na sala de análise.

Há muito a repressão sexual não tem sido mais a tônica das conversas que se desenrolam entre analistas e pacientes na intimidade dos consultórios. Encontramos homens e mulheres que apresentam um novo quadro de sofrimento psíquico na atualidade, para quem o tempo é o presente veloz da internet. Sofrem não com a culpa, mas com a aspiração de serem eles mesmos e a dificuldade de sê-los. Não chegam assombrados por temidas punições divinas e/ou retaliações, mas aterrorizados com o vazio e a ausência de sentido. Poder-se-ia dizer que "Édipo" cedeu lugar a "Narciso", passando a entrar na cena analítica apenas num "segundo ato", depois de muito trabalho da dupla. No entanto, permanecendo o método, novos modelos teóricos vão surgindo. Certamente os diferentes modelos, a diversificação das práticas, incluindo as especializações, e os modelos provenientes de outros campos de conhecimento têm repercussões na formação psicanalítica e na vida científica das Sociedades.

Penso que a vocação da psicanálise para conter paradoxos está presente, desde a sua origem, como uma área de saber transicional entre ciência e arte. Ela está contida no próprio termo psycho-analysis escolhido por Freud, que continha um significado para os seus contemporâneos que pode nos escapar em nossa cultura (Bettelheim, 1982). Na mitologia (Mitologia Greco-Romana, 1973), Psyche geralmente é representada com asas de pássaro ou borboleta e transmite conotações de beleza, fragilidade e insubstancialidade, qualidades ainda associadas à alma que sugerem não só o respeito, cuidado e delicadeza que se deve ter ao abordá-la, mas prenuncia também as dificuldades encontradas ao se tentar capturá-la. Já analysis implica um método de pensamento voltado para a compreensão ou explicação de qualquer fenômeno de natureza complexa empregado pela ciência e que consiste em reduzir uma realidade intrincada, de difícil apreensão global, em seus componentes básicos e mais simples.

Consequentemente, a formação em psicanálise desde a sua origem transita entre um saber que se pode avaliar objetivamente, cujos métodos e teorias são objetiváveis e transmissíveis e que inevitavelmente remetem aos conteúdos e ao campo das ciências; e um outro saber que envolve criatividade, intuição psicanalítica, uma transformação pessoal que transcende teoria e técnica, uma experiência estética que nos remete ao campo das artes.

Frente à complexidade dessa tarefa, como se dá, então, a transmissão em psicanálise? Mais especificamente, como se forma um psicanalista? Como avaliar e avalizar um psicanalista? Estas são algumas questões que inevitavelmente perpassam nossos Institutos, ano após ano, independentemente das regulamentações e diretrizes contidas em nossos três modelos.

Será possível formar um analista? A primeira vez que me ocorreu esse pensamento foi em Bogotá, durante o Pré-Congresso Didático, em 2010. Na época eu acabara de terminar minha função como secretária geral do Instituto da SBPSP e fazia parte do Comité de Educación da FEPAL. Sobre um pano de fundo emotivo e reflexivo que predominava no encontro, pensei comigo: será que a célebre dialética exposta por Freud (1905/1973), utilizando-se da antítese que Leonardo da Vinci resumiu em relação às artes nas fórmulas per via di porre e per via di levare não se aplicaria também em relação à formação de um analista? A pintura, dizia Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. As estátuas inacabadas de Michelangelo, cujas figuras nos dão a impressão de estarem emergindo do bloco de mármore através do trabalho do artista, como a Pietà Rondanini exposta no Museu de Arte Antiga no Palazzo Sforza em Milão, constituem a imagem forte e palpável desse modelo.

