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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014

 

SESSÃO DE CINEMA

 

Festa de família: a função da mãe em uma família incestuosa1

 

The Celebration: the role of the mother in an incestuous family

 

La celebración: la función de la madre en una familia incestuosa

 

 

Claudio Cohen

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

O filme Festa de família (Festen), escrito e dirigido por Thomas Vinterberg, tem seu roteiro sob a ideologia dos mandamentos do Dogma 95, do qual é coautor. Essas regras propõem outro modo de fazer uso do cinema, menos comercial. A trama do filme se baseia nos conflitos familiares, apresentada através da história da numerosa família Klingenfeldt, que se reúne em um hotel que havia pertencido à família, para celebrar o aniversário do patriarca, que comemora 60 anos e é admirado e respeitado por todos. Mas essa aparente amabilidade será questionada durante a celebração quando Christian faz um discurso revelando o segredo da família. Vamos analisar o funcionamento dessa família desde o vértice psicanalítico, observando a relação incestuosa. O herói do filme, Christian, vai questionar a figura paterna em uma aparente sagrada família, desconstruindo a ideia do pai bom, apresentando-o como um padre padrone. Porém o que não fica tão evidente é que, após Christian sobrepujar o pai e retirar-se da festa, a mãe abandona seu marido, indo ao encontro do filho. O propósito dessas observações sobre configurações psíquicas familiares foi o de lançar luz sobre a dinâmica do vínculo relacional da mãe na família incestuosa. Esse mesmo comportamento pode ser observado na tragédia escrita por Sófocles, quando Jocasta, viúva de Laio, que foi morto por Édipo, se casa com Édipo; em Festa de família observamos esse comportamento quando Else abandona Helge e vai ao encontro de Christian.

Palavras-chave: mãe incestuosa, família de Édipo, complexo de Jocasta


ABSTRACT

The film Festen, written and directed by Thomas Vinterberg, has ideological principles that are the rules of Dogma 95, of which he is coauthor. These rules propose another way to make use of the cinema language, transforming the relationship between the factual reality with the camera, which is already saturated by the most common commercial cinema. The film's plot takes place showing family conflict, counting - is an episode of the history of the family Klingenfeldt when it meets in a hotel to celebrate the birthday of the Patriarch of a holy family, who is 60 years old, which seems, all want it and respect it deeply. This apparent harmony will be questioned during the birthday celebration reached climax at the moment which becomes public a family secret, showing - is starting from that moment the consequences of this revelation. This paper analyzes, from the psychoanalytic vertex, the role of the mother in this family observing its operation and its aftermath in this incestuous family. The hero of the film, Christian, who is the eldest son, misfortune of the good father image and shows the contribution of his mother in preserving the status quo. This is one of the purposes of the Dogma, ending the image of sacred family film has. We should also note the fact that Christian after deliver - is his padre padrone, mother leaves her husband and goes with his son. The purpose of these observations about the psychic family configurations is to shed light on the dynamics of relational loop of the mother in the incestuous family. In mythology, this incestuous behavior can be seen in Oedipus when Jocasta, widow of Layo marries Oedipus, in Festen, Else desist from Helge and follows Christian.

Keywords: incestuous mother, Oedipus family, Jocasta complex


RESUMEN

El guion de la película Festen, escrita y dirigida por Thomas Vinterberg, tiene como principio ideológico los mandamientos del Dogma 95, del cual Vinterberg es coautor. Estas reglas proponen un uso menos comercial del cine. La trama de la película tiene como base los conflictos familiares presentados a través de la historia de los Klingenfeldt, una numerosa familia, que en esta ocasión se encuentra reunida en el hotel familiar para celebrar el sexagésimo cumpleaños del patriarca, un hombre querido y admirado por todos. Esta aparente armonía es cuestionada durante la celebración del cumpleaños cuando Christian, el hijo mayor, torna público un secreto de familia, mostrándose a partir de ese momento las consecuencias de esta revelación. En este trabajo se analiza el funcionamiento de esa familia, que es una familia incestuosa, desde el vértice psicoanalítico. El héroe de la película, Christian, cuestiona la figura paterna de una aparente sagrada familia, desconstruyendo la imagen del buen padre, presentándolo como un padre padrone. Lo que no queda tan evidente es que después que Christian logra libertarse de su padre y retirarse de la fiesta, es seguido por su madre quien abandona a su esposo y va al encuentro del hijo. El propósito de estas observaciones sobre las configuraciones psíquicas familiares es arrojar luz sobre la dinámica del vínculo relacional de la madre en la familia incestuosa. En la mitología, este comportamiento incestuoso puede ser observado en Edipo cuando Yocasta, viuda de Layo se casa con Edipo; en Festen, Else abandona a Helge y lo busca a Christian.

