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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

A observação do bebê sem nome: transferência psicótica na observação de bebês, possibilidades e limites

 

The observation of the nameless baby: psychotic transference in the baby's observation, possibilities and limitations

 

La observación de un bebe sin nombre: transferencia psicótica en observación de bebés, posibilidades y límites

 

 

Marielle Kellermann Barbosa

Membro filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

Este artigo discute uma experiência de observação de bebê na qual o bebê observado não tem espaço no olhar da observadora, assim como não tem nome próprio para a mãe. O trabalho descreve uma situação de observação marcada pelas idiossincrasias das questões sociais brasileiras: vulnerabilidade social, estigma, uso de substâncias psicoativas, violência. Essa reflexão aponta para a potência da transferência produzida pelo enquadre do método, para a formação de uma transferência psicótica e discute os limites dessa relação e sua relevância para a formação da identidade analítica.

Palavras-chave: observação de bebê, transferência psicótica, vulnerabilidade, sociedade, formação psicanalítica


ABSTRACT

This article discusses the experience of observing a baby where the observed baby neither has space in the eyes of the observer nor a given name by its mother. This study describes a situation of observation marked by the idiosyncrasies of Brazilian social issues: social vulnerability, stigma, the use of psychoactive substances, and violence. This work points out the strength of the transference produced by the therapeutic framework, the formation of a psychotic transference and discusses the limits of that relationship and its relevance in the creation of the analytic identity.

Keywords: baby observation, psychotic transference, vulnerability, society, formation of the psychoanalyst


RESUMEN

Este artículo aborda una experiencia de observación de bebes en la que el bebé observado no tiene espacio para ser visto por la observadora, al paso que no tiene un nombre propio para la madre. El trabajo describe una situación de observación marcada por la idiosincrasia de las cuestiones sociales brasileñas: vulnerabilidad social, estigma, uso de sustancias psicoactivas y violencia. Esta reflexión señala la potencia de la transferencia producida por el encuadre del método. Conforme se establece una transferencia psicótica, se discuten los límites de esa relación y su relevancia para la formación de la identidad analítica.

Palabras clave: observación de bebes, transferencia psicótica, vulnerabilidad, sociedad, formación psicoanalítica


 

 

Telefonei mais cedo para a Solange, e Marina atendeu o telefone, dizendo que a mãe havia saído; perguntei se ela estava sozinha, ela não conseguiu responder direito.

Chegando no bairro, cruzei com um carro da polícia, pensei que me seguiriam, não o fizeram de imediato, mas na hora que estacionei vi a viatura parando atrás de mim e dois policiais descendo, com as mãos apoiadas na arma. (transcrição)

 

Introdução teórica: formação e identidade analítica

Para se tornar psicanalista, segundo o modelo de formação proposto pela ipa,1 é necessário um percurso pelo tripé: análise pessoal, estudo das correntes teóricas e supervisões de casos. Ao longo dessa formação, procura-se constituir uma identidade analítica. Esta se refere às introjeções de modelos de identificação com professores, analista e supervisores, além da aproximação a filiações teóricas que também podem servir como modelos de identificação parental.

No dicionário a ideia de identidade aponta uma dialética entre o que diferencia o sujeito do seu entorno: "conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa". E o que o assemelha a um grupo: "aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é definitivamente reconhecível ou conhecido. Qualidade do que é o mesmo. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas" (Ferreira, 2004, p. 1.066). Nesse sentido, a identidade analítica diz respeito às características de pertencimento ao grupo de psicanalistas, à filiação institucional, mas fica pela metade se não é completada com a singularidade do sujeito.

Alguns trabalhos se debruçam sobre o que é valor imprescindível na constituição dessa identidade, o que diz respeito às invariantes éticas, tais como: ter consideração pelo outro, ter amor à verdade, prezar pela neutralidade (possível) e transgredir (Mondrzak, 2005). Propõe-se a escuta analítica como cerne na identidade do sujeito psicanalista, que deve, no seu percurso, incorporar a postura freudiana de quebra da estrutura da epistemologia racional na busca pelo conhecimento (Magdaleno, 2010).