Ao fim dos trabalhos do Pré-Congresso, cujo tema era "A formação analítica e a prática clínica atual",1 e após as exposições dos palestrantes, eu estava participando como coordenadora da última reunião que teríamos como um dos pequenos grupos de discussão. Discutíamos as vicissitudes da inserção da psicanálise na cultura contemporânea frente a uma solicitação de alguns colegas em formação para que fosse incluído oficialmente nos Institutos da FEPAL um curso sobre Psicoterapia Psicanalítica. Foram levantadas questões sobre como for-mar analistas numa cultura de superficialidades em que se privilegiam métodos de evasão e descarga? Na falência da simbolização e predomínio dos aspectos narcísicos e mesmo psicopáticos da personalidade onde o eu se afirma pela via da aparência e do espetáculo e o sofrimento se expressa na forma de um vazio existencial, na ausência de sentido? Como zelar pela função psicanalítica e reafirmar mais do que nunca a importância da análise pessoal como desenvolvimento do instrumento de trabalho dos analistas?

A certa altura, fez-se um longo silêncio carregado de uma sensação de certo desalento naquele grupo constituído por diretores de institutos, docentes e candidatos. Depois de dois dias de trabalho, antes da plenária final, havia se abatido sobre nós um sentimento de tristeza e desesperança.

Naquele momento, ocorreu-me perguntar a uma colega que exercia a função de diretora de instituto e que estava sentada ao meu lado como ela havia se tornado analista. Ao me responder, algo absolutamente surpreendente ocorreu. À medida que ela contava a sua história, sua expressão foi se modificando, seu rosto se iluminou, seus olhos brilharam e todos os presentes acompanharam atentamente suas palavras com uma expressão de reconhecimento. Logo em seguida outro colega começou a contar sua história de amor com a psicanálise, depois outro e outro, instaurando-se no grupo uma discussão mais próxima a emoções profundas. O clima afetivo predominante possibilitou que uma colega em formação, até então em silêncio, dissesse sentir que o tempo de formação é tão breve e a construção da identidade do analista um processo tão longo e delicado que não gostaria de ter tempo roubado ao seu desejo de ser analista. Ars longa, vita brevis...

Ao fim da reunião estávamos irmanados todos em nossa recém-recuperada paixão pelo mesmo objeto de amor. Certamente o objeto de amor que no passado motivou Freud a criar a IPA, alguns anos depois também levou alguns pioneiros a criar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que na atualidade se constitui o elemento unificador de todos nós, seus membros, esse sonho/ideia, essa arte/ciência, que chamamos psicanálise.

Naquela ocasião, independentemente da idade, sexo, nacionalidade e experiência analítica dos analistas presentes, emergiu das histórias ali contadas um forte elemento comum a partir da evocação nos participantes de sua vocação: a paixão pela psicanálise. Respondendo à minha própria pergunta, hoje acredito que já trazemos no íntimo do nosso ser o psicanalista que viremos a ser ,e que um analista não pode ser formado por via di porre.

Posteriormente, ao investigar o tema, encontrei um texto de Odilon de Mello Franco Filho (2008) em que ele afirma que a formação analítica não forma um analista, mas oferece condições para que determinadas funções da sua personalidade, o que Bion (1963) denominou função analítica, possam se expressar e se desenvolver no contato emocional com o outro, no campo analítico. Do seu ponto de vista, com o qual concordo inteiramente, o principal instrumento de trabalho do analista é a sua personalidade. Não por acaso Bion (1963) afirma que os elementos da psicanálise são funções da personalidade e que os objetos derivados deles, as associações e interpretações, contêm extensões nos domínios dos sentidos, dos mitos e da paixão.

Que interessante a verificação desse elemento comum entre os analistas: a paixão. Como partidária do darwinismo, tenho uma tendência a pensar que se isso acontece provavelmente é porque ela é um elemento necessário ao tornar-se analista. Necessário não só como parte do nosso arsenal psicanalítico como assinala Bion (1963), mas também como força impulsora em nosso eterno "vir a ser" analistas, porque o contato com o sofrimento, isolamento e solidão tornam o medo nosso companheiro inevitável nessa jornada se não estivermos tomados por idealizações ou outras defesas. Como assinala Luiz Carlos Junqueira (2008), no funcionamento metapsicológico, o mesmo psiquismo que sofre a dor psíquica é aquele que consegue senti-la após ter conseguido pensá-la. O psicanalista, como Édipo na busca da sua identidade, precisa estar preparado para suportar o mistério da feiura interna matizada pela beleza da busca pela verdade. Enfrentar seu amor e seu ódio pela psicanálise.

