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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

TRADUÇÃO COMENTADA

 

Bion, epistemólogo1

 

 

Por Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 

Introdução

A coletânea - "La preuve & autres textes" (A prova e outros textos) - reúne os artigos avulsos de Bion escritos entre 1976 e 1979. Vazados em estilo ensaístico, eles possuem um marcado sentido de oralidade, soando como transcrições das inúmeras palestras que ele proferia na época. Questões como a turbulência emocional, a multiplicidade de vértices, a cesura e a evidência em lastrear as interpretações psicanalíticas (ou, na tradução francesa, "a prova") são tratadas através de conjecturas imaginativas emanadas da clínica.

O texto ora traduzido, "Bion, epistemólogo", foi encomendado como posfácio a Pierre-Henri Castel, psicanalista de formação lacaniana e pesquisador no "Instituto de História e de Filosofia das Ciências e das Tecnologias". Nele, Castel tenta estabelecer a profunda unidade e coerência da obra de W. R. Bion, explicitando sistematicamente as fontes filosóficas e epistemológicas que a nutrem.

Segundo ele, o pensamento de Bion remete menos a uma psicologia empírica, que imporia suas normas à psicanálise de fora para dentro, e mais ao modelo da matemática, que engendra novos objetos a partir de seu interior, através do desdobramento intuitivo e construtivo de suas premissas.

Sua intenção, nesse posfácio, foi tentar ajudar o interessado na obra de Bion a reconhecer a continuidade entre o período dito "epistemológico" (Learning from Experience, Elements of Psychoanalysis, Transformations), iniciado em 1962 e encerrado em 1965, e o último período, conhecido como "místico" (que teve início em 1970 com Attention and Interpretation e culminou em 1977 com a trilogia A Memoir of the Future).

Com fôlego invejável, ele procura rastrear a articulação bioniana entre o crescimento do aparelho para pensar os pensamentos, a pulsão epistemológica, a intuição ligada ao "ato de fé", a generatividade intrínseca dos "elementos de psicanálise" e, finalmente, a relação última "O" com o real imanente da experiência. Mais especificamente, a partir do interior de sua própria epistemologia, ele tenta entender os motivos que levaram Bion a transcender a Grade, para pensar a cesura, a turbulência emocional, as evidências sobre a realidade psíquica e os vestígios da vida psíquica pré-natal. E, como fecho, ele enfoca aquilo que poderíamos chamar de "linguagem performática" de Bion, ou seja, sua relação joyceana com a linguagem e com a escrita autobiográfica e ficcional.

Ao mesmo tempo, com grande sinceridade, ele confessa seu conhecimento limitado sobre o esquema diretor de Uma memória do futuro, bem como das autobiografias póstumas (o que foi feito por Meg Harris Williams no artigo "Underlying patterns in Bion's A Memoir of the Future", de 1985, e nos livros Aesthetic Development, de 2011, e Bion's Dream, de 2011), mas intui que ali podemos reconhecer a lógica rigorosa que rege o crescimento do aparelho para pensar os pensamentos do próprio Bion.

Em relação aos últimos artigos de Bion, ele chama nossa atenção para seu caráter revelador do contato entre finito e infinito, o circunscrito e o ilimitado, o racional e o delirante, a saúde psíquica e a loucura. Seu instrumento princeps teria sido um uso "científico-delirante do intuicionismo" inspirado em Poincaré e que o conduziu ao paradoxo cognitivo da teologia mística, o da obtenção do conhecimento a partir do não-saber. Não se trataria aqui de um mero salto empático no amorfismo, mas, sim, de uma forma pós-moderna de "sentimento oceânico".

Castel disseca para nós o manancial que a "Formulação sobre os dois princípios do suceder mental", de Freud, acabou tendo para a metapsicologia bioniana, em especial a permanência de partes do princípio do prazer mesmo após a implantação do princípio de realidade. Além do mais, foi apoiando-se na série de mecanismos elencados por Freud, para adaptar o aparelho psíquico à realidade da ação que Bion teria concebido o eixo horizontal da Grade, aquele em que tabulamos os usos possíveis dos estágios de pensamento distribuídos no eixo vertical: em suma, a original articulação operativa entre as posições kleinianas e as etapas freudianas.

Em várias passagens nos surpreendemos como a densidade conceitual francesa (explicitada sempre através de longos períodos) se rende ao empirismo inglês: é o caso, por exemplo, da admiração pela sugestão de Bion de que a "cura" possível não opera via reconstituição do aparelho psíquico, mas, sim, habilitando-o a melhorar sua capacidade de suportar sofrimentos ou habilitando-o a pensar/conhecer seus pensamentos psicóticos. Ou então quando os elementos-b são descritos como "agentes alfandegários" encarregados de compatibilizar as restrições internas do princípio do prazer com as demandas externas do princípio de realidade.

Apesar de seu rigor metodológico, este magnífico posfácio nos brinda com formulações expressivas de caráter poético, como quando correlaciona a "potência da perda" de Lacan, ou a "capacidade negativa" de Keats, à "riqueza dolorosa e formadora do desejo situada à montante do atuar"ou então quando sugere que "a escrita analítica é a percepção estética das 'nuvens' associativas que se elevam acima do divã".

Apoiados na epistemologia de Cantor, somos levados a acreditar que a diagonalização implícita na Grade, ou seja, a evolução de A1 até F6, é que nos permite "pensar o infinito aqui e agora", portanto, "ser Deus". Não acredito que Bion tenha se valido explicitamente das análises lógico-matemáticas sugeridas por Castel, mas isto não invalida suas implicações para aqueles possuidores desse background epistemológico (infelizmente, não é o meu caso).

A conclusão de Castel é que a uni-fic-ação (at-one-ment) com "O" é um pensamento que se lança além do Deus da religião em busca da "potência", que nos permita intuir nossa origem real, sem desfalecer de terror. Foi isto, talvez, que o próprio Bion vivenciou em 8 de agosto de 1918, quando, em meio à carcaça de seu tanque enlameado e rodeado pelos cadáveres de seus camaradas, sentiu que sua alma acabara de morrer, mas que seu corpo se tornara eterno.

Em função da enorme importância histórica que a obra de Bion continua tendo no quadro formativo do Instituto da SBPSP, pareceu-nos oportuno traduzir o ensaio de J. O. Wisdom "A metapsicologia passados quarenta anos", artigo publicado originalmente em 1981 e cuja tradução saiu no Jornal de Psicanálise, vol. 46 (84), de 2013. Sugerimos, então, a publicação deste posfácio de Castel, por entendê-lo um excelente contraponto ao trabalho de Wisdom e, também, por ser uma radiografia do dna da SBPSP ao expor, de forma brilhante, a linhagem Freud-Klein-Bion.

 

Bion, epistemólogo

Pierre-Henri Castel, Paris

A psicanálise ... não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, e só lhe resta aguardá-lo, esperá-lo. Mas é um delírio em que se espera que comporte uma ciência. É um delírio em que se espe ra que ela se torne científica. Pode-se esperar longamente. Pode-se esperar longamente e eu digo por que, simplesmente porque não há progresso e porque isso que se espera, não é forçosamente aquilo que se obtém. É um delírio científico, então, e se espera que comporte uma ciência, mas isso não quer dizer que alguma vez a prática analítica comportará essa ciência.

Jacques Lacan ([1977]1998, p. 52)

Como vamos suportar semelhante ataque a nossa mentalidade?

Donald Meltzer ([1978]1994, p. 71)

A obra de Bion ainda é pouco apreciada na França, apesar dos trabalhos de alguns corajosos divulgadores. E, no entanto, nesse ensaio que segue, não me proponho de forma alguma resumir os vários comentários que ela suscitou nem fornecer uma introdução global à obra de Bion, que certamente já existem, e excelentes. Não, o exercício aqui será um pouco diferente. Porque, para Bion, os olhos não servem primeiro para ler: eles servem para ver, e ver no sentido do contato psíquico e intelectual sem mediação com o real - em uma palavra, a intuição. Por razões que irei desenvolver progressivamente, pensar com Bion não pode, então, se resumir a articular coerentemente textos, ou comentários autorizados, nem qualquer coisa que se apoie na linguagem: isto representaria "nada mais que palavras" e significações superficiais. Pensar com Bion, é penetrar ao contrário na espessura propriamente conceitual tanto dessas palavras como dessas significações, ou seja, naquilo que lhes confere seu valor lógico e epistêmico. Por quê? Porque se acede assim às formas de ligação (linking) dos pensamentos entre si, invisíveis de outra maneira. Melhor, acede-se assim a formas de ligação entre pensamentos que só a psicanálise descobre, não somente a partir de seus procedimentos clínicos, mas, ainda mais além, porque ela mostra aí sua marca epistemológica própria e, talvez mesmo, sua cientificidade.

É por isso que este ensaio não se enquadra na hermenêutica usual, dito de outro modo, numa tentativa de interpretação de textos e de seu sentido. É que os comentadores de Bion se esforçam, sobretudo, como fascinados e fragmentados pela abstração de sua terminologia, por proporcionar ilustrações clínicas concretas do que se pode querer dizer a partir de suas fórmulas, quando não se precipitam na via aberta pelo próprio Bion, que é de nos informar sobre a repercussão que tiveram suas concepções sobre o próprio comentador. Em suma, estão em busca daquilo que o pensamento de Bion modeliza. Eu me esforçaria, de preferência, a levar radicalmente a sério a postura bioniana de uma modificação psíquica do leitor-analisante, de maneira que ele possa mudar seu estado interior e ver psicanaliticamente o que ele nunca tinha visto nem concebido. Porque o pensamento de Bion não é um modelo (subentendido entre outros) da psicanálise. Bion, de fato, transforma as concepções freudianas e kleinianas as mais ortodoxas, de sorte que, aparentemente, sua literalidade é pouco, ou nada, afetada, enquanto que na realidade seu potencial de esclarecer os fatos é ou bem renovado, ou atualizado como nunca. Pois essa interferência cria um sistema. E o pensamento de Bion, desse ponto de vista, remete menos a uma psicologia empírica, que imporia de fora suas normas à psicanálise, que às matemáticas, que engendram novos objetos de modo estritamente interno pela extensão ao mesmo tempo intuitiva e construtiva de suas premissas. Ora, como se sabe, não há hermenêutica dos textos matemáticos (ou, se as há, é uma análise completamente exterior e histórica): é preciso ver do que eles falam.

Tenho perfeita consciência de que meu trabalho deixará profundamente insatisfeito o leitor que deseja decifrar o texto bioniano como um texto puro, comparando simplesmente seus enunciados aos de Freud, de Melanie Klein (ou, no meu caso, de Lacan), sem dar crédito a priori do poder que ele reivindica com ênfase, de fazer funcionar esses mesmos enunciados de maneira totalmente original, "matemática" − este o termo empregado por Bion −, o que, em todo caso, nem Freud, nem Melanie Klein reivindicaram.

Mas vejamos ainda duas outras advertências.

Este pósfácio não é a explicação dos artigos que o precedem. Eu só proponho um contexto para uma releitura possível desses artigos, a partir daquilo que eu suponho mais conhecido de Bion (os escritos do período dito "epistemológico", concluído com a publicação de Seven Servants (1977), e com o objetivo de demonstrar a continuidade real, profunda, desses textos, na maioria já traduzidos em francês, com os do último período, também conhecido como "místico". Pois, mesmo quando Bion dá a sensação em seu próprio movimento de ter superado a Grade e as reflexões ditas "matemáticas" dos anos 1960-1970, ele ainda não se questionou suficientemente as razões dessa superação. Ora, elas existem, e são profundas. Meltzer apontou algumas, alarmando-se - atente-se para a inscrição - com a tensão inaudita induzida no leitor pelas páginas de Transformations em que Bion passa de um estudo "algébrico" das funções e dos fatores da psicanálise, em continuidade com a elaboração da Grade e dos elementos, nessa expansão em direção ao "ato de fé" em "O" (isto é, a realidade una e imanente da experiência) (Bion, 1965/1982, pp. 166-ss.). Pois essa expansão parece libertar o analista de toda limitação de racionalidade, dissolvendo a realidade psíquica numa noite escura.

Eis, justamente, porque eu sugiro retomar a análise no ponto onde Meltzer a tinha deixado e analisar com novos esforços a articulação bioniana entre crescimento (growth) do aparelho psíquico (isto é, o "aparelho para pensar os pensamentos"), pulsão epistemológica, intuição (que Bion nomeia intuit) e epistemologia, e logo, a partir daí, procurar se apropriar daquilo que Bion concebe como a generatividade intrínseca dos conceitos e dos "elementos" da psicanálise, sua ligação com a história das ciências, até a relação última com o real imanente da experiência (com "O", assinala Bion). Uma tal relação é, de fato, aquilo que suscitou, a meu ver, os mais nefastos contrassensos, porque a expressão deliberadamente religiosa e metafísica de Bion sobre esse tema, pode deixar acreditar que se tratava de uma renúncia, quem sabe inclusive uma completa retratação, à luz dos textos do período epistemológico. Eu vou mostrar que não é nada disso. E vendo melhor por que o leitor dos últimos artigos será introduzido àquilo que confere uma coerência profunda à abordagem bioniana, o problema que o anima e o impulsiona adiante.

Segunda observação: nestas páginas eu quis testemunhar efeitos do choque, sim, a comoção tanto psíquica como intelectual que causa a leitura de Bion em todo analista que se preocupa com o que poderíamos ousar chamar, com seu peso de promessas e dificuldades, de cura dos psicóticos - ao menos, em todo analista prevenido por aquilo que Lacan, de quem provém minha formação inicial, considerava sob o título arquiprudente de uma "questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (Lacan, 1966, pp. 531-583).

Mas o ponto decisivo é este: em Bion, pensar a experiência é, em si, uma experiência de pensamento. Chega a ser uma afirmação de princípio. Ela circunscreve o campo daquilo que é autenticamente psicanalítico. Então é crucial indicar ao menos uma via sobre a qual não existe dois Bions, mas um só: um Bion epistemólogo e um Bion que, por razões a elucidar no seio de sua própria epistemologia, abandona a Grade e pensa a "cesura", a "turbulência" ou os vestígios imperceptíveis de nossa vida antes de nascer. Assim, a contraprova capital de toda hipótese de continuidade entre os dois Bions será a de dar conta da relação joyceana com a linguagem e a escrita autobiográfica e ficcional, que é como uma dobradura ininterrupta de seu trabalho engenhoso, nesses anos decisivos. É a isto que se consagra o objetivo final deste ensaio. Desejar-se-ia também um encorajamento a não nos fixarmos nos últimos artigos aqui traduzidos, mas de se examinar mais de perto o que Bion escrevia no mesmo momento, e que é relativamente fácil separar de sua obra psicanalítica propriamente dita. De fato, como será minha conclusão, ela se prende ao mesmo movimento psíquico criador, ainda que sua forma exterior pareça inteiramente distinta 2.