Ao introduzir algo tão revolucionário, ou seja, duas mentes, de algum modo, autorizadas a funcionar dentro de um campo de liberdade, com a racionalidade posta em parte de lado, acreditando que mesmo assim algo de novo e criativo iria aparecer, quase que à revelia daquelas duas mentes nesse estado especial de funcionamento. (Magdaleno, 2012, p. 235)

A filiação institucional, o estudo teórico e até análises e supervisões (quando se prestam apenas à introjeção de identidades prontas) podem ser fundamentais para a constituição identitária em seus valores comuns, contudo as experiências únicas nas quais o analista se vê "sozinho" com um outro (paciente) são fundamentais para que, a partir de improvisos, se constitua uma identidade singular.

Faz parte da formação analítica, em alguns institutos, que os candidatos façam observação de bebê. Tal técnica difere dos seminários teóricos, da análise e das supervisões de caso, contemplando em si uma gama de complexidades no que se refere à conduta do analista como observador, ao lugar onde se passa essa experiência (casa da família) e às aquisições a que se presta. Sendo a observação de bebês uma técnica localizada fora do tripé tradicional da formação, justifica-se a reflexão, a partir de uma experiência real, de seu lugar enquanto propiciadora, ou não, da constituição da identidade analítica.

Entende-se a constituição dessa identidade como tarefa contínua e nunca finalizada, e é como parte desse trajeto que o presente trabalho busca discutir o lugar e a relevância da observação de bebês na formação do psicanalista.

 

Metodologia: o método de observação de bebês

A observação de bebês, método criado por Esther Bick em 1948 na clínica Tavstock em Londres, propõe uma hora de observação da relação mãe-bebê no contexto familiar, uma vez por semana, com a duração de um a dois anos, fazendo as transcrições das observações em seguida e discutindo-as em seminários com o grupo composto por um ou mais coordenadores e colegas.

O método reivindica para si a constatação a respeito da importância de que os pais, tal como os analistas, contenham as ansiedades projetadas pelos lactantes e que sejam capazes de pensá-las e significá-las atuando de um modo que transmita a sua compreensão (Wittenberg, 2001, p. 24). Além da observação dessa espécie de interação, a observação de bebês tem nos seminários em grupo um potente instrumento de ajuda ao observador, que vai desenvolvendo um olhar mais atento aos detalhes, aos movimentos corporais do bebê, à qualidade, intensidade e duração de seu choro etc.

Uma função não menos importante da observação de bebês é proporcionar uma experiência, ao observador, na qual a contenção da ansiedade se faz necessária. Com nossos pacientes também temos que suportar certa dose de dor emocional, mas no consultório podemos nomear e comunicar o que pensamos. Sem o instrumento da interpretação, é requisitado ao observador que, ao presenciar o terror ou a angústia do bebê ou da família, contenha seu impulso de querer atuar de uma forma ou de outra e mantenha-se no seu lugar, de suportar e conter (Wittenberg, 2001).

A duplicidade da função do método - por um lado o olhar direcionado para o bebê e sua relação com a mãe e o entorno e, por outro, a atenção aos derivados inconscientes, atuações por parte do observador - se dá à medida que o campo possibilita a vivência de fenômenos transferenciais com atenção ao detalhe externo e interno. A atenção ao detalhe proporciona ao observador refletir sobre as nuanças de seus movimentos inconscientes, suas reações ao campo e possibilita a expansão da capacidade negativa, à medida que o observador não tem à sua disposição o instrumento técnico da interpretação.

Por capacidade negativa, entende-se a capacidade do homem existir em meio a incertezas, mistérios, dúvidas, sem pretender alcançar a razão ou os fatos (Lisondo, 2012).

O seminário de discussão tem um papel importante no método, pois nele o grupo cria clareza, e, assim, maneiras frescas de pensar e sonhar podem emergir. O observador pode fazer uso do sonhar acordado dos participantes para sonhar sonhos que não puderam ser sonhados em campo (Ogden, 2006).

