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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

RESENHAS

 

O tronco e os ramos

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Membro filiado do Instituto "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Presidente da Associação dos Membros Filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora do livro Crise pseudoepiléptica, Casa do Psicólogo

 

 

Autor: Renato Mezan
Editora: Companhia das Letras, 2014

Hâtez-vous lentement,
ne perdez pas courage
cent fois sur le métier remettez votre ouvrage.
1
(Boileau)

Foram nesses versos de Boileau, copiados ano após ano na primeira página de suas agendas, que Renato Mezan parece ter encontrado inspiração para manter o fôlego de uma pesquisa que já dura mais de trinta anos. O tronco e os ramos é parte de uma série de estudos iniciados quando o autor, recém-chegado da França, se depara com as diferentes psicanálises praticadas lá e cá. Para quem teve a oportunidade de experimentar divãs tão diferentes, surge a questão de entender como práticas derivadas de diferentes princípios e técnicas poderiam ser igualmente "psicanálise da melhor qualidade" (p. 10). Paris e São Paulo apresentavam para nosso autor teorias e práticas diversas, que encontravam suas raízes no mesmo Freud. A descoberta que anima Mezan foi justamente a de que o Freud que inspirou os diferentes sucessores que posteriormente se organizaram em escolas não era o mesmo, e era possível destacar na obra freudiana quatro modelos metapsicológicos distintos. Apenas uma abordagem que entrelaçasse "as circunstâncias factuais, o movimento das ideias, e a análise epistemológica" (p. 13) poderia oferecer luz ao enigmático surgimento de diferentes orientações que se pretendiam a "reta continuação das descobertas de Freud" (p. 12), cujos partidários viviam um clima de intolerância recíproca e tendiam a "desqualificar os que pensavam diferente com o anátema 'isso não é psicanálise'" (p. 11). A "Era das escolas", como nomeado o período entre 1940 e 1970/75, esteve marcada pelo dogmatismo característico dos tempos que buscavam uma "verdadeira psicanálise". A perspectiva aberta pela história da psicanálise e a análise dos conceitos dentro de uma arquitetura de um sistema de pensamento instrumentalizam o leitor de Mezan a reconhecer nas diferentes correntes psicanalíticas respostas baseadas em modelos freudianos diversos.

Qualquer um que se aproxime um pouco mais detidamente dos conceitos psicanalíticos sem escamotear as diferenças relevantes entre as orientações divergentes será desacomodado pelo desafio de se situar nas diversas contribuições, precisando ligá-las às teorizações precedentes ou paralelas, para que uma apropriação dos termos possa operacionalizá-los às delicadezas da clínica.

No que concerne à psicanálise, "a variedade por vezes desnorteante de teorias e de práticas não é aleatória. Ela obedece a linhas de desenvolvimento e a vetores de coerência, que cabe a uma leitura atenta procurar retraçar" (p. 48).

Sem tomar as diferentes escolas como um destino natural "escrito nas estrelas" (p. 353), Mezan persegue ao longo das mais de 600 páginas de seu livro os caminhos que tornaram possível o cenário psicanalítico atual. Mezan fala da ocorrência de uma tríplice diáspora: uma dispersão geográfica, uma doutrinária e uma terceira dispersão institucional, responsáveis pela transformação na teoria e na prática clínica da psicanálise. Quem entende de plantação sabe que a colheita depende não apenas da semente utilizada, como também das características do solo. Aqui chegamos a uma visão que constitui uma marca de Mezan desde os tempos de Freud, pensador da cultura. Ele já entendia o pensamento freudiano como assentado sobre uma clínica, uma autoanálise e um clima cultural do seu tempo. À medida que o clima cultural se modifica, não há como pensar que isto não tenha efeitos na forma e conteúdo que essa prática ganhará. Com "essa verdadeira diáspora, no sentido grego do termo - dispersão de sementes" (p. 25), vemos brotar da raiz freudiana quatro novos troncos que se constituíram como escolas: a "kleiniana, a lacaniana, a psicologia do ego americana e a escola britânica das 'relações de objeto'" (p. 26). O critério para caracterizá-las como escolas está em terem desenvolvido de maneira original as quatro dimensões nas quais se desdobra a obra de Freud: uma teoria da psique (metapsicologia); uma teoria da gênese e do desenvolvimento psíquico; uma teoria do funcionamento normal e patológico; e uma teoria do processo psicanalítico. Com seu trabalho historiográfico, Mezan banca a empreitada de mexer no mito de origem criado por cada uma das escolas, aquela representação de si que compõe o imaginário de seus seguidores. Ele restitui "aquilo mesmo que cada escola necessita escamotear: sua origem real" (p. 26), contribuindo para entender a condição de surgimento da ideia de uma "verdadeira psicanálise": "Ora, é justamente aqui que as escolas coincidem: todas abrigam a representação - falsa - de que, cada uma por si e com exclusão de todas as demais, constituem a única derivação adequada da raiz freudiana, o que implica a desqualificação das demais. Incapazes de enfrentar a diversidade, precisam contorná-la traçando uma fronteira" (p. 27).