Certamente não tenho mais que os outros a chave para decifrar o detalhe ou mesmo o esquema diretor de A memória do futuro, menos ainda da autobiografia póstuma (Bion, 1982 e 1985). Creio, ao menos, poder mostrar que o que explode literalmente nesses textos não é outra coisa se não o que estava reunido conceitualmente e comprimido ao extremo nos escritos do período epistemológico. O que pode então se considerar extravagante a esse respeito não é a ignorância da lógica rigorosa que rege o crescimento do aparelho bioniano para pensar os pensamentos. Eis porque a inscrição deste ensaio rende homenagem, à sua maneira, a uma tensão inaudita e própria no campo da cultura contemporânea, à psicanálise: aquela entre os materiais do inconsciente em sua selvageria pulsional, dentro da ilimitação exuberante e irreprimível de suas relações mútuas (o delírio), e o que o espírito humano, ao contrário, cria de mais regrado, de mais útil socialmente, de mais eficaz intelectualmente (a ciência). Se a psicanálise é assim uma ciência, talvez mesmo a ciência do psiquismo, é porque, em toda hipótese, ela daria conta não somente da loucura (explicando suas causas, sua inelutabilidade talvez, em circunstâncias determinadas), mas, ainda mais, porque ela seria uma razão entregue à loucura, a essa espécie de loucura que define a razão não como um abismo, mas como a terra macia que envolve as raízes.

Que a língua da psicanálise, especialmente a língua kleiniana, que "explica" os fantasmas por outros fantasmas, mais arcaicos, e que trata jogos infantis, mitos e sonhos como operadores produtores de sentido e de metamorfose psíquica, que essa língua em especial ao possuir ao mesmo tempo uma gramática e uma lógica e que ela ambicione se tornar um sistema dedutivo de manifestações do inconsciente, já é em si uma provocação contra o bom senso. Porém Bion dá um passo a mais: ele conjectura que a cientificidade, ela mesma, não é nada mais que um rebento dessa atividade inconsciente, fantasmática, ilimitada e selvagem, e que o psicanalista está em casa nas produções psíquicas do saber científico, sejam elas as da geometria, as dos estados espirituais dos homens de fé ou dos impulsos da criação artística. Ele se constitui com aquilo que o científico rejeita como delirante: com seus mitos (O Édipo, o norteador principal), seus fantasmas, seus sonhos e seus mecanismos psíquicos arcaicos (identificação projetiva, negação, idealização). Agora, é o Teorema de Pitágoras, a conjectura cosmológica, o princípio biológico grandioso que são integrados ao crescimento do psiquismo e à história do grande grupo humano, se equipando de um aparelho mais vasto e mais potente para pensar.

Não foi suficiente para Bion que a psicanálise fosse um "delírio científico". Ele foi bem mais longe do que afirmar, à maneira do relativismo chique, que a ciência não é senão um delírio entre os outros (salvo que avança, já que transforma a realidade). Bion se instalou na conjuntura fugaz, em que o ilimitado próprio à vida inconsciente reencontra o limite, a determinação, o conceito: lá onde a língua joyceana é o horizonte inatingível da Begriffsschrift de Frege,3 onde o rigor neopositivista de Braithwaite,4 liquidando a explicação causal tradicional, ilumina a causalidade delirante do mundo schrebiano. E eis o que revelam os últimos artigos de Bion: esse contato do finito e do infinito, do circunscrito e do ilimitado, do racional e do delirante, da saúde psíquica e da loucura, só é atingido nos expondo aos limites de nosso funcionamento mental, e talvez físico também (como quando Bion sugere que nós deveríamos considerar na cura aquilo que nos aconteceu antes do nosso nascimento, nos primeiros tempos, embrionários, de nossa progressiva determinação como indivíduo). O próprio texto bioniano tem os traços desse esforço estranho que desloca de fio a pavio as posturas freudianas e kleinianas da oposição consciente/inconsciente. Eis a fórmula exata de Bion: "O fator distintivo que eu desejo introduzir não passa entre consciente e inconsciente, mas entre finito e infinito"(Bion, 1965/1982, p. 57). Eu sustentaria então que, substituindo consciente/inconsciente por finito/ infinito, ele não renega nada do que tenha adquirido epistemologicamente com a Grade.

Captar no ponto justo o que Bion quer dizer com isto é extremamente difícil. O leitor julgará a plausibilidade do que eu compreendo a esse respeito.

Mas uma coisa é certa. Bion, deslocando assim as posturas da psicanálise clássica, transporta-se aos limites que a Grade o ajudou a circunscrever; dito de outra maneira, lá onde alguma outra coisa poderia ser pensada e dita de outra forma. Ora, como a Grade fica como pano de fundo de seus últimos ensaios, um dispositivo de notação para o que é autenticamente psicanalítico em toda situação terapêutica e em todos os julgamentos sobre a existência, como continua sendo uma abstração rigorosa, elevada à potência da combinatória, das "cogitações" íntimas, das leituras clínicas, das escolhas teóricas, dos sonhos, das lembranças das curas de Bion, seria perfeitamente normal que a última expansão do aparelho psíquico do próprio Bion abandonasse até a forma. Como se Bion tivesse "digerido"plenamente esse aparelho digestivo, que ele compara sem parar ao aparelho psíquico e que, agora libertado da restrição que imporia esse aparelho como aparelho, ele tenha ido mais diretamente aos recursos intuitivos de seu pensamento, ou seja, àquilo que o nutria de maneira imanente e, por assim dizer, sem intermediários.

É por isso que a transição do período epistemológico até a última fase de suas reflexões parece ter se passado sem dor. Bion, recomendando que notássemos regularmente isso com que se pensa (restos de sonhos, frases surpreendentes de um paciente, fragmentos anotados de textos fundadores os quais não se cessa de retomar, poemas que emocionam etc.), dizia que um tal proceder permitia ao analista ver sob seus próprios olhos seus pensamentos perecerem, outros passarem ao primeiro plano e ainda outros se reaparecerem, e toda sua máquina mental se transformar, nem tanto em seus produtos (nosso ego tem por função sustentar a ilusão vital de que pensamos sempre a mesma coisa, ou quase), mas em suas engrenagens reais. E então: um dia, a Grade não é mais necessária, ela é deixada para trás. No mesmo momento, Bion libera sua escrita, tanto a teórica como a mais íntima, a autobiográfica e a ficção, de sua propensão a atuar de forma combinatória: a Grade é substituída pelo entrelaçamento, ou seja, pela meada; a ambição construtivista, e mesmo finitista, tão seriamente aplicada, é substituída pela abertura intuitiva ao Um-Todo (O), pela proliferação de apreciações e a ironia de suas encenações, pelo tatear passo a passo de uma categoria da Grade à sua vizinha direta, de um tema a outro em todos os níveis. Bion teria, então, inventado, para finalizar, uma hiperGrade de dimensões infinitas? Além disso, renunciou a filtrar sua própria experiência, a ruidosa confusão de seus pensamentos e de suas emoções (aquelas da infância tão triste, da guerra, traumatizante, sobre os lutos da vida) com um crivo artificial? Ele soltou a angústia atravessada, uma muleta mental vã? Na irresolúvel resposta a essas questões, oculta-se agora em companhia de Lewis Carroll, quem pensava, por sua vez, que se deveria ensinar às meninas a matemática - o que seguramente é mais frutífero do que o inverso.

Logo, eu me proponho a três coisas.

A primeira, é de se reconsiderar as pretensões da Grade, se essa deve finalmente ceder lugar a isto: a aparente inversão sistemática de todos os valores da epistemologia bioniana, de seu formalismo como de sua visada sintética freudiana-kleiniana. O que quer dizer, em suma, substituir consciente/inconsciente por finito/infinito? A segunda, é levar a sério a epistemologia de Bion lendo-a como uma versão psicanalítica do intuicionismo - esse movimento intelectual o qual Poincaré, a referência constante de Bion, é um precursor, e que, no meu entender, permite apreender a que classe de infinito, o infinito "potencial", Bion se referia, e por quê. A terceira, é de seguir Bion, precisamente seguindo o fio de seu uso científico-delirante do "intuicionismo", dentro de sua superação da Grade: o caráter radicalmente potencial do infinito que ele concebe o conduz de fato a uma família de paradoxos bem conhecidos em teologia mística, mas da qual ele faz uma leitura ao mesmo tempo espiritual e não religiosa - já que voltada à imanência do real. A aposta desse percurso é a de provar que Bion não é absolutamente um eclético nem um artista da aproximação iluminadora: pois o que falta aos comentários usuais é, ao contrário, o ponto de vista (vertex) de onde tudo se ordena, e a concepção bioniana da intuição, com suas fontes históricas e sua dinâmica conceitual - é este o meu ponto de vista. Finalmente, eu colocarei, então, a título de introdução à releitura, algumas questões sobre os ensaios dessa compilação: como ler ali outra coisa além de uma apelação empática ao salto no amorfismo, negando toda exigência da razão, em resumo, uma forma pós-moderna de "sentimento oceânico", mas que ultrapassaria a psicanálise a partir do seu interior?

A premissa essencial de tudo o que se segue poderia se formular assim: a Grade (ver o quadro 1) não é um modelo teórico sintético da epistemologia bioniana nem nada que se deva ou se possa verificar a posteriori confrontando-a com a experiência clínica: a Grade é a transcrição do jogo interno do aparelho psíquico, de seu funcionamento próprio e de seus elementos exclusivos, e, nesse sentido, ela autentica a priori como psicanalíticos tanto os fenômenos quanto os processos que ela indexa e cujas relações mútuas (isto é, sua ordem real de aparição, as hierarquias funcionais que esta rege etc.) são determinadas de maneira construtiva. A Grade, assim entendida, é o "aparelho para pensar psicanaliticamente os pensamentos". É por essa razão substancial que ela pode se servir, em seguida, da ajuda-memória na notação de uma sessão, de tela branca para aumentar seu domínio da articulação dos conceitos psicanalíticos, da Grade de deciframento dos textos teóricos ou dos casos de colegas, de base de extrapolação para a autoanálise etc. Em todo caso, ela resulta de um registro rigoroso da maneira como Bion, por um momento, julgou que ele funcionava psiquicamente como analista. É, então, tanto uma ferramenta teórica como um produto psicanalítico absolutamente autobiográfico, a forma de um tornar-se psicanalista tal como se vive, se pensa e se nota de forma abstrata. Uma sequência extremamente perturbadora dessa maneira de ver as coisas, é que uma cura, tomando as coisas à maneira de Bion, poderia então muito bem implicar estruturalmente um momento de reflexão autoteorizante, certamente não como um curto circuito ou uma via desviada da resistência, mas, ao contrário, porque abriria a possibilidade de uma generatividade no saber singular adquirido pela cura. O aparelho para pensar psicanaliticamente os pensamentos não se resume à inteligência afetiva do peso do Édipo na transferência. Ele libera mais além das potencialidades psíquicas que situam o indivíduo analisado de outra maneira, sobre o plano espiritual face à religião, sobre o plano da sensibilidade estética diante da arte, e sempre em direção de uma maior integração-abstração do simbolismo, sobre o plano racional diante da ciência. A realidade psíquica do crescimento do aparelho para pensar os pensamentos se expressaria, então, na produção de pensamentos novos e pertinentes, cujos rumos e fontes seriam legíveis no coração dos processos inconscientes descobertos pela cura. E não estou falando de opiniões sobre a religião, a moral, as artes e as ciências. Eu falo de ideias eficazes, causas de mutações dentro desses mesmos registros: dito de outro modo, de contribuições positivas para esse grupo de trabalho (working group) em progresso, que é a humanidade genérica.

 

 

Seria o suficiente para sustentar meu postulado de identificação prática do aparelho psíquico com a Grade remeter-se às recomendações de Bion: observem suas raras referências a Freud e Melanie Klein, pensem nelas como escolhidas, e as tratem exatamente como Bion preconiza, como se fossem engrenagens intelectuais, cuja importância psíquica se infere pelo uso que se faz delas constantemente - em suma, não como "pensamentos pensados", mas como "pensamentos pensantes" que servem para pensar psicanaliticamente os pensamentos, e que têm a particularidade de poder se organizar dentro de uma ordem (inclusive de numerar-se), de se implicar formando árvores, e, em tudo isso, de se sujeitar a uma ideografia.5 Ora, dentre as raras referências de Bion a Freud, as "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico" (Freud, 1911/1998) têm um estatuto à parte. Freud lista aí as etapas da gênese do psiquismo a partir dos postulados metodológicos da psicanálise, surgindo, em primeiro plano, o conflito entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. Freud distingue oito momentos nessa extraordinária construção metapsicológica:

1. O nascimento da atenção sob pressão do princípio de realidade, com seus correlatos, a notação e a investigação;

2. A delimitação de um resto do princípio do prazer, intratável e clivado (é a famosa comparação do inconsciente ao "parque natural" de Yellowstone);

3. Deduzir-se-á aí o desenvolvimento da sexualidade em dois tempos (infantil e pubertário), e, portanto, do sintoma, através do mito do Édipo;

4. Freud se coloca, então, a questão da dosagem dos respeitos devidos às limitações da realidade em relação às demandas do prazer, opondo a religião à ciência;

5. Inferem-se daí os princípios da educação;

6. A arte aparece como uma reconciliação especial dos dois princípios;

7. Depois Freud historiciza radicalmente a apreciação que se deve fazer sobre as neuroses, referindo-as aos pensamentos disponíveis de uma dada época na moral, na religião, na ciência e nas artes, porque esses aí são os pensamentos que cada indivíduo dispõe de imediato para agir, e que guiam sua ação;

8. As "Formulações" terminam sobre uma alusão ao sonho do paciente cujo pai "não sabia que ele estava morto", um meio que Freud escolhe para levantar a questão de nosso acesso a um princípio do prazer que, em suma, não existe se não para ser radicalmente combatido e negado: é nos buracos da vida psíquica que restituimos isso à eficácia, compreendendo "que ele estava morto ... segundo o desejo do sonhador".

As "Formulações", pode-se ver, constituem um compêndio da metapsicologia freudiana, articulando suas facetas psicogenéticas, clínicas e antropológicas, fazendo perceber ali, como em nenhuma outra parte na obra de Freud, a interdependência.

A ironia das últimas palavras é para meditar: "Eu deveria esperar, portanto, que os leitores benevolentes não deixarão de captar onde começa, neste trabalho, o domínio do princípio de realidade". Freud confessa aqui, mais que em outras partes, que a teoria psicanalítica não pode fugir do âmbito daquilo que ela descreve, e que é um pensamento construído sobre os mesmos princípios que os outros. Logo, deve-se assinalar com ênfase que em psicanálise não se pode depurar a teoria do fantasma, do fantasma epistemofílico da teorização. Isto seria um projeto de objetivação psicológica fora de contexto: a teoria, quer dizer, o que do real se tornou pensável, não é se não aquilo que o aparelho psíquico pode pensar hic et nunc em função das limitações internas do princípio do prazer e dos meios e das limitações externas, que são pensamentos em circulação (morais, científicos, estéticos etc.); dito de outro modo, pensamentos já pensados pelo grupo, e que cabe a cada um tornar pensante. Todo "modelo" de psiquismo trai, então, qual gênero de psiquismo se deseja, e é somente sob esse axioma que se pode creditar a uma teoria psicanalítica o poder de analisar não somente o desejo que ela objetiva, mas também o desejo do psicanalista que a carrega: e, portanto, na transferência, o desejo do paciente, desejo que ela obtém, por lá mesmo, os meios de suportar.