 

Da observação como prática

Para fazer a observação de bebê é preciso encontrar uma família que aceite ser observada. Nesse momento surgem questões relevantes para o observador, tais como: onde achar uma família com um bebê recém-nascido que aceite uma visita de uma hora por semana? Por que uma família aceitaria isto? Não se sentiria invadida? Se aceitar, por que aceitou? O que espera dessa observação? E outras questões surgem a partir destas em relação ao lugar do próprio observador nesse campo, como por exemplo: "sinto-me confortável em pedir isso a alguém? O que ofereço, de fato, ao ir na casa dessas pessoas?".

Muito se passa "na parte de cá" da observação, isto é, na mente do observador, e um ponto fundamental para o despertar de diversas fantasias, lembranças e questões é o fato de que ele é retirado do seu lugar conhecido, o consultório, e precisa improvisar um novo e desconhecido papel. Ao encontrar uma família que aceite sua presença, essas questões permanecem vivas e podem, ou não, ser respondidas durante o percurso.

 

Relato: a primeira parte da observação

Relatarei recortes de uma observação de bebês, feita por uma analista em formação (observadora) - e estou certa de que a maior parte do processo ficará de fora -, e ainda como se caracteriza a relação entre as experiências emocionais e as palavras, com sua especificidade de uma escapar e a outra tentar, em vão, buscá-la.

Esse relato priorizará três pontos, a saber: de que maneira a observação de bebês pode ser considerada uma ferramenta importante na formação da identidade analítica, o potencial dos seminários em grupo, segundo formulação de Ogden (2006), e, por último, quais são os limites e as possibilidades da relação transferencial que se estabelece, levando em conta a cena social urbana da periferia de uma cidade brasileira, tendo-se em vista que essa realidade é compartilhada por vários países latino-americanos.

Chamarei a mãe do bebê de Solange. Solange, de aproximadamente 40 anos, tem um bebê recém-nascido e uma menina de 9 anos. Mora com os filhos e o marido em um bairro de periferia, com alto índice de violência.

Quando a observadora entra em contato por telefone, Solange diz que a espera a "qualquer hora, porque fico o dia inteiro em casa". A observadora telefona para marcar a primeira visita e Solange não atende. Duas semanas se passam antes que a observadora consiga contato novamente com a mãe, ao que Solange diz que o telefone estava com problemas. Marcam a primeira visita, a observadora chega ao local combinado e não encontra ninguém; telefona e ninguém atende. Ela vai embora.

Em um outro dia a observadora telefona novamente. Conseguem marcar o primeiro dia de observação. O título da transcrição dessa visita fica sendo: "A arte do encontro" ("embora haja tanto desencontro pela vida", Vinicius de Moraes).

O início desse contato, desencontrado, ambivalente e difícil de compreender vai marcar todo o processo de observação. A observadora não entende se é bem-vinda ou não nessa família e nessa casa, sente-se confusa recebendo mensagens ambíguas, contraditórias. Por um lado, Solange diz que a observadora pode vir "a qualquer hora" e diz a respeito de um desejo e uma disponibilidade totais para o encontro, fala que não deve ser desconsiderada; por outro lado, Solange fica, em alguns momentos, inalcançável pelo telefone, em outros liga para a observadora várias vezes em seguida, deixando recados e mensagens no celular e no telefone do consultório em um curto espaço de tempo. Quando a observadora retorna a ligação, Solange se desculpa, diz que precisa conversar e pede, com frequência, para trocar o horário marcado da observação.

Dessa maneira a observadora se vê ocupada por Solange ao longo de toda a semana, incluindo o dia que seria para acontecer a visita, outros dias de telefonemas, o dia para o qual a visita foi reagendada, a ida até a casa de Solange, que por diversas vezes não estava, os dias seguintes de dúvidas, as ligações de desculpas: "ai desculpa, eu tive que sair e não consegui te avisar".

Passados quatro meses do início da observação, houve um período no qual a observadora pensou que precisaria procurar outra família, pois havia semanas Solange não fazia contato (não atendia o telefone nem retornava as ligações) e não estava em casa no horário combinado. A observadora continuava telefonando, em horários diferentes, com a crescente sensação de que estava "atrapalhando" a família, quando parecia claro (segundo suas especulações interpretativas) que Solange não queria mais a sua presença e, pela sua maneira de lidar com a situação, resolvera dessa forma interromper o contato.