Palabras clave: madre incestuosa, la familia de Edipo, complejo de Yocasta.


 

 

 

Utilizarei o filme Festa de família (Festen ou, como eu chamaria, a Tragédia Familiar), do escritor e diretor Thomas Vinterberg, para pensar desde o vértice da psicanálise qual é a função da mãe Else nessa família. Também lançarei alguma luz sobre o funcionamento de cada um dos outros membros da família, tomando como paradigma a família de Édipo, lembrando principalmente de Jocasta.

A história escrita por Vinterberg se desenvolve em um hotel que fora o antigo reinado da família Klingenfeldt. O reencontro familiar foi organizado para comemorar o aniversário de seu antigo líder: o todo poderoso Helge.

O fato da trama se passar em um hotel separado da civilização permite que o monarca exerça o seu poder absoluto sobre a festa, tendo contratado alguém que organizaria e controlaria todos os movimentos da celebração. Outro motivo desse isolamento pode ser observado no fato de ser um caminho só de ida para todos os participantes, pois assim que chegam lhe são escondidas as chaves dos seus carros. O único que chega caminhando ao hotel é Christian, o filho mais velho, que, assim como Édipo, vai ter que desempenhar o papel de catalisador dos sentimentos familiares mais profundos, que foram reprimidos por temor.

A família irá reviver situações com que tiveram de conviver durante a infância. O hotel é o local onde irão emergir todas as frustrações vivenciadas pela família, ou seja, como propôs Freud, a possibilidade de recordar e repetir para poder elaborar os fatos.

Manter-se no poder para um líder é sempre muito difícil e, na tragédia de Festa de família, torna-se explícito como Helge tenta preservá-lo a qualquer custo, mesmo quando são revelados todos os seus abusos. O que também é explícito, mas pouco analisado, são as atitudes de Else, a esposa do todo poderoso, que faz manobras para se manter no papel de primeira dama.

Para preservar seu status, Else deverá negar as relações sexuais que ocorrem entre seu marido e os gêmeos Christian e Linda. Por outro lado, ela faz vínculos perversos com seus filhos, por exemplo, com seu filho mais velho, a quem acolhe com carinho e admira, pois ele também é uma pessoa com êxito financeiro, mas que ela não conseguiu proteger das investidas sexuais do pai.

Em relação aos seus outros três filhos, ela os ignora ou os manipula. Um exemplo desse fato é o de que Else não sabe nem quem é o noivo da filha Helene, chamando-o pelo nome do ex-noivo, ou que ela se utiliza do filho menor, Michael, quando necessita impor o que ela deseja pela força, mas ela não lhe reservou nenhum lugar para participar da festa. Já em relação à sua filha Linda que se suicidou, ela não manifesta nenhum sentimento frente ao ocorrido, tanto na perda da filha quanto no fato de poder ter sido sua rival.

Para evidenciar o poder durante o seu reinado, Helge submeteu a todos os serviçais, seus súditos, repetindo rituais, e estes, por sua vez, o odeiam. Porém, nesta festa, eles irão se rebelar, escondendo as chaves dos carros de todos os participantes, esperando que ocorra o assassinato do pai.

Ao mesmo tempo que a festa pode ser apenas uma fantasia da repetição de fatos passados, ela traz à tona a realidade atual de que o patriarca, agora já debilitado pelo passar do tempo, possa ser destruído, possibilitando, deste modo, o surgimento de um novo líder familiar. O embate torna-se explícito a partir da denúncia das experiências vividas pelo filho mais velho, Christian, que durante toda a infância foi abusado sexualmente pelo pai. Entendemos que tal sofrimento somente pôde ser elaborado pelo fato de ele ter crescido e desenvolvido mecanismo de defesa contra o funcionamento familiar incestuoso, mas que para isso teve que se afastar da família e viver em outro país.

Esse episódio demonstra como uma festa para a comemoração da preservação do poder familiar pode se transformar em uma tragédia em que serão questionadas todas as funções da família. Helge preservou seu poder através dos abusos incestuosos e da necessidade de que o filho declare que o líder é muito bom e sempre foi um bom pai para que todos acreditem nessa falácia.

A troca de comando do poder pode ser vista quando o pai, derrotado, devendo se retirar da família, faz seu último discurso, dizendo que foi vencido pelo filho, mas que foi uma boa contenda, tornando público quem irá assumi-lo.