É esse o texto que Bion submete a uma decomposição absolutamente fregeana (aquela aplicada na Begriffsschrift e nas Grundlagen der Arithmetik).

Porque Freud, nas "Formulações", amplia a evidência de duas séries de determinações, sem tomar o cuidado de separá-las analiticamente (no sentido da distinção dos conceitos). A primeira, é a série de mecanismos do aparelho psíquico vinculados a sua função de adaptação à realidade pela ação: a notação-registro, a atenção exigida pelo mundo exterior, as facilitações impostas de fora com um sabor peculiar, depois o percurso no outro sentido dessas mesmas facilitações em direção ao exterior, para fins de investigação ativa, e, finalmente, a ação correta tornada possível por esses preparativos.6

Pergunta-se com frequência como Bion podia pensar as colunas além do número 7. Não creio, em absoluto, que haja aí um enigma. Suas investigações sobre os grupos indicaram perfeitamente as possibilidades de ação verdadeiramente coletivas, e a possibilidade, em particular, de que os indivíduos de um grupo eficaz, o grupo "de trabalho", como diz Bion, co-agissem distribuindo entre si o trabalho do aparelho psíquico. Se o sentido geral do desenvolvimento desse eixo é claramente o de uma argumentação da potência abstrata de conter conteúdos psíquicos, preservando por um refinamento crescente os limites efetivos do aparelho psíquico (isto é, a "barreira de contato", que é uma fronteira, dito de outro modo, não uma muralha, mas um lugar de passagem cada vez mais estruturado), então é lógico que o continente último do pensamento seja o grupo humano co-agindo, que a linguagem compartilhada e as representações simbólicas estão todas a serviço da melhor adaptação de seus membros. O primeiro eixo deduzido por Bion das "Formulações" é vetorizado, assim, pela função continente/contido (♀♂): indica, de fato, da notação à ação, os meios psíquicos de nosso aparelho de pensar para se relacionar com os conteúdos sob a limitação do princípio de realidade.

O segundo eixo, regendo a ordem sucessiva das fileiras, capta a outra dimensão crucial da metapsicologia das "Formulações": o crescimento em qualidade e em densidade psíquica dos conteúdos submetidos às operações do eixo horizontal. Essa integração-simbolização obedece à segunda operação kleiniana mais conhecida - não mais a dialética formal contido/continente, mas a dialética qualitativa esquizoparanoide/depressiva (Ps->D). A originalidade de Bion terá sido, assim, de articular posições kleinianas e etapas freudianas (no sentido da psicogênese do aparelho psíquico), voltando sistematicamente a cruzá-las. É a razão pela qual a Grade é bem uma síntese freudiana-kleiniana, mas que, por seu estatuto de síntese psiquicamente vivida, aprofunda e desloca a significação das notações sintetizadas.

O que existe de fregeano na operação, por conseguinte, aparece em plena luz.

Frege mostrou que um número não pode ser um número de coisas, mas que só a propriedade de numeração pode ser atribuível a um conceito de coisa. Segundo o exemplo clássico, "quatro" não se atribui ao objeto-cavalo, que dá patadas e relincha, mas ao conceito "cavalo da carroça do imperador". Se não se distingue, apesar da forma verbal de superfície que os superpõem um sobre o outro, o nível dos conceitos e aquele dos objetos de sua extensão, nunca se dará conta das propriedades do número: em particular, nunca se poderá compreender a generatividade aritmética. Bion, por sua vez, se propôs exibir a articulação em níveis encaixados requeridos pela conceitualização psicanalítica. Os "elementos" e as "funções" da psicanálise (o Édipo, o pensamento negado, a interpretação por nominação etc.), mesmo se eles se apresentarem de maneira compacta na compreensão comum, puramente verbal (como na fórmula "os quatro cavalos da carroça do imperador" em que, literalmente, "quatro" parece se aplicar ao objeto "cavalo" como um epíteto a um substantivo, o que mascara a verdadeira operação de enumeração, ou seja, o que nós pensamos ao enunciar essas palavras) -, esses elementos e suas funções só têm, então, um verdadeiro poder conceitual psicanalítico se se deixarem decompor sobre os dois eixos da Grade e sobre estes exclusivamente, ou seja, em função de sua capacidade psíquica de contenção (♀♂) e de seu grau de integração-simbolização (Ps->D). Assim analisados, esses conceitos revelam, tal como em Frege, a distinção precisa entre objeto, conceito e número sob a crosta das palavras ordinárias e, ao mesmo tempo, seu ordenamento hierárquico e sua própria generatividade. Evidentemente, a generatividade não é aquela da série dos inteiros, mas aquela dos estados psíquicos gerados ao longo da maturação do aparelho psíquico. Como leio Bion, e mutatis mutandis, não seria pois um absurdo pôr em paralelo forma/conteúdo, conceito/objeto e (♀♂)/(Ps->D). Em consequência, não são bem definidos, e não são objetos legítimos da psicanálise, se não os termos estritamente gerados nas intersecções da Grade. Já não se trabalharia mais sobre um sonho ou uma negação, sobre um conceito religioso do paciente ou sobre a maneira pela qual uma certa reação afetiva constitui um acting-out (estaríamos no nível empírico e prático da clínica psicanalítica, sua forma pré-científica), mas sobre casos lógica e psiquicamente vinculados à sua vizinhança e acessíveis por uma gama restrita de caminhos.

A metapsicologia de Bion torna-se, assim, normativa ao mesmo tempo que dedutiva. Porque a autenticidade psicanalítica se define a priori (segundo seus eixos freudiano-kleinianos), enquanto que a direção da cura depende de um só e único fator: o crescimento (growth) do aparelho psíquico, o qual se mede por um aprofundamento qualitativo dos conteúdos e pelo aumento conjunto de capacidades em conter o aparelho de pensar.

Adivinha-se, então, em que sentido considerar o título da obra coletiva editada por Joan Rivière em 1952 Developments in Psychoanalysis. Todos os artigos estão ligados aos desenvolvimentos, exceto os apêndices dispensáveis. Eles procedem de uma vontade de extensão regulada pelos fundamentos da psicanálise. Na palavra "extensão", deve-se ler o conceito metodológico e lógico: uma cobertura mais vasta dos fenômenos e uma regra mais precisa para determinar quais recaem, ou não, sob o conceito. Ora, mais que nada, esses desenvolvimentos criam analistas novos, equipados psiquicamente para aventuras clínicas que se compreende facilmente que tenham podido fascinar e assustar a primeira geração freudiana. Mas eu diria que a sobriedade da Grade consiste antes de mais nada no fato de que ela não forja novos termos psicanalíticos: ela articula mais exatamente os que já existiam. Articulando-os melhor, ilumina-se suas limitações ocultas. Correlativamente, ela deixa a clínica tal como está, ao menos num primeiro momento: permite justamente aprender ainda mais sobre aquilo que, talvez, tenha sido reunido, examinado e comunicado em função de supostos teóricos extremamente diferentes. Bion, que se inscreve no esforço pós-kleiniano de desenvolvimento-extensão da psicanálise, demonstra em ato o que é trabalhar como psicanalista. É acolher a impressão, registrá-la, investigar na direção daquilo que nos tem chamado a atenção e, finalmente, se transformar ao contato do pensamento que se lê (pensamento do psicanalista, mas claramente também o do paciente, que ele elegeu como sujeito) atuar com precisão e, enfim, fazendo isto, dotar-se dos meios necessários de comunicar-transferir a outros as lições da transferência experimentadas no contato com os próprios pacientes.

Vejam assim de que maneira (homóloga ao tratamento das "Formulações" de Freud) a Grade dá conta dos ensaios de Melanie Klein "Sobre alguns mecanismos esquizoides" e "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego" (Klein, 1952), constantemente citados por Bion. Eles também são assimilados à Grade, à qual disponibilizam, como disse, os eixos horizontal e vertical (deixo a prova em exercício, como se diz em lógica), mas à qual determinam, mais sutilmente, o uso instrumental. Seria igualmente um engano completo considerar esses eixos como princípios reguladores superiores ou mecanismos psíquicos mais gerais que a notação ou a atenção. Não, são direções práticas tendo em vista o crescimento do aparelho psíquico, são vetores constitutivos do espaço mental definido pela transferência-contratransferência. Imaginem, então, a Grade não como um grafismo que petrifique uma experiência, mas como um gesto acolhedor de seu espírito, que sempre abre alguma coisa (associação, sonho, sintoma) sobre outra coisa (a cena primitiva), a alguém (o paciente) e por alguém mais (a imago = x que rege a identificação projetiva na transferência). Tanto a identificação projetiva (sobre o eixo♀♂) quanto a posição depressiva (sobre o eixo Ps->D), em sua dialética mútua, conferem, assim, ao conjunto de elementos da Grade, seu sentido radicalmente intencional.

A Grade-aparelho não é em absoluto uma entidade objetivável por uma psicologia de observação (em terceira pessoa). O aparelho psíquico não é o aparelho perceptivo, que, em teoria, poderia existir sozinho, ainda que não existisse um único ser humano vivo. Por "aparelho psíquico", deve-se entender, com Bion, o meio de se emparceirar com outrem (no grupo e, então, na transferência, que é um grupo a dois). A Grade-aparelho só emerge num processo dialógico (em segunda pessoa), em função das expectativas e das suposições mútuas dos indivíduos que se emparceiram, cujo protótipo individual permanece, em Bion, a díade kleiniana mãe-filho. Bion não faz, assim, nenhuma diferença, na Grade, entre aquilo que se elabora progressivamente como meios e conteúdos de pensamento in abstracto, tendo em vista uma epistemology (no sentido inglês da "teoria do conhecimento"), e o que a Grade permite compreender a partir daquilo que um paciente enuncia para seu analista. Pelo contrário, são os materiais atualizados na transferência que definem melhor os compartimentos da Grade.

Bion, desse ponto de vista, resolve uma tensão muito conhecida da teoria freudiana: aquela entre os conceitos de origem neurológica (obtidos especulativamente e sem recurso à transferência) e seus conceitos de origem clínica (conquistados pela experiência da transferência e válidos unicamente em seu seio). Em Freud, de fato, manter o jogo primário das inscrições (dos signos da percepção: Wahrnehmungszeichen) se oferece a uma transcrição de sistemas em sistemas mnésicos (inconscientes), de onde os conteúdos só ressurgem na consciência após terem sido associados aos signos verbais no pré-consciente. Essa transcrição da notação originária (Merkmal) acarreta a derivação "metafórica" dos conteúdos, sua re-tradução de camadas em camadas no aparelho psíquico, permitindo, então, ao clínico decifrar a regressão dissimulada no simbolismo do sintoma. Mas Bion delineia esse processo: a transcrição-retradução se desdobra daí em diante sobre os dois eixos. Eis porque não existe sobre o eixo (♀♂) um mecanismo autônomo de recodificação deslocando o sentido das notações primárias. A dispersão semântica dos conteúdos e, inversamente, sua simbolização crescente são lidas sobre o eixo Ps->D. Em suma, a passagem da série freudiana à tabulação bioniana de dupla entrada dissolve a antinomia da neurologia dos traços e das transcrições e da hermenêutica dos conteúdos de sentido.

A Grade-aparelho, eu insisto, é relacional: além disso, tudo aquilo que evocava ainda uma neurologia ficcional é integralmente revertido por conta do aparelhamento do meu psiquismo com o de outrem. E explicitamente Bion concebeu a Grade como o resumo clínico do que certas transferências (psicóticas) tinham despertado nele - o apelo que ele oferecesse a seus pacientes era uma prótese mental, suscetível de operações impossíveis para eles e da qual se aparelham para sobreviver. O protótipo disso é a maneira como um récem-nascido projeta sua angústia na sua mãe, espera dela que o digira e logo a restitua a ele, transformada em um alimento psíquico tolerável. Pois não podemos ter noção do valor dos elementos da psicanálise para o crescimento, a não ser na confrontação assídua com a transferência psicótica.

Essa primazia da transferência, como marco de inteligibilidade dos conceitos da psicanálise, é a verdadeira ruptura de Bion com o vínculo mantido por Freud, em suas "Formulações", com suas especulações de juventude e que subsistia no léxico neurológico das facilitações. Ou talvez se trate de uma conquista kleiniana. Entretanto não é uma imitação nem uma alteração. É, suponho, a integração-simbolização por parte de Bion do marco de sua própria cura. Essa forma rica de identificação projetiva coroou, de fato, sua transferência com Melanie Klein como modo de resolvê-la, uma vez que sua teoria, logo formulada como um pensamento "para pensar", como uma teoria a ser assimilada (e Deus sabe em que ambiente conflitivo e sectário na Londres dos anos 1940), se tornou, no ato de inventar a Grade, um pensamento "pensante" a serviço de uma relação autônoma com a experiência. Conjecturo, de fato, que a construção da Grade anuncia esse tema bioniano salutar, segundo o qual o essencial não é em absoluto como isso nos martela os ouvidos, a transmissão da psicanálise, mas sua transformação para a construção de um novo aparelho para pensar psicanaliticamente os pensamentos.

É a esse título, de fato, que Bion pode legitimamente pretender ter "conquistado um nome" na história da psicanálise.

Pois o aparelho psíquico tal como ele o concebeu pode ser indexado somente sobre um nome próprio. Ele é único e morre junto com aquele para quem despertou as funções psíquicas. A singularidade desse funcionamento, de fato, diz Bion, deve-se concebê-la no vínculo intrínseco de um aparelho com nome próprio, como a palavra inglesa para "contraposição" (spoonerism)7 remete a Spooner, que, segundo informações, a repetia sem cessar. Para cada indivíduo, então, o aparelho psíquico merece uma cura; é isto o que atualiza o significado para X de X-er8, de maneira que, não somente ele possa, se ouso dizer, descobrir com que traço específico ele "marca seus atos" (responde a isso como adulto, em seu próprio nome), se não que aquela função, X-er, descubra também a outrem potencialidades inéditas e, por que não inauditas, de seu aparelho psíquico. Ora, não fazemos outra coisa ao estudar os místicos ou ao admirar certos artistas; é a experiência singular deles que nos afeta, por termos acesso por intermédio deles a funções psíquicas originais, a uma relação com Deus "à la Eckhart", a uma percepção da cabeleira feminina "à la Da Vinci", que não se poderia deduzir de nenhuma regra prévia. Aplicando esse princípio reflexivamente a Bion, dever-se-ia então sustentar que existe a partir dele, na vida psíquica e em nossas maneiras de nos emparceirar a outrem formas regradas de "bionizar". Temos uma alteração real de nosso aparelho para pensar, e não uma variação banal de pontos de vista, à qual se resumiria uma "psicanálise bioniana".