Antes desse "desparecimento", Solange havia contado que o marido estava batendo nela, o que fez com que a observadora se sentisse posta em um lugar estranho e desconfortável. O que ela deveria fazer? Solange a convidava a tomar uma postura diante do relato de violência? O relato das surras deveria ser compreendido como um sonho, uma fantasia, como se faz em análise? Mas a observadora não era a analista de Solange nessa situação, e por isso não dispunha de instrumentos para lidar com questões internas via interpretação. Até onde se mantém o método, que propõe neutralidade e não intervenção, e a partir de que ponto questões éticas como cidadãs passam a ser prevalentes?

Dia 27/02 - Estava sem esperanças, pensando onde encontraria outro bebê, mas telefonei novamente, não sem a sensação de estar novamente incomodando...

Telefonema: Solange atende... sem eu me identificar...

S - Oi...

O - Oi Solange, tudo bem?

S - Tudo.

O - Você tem um minuto para conversar?

S - Posso te ligar daqui uns 15 minutos?

O - Vamos conversar rapidinho? (fiquei com medo de perder contato com ela de novo).

S - Tudo bem.

O - Solange, eu imagino que estejam acontecendo coisas difíceis com você, como a que você me contou, com seu marido.

S - É, eu não estava ficando aqui.

O - Mas eu preciso saber se você quer que eu continue indo, porque nas duas últimas semanas eu fui, você não estava, a última vez que eu fui foi dia 29 de janeiro, há um mês. Queria te dizer para você ficar à vontade para dizer se quer que eu continue indo.

S - Eu quero, quero sim, é que aconteceu umas coisas, eu não estava ficando aqui, mas vou ficar agora, desculpa.

O - Não tem problema, só quero que você fique à vontade para dizer o que você quer.

S - Eu quero, pode vir. (transcrição)

Esse recorte da observação é interessante para pensarmos que o método de Bick preconiza a primazia da experiência sobre as explicações especulativas (Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron & Lopes, 2006). Nesse momento, a observadora tinha uma explicação parcialmente pronta de que Solange não queria mais a sua presença e ela não tinha acesso aos motivos para isso. A observação de bebê, com sua constância, que configura um setting específico, a presença confiável do observador à hora combinada, toda semana, possibilita a criação interna de explicações e teorias e a real observação cautelosa da emergência de padrões.

Seguimos mais um pouco com a observação. Questões concretas se colocaram na relação com a observadora, como quando Solange pediu dinheiro emprestado ou quando a filha mais velha estava presente e requisitava muito a atenção durante as visitas. Em meio a essas circunstâncias, o olhar para o bebê minguava.

(Marina tem nove anos, é a irmã mais velha do bebê). Marina pede a minha atenção de forma carinhosa, mas de maneira a não "me sobrar" para mais nada, pula de cá pra lá, do sofá para o chão me dizendo: "Olha tia, olha, olha"; não consigo muito olhar para Allison nem conversar com Solange, que tenta muito me contar coisas; ela me conta sobre não conseguir dormir, que acordou uma noite dessas e ficou na cama, com medo de ir tomar água, diz que ficou com a imagem da tia morta na cabeça, que é muito estranho conhecer alguém de um jeito e depois vê-la tão diferente.

A tia de Solange havia sido encontrada morta na semana anterior. Marina era uma criança viva e esperta, mas que, possivelmente pela falta de olhar que lhe atribuíam, tentava aproveitar toda a minha atenção enquanto eu estava ali. Daividsson Allison, nome difícil do bebê, nunca era dito, e a mãe o chamava de nenê. Eu tinha dificuldade de memorizar o nome e também não sabia como me referir a ele, e essa situação fazia com que eu me sentisse mal, um pouco culpada; eu não estaria atenta ao bebê? Não era isso que eu deveria estar fazendo ali? Observar o bebê? Isso me fazia pensar nas experiências ouvidas durante os seminários, nos quais minhas colegas diziam que seus bebês eram lindos, fofos, uma gracinhas. O "nenê" não era nada disso aos meus olhos. (transcrição)

Nos seminários clínicos de discussão, a observadora pôde dar lugar, com a ajuda das colegas, a uma reflexão menos superegoica e com mais possibilidades de pensamento. Foi-se pensado que a falta de registro que o "nenê" tinha em seu olhar, assim como sua falta de beleza e graciosidade tinham um sentido a ser considerado, e não era (pelo menos não exclusivamente) a sua falta de memória para nomes.