Outra situação traz à tona como o poder familiar é transmitido de uma geração para a outra, ou seja, a sua característica transgeracional. Nesse caso podemos observar o avô que, demonstrando ainda um pouco de poder, faz ataques e desqualifica a masculinidade de seu filho Helge, o qual, por sua vez, agora identificado na figura do pai, se torna o poderoso, atuando os ataques e as difamações contra seus próprios filhos.

O que pode modificar essa repetição do funcionamento da família Klingenfeldt está no fato de que, desta vez, Christian tentará romper essa compulsão à repetição, tornando público os abusos familiares que foram o segredo da família. Porém não sabemos se Christian irá repetir esse poder absoluto e abusivo sobre os outros, pois ele escolhe para viver como companheira uma funcionária do hotel, com a qual teve um relacionamento durante a sua infância e que conhecia o funcionamento familiar.

Esse tipo de relacionamento que Christian teve com a funcionária e que perdurou durante sua vida, mesmo a distância, podemos denominar de incesto polimorfo ou um equivalente incestuoso. Esse equivalente incestuoso ocorre nas relações em que as funções sejam consideradas assimétricas, como a existente entre um chefe e um subalterno, que é semelhante àquela entre pais e filhos, pois existem barreiras morais historicamente criadas para impedir o relacionamento sexual amoroso nesse tipo de relação.

Ao sentarem-se à mesa, no seu primeiro discurso, que deveria ser para homenagear o pai, Christian faz a denúncia reproduzindo a forma de como o pai fazia quando ia abusar dele ou de sua irmã gêmea. Christian, ao iniciar seu discurso, retira dois papéis, um verde e outro amarelo, e pede para o pai escolher qual prefere; ele demonstra a todos o terror que esse anúncio, repetido pelo pai a cada vez que irá sortear a qual dos gêmeos deverá abusar sexualmente, pode causar.

Esse ato que antecede o abuso incestuoso nos demonstra que o pai ainda está em uma fase pré-edipiana, pois para ele não há diferenças pessoais nem anatômicas entre seus filhos. Eles apenas são objetos parciais. Para ele era indiferente a quem iria submeter sexualmente, pois tanto fazia realizar o abuso no filho ou na filha, ele apenas realizava um sorteio como um jogo. Isto se revela durante um dos tantos embates entre pai e filho quando Christian lhe pergunta por que ele realizava os abusos, ao que o pai responde: "meus filhos somente servem para me satisfazer e poder descarregar meus impulsos".

Vamos ressaltar o funcionamento da mãe na família incestuosa. No início podemos observar que Else se demonstra uma esposa orgulhosa de seu poderoso marido, formando um casal ideal; porém, se analisarmos o funcionamento dela ao final da tragédia, ela irá abandonar o marido, pois ela percebe que ele havia perdido o seu poder de padre padrone, portanto ele será expulso, devendo retirar-se da família, e ela se junta aos filhos.

Outro momento em que podemos observar o funcionamento da mãe é o fato de ela negar os abusos sexuais, pois aparentemente ela não participa dos abusos incestuosos e socialmente ela pertence a uma família poderosa. Esse tipo de atitude pode ser observado no diálogo entre mãe e filho, quando ele relembra que certa vez ela entrou no quarto e viu o pai mantendo uma relação sexual com um dos filhos, ao que ela fecha a porta e não se fala mais no assunto. Else, por sua omissão, também é uma abusadora.

Porém esse tipo de atitude faz com que ela obtenha um benefício secundário, que é o de se preservar no poder ao lado do marido. No papel de princesa consorte, Else seduz a todos os presentes ao banquete pela sua beleza e elegância e apoia o marido, sustentando que os filhos são loucos e que eles têm um pai rigoroso mas modelar, e ela, um marido exemplar.

Porém o verdadeiro questionamento ao poder pré-estabelecido ocorre quando é lida, pela irmã Helena, a carta-testamento que Linda deixou antes de se suicidar. A filha relata que era abusada junto com seu irmão gêmeo e que os abusos eram observados pela mãe. Mas o que ela não suportou foi o fato de o pai voltar a abusar sexualmente dela em seus sonhos. O que chama a atenção é o fato de que, sem essa morte, as pessoas optavam por não ouvir, ver ou falar dos fatos.

Entendemos que para se questionar e tentar modificar o status quo torna-se necessária uma tragédia maior, uma morte, pois os fatos comuns não são levados em consideração, às vezes sendo até ridicularizados, como ocorre na família no momento do primeiro discurso do filho.