Isso não é tudo, já que essa alteração faz também uma grande diferença em relação aos pacientes psicóticos.

Notou-se, de fato, que a noção bioniana de crescimento ultrapassa muito a noção tradicional de psicogênese (e as críticas que se pode lhe endereçar, visando seu teor normativo, como a idealização do amor genital). A psicogênese tem um telos simples, o de se tornar adulto, entendido como o final do desenvolvimento da sexualidade. Mas qual seria o telos do crescimento? Não pode ser se não o telos que o indivíduo que cresce psiquicamente se torna capaz de oferecer a si mesmo: ele está inteiramente desprendido dos fins normativos (biológicos ou educativos) que se impõem ao desenvolvimento. Todavia em Bion, a pós-educação freudiana não é mais o suplemento contingente da psicogênese. Ao contrário, desde o momento que é a lógica do crescimento que domina o aparelho psíquico, é todo o sistema de etapas freudianas e kleinianas que muda de sentido (Bion, aliás, é econômico quanto à terminologia do oral, do anal, do genital), assim como a ideia ortodoxa segundo a qual uma fixação ou um déficit numa das fases explica a neurose ou a psicose. Se crescer é o objetivo explícito do aparelho psíquico, a psicose aparece agora como a incapacidade de se propor um tal objetivo, o que é nada mais que a incapacidade de se equipar com um aparelho para pensar.

É necessário, então, para conceber de novo a psicose, imaginar uma antiGrade. Seus eixos expressariam nas ordenadas negativas o fracasso para anotar-registrar os estímulos (a "borda" do aparelho psíquico está como que rompida), e nas abscissas encontraríamos a ruína pelos golpes de inveja em relação a todo conteúdo sensato, a identificação projetiva expulsando o que o espírito não pode conter. Essa maneira de ver, claramente, dá conta mais dos fatos positivos da psicose do que as especulações habituais, as quais, no melhor dos casos, só captam o que não consegue produzir sintomas neuróticos. Sim, a analidade paranoica ou a oralidade esquizofrênica existem, mas o essencial é compreender como elas são arregimentadas transferencialmente na cura. A isto, só a Grade e sua antiGrade dão acesso, redirigindo a atenção do clínico às inversões de valores que sofrem os elementos em jogo. É, então, na transferência e pela transferência e seu jogo projetivo-introjetivo que há a possibilidade, às vezes, de se reportar ao funcionamento do psicotizado. Dever-se-ia mesmo dizer seu antifuncionamento, ou, dito de outra maneira, com a expulsão projetiva do próprio funcionamento de seu aparelho psíquico, que é destroçado e depois jogado para fora, no mundo, de onde ele se põe a pensar e a falar alucinatoriamente ao psicótico daquilo que ele tem de mais íntimo, tal como um superego encapsulado no olhar persecutório dos transeuntes ou nas vozes que saem do televisor. Pois tal é o mundo do psicótico: sobrecarregado com o mobiliário dos sonhos, mas sem o sonho.

A conclusão é fácil de tirar. Ela se apoia geralmente sobre o conceito de cura em Bion: a cura não é uma reparação dos danos psíquicos ("reparação" é, aliás, uma palavra kleiniana que Bion usa pouco). Então ela não diminui diretamente o sofrimento psíquico, mas aumenta os meios de suportá-lo, e, nesse sentido somente relativo, o reduz. O benefício de uma cura, nesse aspecto, é incalculável, porque os novos meios de viver e de pensar que procura, justamente, não têm nenhum termo a se comparar no estado pré-mórbido. São absolutamente novos. São o que exige o crescimento psíquico em função das metas que fornece os meios, mas também a autorização para prosseguir, sem considerar nenhuma outra coisa a não ser o poder de se dar como objetivo crescer (grow). São terríveis as observações de Bion em relação a isso: uma vez que a cura da psicose, sob esse aspecto, é algo que não pode ser nada mais que o "poder" de se colocar a questão de como viver quando se tomou conhecimento de sua loucura - ou, na ideografia bioniana, quando os vínculos K (de know) prevalecem sobre os vínculos -K. Um poder estranho, porque é passar de um antifuncionamento do aparelho psíquico, onde se pensam psicoticamente os pensamentos (-K), à inversão dessa inversão pela transferência-contratransferência sustentada na identificação projetiva, de maneira que nos tornamos capazes de pensar (conhecer/K) nossos pensamentos psicóticos. É a diferença crucial entre pensá-los enquanto pensamentos psicóticos e pensá-los de maneira psicótica. Ou estamos diante de uma forma de saúde psíquica - um suicida, por exemplo, diante da consciência que se tornou verdadeira em relação aos impasses da situação, e que cessa, então, de ser sistematicamente redutível a um acting-out ou a um fracasso da cura.

Aqui, o leitor, com todo direito, pedirá uma pausa.

Insensivelmente, de fato, fomos nos conduzindo por um terreno menos clássico do que parecia. E Bion mesmo funciona com frequência através de saltos que nos desesperamos para justificar. Se além disso, como é o meu caso, nos nutrimos de uma cultura lógico-filosófica e de uma tradição de leitura dos clássicos freudianos profundamente heterogêneos frente às premissas de Bion (como as que nos fornece Lacan), só podemos nos confundir ante certas "evidências" às quais Bion não consagra quase nenhum comentário, mas que viram minhas convicções de cabeça para baixo. Vejamos três delas, sobre as quais vou me apoiar para prosseguir.

Bion estima, por exemplo, que o princípio do prazer não pode ser inteiramente incompatível com o princípio de realidade. A razão disso se deduz do quarto pilar da metapsicologia freudiana: a referência a Darwin. Se o organismo visasse uma pura descarga sem retenção, não viveria tempo suficiente em seu meio natural para que tal descarga meramente acontecesse. Qualquer que seja o conflito do prazer com a realidade para existir exige um compromisso originário, e não se pode dizer que o princípio do prazer "desrealize" radicalmente o comportamento do aparelho psíquico vivo. É seguramente uma dificuldade para toda a concepção "moral" da metapsicologia de Freud, que parte preferencialmente do princípio de que ali, onde o psiquismo reencontra a limitação da realidade, é, justamente, onde ele não se dá conta: ele alucina e prefere, literalmente, a autodestruição e o sofrimento à limitação do gozo. Caso contrário, o que são o alcoolismo, o delírio, o onirismo, o masoquismo? O inconsciente, nessa visão das coisas, ignora a castração (pelo menos, a castração "simbólica"). No entanto, essa é a razão pela qual Bion toma por bem mais banal e possível que não se fale da cura da psicose ou de estados que dela se aproximem (borderline). Há sempre, conservado intacto numa dobra do pior delírio, um certo sentido da realidade para que, justamente, o psicótico possa delirar. Mais engenhosamente também há na imanência da situação analítica, em seu puro real (que Bion denota por "O", de Origem), qualquer coisa do ponto de convergência anterior à divergência entre prazer e realidade, que pode ser intuída e, sobretudo, intuída em comum pelo paciente e por seu analista. Sim, nós não "compreendemos"o discurso psicótico se pretendermos tirar do prumo seu sentido e saber aquilo que o psicótico não sabe; no entanto, há, certamente, um plano em que não cessamos de estar "em contato" com aquilo que infalivelmente suscita o pavor. Então é na borda da Grade-aparelho que tudo acontece e, em primeiro lugar, é a questão da transferência-contratransferência que aparece.

Isso é o que deve atrair a atenção sobre os novos compartimentos suscitados pela combinatória freudiana-kleiniana que rege a Grade, os quais indexam elementos que seriam bem difíceis de encontrar nesses autores (como as fileiras A e B e a coluna 1). Porque o que está em jogo nesses compartimentos não é, em absoluto, a existência de seres de razão implicados por uma nova teoria psicanalítica "bioniana", mas, conforme minha premissa principal, as modalidades funcionais concretas do aparelho psíquico. Porém elas são completamente paradoxais. Para falar com propriedade, elas não deveriam mesmo figurar na Grade, uma vez que emanam genuinamente de fora. De fato, aí não se trata tanto da borda da Grade no sentido gráfico, mas, sim, do funcionamento-limite da Grade-aparelho; surge assim um modo psicanalítico mais sóbrio, ou menos saturado com imagens e lembranças idiossincráticas. Há de se reparar apenas que aquilo que o aparelho para pensar os pensamentos tem a fazer é, por definição, dedicar-se ao impensável. Não que se pense o impensável enquanto impensável (o que é absurdo), porque para ele não se trata nunca se não em fazer-se penetrar no espaço psíquico do impensável, transformando-o em algo pensável. Os "elementos-β", diz Bion de maneira deliberadamente abstrata, não são mais que elementos-fronteira em que as restrições internas do princípio do prazer não são em absoluto incompatíveis com aquelas, externas, do princípio de realidade. Como consequência, podem ser digeridos a minima pelo aparelho, se transformar em um "impensável pensável" (mas que permanece, logicamente, com tudo para pensar), os "elementos-a". De maneira inversa, na projeção psicótica, a excreção alucinatória daquilo que nosso aparelho psíquico não pode digerir-pensar se produz em direção aos elementos-β: ei-los, esses "fragmentos bizarros" (bizarre bits), em que se fragmenta o pensamento louco, em meio ao qual um superego excessivo interpela o psicótico, ou, simplesmente, essas imagens do sonho que assombram a visão ao acordar e onde se expulsa aquilo que não pudemos simbolizar. A psicose, sempre na orientação da tese bioniana sobre prazer e realidade, faz, então, funcionar uma antiGrade, como já disse, mas sem que tudo isso em que ela explode no mundo esquizoparanoide nos seja inacessível. Se ouso dizer, o aparelho psíquico, neurótico ou psicótico, "alfa-betiza" sua relação com o seu exterior. Ao mito edipiano C3-C4 corresponderia na antiGrade, o delírio schrebiano da mulher que peca contra Deus. À possibilidade intelectual e socialmente eficaz de conceber (K) relações abstratas entre objetos (isto é, a ciência) corresponderia a proliferação animista (-K) de imputações causais paranoicas, que cobrem o mundo com um reverso persecutório.

Mas a geometria em questão mobiliza um pouco mais que uma simples relação em espelho da Grade-aparelho psíquico e de sua antiGrade psicótica. A imagem mesma do espelho é enganosa, e isto deve alertar sobre um determinado número de facilidades pós-lacanianas sobre a ideia de projeção. Porque aqui não se trata em absoluto de uma projeção "sobre" alguém, segundo o motivo clínico bem conhecido e perfeitamente comprovado da crise paranoica na transferência, quando o paciente descompensa via uma fixação erotomaníaca sobre o analista, ou designando-o como perseguidor principal de seu delírio. Tais situações existem, obviamente, mas não devem reduzir a importância do que se chama projetividade em psicanálise. Não, a projetividade bioniana visa a projeção no outro, e não sobre ele: no outro, dito de outro modo, literalmente e à maneira de Klein, significa "em seu seio". A inversão de perspectiva induzida por essa precisão é considerável: é sem dúvida, se daí extrairmos todas as consequências, a mais rica das consequências práticas e terapêuticas. Porque ela livra de sua afetação o recurso à empatia e o elogio da contratransferência, fixando regras de seu emprego metódico e assinalando ali a dificuldade, bem como as dores psíquicas intensas às quais se expõe o psicótico em cura. Expressada simplesmente, a ideia de Bion implica a possibilidade de uma interpretação da projetividade psicótica, que aceita inteiramente o risco da catástrofe (não são os fatores externos, tais como o enlouquecimento de uns e outros, que devem pesar sobre a decisão do clínico, Bion assinala), e que mobiliza no analista uma receptividade e uma capacidade de suplementação psíquica ao menos temporária, cuja profundidade está à altura da reintegração-ressimbolização requerida pela loucura do paciente. A força heurística da Grade e da antiGrade está aí: na descrição exata da tarefa que espera o analista e o paciente, uma vez que o que foi expulso pela via da identificação projetiva só será integrado-simbolizado passando precisamente pelos mesmos pontos críticos nos quais o paciente tenha reagido, seja por clivagem, negação ou idealização. Nesse sentido, as fórmulas como "acolher o delírio do paciente", "suportá-lo", transcendem por seu valor conceitual tudo aquilo que extrapola da estratificação freudiana ou da maioria das versões correntes da contratransferência dos pós-kleinianos. Transportar-se à borda da Grade e mesmo fazer dessa borda a interface da transferência-contratransferência a mais difícil, aí está o sentido da última evolução de Bion. Notar-se-á a esse respeito que noções tão estranhas quanto a de cesura ou a de turbulência têm como lugar psíquico uma interface, um espaço de transição, um liame de inversão, mas que se refere à articulação de dois interiores, de duas profundidades. Bion, em suma, terá ele mesmo estreitado a zona crucial da Grade à sua "barreira de contato", à pele do aparelho psíquico, ao ponto em que esse aparelho se aparelha transferencialmente com o impensável e ousa realmente transformar em questão tudo aquilo que o excede - ou seja, daquilo que excede todo saber (K).

Forçando a exegese usual de Bion, é por isso finalmente que introduzi a distinção pensamentos pensantes/pensamentos pensados. Porque a gramática lógica da noção de aparelho para pensar os pensamentos o exigia. Eu duvido que Bion tenha se contentado em registrar o fato, que pode derivar da neurologia especulativa freudiana, que se encontre representações feitas em sua totalidade pela via da ação adaptada (as da linguagem, do simbolismo social) e que, antes de agir, já é necessário poder pensar as significações da ação. Certamente, essas representações são as precursoras da ação e das fontes de sentido para a inserção social da ação do indivíduo. Mas pensar seus pensamentos e se equipar com um aparelho dotado desse poder é bem mais que isso! Já é totalmente anti-idealista: o aparelho psíquico não produz o pensamento ex nihilo, tal como o ego cartesiano. Submete-se à limitação, como um a priori social, cultural e simbólico que o subjuga à sua condição histórica. Analisar pode muito bem ser neutro, sem que seja inocente (politicamente, entre outros sentidos). É, em seguida, na orientação desse anti-idealismo que cabe assinalar o lugar autêntico da criação psíquica, onde se tornam pensantes os pensamentos pensados. Ali, então, onde a psicose fracassa, ali onde o delírio maquina na mais pura exterioridade o já pensado, produzindo, como novidade, efeitos caleidoscópicos: o aparelho psíquico, por integração-simbolização, assimila o pensamento (se nutre disso) e vem a ser capaz de tolerar essas lacunas, os signos não saturados, a falta responsiva do seio na realidade, e se abre todo à riqueza dolorosa e formadora do desejo a montante do atuar - que Lacan chama "a potência da perda", e Keats, negative capability (capacidade negativa).