O "nenê" não tinha um lugar privilegiado na observação nem em suas transcrições ou preocupações, porque ele também não o tinha na mente de sua mãe e na vida familiar. O nome complicado, que trazia parte do nome do pai, parecia ser uma tentativa de dar um lugar especial e singular a uma criança que não tinha quarto próprio, não tinha brinquedos, não ocupava um lugar de objeto externo na mente da mãe, ao mesmo tempo que o projeto de um nome tão único que só ele teria fracassa ao ser simplificado para "nenê". Recordo aqui do menino mais velho e do menino mais novo, filhos de Fabiano em Vidas Secas (1938/2008). Graciliano Ramos nomeia dessa forma os filhos do casal retirante, apontando para a falta de nome próprio, não são ninguém em especial, sendo nomeados pelo lugar que ocupam na família.

Passaram-se meses de observação com as recorrentes demandas de mudança de horário, desencontros, pedido de empréstimo de dinheiro, relato de violência doméstica. No entanto, o que mais preocupava a observadora e a fazia repensar essa experiência era a localização da casa de Solange, que se situava não apenas em um bairro reconhecidamente perigoso de periferia, mas no fim desse bairro, em uma área de ocupação, uma ruela de terra. Os perigos que a observadora corria indo até lá com o seu carro particular e sem nenhum vínculo institucional vinham sendo tratados nos seminários.

Em determinado dia, no oitavo mês, a observadora cruzou com um carro de polícia na entrada do bairro, este a seguiu até ela estacionar. Os policiais fizeram diversas perguntas e pediram para revistar o carro. De início não pareciam entender o que ela fazia ali, mas depois foram embora não sem antes recomendar que não deveria estar ali.

Esse encontro em que os policiais se fizeram intimidadores e agressivos, como é o costume das abordagens policiais brasileiras, fez a observadora tomar a decisão de interromper a observação na casa de Solange. Sentiu que a polícia concretizava as ameaças e perigos imaginados, e dessa forma o medo tiraria sua disponibilidade interna para o encontro com a família. Nesse momento de decisão a observadora se deteve, em sua análise particular, sobre suas motivações inconscientes a respeito da interrupção e também sobre a demora desta, sobre questões de se colocar em perigo e tentar manter o vínculo com Solange.

A observadora conversou com Solange sobre a interrupção explicando o motivo real, a falta de segurança e o perigo que corria indo até ali. Solange perguntou se ela não precisava continuar, ela disse que sim, mas que não seria possível. Essa interrupção foi sentida de forma ambivalente, parte com alívio, parte com culpa em deixar Solange, o "nenê" e Marina.

 

Relato: o retorno de Solange

Passados cinco meses sem que a observadora tivesse notícia ou qualquer contato com Solange, esta telefona e diz: "não estou bem, preciso de você".

Marcam um encontro em um centro comercial do bairro para conversarem, mas Solange não aparece. A observadora questiona sua disponibilidade em ir até lá e atender esse pedido quando já imaginava que Solange poderia não ir. Solange telefona na semana seguinte perguntando se a observadora não poderia ir até a sua casa. A observadora está fora da cidade e diz que não pode, Solange pergunta quando ela retorna.

A observadora sente com mais clareza nesse momento o uso que Solange faz dela, percebe que pode se irritar contratransferencialmente se não se der conta de que Solange a trata como um objeto seu, de sua posse e para seu uso. No olhar de Solange a observadora não é um objeto externo dotado de características próprias, de uma vida, uma singularidade.