Christian impacta os convidados nesse discurso, mas estes reagem ridicularizando-o, e ele reage fazendo uma expressão caricata, como se fosse um espelho dos convidados. Por outro lado, a mãe tenta jogar uma pá de cal no assunto quando faz seu discurso dizendo que seu filho, quando pequeno, tinha um amigo imaginário e um boneco, como se ele fosse louco, e ela reafirma que ele fora internado em uma clínica psiquiátrica algumas vezes e que dizia coisas sem nexo.

Por outro lado, podemos entender que a necessidade de ter amigos imaginários ou das suas internações psiquiátricas foram exatamente experiências que lhe permitiram lidar com as angústias da falta de mãe continente e dos ataques reais do pai, ficando claro que com essas ajudas ele pôde fantasiar e simbolizar sobre sua infância, o que lhe permitiu denunciar o abuso familiar.

Outro momento que nos permite analisar o papel da mãe é na ocasião em que o pai e o filho se juntam na sala de jantar para discutir como irá continuar a contenda. O patriarca diz que a mãe desejaria que ele fosse embora, mas esclarece que ele era contra essa postura. Podemos observar as duas funções parentais com interesses distintos; como ocorreu com Édipo, o pai deseja continuar o embate com o filho para aniquilá-lo e a mãe se assusta com a situação que pode revelar a verdade e, por esse motivo, quer acabar com a disputa, ansiando para que o filho desapareça. Jocasta tenta resolver o conflito entre Laio e Édipo abandonando o filho à própria sorte.

O filho menor, Michael, o menos ajustado socialmente, funciona através de uma moral brutal e vingativa, que pode variar segundo a circunstância: quem é bom pode se tornar mau para ele. Essa imprevisibilidade no julgamento o torna como se fosse o dono da verdade absoluta. Especificamente podemos observar que num primeiro momento ele venera o pai, batendo no irmão, e posteriormente odeia o pai, agredindo-o. Por outro lado, entendemos que na raiz dessa violência contra o pai ele conseguirá aceitar que sempre foi desprezado por Helge.

Podemos destacar a atitude da mãe quando assiste pela janela a seu filho Michael com muito ódio avançar contra o pai. Ela se retira do quarto e pede socorro aos seus outros filhos com a intenção de preservar o marido, como o fizera quando viu o pai abusando sexualmente dos gêmeos. Essa atitude de não querer se expor intervindo e tendo que se responsabilizar com a cena violenta é a característica de sua personalidade e o que preserva a família disfuncional. Novamente vemos um paralelo com Jocasta, que aparentemente está sempre alheia ao que ocorre no reino de Tebas, ignorando a profecia do oráculo de Delfos.

Por outro lado, todos os outros membros da família que não sofreram abusos sexuais genitais pelo pai negam o que aconteceu, mesmo tendo vivido sob o mesmo teto e tendo participado passivamente deste e, quem sabe, tendo algum tipo de prazer em observar esses atos, o que evidencia a disfuncionalidade familiar decorrente da tragédia incestuosa. Esses abusos perduraram durante anos, o que nos faz pensar que todos deveriam saber o que ocorria, portanto todos são abusados, desde o avô com o pai até Michael pela mãe.

 

Algumas conclusões

A festa de família nos traz à tona conceitos observados tanto em Freud em Totem e Tabu como no episódio bíblico de David e Golias, em que fica explícita a luta de poder entre o mais forte e o mais fraco, sendo que os oprimidos (filhos) vencem. Esse embate está representado pelo filho mais velho, Christian, através dos seus discursos, a "Escolha das cartas" e "Os banhos do papai", tentando fazer ruir a hipocrisia do poder maior (avô, pai e mãe), mas sem obter êxito. Porém essa verdade somente é aceita pelo grupo, também por uma carta, e desta vez é a leitura da carta-testamento da irmã gêmea, que se suicidou, em que é revelado novamente o comportamento do pai; nesse momento os irmãos se unem para demolir o domínio pré-estabelecido e tentar criar uma nova estrutura familiar e social.

O abuso sexual incestuoso continua sendo um assunto proibido, pois questiona o conceito religioso da sagrada família, corroborando com a universalidade do mito edípico.

Sintetizando e fazendo uma relação entre Christian e Édipo, podemos dizer que o filme nos mostra o embate pai-filho, com a morte do pai que deve abandonar a própria festa, e finalmente a mãe se aproxima do filho e o apoia, uma espécie de casamento.