Os pensamentos pensantes são de fato pensamentos com buracos (Bion imita aqui a ideografia fregeana da relação predicado/objeto: "ξ()"),9 suscetíveis de se hierarquizar, de se serializar, enfim de se valorizar como pensamentos de pensamentos. Porém é conhecida a propriedade assombrosa da associação psicótica: o psicótico só pode viver de forma imediata "aquilo do qual" ele fala; a palavra causa nele, imediatamente, a presentificação direta da coisa, muito especialmente da coisa sobretudo desnecessária. É do que ele fala: é isso o que é para ele inacessível estruturalmente pela saturação dos signos que maquina sem parar, como feridas psíquicas dolorosas, que não são faladas, mas evacuadas com violência, sob uma espécie de engrenagem do seu próprio psiquismo, até o sentimento de vazio mental. Certamente, tudo isso é inaudível, ou invisível (pois essa saturação concerne também às imagens: o sonho na psicose compõe imagens "plenas"10 que justamente não têm função de deslocamento interno e que não se prestam à derivação associativa). Tudo isso só se pode intuir sob efeito da transferência. Eis então nosso dilema: e se interpretar, no sentido da intervenção terapêutica, não fosse mais que oferecer ao paciente pensamentos pensantes em vez de ajudá-lo a tornar pensantes seus pensamentos pensados?

Nota-se que ler Bion assim nada prova que o que se lê seja psicanálise: talvez não seja mais que uma mistura de pensamentos "psicanalíticos" saturados, de pensamentos não pensantes. O critério para discriminá-lo seria verificar se as associações integram esses pensamentos: se os sonhos, as histórias de casos, as conjecturas privadas instanciam ou não o () dos conceitos bionianos x, e, em seguida, logo se ordenam e se ramificam se articulando na Grade − em resumo, se se está pensando com Bion. Podemos pensar, enfim, se estou com a razão, na inquietante passagem das Cogitations de onde Bion extrai a inevitável consequência de sua maneira de ver (Bion, 1992/2005, p. 294): poderia ser que ninguém mais pense psicanaliticamente, enquanto que as ideias psicanalíticas pululam na cultura... Preparando minha conclusão, ligarei esse tema àquele evocado anteriormente: não se pode de verdade transmitir a psicanálise, projeto mais propenso a saturar seus conceitos, portanto, a manipular como numa psicose os x, cujo valor criativo, rodeado pelo silencioso parêntese (), seria ao mesmo tempo abolido. Em contrapartida, pode-se julgar, talvez, suas transformações, se ao menos estivermos dispostos, como Bion, a oferecer com a Grade,um meio de conceitualizar a regra de sua extensão lógica.

Os artigos dessa compilação são, medidos com esse parâmetro, uma transformação desse tipo de Bion feita pelo próprio Bion: sua maneira final de fazer funcionar a Grade-aparelho não como coisa-para-pensar, totalmente saturada de si mesma, mas dentro do espaço psíquico que ela abre. Ali se abre a boca "()" da mente, disponível para o seio e o não-seio - e esse espaço é o das cesuras (antes-de-nascer/nascer, vida/morte) e das turbulências.

Na segunda parte deste ensaio, gostaria de fazer o leitor perceber a profunda continuidade que une os textos do período epistemológico de Bion, centrado na Grade, com os artigos traduzidos aqui, cuja tonalidade do conjunto é totalmente diferente (místico é o epíteto usual).

A segunda premissa que eu quero também expor (a partir da identidade Grade/aparelho psíquico) é a seguinte: Bion não fez mais do que aprofundar a noção de "intuição" (Einsicht, em Freud), de sorte que ela se tornasse sua ferramenta principal. Com esse objetivo, ele bebeu das fontes epistemológicas e filosóficas as mais refinadas, em particular no intuicionismo das matemáticas, depois redescobrindo somente pela força do exame conceitual, os vínculos que esse modo de conceber a atividade criativa do espírito tem mantido com a intuição "intelectual", assim como com certas especulações sobre a realidade última, o Um-Todo. A intuição-invenção é de fato a ideia-chave do sábio exemplar para Bion: Henri Poincaré. Eu me proponho, em suma, a mostrar como Bion transpôs as potencialidades de seu intuicionismo para a psicanálise, e como se apresenta sobre essa via, muito logicamente, o tema - tão fácil de descambar para o irracionalismo - da realidade última, que Bion expressou como "O".

Em Ciência e método, sua grande obra popular, Poincaré responde a uma objeção de Tolstói à ciência: como não é possível conhecer todos os fatos, o cientista deve escolher alguns no começo de sua argumentação ou de suas experiências de maneira arbitrária e em detrimento de outros que também teriam podido muito bem reter sua atenção. A partir daí, o arbitrário se propaga a tudo o que a ciência nos ensina, que é uma determinada coisa, mas também poderia ter sido muito bem outra coisa, e assim ao infinito (uma tal objeção é facilmente adaptável à crítica de Freud: por que ele privilegia uma associação sobre outra? E mesmo ao supor que sua interpretação tenha tido efeitos terapêuticos, nada prova que uma interpretação aplicada sobre outra coisa não tenha igualmente funcionado). A resposta de Poincaré para salvar o privilégio do "fato selecionado" pelo cientista (o chosen fact11 de Bion)12 é sua famosa concepção da invenção. Esta compreende três aspectos: lógico, psicológico, ontológico. Bion se nutriu dos três, e é fácil reconhecer o desdobramento psicanalítico do argumento de Poincaré, reparando nos fatores retidos por Bion, tanto em sua elaboração do aparelho psíquico quanto em sua ideia de interpretação.

Primeiramente, Poincaré faz notar que os fatos mais interessantes, os melhores candidatos ao "fato selecionado" inicial, são os que o acaso reproduz. São ao mesmo tempo os fatos que parecem simples. O acaso de fato "sabe misturar, mas não discernir", diz Poincaré, o que faz que quando encontramos, por exemplo, uma mistura homogênea seja altamente provável que a repetição do fenômeno revele uma ordem oculta que o causa. Reconhece-se a premissa principal do aparelho bioniano: aquilo que "parece" ser um objeto pensável, tem as maiores probabilidades de sê-lo efetivamente devido à lógica do acaso. Quando a atenção é atraída pela repetição de uma cadeia associativa, certamente é bem viável a possibilidade de um fenômeno ilusório, mas a recorrência do mesmo fenômeno simples diminui esse risco com a frequência das repetições. O real faz então, de certa maneira, a metade do caminho que conduz a um conhecimento válido. Nada podemos perceber, mesmo do ilusório, que não tenha sido de certo modo arrebatado pela ordem à desordem. Mas Poincaré prossegue: uma vez que esse pano de fundo estável de repetições nos é plenamente concedido, o fato selecionado é precisamente aquele que constitui sua exceção. Dito de outro modo, é necessário se ater aos casos em que a regra das repetições tem maior chance de ter falhado. É um movimento da mente em dois tempos: confiar primeiro no estado emergente de uma ordem na desordem como indicador mais provável de um fato sistemático e, logo, interrogar as possibilidades de irregularidades as mais prováveis nesse mesmo fato, de início percebido passivamente. Se ele resiste ao exame, pode servir de base à investigação científica, pois, provavelmente, encerra ali uma regra oculta de sua formação (Poincaré, 1908/1998-1999, pp. 19-21). Certamente é possível aplicar essa lógica tanto aos objetos físicos como aos feitos históricos e, obviamente, como Bion se propõe, ao material associativo.

Tolstói se equivoca, então, por duas vezes. Primeiro, ele esquece que certas regularidades (nem arbitrárias, nem subjetivas) se impõem a nós de facto, e mesmo que se revelem in fine enganosas (coincidências fortuitas), são causas de erro de todo modo mais interessantes, uma vez corrigidas, do que o puro e simples abandono num ponto de partida qualquer. Em seguida, Tolstói negligencia em que grau nossa sensibilidade estética privilegia as harmonias em nossas repetições e o quanto o fato selecionado que privilegiaremos (com o risco ainda de nos enganar, mas o erro sendo de toda maneira fecundo) será aquele que restituirá melhor essa beleza secreta do mundo. Porque o movimento em dois tempos descrito por Poincaré significa que amamos a ordem, porém mais ainda a ordem inesperada. A escuta "igualmente flutuante" do psicanalista pode, assim, se enganar captando certas regularidades e depois aquilo que no seio dessas regularidades constitui a exceção significativa. Mas ela não pode se enganar completamente. O funcionamento do aparelho psíquico, bombardeado por uma miríade de partículas, de sons, de palavras, de olhares, de excitações sexuais etc., não percebe mais que aquilo que já está pré-ordenado pelo real, e a percepção-seleção não se volta a não ser para os arranjos pertinentes, ou, melhor dizendo, sobre aqueles que mais provavelmente o sejam. Aí está uma aplicação suplementar do princípio de congruência a minima do prazer e da realidade, sem a qual não se poderia mesmo supor que um organismo sobreviva. É necessário que aquilo que ele percebe, mesmo quando se engana, tenha alguma relação real com o mundo exterior. Os elementos-a ("elementos" é um termo de Poincaré) são assim os produtos da filtração que empreendem os intermediários psíquicos entre os elementos-β (o caos externo) e os elementos da fileira C (sonhos, mitos etc.) que os combinam.

Mas Poincaré continua contrariando mais metodicamente Tolstói e radicalizando psicologicamente o que ele enunciou em pura lógica probabilística. A invenção, que não é outra coisa que a seleção do "fato selecionado" correto, repousa não sobre a atenção comum saturada de regularidades banais requeridas pela sobrevivência prática, senão sobre a decomposição prévia e profunda dessas regularidades, forçadas em nossa percepção pela atitude causal ordinária. Essa atitude causal, prática, orientada pela sobrevivência, deve ser suspensa para que nosso pensamento possa trabalhar intuitivamente, quer dizer, em total liberdade. Poincaré conta, assim, que a ideia geradora de suas mais profundas descobertas chega a ele sempre em dois tempos: uma jornada de trabalho destinada a agitar seus pensamentos em todos os sentidos, tais como "átomos mentais" (as "partículas" bionianas), a serem combinados em todos os sentidos e de todas as maneiras; e logo uma noite de sono, agitada por sonhos e ecos do problema a ser resolvido e durante a qual a investigação continua "inconscientemente"; enfim, ao acordar, a intuição do resultado, o qual se percebe sempre, diz Poincaré, de uma só olhada, cada termo do raciocínio vindo ele mesmo se colocar no quadro que lhe foi preparado e sem necessidade de nenhum esforço de memória.13 Ao crivo delicado do sentimento estético se junta, então, um inconsciente que pensa os pensamentos conscientes da vigília e os reagenciam (Poincaré discorda das ideias de seus contemporâneos sobre o "ego subliminar", pejorativamente tratado como autômato, por acreditar que seu papel na criação intelectual é algo brilhante). Nesse inconsciente reina uma inaudita liberdade de reagenciamento pertinente. Mas em que essa liberdade consiste se não na adequação psíquica de fundo entre um funcionamento interno sem regra preconcebida, guiado pelo puro prazer das combinações, e a realidade externa dos átomos mentais, que são a matéria para pensar que encontramos ao acaso em nossas reflexões? A intuição, ao despertar, e o valor dos sonhos na invenção são clichês conhecidos. Mas é sua base lógico-psicológica excelentemente valorizada por Poincaré que impactou Bion, e que lhe fez precisar a recomendação ortodoxa de uma atenção igualmente flutuante. Daí sua tese muito conhecida segundo a qual a rêverie é o estado mental mais propício ao trabalho do analista.

Semelhante estado de rêverie é tudo, salvo um abandono sensual à sua própria pulsionalidade ou a seus pensamentos saturados. É a liberação interna de um poder de discernimento, ou de intuição, que deixa que atue o filtro sutil da superfície do aparelho psíquico, cuja função, como disse, é a alfa-betização dos pensamentos. Uma vez mais, sem o maior de todos os raciocínios bionianos - a congruência a minima do princípio do prazer e do princípio de realidade - não poderíamos captar nada desse processo. Ele explica, além do mais, uma de suas imagens mais perturbadoras, fonte longínqua dessas turbulências: são as estranhas "nuvens" de associações que Bion vê flutuar acima de seu divã. Para apreciá-lo, basta se remeter uma vez mais à Ciência e método: a chave da ordem introduzida no acaso pelas turbulências é, de fato, a teoria cinética dos gases. Ora, observa Poincaré, o que fez Kelvin? Ele simplesmente perguntou por que não se trataria os corpos da Via Láctea como moléculas de um gás, ou os sóis como átomos, e se, ao mesmo tempo, as mesmas leis probabilísticas de distribuição no espaço não se aplicariam tanto a uns como a outros. Estamos aqui diante das nuvens do acaso em vias de se ordenar, e como o real nos oferece tais regularidades para pensar, é grande a probabilidade de que quando seguimos estas regularidades, ainda que sejam aparentes, encontraremos finalmente as verdadeiras harmonias do universo. Temos que trabalhar então, conclui Poincaré, deixando que nossos átomos mentais formem por si mesmos os conjuntos apropriados. O fato selecionado emergirá da maior liberdade outorgada a esse pensamento inconsciente de nossos pensamentos, que filtram para nós o melhor. A intuição resulta dessa filtragem imanente. A escuta analítica é a percepção estética das "nuvens" associativas que se elevam por cima do divã: ela deixa atuar a imanência sobretudo sem forçá-la, confiando a tarefa primária da alfa-betização das partículas psíquicas a um aparelho perceptivo mergulhado em "estado de rêverie". Só então as fileiras da Grade mais determinadas em conteúdo poderão provar sua adequação intuitiva à situação, e a interpretação se tornará eventualmente justa, pondo o dedo oportunamente naquilo que realmente importa na transferência.

Mas se Bion leu Ciência e método, certamente ele não se contentou com essas fórmulas sobre o fato selecionado e a intuição-invenção. A semelhança é de fato gritante entre o esquema da Grade e a matriz das provas cantorianas sobre o infinito, contra as quais Poincaré, nessas mesmas páginas, luta incansavelmente. Eu conjecturo que Bion aprendeu muito com as polêmicas sobre o transfinito, o discreto e o contínuo, o formalismo dos axiomas da lógica e o construtivismo intuicionista das provas de existência, que ele viu perfeitamente a estreita ligação entre o conceito de intuição-invenção e as posições

epistemológicas de Poincaré e que, finalmente, transpôs, segundo sua própria concepção do aparelho psíquico, as consequências daquilo que Poincaré sustentava implicitamente em relação ao funcionamento intelectual real dos cientistas. Tornar mais esclarecedoras essas observações exige algumas preliminares.