Passada mais uma semana, Solange telefona e pede uma indicação de clínica de internação para dependentes químicos. A observadora pergunta para quem é a indicação, ao que Solange responde que é para si mesma.

 

A experiência revisitada

Essa nova informação desperta uma retrospectiva em direção às observações feitas e algumas questões são levantadas pela observadora e compartilhadas no seminário. Como não percebeu nada em relação ao uso de drogas? Essa seria uma razão para as ausências e desencontros? Solange talvez não estivesse em casa ou desmarcava quando estava sob o efeito de substâncias psicoativas? Ou mesmo se desorganizava psiquicamente em relação ao tempo?

Solange passa a telefonar para a observadora diversas vezes por dia, relatando os acontecimentos e pedindo ajuda. A família quer interná-la, ela não sabe se isso é bom. A observadora indica um serviço de atendimento a usuários de drogas da cidade. Quando Solange vai a uma primeira consulta, seu sogro leva o "nenê" embora, para um bairro distante do seu. Solange telefona em uma manhã bem cedo e conta isso. A observadora pergunta como ela está se sentindo e ela diz que a "cabeça fica até pior". A observadora se sente invadida e requisitada a tarefas que nem entende quais são.

Segundo Rosenfeld, a respeito da identificação projetiva e transferência psicótica, "o paciente precisa da capacidade do analista para pensar e traduzir em palavras comuns, a fim de que sua própria comunicação adquira sentido. Em termos teóricos, o analista contém a identificação projetiva do paciente" (Rosenfeld, 1987/1988, pp. 255-256).

A partir desse conceito de Rosenfeld, é possível compreender a necessidade, a urgência e a desorganização do contato que Solange estabelece. Ainda segundo o autor, todo paciente psicótico mantém uma parte não psicótica da personalidade e ele espera que o analista se comporte como essa parte, caso queira ser de alguma ajuda.

Dessa maneira, nos contatos telefônicos Solange deposita suas identificações na observadora, que é requisitada a funcionar como continente para, então, traduzir sentimentos e experiências sentidas como intoleráveis.

A observadora foi percebendo isso aos poucos, pela sensação de que Solange apenas jogava ideias soltas, sem ligação e com pouca tonalidade emocional, como se ela, observadora, tivesse a incumbência de marcar o tom afetivo, fazer as ligações entre as ideias e os acontecimentos, propor reflexões e emitir pareceres a respeito.

Apesar de tecer tais considerações, com o auxílio da teoria, e contar com o espaço dos seminários como uma experiência de sonhar coletivamente, a observadora se questiona a respeito do tipo de transferência que o método é capaz de promover, e o mais relevante: qual o setting possível para se responder desse lugar transferencial.

A observadora já estava, nesse momento, observando outra família. Ir até a casa de Solange não era uma opção por conta da realidade perigosa do bairro (esse fora o motivo da interrupção), portanto ela se vê diante de um cenário no qual uma transferência potente se estabeleceu, mas não há enquadre, lugar para que esta possa ser trabalhada em benefício de Solange.

É de nós conhecida a delicadeza e destaque do papel do setting para o atendimento de pacientes mais graves. Segundo Winnicott, a técnica inaugurada por Freud seria adequada para pacientes que alcançaram certo grau de integração e têm seus conflitos centrados em relações entre pessoas inteiras. Da terceira categoria fariam parte aqueles com os quais precisa-se

lidar com estágios iniciais do desenvolvimento emocional, remota e imediatamente anteriores ao estabelecimento da personalidade como um entidade, e anteriores à aquisição do status de unidade em termos de espaço-tempo. A estrutura pessoal não está ainda solidamente integrada. A respeito desse terceiro grupo, a ênfase recai mais frequentemente sobre o manejo, e por vezes passam-se longos períodos em que o trabalho analítico normal deve ser deixado de lado, o manejo ocupando a totalidade do espaço. (Winnicott, 1954/2000 p. 375)

Pensar Solange como uma pessoa com esse tipo de organização fez sentido para compreender, em um segundo momento, os desencontros entre ela e a observadora, as confusões de horários e dias.