Porém devemos questionar a função da mãe nas famílias incestuosas. A mãe é ambígua frente a esse filho: no início ela o adora, posteriormente passa a odiá-lo, quando se enfrenta com o pai e, finalmente, fica do lado do vencedor da disputa. Aparentemente ela apenas quer estar do lado do poder.

Por outro lado, entendemos que nas relações incestuosas não há apenas um agressor e uma vítima como se espera num abuso pedofílico. Nessas famílias incestuosas podemos observar que todos os membros são mais ativa ou passivamente participantes desse tipo de abuso. O incesto não é apenas sexual, ele é também um abuso de poder social, pois nesse tipo de abuso também existe uma questão de poder de quem manda e quem deve ser submetido.

Freud teve dificuldade em sustentar a existência real desse tipo de abuso incestuoso e considerou que nas histéricas elas poderiam de alguma forma estar fantasiando, não levando em consideração a possibilidade de sua existência no mundo real. Em sua teoria sobre a sedução infantil Freud observou que não seriam os pais quem abusavam dos filhos, mas, sim, eram as crianças que tinham fantasias incestuosas.

Penso que com essa perspectiva a psicanálise se transforma, não sendo mais tão importante se o fato que o paciente relata ocorreu realmente ou se é uma fantasia sua. Cabe analisar o que essa pessoa está vivenciando emocionalmente, mas devendo ser diferenciado o princípio do prazer com o da realidade.

Existem poucos estudos psicanalíticos que distinguem as consequências geradas pelas violações incestuosas, tanto reais quanto imaginárias. Em Festa de família, ao mostrar o funcionamento de uma família incestuosa, podemos observar as funções de cada um dos seus membros e as consequências do incesto factual.

Podemos tirar pelo menos duas conclusões sobre o como é difícil o reconhecimento da verdade objetiva pelo grupo familiar: o primeiro é que, para aceitá-la, tornou-se necessário o suicídio da filha para romper o segredo familiar do incesto; o segundo é a luta pelo poder entre Christian e Helge, na qual, a priori, não há vencedor, pois tudo deverá permanecer como antes.

Quem defende o sistema familiar e social anterior é Else, pois é ela quem nega que a família seja disfuncional; ela é maquiavélica, não se interessa por quais meios possa se utilizar para preservar seu domínio, o que lhe interessa é o poder. Ela consegue essa façanha refazendo pactos com o grupo familiar através de um sistema de alianças perversas.

Freud concluiu que os desejos incestuosos inconscientes são universais, e a possibilidade de sua atuação é livre, pois não está vinculada a alguma condição social ou econômica baixa como algumas pessoas os estigmatizam. Podemos observar em Festa de família que esses desejos podem ser observados em famílias com condições socioeconômicas altas.

Nas famílias disfuncionais, em que não puderam ser reprimidos os desejos incestuosos, os vemos sendo atuados. Podemos dizer que não existe um único agressor ou vítimas; toda a família é vítima e também agressora.

O pai que foi uma pessoa de êxito fora da família é um terror nela, como acontece nas famílias incestuosas. Porém a culpa dessa disfuncionalidade familiar recai sobre o comportamento dele, não sendo observado o fato de que todos os membros da família estão ativa ou passivamente envolvidos por esse tipo de funcionamento familiar perverso.

O que também nos permite pensar em algumas diferenças entre o comportamento pedofílico e o incestuoso, quanto à escolha do objeto, pois na família incestuosa a sua escolha de objeto será dentro do núcleo familiar e tem a finalidade de preservar o seu poder, sendo que o pedófilo tem sua escolha de objeto sexual nas pessoas fora da família; dentro de casa ele é até uma pessoa bastante passiva.

Devemos observar outras diferenças entre o pedófilo e a família incestuosa. Por exemplo, nos pedófilos é a família quem se surpreende quando vem à tona o seu comportamento fora de casa; já na família incestuosa quem se surpreende por esse tipo de comportamento é a sociedade, que acredita ser uma família bem estruturada, bonita e bem vestida, mas a família disfuncional já conhece esse tipo de comportamento e deve mantê-lo em segredo.

 

Referências

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Site do movimento Dogma 95 (http://es.wikipedia.org/w/index.php?title=Dogma_95&old id=74965840)         [ Links ]

Vinterberg, T. (1998). Festa de família (Festen). Filme / DVD.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11/3/2014
Aceito em: 18/3/2014

 

 

Claudio Cohen claudiocohen@hotmail.com
1 Festa de família [Festen], filme dirigido por Thomas Vinterberg, 1998.

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