Deixando de lado toda psicologia popular, Poincaré se rebelou contra uma forma de intuição-invenção matemática que lhe parecia impossível: aquela que, em primeiro lugar, transgride a regra de formação das quantidades contabilizáveis, como o engendramento, inteiro natural por inteiro natural, dos termos da série do infinito aritmético. Cantor mais que ninguém apresentava a ele raciocínios sobre o infinito de um novo gênero, ligados à invenção do transfinito, e que dava a sensação de que realmente se podia raciocinar sobre infinitos atuais, que poder-se-ia intuir como aconteceu com as quantidades contábeis. Seguramente, uma questão fundamental surge em torno dos poderes da mente, quando Cantor explica que o cardinal do conjunto de inteiros naturais (χ0 , aleph, zero) é tal que se for acrescentado um número natural, de qualquer magnitude, o resultado continua sendo χ0 , mesmo se adicionado χ0 a χ0 etc. Isso pode ser escrito, sem problemas, como um jogo de signos. Mas é isso que se pensa? Poincaré, e em seguida a ele todos os intuicionistas, fará notar que esse uso axiomático do infinito contrasta com o dos matemáticos que inventam teoremas sobre séries infinitas. Inventar tais séries e provar aí os resultados, é produzir de maneira construtiva convergências e limites, não supondo que os valores que eles denotam existam "porque não há contradição em sua definição" (como fazem muito facilmente os lógicos com seu princípio do terceiro excluído), mas porque se engendram positivamente esses objetos pela potência do intelecto. Intuição é construção. Certamente Poincaré ficou aquém do intuicionismo propriamente dito, o de Brouwer. Poincaré aceitou definições axiomáticas do contínuo, que se apoiavam sobre o terceiro excluído. Em suma, não foi intuicionista a não ser pelo discreto e o contabilizável contra Cantor. Só Brouwer empreendeu a construção de um contínuo intuicionista; dito de outra maneira, de um contínuo fundado sobre atos sucessivos de intuição, sem recorrer a uma axiomática lógica formulada em palavras. Mas a inversão da perspectiva própria do pré-intuicionismo de Poincaré, não obstante, é crucial, porque ele toma a defesa dos poderes criadores da mente contra as pretendidas extensões do alcance de seus pensamentos por meio convencional e psiquicamente vazio, ou não-experienciado, dirá Brouwer, de simples signos.14

Eis aqui, lendo Ciência e método, aquilo ante o que Bion não pôde ficar indiferente, porque transforma por completo as posturas daquilo que poderia ser uma "psicogênese" no sentido estrito: não uma teoria descritiva do desenvolvimento mental, mas a restituição imanente do modo como se encadeiam e se vivem as etapas da construção psíquica, em uma palavra, a gênese real dos estados mentais em sua dependência hierárquica, segundo o modo como adquirem sua consistência. Bion, na minha opinião, preocupado do início ao fim de sua obra com o crescimento criativo e inventivo do aparelho psíquico, captou perfeitamente o partido que a psicanálise deveria tirar dessas polêmicas sobre o funcionamento psíquico real do matemático que intui-inventa. Se algo semelhante é possível (sob limitações precisas), então é todo o aparelho psíquico que deve torná-lo possível: desde a fileira A, no interjogo dos elementos a e b, até a fileira H, numa palavra, até a formulação algébrica a mais sofisticada e a mais efetiva. Ele conseguiu completá-lo, em todo caso, se considerarmos as limitações do pensamento por intuição e do modelo biológico ou pseudo-biológico da psicogênese kleiniana (ou ao menos a herança da integração dos estágios à la Abraham). A psicogênese bioniana será epistêmica; ela se alimentará não de um seio-vitalidade, mas de um seio-verdade. Além do mais, não se preocupará com a função geral da ciência, da religião, da arte ou da espiritualidade no horizonte de determinado paciente, como se fosse um complemento antropológico contingente ao saber do psicanalista, mas à maneira construtiva pela qual o aparelho psíquico contribui aí, por meio de pensamentos e atos reais.

Agora é possível retornar à Grade e observar que ela se presta, por sua estrutura, à célebre "diagonalização" cantoriana. Dito de outro modo, o grafismo que Bion elegeu para a Grade permite construir os elementos que não lhe pertencem. Isso nos faz compreender melhor, como consequência indireta, a ordem "finita" (ou melhor, "contabilizável") das relações que caracterizam o funcionamento normal do aparelho psíquico, por oposição à ordem "infinita" das relações próprias do universo da psicose, ordem esta incomensurável em relação ao que podemos pensar habitualmente. Nesse ponto preciso, exploro então a fascinante sugestão de Bion segundo a qual a oposição do consciente e do inconsciente deveria ser repensada como oposição do finito ao infinito - isso mesmo que, tanto quanto eu saiba, Bion não fale em parte nenhuma da diagonalização que eu invoco.15

Uma tal diagonalização é simples. Ela repousa sobre o teorema clássico segundo o qual não há mais elementos no conjunto E do que no conjunto E x E. Em consequência, e Cantor mesmo se surpreendia com isso, não há mais elementos sobre um eixo prolongado ao infinito de um quadriculado (tal como a Grade de Bion) que elementos no próprio quadriculado infinito, ou, ainda mais inquietante, não há mais pontos sobre o segmento formando o lado de um quadrado do que no quadrado construído sobre esse segmento (Cantor, 1891/1992).

Se forem enumeradas as casas como no quadro 2, que aparece abaixo, percebe-se facilmente: a série dos números sublinhados 1, 2, 3... percorre exaustivamente cada uma das casas deste quadriculado, e é exatamente a mesma série de inteiros que a série 1, 2, 3... dos eixos horizontais e verticais. Donde resulta que há exatamente tantos elementos inscritos em forma de pares (x,y), donde x e y são inteiros, quanto inteiros.

 

 

Mas Cantor mobilizou esse procedimento para levantar uma questão mais complicada, que é de saber se o conjunto das funções que associam dois inteiros é, por sua parte, contabilizável (isto é, aplicável termo por termo sobre a série 0, 1, 2, 3...). Pode-se contar uma a uma as funções que associam um inteiro a um outro? Não. A demonstração repousa sobre um quadro homólogo ao precedente (o quadro 3). Imaginem assim uma função f(i) que teria por imagem 0, logo uma função f(i) que teria por imagem 1 etc. Em seguida, imaginem uma segunda série de funções f(j), logo f(k) etc., tomando sucessivamente por imagem 0, 1, 2, 3... Os índices i, j, k... a seu turno podem tomar valores inteiros da série 0, 1, 2, 3...

 

 

Tem-se, então, a impressão de que é possível saturar a tabela; dito de outro modo, contar todas as funções entre dois inteiros que existem, pelo mesmo procedimento de enumeração, segundo a série 1, 2, 3... Mas, enfim, isso conta pouco. Basta, observa Cantor, imaginar uma função g, tal que g(n) = f(n,n) + 1: g(n) é claramente uma função, mas uma função que em qualquer casa da tabela adiciona-se 1 ao valor calculado pela função já inscrita. Pode-se, aliás, adicionar não importa qual número, salvo 0. Resultado? Criamos um objeto que não se pode inscrever na tabela. Eis a prova, diz Cantor, que o conjunto das funções que associam um inteiro natural a outro não é contabilizável.

O que tudo isso tem a ver com a Grade de Bion? Simplesmente isto: obtem-se, se ela for diagonalizada, a representação do que não integra a Grade-aparelho. Ora, o elemento diagonal-tipo é evidentemente os elementos-β, quer dizer, isso que sempre se produz em excesso a partir daquilo que a Grade alfa-betiza ou torna pensável.16 Porque as relações entre elementos-β são de uma ordem incomensurável em relação àquilo que nós podemos filtrar e organizar na Grade-aparelho:

Se um paciente me diz que sua empregada doméstica está em conluio com o leiteiro porque o amigo do paciente deixou a clara do ovo no banheiro, a relação implicada por seu enunciado corre um grande risco de ser diferente das formas de relação às quais eu estou habituado, porque seu enunciado representa fenômenos que estão relacionados entre si dentro de um universo infinito. (Bion, 1965/1982, pp. 56-57)

Muito diferente de fato, e a diferença em causa, sugiro reportá-la à incomensurabilidade das relações e do contabilizável, dito de outro modo, como o prolongamento do intuicionismo de Poincaré, para quem a verdadeira produção de objetos matemáticos pelo intelecto do matemático, nos faz conhecer no seu limite o impensável que é o infinito atual cantoriano.

É o momento de considerar uma objeção, hoje recorrente, desde que se passou a ver a psicanálise pretender incorporar substancialmente raciocínios matemáticos que, do ponto de vista do bom senso, não têm "evidentemente" nenhuma relação com o material psíquico em causa dentro da clínica. Às vezes, essa objeção sofre um deslocamento um pouco mais sofisticado e se expressa opondo o rigor formal e a univocidade lógica dos conceitos matemáticos, com a subdeterminação das descrições psicológicas e sua imprecisão verbal: a pretensão de utilizar noções matemáticas numa teoria psicanalítica seria uma confusão de registros e, quem sabe (contrastando com Lacan), uma tentativa de intimidar os inocentes graças a uma cientificidade afetada.

Ora, nada na leitura da Grade aqui proposta substitui a embutidura de um "modelo" lógico cantoriano sobre o pensamento de Bion. Pode-se, tanto quanto se deseja, contestar o direito de Bion de se dar uma apresentação tabular dos conceitos freudianos extraídos das "Formulações", assim como de usar os eixos horizontais (♀♂) e verticais (Ps->D) que os tornam operatórios na óptica kleiniana. Mas o que não se pode em absoluto, uma vez aceita essa tabulação, é rechaçar o fato de pensarmos uma possível diagonalização. Diagonalizar, não é aqui, de nenhuma maneira, proceder por analogia e, gratuitamente, fazer como se a Grade se parecesse a uma tabela cantoriana para praticar sobre ela uma operação extrínseca e arbitrária. É precisamente o contrário, porque a Grade pretende captar uma configuração objetiva dos elementos e das funções da psicanálise. Dito de outra maneira, porque ela não é em absoluto uma comodidade gráfica, mas, sim, um esquema produtor de pensamento é que ela deve ser diagonalisável da forma como eu indiquei. Se se quer rejeitar a diagonalização, primeiro haveria que tornar inverossímel o que Bion constrói com Freud e Melanie Klein, e todo o jogo de esclarecimento mútuo e de complementação que ele conseguiu (a meu ver, admiravelmente) elaborar entre suas teorias. Porque não importa qual a construção tabular que tenha uma justificação conceitual intrínseca e que conduza, ipso facto, à questão da diagonalização. Isso não é um problema da psicanálise, mas da metodologia em toda a argumentação que analise os dados os decompondo sobre dois eixos. Se surge uma resistência no leitor de Bion ("é uma simples imagem, ele não pode ter tido uma ideia parecida!"), é porque a Grade é habitualmente comparada a um outro tipo de tabela: a tabela periódica dos elementos de Mendeleïev. De alguma maneira, Bion entregou à tabela os elementos psíquicos, reduzido muito ou pouco a uma lista de linhas e de colunas. Ora, além de ignorar o princípio construtivo da tabela de Mendeleïev (os pesos atômicos...), que engendra sistematicamente os lugares dos elementos e indica aqueles que são possíveis, mas ainda não observados nem criados, a comparação é, em minha opinião, um contrassenso em relação ao uso da Grade. Seria reduzir seu conteúdo a um conteúdo psíquico já dado e em si finito, enquanto Bion o emprega para favorecer a criatividade ordenada e potencialmente infinita do psicanalista - acionando o sujeito inventante, e não a lista fechada de realidades psíquicas que mobiliam seu universo. Operando assim essa conexão lógica da Grade e do esquema cantoriano, eu quero demarcar muito bem minha leitura de uma exegese puramente textual (até onde sei, Bion nunca disse que a Grade se diagonaliza): quero ressaltar o que não pertence à ordem dos enunciados literais de Bion, mas àquilo passível de ser pensado a partir desses enunciados. Uma vez mais não estou ignorando as tentativas agressivas de reduzir a psicanálise a uma impostura intelectual se escarnecendo (sem compreender o porquê) do recurso a formalismos de um comportamento lógico-matemático. Ao menos neste caso particular, e sob as reservas que acabo de mencionar, não há estritamente nada nessa leitura da Grade cuja pertinência se possa refutar em nome do simples bom senso. Que a psicanálise tenha um conteúdo conceitual é, não duvido disso, preocupante para muitos críticos, mas, se claramente o tem (e Bion demonstra a que preço ela o obtém), nenhum dos meios de extensão lógica de seu poder explicativo não lhe pode ser negado. E tanto pior para os exegetas que ficam na superfície literal dos enunciados e não vêm o que ali se concebe nem o germe dos pensamentos que ali se desenvolve.

O esclarecimento anterior não é um passo ao lado, motivado pelo contexto polêmico a partir do qual se escreve a teoria psicanalítica. Porque o argumento diagonal não é e nunca foi uma simples ferramenta formal (de Cantor à Gödel e muito além), mas, sim, um espaço intelectual para as surpresas à poderosa ressonância subjetiva. Eu creio mesmo que seja possível se apoiar nesse motivo intuicionista para caracterizar aquilo que sempre pareceu louco em Cantor: "pensar o infinito atual" é, em termos psicológicos, "pensar atualmente o infinito" - portanto ser Deus. A epistemologia de Cantor encerra essa virtualidade psicótica em sua expressão mesma, uma vez que ele supôs que o argumento diagonal o autorizava, mediante a aplicação do terceiro excluído, a afirmar a existência de conjuntos infinitos não contabilizáveis (sua existência atual). Logo pensou que pensava aquilo que registrava, e que o argumento diagonal, bastando para definir a série dos números reais, dava a ele acesso à existência do contínuo: então havia nele um pensamento infinito objetivo. Quanto a Hilbert, cuja solução prevaleceu porque deixava de lado essa metafísica, ele acreditou se libertar do impasse de Cantor reescrevendo-a sobre o modo axiomático; em uma palavra, por convenções sobre os signos (que, ainda mais, aceitam o princípio do terceiro excluído). Ora, por mais pragmática que seja a solução de Hilbert, deve-se também ver que ela esvaziou de seu sentido epistêmico profundo a abordagem de Cantor: sua interrogação sobre os poderes intuitivos do psiquismo. Prontamente tornou estranha a abordagem intuicionista de Brouwer, que zombava soberanamente da "comodidade" dos axiomas, e que sustentava que a invenção matemática, portanto, a generatividade de objetos e de inferências, e a questão de saber qual(s) infinito(s) somos efetivamente capazes de construir por intuição foram os últimos problemas dos quais seria inútil querer se desvencilhar por simples convenções. Essas convenções fornecem seguramente um contínuo conveniente para as necessidades dos matemáticos. Mas elas não esclarecem em nada o que é um contínuo, e elas deixam inexplorada a essência de nossos poderes mentais.

Ora, o espírito de Poincaré (e seu prolongamento na epistemologia de Brouwer) anima Bion muito além dos empréstimos fáceis de serem identificados, tais como os fatos selecionados ou o tributo ao rêverie. Ele dirige sua ideia do alcance construtivo da intuição (isto é, sua generatividade, que é a psicogênese autêntica) e, como vamos ver também, suas especulações as mais obscuras sobre a realidade última, qual seja, "O".

Se Bion de fato julgou necessário criar o neologismo to intuit (intuicionar), foi para aprofundar o valor epistêmico da identificação projetiva.