Continuando com o desenrolar dos capítulos posteriores ao "término" da observação, a observadora vai a uma reunião no centro de saúde onde Solange começou a ser atendida, para discutir o caso com a equipe. Essa reunião teria como objetivo estabelecer um elo concreto entre a observadora e essa equipe, para que Solange pudesse, talvez, passar a confiar nesses profissionais e nessa rede de cuidado. A observadora, inundada pelas identificações projetivas de Solange, sentia a necessidade de que tais identificações, pedidos e exigências fossem contemplados em um lugar que tivesse condições para atendê-los, visto que ela se sentia impotente e encurralada diante do lugar idealizado que Solange a colocava, como única e última salvação.

No dia dessa reunião, Solange estava no centro de saúde para participar de um grupo terapêutico. A observadora a procurou para conversar, mas não a encontrou no jardim onde os pacientes estavam. Telefonou para ela e viu a mesma moça que havia visto há poucos minutos vindo em sua direção; a observadora não havia reconhecido Solange. Ela estava magra, com olheiras profundas, um tanto sonolenta e com a fala embargada pela medicação, o cabelo estava pintado de loiro e ela exalava um forte cheiro de cigarro. Enquanto fazia as visitas, a observadora nunca a tinha visto fumando.

O marido de Solange telefonou para a observadora refazendo pedidos de conversa e ajuda já que ela era, sim, "de confiança". Entre queixas a respeito de roubos que Solange havia cometido para comprar droga, o marido falou a respeito da interrupção das visitas de observação: "enquanto a senhora estava vindo, ela estava controlada, depois que a senhora foi embora, aí piorou tudo, ela começou a não limpar a casa, não tomar banho".

 

Atualizando reflexões

Penso que não devemos tecer considerações interpretativas a respeito do uso de drogas de Solange, visto ela não estar em uma situação de análise. Prefiro me dedicar aqui ao ponto de contato entre esse uso (que pode ser compreendido de muitas maneiras) e a presença da observadora.

Podemos considerar que a insistência em se manter em contato com Solange, a presença real, a persistência em manter as visitas apesar das dificuldades, das mudanças de horários e dos desencontros serviram para manter o uso de drogas controlado por determinado período, fazendo uma hipótese de que Solange tenha tomado a observadora como uma espécie de superego organizador. A interrupção da observação parece ter sido sentida como falta do que a auxiliava a tecer contornos e limites. Pensamos que os telefonemas, a promessa da visita e o olhar concreto da observadora possibilitavam que Solange se localizasse no tempo, preparasse a casa para recebê-la, cuidasse de seu nenê. Apontamos dessa maneira para a potência da transferência estabelecida, ao mesmo tempo que consideramos a relevância do setting.

No entanto, considera-se quanto pode ficar de fora se o observador, enquanto analista em formação, focar seu olhar sobre os fenômenos pessoais compreendendo-os exclusivamente em decorrência de identificações, formas de estabelecer transferência etc. O uso de drogas, como o presente nessa observação, é uma realidade nos centros urbanos brasileiros que engloba amplos e diversos fatores, tanto de ordem psíquica e pessoal quanto de ordem social, política, de saúde e segurança.

Taniele Rui, antropóloga da Unicamp que dedicou seu doutorado para refletir a respeito dos usuários de crack, nomeia sua tese de "corpos abjetos", apontando para o sórdido e o desprezível com que os usuários tratam o próprio corpo e também a forma com que os outros os enxergam. Segundo Rui, o usuário de crack:

é limite de uma série de relações, produto e produtor de várias e diferentes gestões. Atiça e se submete a disputas terapêuticas. Demanda e tolera ingerências do tráfico de drogas. Incita e padece de intervenções urbanas, ora repressivas, ora assistenciais. Meu principal argumento... é o de que não é possível pensar em todo esse efeito público e político sem levar em conta o fato de que ele se liga intimamente à rejeição ou à comiseração diante de uma corporalidade específica, que materializa um tipo social, uma pessoa, que, por sua vez, nos obriga a refletir acerca dos limites da experiência humana. (Rui, 2012, p. 246)

Convido para fazer parte desta reflexão um olhar da antropologia não com a intenção de aprofundar considerações nessa direção, seara repleta de correntes teóricas e formas interpretativas, mas exatamente para trazer o outro, o estrangeiro em diálogo com a linguagem psicanalítica, já que se faz essencial que a psicanálise extramuros, expandida para além do consultório, se beneficie e se nutra de perspectivas para além do mundo mental.