A própria análise pessoal vai capacitar ao analista tolerar as experiências emocionais que envolvem o confronto com a incoerência, não compreensão, sentimentos de dúvida e até mesmo persecutoriedade. Não é fácil esse caminho, sempre na contramão da cultura. Viver um processo contínuo de aprendizado e desenvolvimento só é possível enquanto o analista mantiver sua paixão pela investigação, exploração das profundezas do inconsciente, do desconhecido.

A psicanálise se utiliza de modos de pensar muito distantes do senso comum. Como disse Green (1990), a associação livre desfaz a trama da linguagem e, consequentemente, desfaz a trama do pensamento e da lógica. Revela a loucura potencial do indivíduo, ameaça os limites da razão. Acredito que nesse processo o psicanalista também não pode funcionar psiquicamente de forma diferente da que propõe ao paciente, utilizando-se da lógica e do pensamento racional. Ele deve poder saber perder-se, poder esquecer a categorização de pensamentos, que é própria da vigília habitual. Todos esses processos, que ocorrem no interior de uma relação tão específica, podem se desenvolver porque existe o próprio setting analítico. Do analista disposto a adentrar essas áreas, espera-se humildade, certo estado de mente aberto à recepção de todos os objetos, quer sejam sentidos como bons ou maus, vindos do analisando (rêverie); continência suficiente para ficar no papel em que o analisando o colocar, incluindo aqui a possibilidade de não existência do próprio analista; certa capacidade negativa, conceito de Keats, citado por Bion (1962), que é a capacidade que um homem possui de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer tentativa de alcançar fato e razão. Além disso, receptividade empática e outras qualidades não só impopulares, mas só possível de serem desenvolvidas através de sua análise pessoal.

Mergulhar na experiência de formação inserido numa instituição que o antecede e é ao mesmo tempo doadora de identidade (Käes, 1989/1991), submeter-se à análise com um analista experiente e comprometido com a tarefa de resgatar o ser e a individualidade do analista em formação ciente das armadilhas dessa situação do iniciante, vivenciar as hordas primitivas internas e externas: tudo isto desperta angústias persecutórias e demanda muito do analista em formação. No entanto, como ressalta Outeiral (2005), por incrível que pareça esse é o caminho da espontaneidade e criatividade na formação do psicanalista.

A tentação de "rapidamente pertencer", à filiação precoce, durante a formação assim como na vida, leva a um engessamento das ideias, à perda da individualidade e espontaneidade, à submissão a um notório saber e à autoridade. A necessidade de pertencer e o medo da desconstrução empobrecem a criatividade.

Muitos de nós chegamos aos Institutos para iniciar a formação em psicanálise trazendo vínculos transferenciais anteriores e já com um bom conhecimento teórico sobre nossos autores, alguns com experiências como doutores ou livre-docentes em universidades, porém percebemos com o tempo que a formação não se trata de uma proposta de desqualificar a experiência ou o conhecimento anterior do candidato, mas sim de resgatar o "si mesmo", o que estava lá desde o princípio, o que não se sabe. Um despir das camadas e camadas de roupas com que cobrimos nossa nudez, per via di levare. Proteções contra verdades que não pudemos enfrentar. O processo de formação analítica não consiste simplesmente na aquisição de conhecimentos que informam o analista. Trata-se também da desconstrução de um saber.