Em Melanie Klein, esse mecanismo é um fantasma e nada mais que um fantasma. Mas em Bion, pelo fato da congruência a minima do princípio do prazer e do princípio de realidade, é um ato psiquicamente real. Diferença decisiva: quando uma identificação projetiva tem lugar na transferência, o que é projetado é realmente introduzido no psiquismo do analista (e não fantasmaticamente introduzido em um analista que, em suma, não seria afetado por isso). Daí o valor, em Bion, da contratransferência vivida. E tem mais: se esse é claramente um ato real e não fantasiado, então a relação que se institui é uma relação com o real ele mesmo, não com um "seio" originário, que não se sabe realmente qual parte nele estaria vinculada à sua função biológica, e que outra se perderia nas metáforas da alimentação da mente com tudo aquilo que é "bom". Bion prefere sustentar que o que nutre primeiro o psiquismo é a verdade: "seio", para ele, colore afetiva e sensorialmente nossos pensamentos, enquanto eles visam o real para que ali sobreviva e ali desabroche o aparelho psíquico. Ora, a identificação projetiva reúne as características tradicionais da intuição: ela é sinóptica (capta as totalidades simples), seletiva (estabelece a escolha do fato selecionado), apossada a partir de uma profundidade (é um ver-dentro: intus), é, finalmente, um tocar-ver que libera o imediatismo sem distância da coisa. Pensado como ato intelectual, o intuit capta, na identificação projetiva, seu puro valor epistêmico, K. O intuit é o "bom encontro" fundamental entre real e pensamento, o ponto exato onde o real se faz saber (O->K) e onde o saber é saber real, logo verdade (K->O). É a serviço dessa verdade que só alimenta o psiquismo que a interpretação bioniana se coloca: seu instrumento único é, por consequência, a intuição.

Não se deve, então, se surpreender se Bion utiliza a inveja de Melanie Klein, mas sem seu complemento usual, a gratidão. Tudo isso procede da mesma epistemologização do que em Melanie Klein é constantemente pensado em termos vitais: da orientação em direção à verdade e não mais em direção ao seio metafórico da mãe. Se há gratidão, em Bion, é no sentido de graça, de charis (carz), tal como Heidegger a restituiu: como uma abertura recíproca ao dom do ser. A alegria que emana disso é espiritual, não é uma excitação pulsional saturadora. Como vemos, estamos já pisando em solo místico, e no entanto nós somente realizamos a análise conceitual das potencialidades da Grade.

Pensem agora no analista posicionando o intuit assim concebido no topo das qualidades requeridas de seu aparelho psíquico. Que diferenças isso gera?

Encontro quatro:

1. A primeira é uma determinação mais rigorosa do "outro lado do espelho" que constitui a psicose. Falar da antiGrade (-K) não é suficiente. Confrontado com o delírio, o pensamento do analista sofre uma invasão maior, na qual é difícil para ele saber se tem uma relação com a destruição de todas as ligações entre os pensamentos do paciente, ou bem se o paciente tenta ligar seus pensamentos invocando um impossível pensamento supremo do infinito: tudo significa tudo (e não importa o quê), cada ato singular irradia uma infinidade de ameaças, e o vazio mental domina de tal maneira que tudo já não é mais nada e assim por diante. Para os psicóticos não há mais que duas posições: a megalomania divina, ser Deus, ou aquela, aniquiladora, de ser a imundície do mundo. Bion nos faz conceber que a psicose é um problema com o infinito. A ruptura esquizoparanoide tem, de fato, uma "potência" no sentido lógico: a de uma infinidade de pensamentos que ameaça incessantemente se tornar atual e de anular psiquicamente aquele que o pensa. É por isso que Bion reflete com tanta insistência sobre o infinito das relações causais às quais o psicótico é confrontado. Ele necessita de um superego selvagem, ilimitado, incessantemente mobilizado para criar "vínculo" entre tudo e tudo por uma relação de imputação monstruosa e absurda de responsabilidade, que o empurra para dentro de um universo quase animista cada vez mais distante da realidade. Mas por quê? Para salvar por projeção nesse superego sua onipotência ameaçada: de fora, e não mais em seu seio. Mas esse superego, sem dúvida, não pode criar vínculos de pensamento entre pensamentos, visto que é todo o aparelho psíquico que se evacua projetivamente no mundo exterior. Os pensamentos se tornam coisas, passeiam agora no mundo, encapsulados nos "objetos bizarros", eles interpelam e angustiam o psicótico. O superego tenta dar sentido à proliferação insensata dos pensamentos expulsos para fora, bem como de remissões e alusões. Ele nos protege contra mais loucura ainda. A perseguição é um tributo da loucura à lógica. Mas o analista não precisa se lamentar nem sempre temer que seu paciente psicótico o acabe perseguindo, porque, se ele fixar a imago superegoica sobre sua pessoa, e se for de carne e osso quem observa a identificação projetiva delirante de seu paciente, ele se encontra tão bem ali diante do ponto de contato último do delírio com a realidade e a razão, e é isso mesmo que a ele compete novamente interpretar.

2. Ao contrário, disso se deduzirá que o infinito ao qual nosso aparelho psíquico dá acesso, é o infinito "potencial". É o indeterminado oposto ao determinado, é o apeiron (apirou), explica Bion, que é um princípio negativo de ilimitação (sempre se pode ir mais longe). Isto tem as mais graves consequências sobre a natureza da associação livre. Porque se o psiquismo se constrói por integração e simbolização, é de maneira sempre aberta, em potência de outra coisa. Encontramo-nos, desse ponto de vista, nos antípodas da concepção lacaniana da associação livre, que é uma sobreposição de subdeterminações, em que a recorrência das cadeias de significantes impõem, ao menos idealmente, suas figuras a todo conteúdo de sentido.17 Lacan afivela assim o pensamento nos ciclos regidos pelas leis do significante, cuja repetição implacável proporciona a cifra inconsciente da existência. Ora, se Bion fora intuicionista, como eu sugiro, então ele pensaria ao contrário as séries de associações à maneira de Brouwer, ou seja, como "sucessões de escolhas" (Wahlfolgen) livres. Em Brouwer, as sucessões de escolhas são os estados intelectuais sucessivos do matemático intuicionista, e eles se representam sob forma de árvores que se ramificam. A via intuitiva, para Brouwer, procede, então, mediante concatenações abertas em que, a cada escolha, é gerado seja um signo determinado, seja nada, seja a inibição (Hemmung) de todo o processo, que assim invalida o resultado. Porém Brouwer, insistindo sobre a característica intrínsecamente inacabada das sucessões de escolhas livres, mostrou que elas permitiam definir funções, cujos objetos, em níveis inferiores de desenvolvimento, ainda não estão totalmente determinados (isto é, determinados em ato). O coração do intuicionismo está aí: na atribuição de valores a funções ligadas a "argumentos incompletos". O que é vertiginoso (eu não explicarei, pois trata-se de pura matemática) é que podemos caracterizar, então, um contínuo mais rico que o contínuo padrão: o contínuo intuicionista excede o contínuo de números reais predeterminados pelos meios tradicionais (sequências de Cauchy ou cortes de Dedekind). Assim como a dinâmica das sucessões de escolhas de Brouwer as libera da inquietude ao empilhar elementos discretos, sempre predeterminados por regras; nós não chegaremos nunca a reencontrar a textura verdadeira do contínuo. Transponham isso à associação livre e vejam a perspectiva que se abre: a tarefa do psicanalista não seria mais necessariamente a de apontar as repetições e os ciclos subjacentes que inscrevem o trabalho inconsciente do significante. Seria melhor permitir ao paciente aceder à generatividade de seus pensamentos, de lhe indicar não aquilo que o sobredetermina sem cessar, mas as aberturas potenciais que determinam sua relação pessoal com o ilimitado. Proceder assim, dentro da teoria, seria uma revolução para o analista: seria necessário que ele se impedisse os usos incontinentes da palavra "todos", o emprego de classes em que a construção efetiva não fosse proporcionada previamente - resumindo, toda a insuportável tagarelice psicopatológica que reduz as curas a categorias diagnósticas,18 sem deixar nenhuma chance à incompletude inerente à psicogênese do aparelho psíquico.

3. Outra surpresa para o leitor alimentado em Lacan: o intuicionismo procede de uma crítica sistemática da primazia da linguagem e dos símbolos. Todavia não é nem em nome do afeto nem da empatia primordial. É em nome de uma psicogênese efetiva do pensamento, que por outro lado evoca claramente os aparelhos neuronais de Freud antes de 1896. Falando com propriedade, o intuicionismo é compatível com qualquer lógica e com qualquer ponto de vista linguístico (não contraditório), porque ele representa acesso peremptório à realidade. O franco desprezo de Poincaré por Peano se justifica assim: aquele que não sabe por intuição o que são os números inteiros naturais nem que a indução completa é operatória, o que o ensinará a "derivação lógica" pela teoria dos conjuntos? Essa tomada de posição antilinguística é também a de Bion em psicanálise, tendo por base o intuit. Existe, logicamente, uma simbólica edipiana, lapsos etc. Mas o que nos ensina a transferência se não conhecemos sua função no crescimento ou na regressão do aparelho psíquico do paciente; se, em outros termos, fascinados pelo traço verbal ou o símbolo, perdemos os processos criadores ou destruidores que ali se projetam? A intuição é necessária para distinguir um mito edipiano numa neurose (K) de seu duplo pseudo-neurótico (-K), já que as palavras são as mesmas, igualmente os símbolos, mas não sua função psíquica. Para tanto, temos que saber que esses processos criativos ou destrutivos não são "efeitos de sentido" no imaginário, induzidos pelo jogo de significantes. Esses processos são o real imanente à situação psicanalítica. Eis aí de que modo "O" é inefável, diz Bion: é o real último, no sentido daquilo que admite todos os pontos de vista (vértices) em sua equivalência e sua solidariedade. Também para um bioniano carece de interesse saber se a lógica psicanalítica (o jargão) que se utiliza é ou não a correta (lacaniana, kleiniana etc.): só importa vossa intuição clínica. Mas se "O" é inefável, é também porque ele é o real tal qual ele é, e não tal qual se vive - isto é, como se sofre, se atua e se dirige o jogo das pulsões e dos desejos. O intuit é o calmo desvio de uma relação com o real que, segundo Bion, verdadeiramente alimenta. Permite por à distância, na escuta analítica, a tentativa permanente do paciente em levar a quem o escuta as turbulências que o animam. O intuit responde à imagem de Bergson, que reclamava olhos para ver e não olhos para viver. Mas esses olhos não são olhos de carne e muito menos os olhos que nos permite a linguagem das coisas. São os olhos de Milton, figura, em Bion, de um Édipo em relação à verdade liberada de toda arrogância e de toda inveja, e que teria se tornado em realidade, e não mais em mito, "vidente".

4. Reencontramos, então, em Bion, sem talvez que ele tenha sabido, um motivo filosófico profundo do intuicionismo: é necessário se livrar do vínculo social. Sem a intuição, seriamos vítimas da verborragia ordinária, de pontos de vista privados que se enfrentam com palavras vãs e do desvio permanente de nossa interioridade criativa pela rotina da sobrevivência prática, que vincula palavras e ações mediante uma pesada cadeia fundida. O verdadeiro não seria mais que o útil (e eu recordaria o peso dessa ideia para Freud nas "Formulações", sua referência a James e seu debate com o "sentido do real"de Janet) e, a vida social seria um simples acordo entre discursos, e não entre espíritos livres. Escutem, no entanto, o tom de Bion: sua maneira de acolher as projeções de seus interlocutores e de deixar que se enuncie suas perspectivas, sem que ele jamais se deixe levar por suas lógicas nem por seus jargões, tampouco reforce suas pretensas ortodoxias bionianas. É que, para o intuicionismo, há menos uma realidade comum a que se deve se submeter, e, portanto, uma linguagem correta que a objetive, do que uma relação transindividual verdadeira. Ora, em Bion, a vida dos grupos ilustra permanentemente essa degenerescência que precipita os humanos através dos supostos básicos de dependência, de ataquefuga etc.em modalidades de defesas psicóticas. Mas defesas psicóticas contra o quê? Se mais não for, contra o puro e simples olhar sobre o real tal como ele é. Esse olhar, o grupo "de trabalho" o recobrará in fine, e talvez somente in fine. Mas é também o motivo pelo qual não penso que possamos nos contentar em retomar tal qual a ideia de Bion segundo a qual a Grade oferece uma dupla proteção: por um lado, contra a tendência messiânica (a irrupção do mestre que transgride todas as ideias recebidas e que suscita uma mudança tão catastrófica que nem sequer pode ser qualificada de acting-out); por outro, contra o conformismo estéril do establishment (que se ressente traumaticamente, como pura loucura, de tudo aquilo que delimita as paredes rígidas de seu aparelho psíquico). Deve-se adicionar aqui a intuição como êxtase até "O", o ponto onde aquilo que poderia parecer como um louco "ato de fé" na imanência da verdade é o apoio mais firme fincado na evidência. E isso vale, logicamente, tanto para uma sociedade psicanalítica quanto para toda a sociedade humana.

Aqui chegamos, sem nos dar conta, ao famoso ponto de vista místico de Bion que, talvez, teria substituído o ponto de vista epistemológico. A referência, em minha clara opinião, à conceitualidade intuicionista estabelece a ponte entre os dois provando o grande rigor de Bion. Não obstante, estou consciente dos limites de aproximação que tento criar entre o intuicionismo de Poincaré e, sobretudo, de Brouwer, e a noção bioniana de intuit. Seria o momento de fazer valer a "penumbra associativa"dos conceitos, cara a Bion, ao abrigo da qual ele deixava o campo livre à imaginação de seus leitores. Mas, será que fiz algo mais que suscitar outra turbulência nas nuvens de sua teoria? Espero, ao menos, que eu tenha sido provocativo e sugestivo.