Recorro à ideia de "corpos abjetos" (Rui, 2012) ao considerar que a observadora não reconheceu Solange por conta de sua mudança física. É consequência do uso de crack a aparência emagrecida, pequena para as roupas que se usava anteriormente ao uso e certa maneira de tratar o corpo marcada pela falta de limpeza, do cuidado conhecido pela higiene: essa é a corporalidade específica a que se refere Rui. Não pretendo aqui aprofundar essas reflexões, mas tão somente deixar marcado a intersecção de conhecimentos necessária para a observação de um fenômeno complexo como o uso de crack, "limite de uma série de relações" (Rui, 2012, p. 246).

Sem perder de vista o lugar do psicanalista, pensa-se essa experiência de observação também como um diálogo que atualiza a aproximação entre psicanálise e os cenários sociais onde esta se insere.

 

Conclusão

O trabalho se propôs a discutir três pontos: a potência dos seminários em grupo, os limites e possibilidades do método inserido nesse cenário social descrito e se a observação de bebês se configura como uma ferramenta válida para a formação analítica.

Os seminários em grupo foram, ao longo do processo, o espaço que possibilitou elaborações e pensamentos a partir das experiências concretas. O momento dos seminários seria o verdadeiro momento psicanalítico do método Bick (Lisondo e Ungar, 2002). É a oportunidade para que, com várias mentes trabalhando juntas, se possa obter acesso a conjecturas imaginativas, estimuladas pela leitura e discussão grupal dos materiais da observação. É a circunstância em que a experiência pode ser mediatizada pela linguagem, quando a palavra abre espaço para a possibilidade de pensar, abrindo-se, assim, as portas à possível elaboração.

A potência da transferência propiciada pelo método foi exposta e discutida, não sobrando dúvidas a esse respeito. No entanto, questiono-me se o método oferece possibilidades de responder, ou melhor, de conter tal transferência quando esta se caracteriza pelos elementos de identificação projetivos maciços como os discutidos nesse caso. De que maneira a cena urbana brasileira, vulnerável, perigosa, desamparada, entra em contato com o observador que se dispõe a ir à casa de uma família, a ser confiável e constante? Qual é o lugar que o observador de bebês é convidado a ocupar? Estas são questões a serem mais bem discutidas no nosso contexto social.

A batalha travada para conquistar um setting possível para a observação, constantemente invadido e ameaçado pelas visitas desmarcadas, ausências de Solange, falta de contato telefônico, se relaciona com experiências de atendimento no consultório com os ditos pacientes difíceis. Pacientes estes que faltam, desmarcam, não pagam, atrasam e todo tipo de atuação que atravessa o setting fazendo com que o analista precise constituir um setting psíquico, interno, como dispositivo de escuta de tais movimentos.

Quanto à relevância do método de observação de bebês na formação da identidade analítica, penso em uma aproximação possível entre a situação de observação e a do consultório entre analista e analisando, na qual o analisando tem papel ativo na mudança psíquica do analista (Franco Filho, 1992).

Seguindo esse pensamento, podemos considerar que a observação de bebês é uma experiência radical da construção da identidade analítica do observador, já que exige a suspensão do conhecimento prévio, das formulações lógicas explicativas em benefício da emersão da verdade da experiência, exige do observador a improvisação e o encontro com sua voz mais autoral e emancipada na construção de um setting analítico interno, apesar de todos os riscos.

"Se obscuros e monótonos dias assombravam os que procuravam a segurança, noites insones são as desgraças dos livres." (Baumann, 1998, p. 10).

 

Referências

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Recebido em: 17/11/2013
Aceito em: 26/11/2013

 

 

Marielle Kellermann Barbosa mariellekbarbosa@gmail.com
1 International Psychoanalytical Association.

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