Maior complexidade ainda nós acrescentaremos à questão se passarmos a examinar a Instituição no interior do próprio indivíduo, como mais um elemento nessa dialética individual-institucional, o que torna a questão inabordável do ponto de vista institucional, porém não no setting da análise de formação, lugar privilegiado para seu o desvelamento. No dizer de Kaës (1989/1991), a exteriorização de um espaço interno é a nossa relação mais anônima, mais violenta e mais forte que mantemos com a instituição. Cabe lembrar aqui os mitos bíblicos do Paraíso Perdido e da Torre de Babel relacionados à aquisição de conhecimento e poder pelos homens.

Desde o seu início com Anna O., a psicanálise impôs-se como o método que praticamente inventou a si mesmo, através do encontro entre duas pessoas. Inconscientes que se apresentam e reapresentam na relação transferencial e contratransferencial contida no setting. No dizer de Ogden (2005), reinventamos a psicanálise a cada novo paciente que recebemos. Aproxima-se da concepção de Winnicott (1986) de que a cada sessão "criamos" um mundo próprio de acontecimentos, jamais visto ou conhecido por nenhum dos dois participantes, de tal modo que ao fim desse encontro cada um sinta que saiu enriquecido e com maior compreensão do humano.

Esta, eu penso, era a psicanálise de Freud, pois ele olhava seus pacientes como ninguém havia visto antes. Criou um método de observação e aproximação do psiquismo que inevitavelmente resulta na construção de um corpo teórico crescente em constante desenvolvimento. A articulação clínico-teórica é para mim o seu maior legado. Tendo a acreditar que ele tinha clareza de que a utilização do método psicanalítico levaria inevitavelmente a uma evolução natural das teorias, de que seu edifício teórico jamais seria concluído.

Uma das justificativas para uma Sociedade de Psicanálise é a possibilidade de compartilhar diferentes experiências com a esperança de encontrar não só uma visão comum, matrizes identificadoras e conferir sanidade, mas também a esperança de encontrar outro olhar, o diferente/estranho que nos obriga a questionar o familiar, o já compreendido, trazendo a possibilidade de desenvolvimento. Similaridades/diferenças/confrontos/sofrimentos são elementos indispensáveis para a construção do conhecimento e expansão psíquica do indivíduo, do grupo, da Instituição e da Sociedade.

O debate aberto torna a relação institucional mais transparente e, portanto, mais confiável e sólida nos nossos propósitos de torná-la objeto de pensamento. Acredito que um grande desafio tanto no interior como fora da Instituição é a possibilidade de uma comunicação capaz de atravessar a cesura dos diferentes referenciais (Bion, 1977). Será que uma linguagem comum é suficiente para garantir a comunicação? Para prevenir a transformação dos modelos com os quais nos identificamos em ideologias desvitalizantes? Para não sermos arrastados na "rede da linguagem da tribo", na feliz expressão de Kaës (1989/1991), e conseguirmos que a singularidade de nossa fala se faça reconhecer?

Não há lugar para teorias na sala de análise. Estamos irremediavelmente sós e nus. Guiando-nos pela intuição psicanaliticamente informada e tentando, através do rudimentar instrumento de que dispomos auxiliar nossos pacientes a encontrarem a si mesmos. Numa de suas conferências, Winnicott (1986) afirmou que provavelmente o maior sofrimento no universo humano é o sofrimento das pessoas normais ou maduras, e que isto geralmente não é reconhecido nem pelos próprios analistas. A vida do indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimentos conflitantes, dúvidas, frustrações, sentimentos de impotência, lutos e dores profundas, assim como também por características positivas. Vivendo profundamente nossas experiências, elaborando medos e paixões, tomando responsabilidade pela ação ou inação, sendo capazes de receber crédito pelo sucesso e culpa pelo fracasso, caminhamos todos, pacientes e analistas, em direção ao desenvolvimento e autonomia pessoal.

 

Referências

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Recebido em: 5/3/2014
Aceito em: 20/5/2014

 

 

Carmen C. Mion carmenmion@uol.com.br
1 No dizer de Borges, estamos constantemente pensando com maior ou menor complexidade e profundidade certas coisas eternas...

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