A suavidade de Bion em seus últimos ensaios procede, então, se bem se quer aceitar minhas premissas, de sua inserção resoluta na articulação do limitado e do ilimitado, em todas as suas conotações psíquicas e existenciais. É esse um movimento do espírito que não renega em absoluto a aquisição da Grade, mas se transporta ao lugar estratégico onde aquilo que a Grade permite pensar; é aquilo que potencialmente a excede, é o mais-além tanto do princípio do prazer quanto do princípio de realidade: o real. Se estamos, portanto, nas antípodas do "sentimento oceânico", é por uma razão bem simples. Pensar e viver without memory and desire, disse Bion, é a precondição do intuit. Eu traduziria esse slogan como "sem nostalgia nem esperanças". Pois a memória, conceitualmente, para Bion, é a pulsão conjugada ao passado: e o desejo, a pulsão conjugada ao futuro. O intuit só vai ao encontro do real (e esse gesto de acolhimento é a verdadeira psicogênese do aparelho psíquico, seu crescimento autoinventado) no silêncio das pulsões. Não se encontrará, então, oculta em "O" nenhuma Mãe Originária, nenhum narcisismo dilatado. Na realidade, por um desses lances geniais que só Bion tem o segredo, o vínculo com "O" evoca mais o "protomental" de sua primeira teoria dos grupos. Dito de outro modo, esse suspense afetivo em que o potencial somatopsíquico se apresenta em estado nu, antes da cristalização num suposto básico que investe os membros do grupo de um valor libidinal. Essa indiferenciação é o pano de fundo sobre o qual se pode pensar a cesura fundamental e que, ao vincular os indivíduos segundo um suposto básico, por isso os individualiza e os faz nascer psiquicamente ao mundo. Ora, para Bion, esse nascimento separa o corpo e o espírito, que estavam (e que ainda permanecem em segundo plano) confundidos na indiferenciação protomental.19 Podemos então intuir as condições de nosso surgimento como indivíduos no mundo: nós devemos, sugere ele, pensar que os cuidados maternos não tenham sido outra coisa, desde que bem-sucedidos, além do prolongamento das condições primárias de nossa individuação de embrião e de nossa irrupção somatopsíquica inaugural na vida do casal parental. Essa primeira cesura, inspirada em Freud, se duplica com uma segunda: com o casamento e a união sexual, o indivíduo se separa ainda mais do espaço psíquico limitado pelos cuidados maternos, em que a sexualidade permanece infantil. Mesmo a morte, nesse sentido a contragosto de Freud, torna-se talvez pensável: não como antecipação desvairada da castração, mas como intuição da parte definida da realidade que nos constitui, revelada por nossa vida e por sua forma de crer (há algo aqui do "conhecimento do terceiro gênero", segundo Spinoza).

Bion, nessas exposições, salienta uma antiga tradição, mais frequentemente reprimida que admitida oficialmente, e que não se teria razão em reduzir a suas expressões místico-religiosas. Todo pensamento da intuição é de fato um monismo, um pensamento sobre Um-Todo, que se lança para além de Deus, como objeto da religião, até a "potência" de onde Deus e o Todo procedem. Bion toma de Tyndale a palavra reparação/atonement (faltava em inglês uma palavra designando ao mesmo tempo reconciliação com Deus e o perdão dos pecados, o kaper do Yom Kippour), mas decompondo-a em sua etimologia, at-one-ment (uni-fic-ação), dá a ela um caráter laico: e melhor, ele faz disso um uso não mais transcendente, mas imanente. O Um (One) não é mais aquilo com o que devemos nos reunir (no além), é aquilo que nos inclui (aqui). Esse desvio do termo bíblico visa nos aproximar da em-potência mundana e carnal do real: dito de outro modo, de fontes possíveis de verdade para o crescimento psíquico, contra a inveja e a onipotência que nos mascara o pretenso desamparo original (Hilflosgkeit). Porque esse desamparo, explica Bion, é um fantasma defensivo contra aquilo que a mãe poderia, efetivamente, cometer contra seu filho. Enquanto tivermos essa relação fantasmática e pulsional com o real, não há solução para a angústia do desamparo original. O Um-Todo nos parece unicamente devorador, jamais um seio-verdade. O at-one-ment permitiria assim intuir nossa origem real (somatopsíquica) sem desfalecer de terror. É aqui que um estado semelhante passa a ser exigido legitimamente do psicanalista kleiniano: sem ele, só é possível ser engolido nas turbulências da cena primária, cuja mera evocação desencadeia, mediante pensamentos ou interpretações, os fantasmas arcaicos, os sintomas e os acting-out do analista imprudente. Porque também para Bion a resistência é sempre a do analista!

Lido dessa maneira Bion não é um místico, nem um irracionalista, nem um religioso sem religião. Existem poucas palavras para definir o que ele é, porém o mesmo vale, em todo caso, para Eckhart, para Spinoza do livro v da Ética, para o último Schelling, para Bataille, para tantos outros. Todos, no entanto, são pensadores da intuição e do conhecimento imediato. A sombra projetada dessas eleições intelectuais e estéticas recaem, segundo Bion, sobre a psicanálise. Sem dúvida isto não pode ser avaliado criticamente sem que se desdobre minuciosamente o que as escolhas implicam, o que permitem criar, o inconsciente que liberam. Mas se, como disse, o pensamento da experiência é indissoluvelmente em Bion uma experiência do pensamento (isto é que é ser monista), então uma outra direção de leitura se apresenta ao leitor.

E é a autoficção biográfica.

Pois ao término desse percurso, parece-me que se pode facilmente corrigir a impressão de anti-intelectualismo do último Bion. Basta abrir o relato de sua vida e de relacioná-lo a diversas passagens do A Memoir of the Future. Bion não buscou uma solução filosófica às dificuldades que eu evoco. Ele simplesmente modificou profundamente sua escritura, leia-se, seu sistema de notação, sua máquina para a atenção e a investigação, em suma, ele renovou no sentido de uma ilimitação crescente os recursos de seu aparelho psíquico. Mas no fluxo joyceano desses textos extravagantes produz-se dois acontecimentos. O primeiro, é o desaparecimento da metalinguagem sobre a psicose. Sim, podemos concordar com Meltzer, é sempre muito difícil saber se Bion fala da psicose ou do ponto de vista da psicose, pelo menos em Transformations. Avançando até a cesura terminal, Bion inverte os termos do problema: não se chegaria ao fim de suas iniciativas se não transformássemos o próprio discurso teórico numa facilitação entre outras e se se considerasse o formalismo da Grade como uma rede de arame posta sobre seu potencial psíquico. Colagens, nonsenses, absurdos à maneira de Lewis Carrol, citações mascaradas, sonhos artificiais (o que mais se poderia imaginar?), tudo conspira até a inclusão retrospectiva do período epistemológico num movimento mais aberto, um movimento de ilimitação da razão e da loucura. E se Joyce guia Bion é porque ele extraiu as consequências de um monismo radical: o rio de palavras é o rio das coisas. Só nos banhando lá (jamais duas vezes) é que lavaremos o pecado de ter nascido. Ora, é também nesse lugar que um segundo acontecimento surge, uma espécie de dúvida final, uma sombra que recai sobre a imensa atividade de Bion: de que sobreaviso inesperado nos despertamos então? E quem sabe se esse sobreaviso não é ainda um sobreaviso sonhado, um sonho que se continua por outros meios?

Um homem jovem de 19 anos, no meio de cadáveres da terceira batalha de Ypres, no outono de 1917, por detrás da carcaça de seu tanque enlameado, sentiu, disse ele, por um instante, que sua alma acabara de morrer - mas que seu corpo havia se tornado eterno. Quem não concordaria com ele que sua obra, indissoluvelmente intelectual e psíquica, o trouxe de volta o que a atrocidade da guerra lhe havia arrancado?

 

Referências

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Rivière, J. (ed.) (1952). Developments in Psychoanalysis. Londres: Hogarth.         [ Links ]

 

 

Tradução Rejane Camara Cutrim cutrim.rejane@gmail.com
Revisão psicanalítica e comentários Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho mr.junqueira@uol.com.br
Pierre-Henri Castel pierre-henri.castel@free.fr
1 Éditions d'Ithaque é a editora francesa da coletânea. O título francês, La Preuve et autres textes, não é de Bion, ele foi escolhido por Ana de Staal, da Ithaque, e Francesca Bion.
2 Este ensaio é fruto das reflexões feitas em 2006 e 2007 no âmbito de meu seminário na Associação Lacaniana Internacional (acessível em http://pierrehenri.castel.free.fr), e ele foi dedicado àquelas e àqueles que se dispuseram a enriquecê-lo com sua atenção. Os casos clínicos discutidos no decorrer da elaboração deste trabalho foram retirados por razões de confidencialidade.
3 Comentário 1
Begriffsschrift em geral traduzido como "escrita conceitual" ou "notação conceitual", é o título de um livro de Frege, publicado em 1879, sobre a fórmula linguística do pensamento puro. Por exemplo, a notação para "negação" seria |-A, e para "julgamento", |-A, ||-. No prefácio desse livro, ele explica que: "se a tarefa da filosofia for quebrar o domínio das palavras sobre a mente humana ..., então, minha notação conceitual, tendo se desenvolvido com esses propósitos, pode vir a ser um instrumento útil aos filósofos ... . Acredito que a causa da lógica já teve um avanço a partir da invenção desta notação conceitual".
4 Menos conhecido na França do que Carl Hempel, Richard Bevan Braithwaite (1900-1990) é um dos fundadores da metodologia neopositivista das ciências. Scientific Explanation (Braithwaite, 1953) permaneceu como um clássico. Cita-se menos sua reflexão teológica e moral, uma outra fonte de Bion, ligada à leitura de Ian Ramsey (Braithwaite, 1955; Ramsey, 1957). Sem entrar nos detalhes que exigiriam um estudo à parte, digamos que Bion julgou que o avanço fundamental do neopositivismo lógico, que substitui as explicações ontológicas causa/efeito e a articulação explanans/explanandum, termina historicamente um movimento de emancipação de toda a atitude explicativa a respeito da simples imputação moral. Para Bion, a causa permaneceu um conceito moral e, enquanto tal, uma emanação do superego. O progresso da metodologia das ciências que faz então aparecer como ela é, delirante e paranoide, toda imputação causal estendida ao infinito e formando mais ou menos um sistema do mundo. É um caso em que o desenvolvimento da reflexão epistemológica é visto por Bion como a expansão concreta de nosso aparelho psíquico, totalmente dentro do estilo ao mesmo tempo metapsicológico e meta-histórico das "Formulações" de Freud.
5 Emprego aqui o termo em sua acepção fregeana: ao mesmo tempo como um modo de anotar os pensamentos e um modo de produzir algébricamente novos pensamentos a partir daqueles de que já se dispõe. Existem, fora da lógica, tais ideografias (a notação química é um exemplo canônico). Bion é, com Lacan, um dos que têm tentado exportar o conceito para a psicanálise, ele também a partir da Begriffsschrift (Frege, 1882-1883/1971, pp. 70-79).
6 Essa teoria do pensamento-dirigido-à-ação marca a dívida de Freud a respeito do pragmatismo de James, dívida comum em toda sua geração e encontrada também em Pierre Janet. As "Formulações" se abrem, por outro lado, sobre a questão de saber se é possível fazermos psicopatologia melhor que Janet e sua "função do real", um tema completamente jamesiano.
7 Comentário 2
A expressão francesa
contrepetterie refere-se à contraposição da sílaba inicial de uma palavra, como, por exemplo: Sonnez trompettes! Trompez sonnettes! Já a palavra spoonerismo se refere a um exemplo oferecido por Bion na primeira linha de Learning from Experience para intro duzir a noção de "função da personalidade": um spoonerismo seria uma ação característica de alguém chamado Spooner.
8 Comentário 3
No sentido, por exemplo, do significado do que é para Caetano, "caetanear".

9 Comentário 4
No capítulo 22 de
Learning from Experience, ao formular a natureza do objeto psicanalí tico, ele propõe que o mesmo podia ser representado pela fórmula "
Ψ. (ξ). (M)", em que Ψ representa uma constante, (ξ) um elemento insaturado e (M) o elemento inato da personalidade.
10 Comentário 5
Esta é uma afirmação a ser melhor esclarecida, já que Bion sempre associou o sonho do psicótico a uma fragmentação minúscula que beira o amorfismo.

11 O chosen fact é o ponto de partida intuitivo do psicanalista; é, dito de outro modo, a "conjunção constante" (num sentido vizinho de Hume), cuja presença tem que ser assinalada na nebulosa de probabilidades e de possibilidades e a partir da qual todo o resto manifesta sua ordem oculta.
12 Comentário 6
Note-se que Castel aqui se deixou levar pela língua materna já que o termo usado por Bion foi
selected fact.
13 Comentário 7
É impressionante a semelhança entre essa descrição e aquela feita por Robert Louis Stevenson em seu ensaio "A chapter on dreams", onde ele conta como sua mente trabalhava durante o sono para produzir suas obras, em especial o famoso
Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde.
14 Sobre todos esses pontos, vejam a admirável síntese de Jean Largeault (Largeault, 1993). Bion pode ter conhecido essas ideias através de Arnold Heyting, a quem evoca em Cogitations. Ele menciona também incidentalmente Brouwer, assinala Jacquelyne Poulain-Colombier.
15 Comentário 9
De fato, Bion nunca usou essa palavra. No entanto, ao se referir às potencialidades da Grade, ele sugeriu que ela nos permite acompanhar os desdobramentos de uma dada realidade psí quica, tabulando-a até o final de uma fileira do eixo vertical e visualizando seu "progresso" ao adentrar a fileira que a sucede: se projetarmos essa evolução do compartimento A1 até o compartimento F6, teremos uma diagonalização.

16 Pode-se objetar aqui que os bizarre bits, ou objetos bizarros, são os candidatos mais plausíveis à função de elemento-em-excesso da Grade. Porém não me interessa aqui a hermenêutica dessas noções nem a maior ou menor verossimilhança textual de minhas aproximações. Eu me esforço mais uma vez para mostrar a forma que Bion pensa com a Grade a articulação finito/infinito, e a primazia do infinito, com bem mais vantagem do que a articulação consciente/inconsciente (ora, a noção de objeto bizarro implica a conjunção de um elemento-
β com uma figura de superego). Pouco importa, em suma, que o elemento-em-excesso seja mais o elemento-β do que outra coisa, se é captado bem o deslocamento dessas relações. Mas Bion se interessa, sobretudo, a isto: a "linha de separação" que funda o processo de alfa-betização (Bion, 1990, p. 41). A diagonalização da Grade exibe aquilo que está em jogo.
17 Lacan quis dar uma forma markoviana às suas cadeias de significantes (Lacan, 1966, pp. 44-66). A ideia remonta ao próprio Markov, que mostrou, num romance de Pouchkine, que as letras das palavras não apareciam nunca umas após as outras ao acaso, mas sempre em função da ocorrência de tal e tal letra ao nível n-1 ou n-2. Elas eram, então, relativamente previsíveis em função das letras que as precediam. Mas, certamente, e é por isso que se trata de uma sub-determinação, o conhecimento de uma letra ou de um fonema numa sequência qualquer não permite determinar qual será a letra ou o fonema na sequência seguinte, qualquer que seja. Pensar a (sub)-determinação inconsciente nesses termos levanta todos os tipos de problemas que eu não discutirei aqui.
18 Critica-se Bion por ele não ter dito nada sobre a perversão e de não ter feito mais que opor psicótico a neurótico. Isso não é exato: existe uma teoria da perversão em suas análises da mentira, e da pesquisa do falso pelo falso: e uma outra ainda em sua teoria do fetiche. Mas a perversão em geral é tipicamente o gênero de categoria à qual ninguém fornece a regra explícita de construção.
19 É por isso que, segundo Bion, toda doença, para o analista, é indissoluvelmente psicossomática e social: ela leva o duplo estigma da indiferenciação originária e da cesura que causou a doença de um indivíduo confrontado numa relação com o grupo (em geral, de dependência).

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