Para Mezan, o simples fato de todas as escolas se pensarem como continuação direta de Freud já denuncia que nenhuma o é, pois todas elas se desenvolvem numa relação complexa de ampliações e rupturas com as propostas freudianas. Sua aposta é a de que a obra de Freud comporta diversos modelos metapsicológicos e linhas de tensão que se tornarão linhas de fraturas entre as diferentes escolas pós-freudianas. Mezan desenvolve aqui suas pesquisas já avançadas em Freud: a trama dos conceitos e busca agora relacionar as tensões já presentes em Freud às fraturas em seu edifício que deram origem às diferentes escolas. Ele demonstra em seus quatro primeiros capítulos que já encontramos em Freud as "precondições para as leituras e recortes que ocorrerão mais tarde" (p. 203). Embora Mezan afirme a existência em Freud de modelos apoiados em matrizes clínicas diferentes - histeria, psicose, neurose obsessiva e melancolia -, seria um erro conceber que cada um desses modelos abrangesse apenas uma psicopatologia. Ao contrário, o que propõe nas linhas de seu texto é justamente que a matriz clínica de cada modelo metapsicológico oferece traços salientes que serão generalizados para a construção de um mapa do conjunto de funcionamento psíquico, determinando a construção das figuras teóricas ligadas ao processo analítico.

Com uma obra genuinamente autoral, vemos a produção textual avançar de maneira a nos deixar contribuições preciosas. Dessa vez Mezan cria uma grade própria para classificar os modelos de história da psicanálise a partir de suas capacidades de "pensar um fato social e cultural tão complexo quanto a difusão da psicanálise e a formação de teorias relativamente incompatíveis entre si" (p. 45). São eles: modelos redutores, modelos lineares, modelos interpretativos e modelos sobredeterminantes, este último sendo o modelo adotado para a construção de seu livro, aquele que toma o conceito psicanalítico de sobredeterminação para pensar o complexo conjunto de determinações entrecruzadas que levam ao surgimento de uma nova teoria. Além da grade de modelos, o autor propõe um esboço de divisão cronológica para a história da psicanálise sem cair na ingênua perspectiva de um caminho linear. Tal cronologia da psicanálise, que tive o prazer de conhecer já há alguns anos em suas aulas na pós-graduação, se resume em quatro períodos.

O primeiro deles, entre 1895 e 1918, é aquele em que a psicanálise coincidia com o pensamento de Freud, que contava com um grupo de discípulos organizados ao seu redor e cujas contribuições mostravam uma filiação direta ao pensamento freudiano. Era um "sistema solar cujo centro é Freud" (p. 255). O segundo período, entre 1918 e 1939, é caracterizado pela presença simultânea de Freud e outras produções psicanalíticas autônomas, época em que nem mesmo Freud "coincide integralmente com Freud" (p. 50) e começam a surgir correntes de opinião. No período entre-guerras convivem duas gerações de analistas e o próprio Freud. A segunda geração "tem com Freud uma relação mais mediatizada, no sentido de não ser composta por amigos com quem ele mantém uma correspondência pessoal, nem por colegas que o acompanhavam desde os tempos da Sociedade Psicológica das Quartas-feiras" (p. 253).

O terceiro período, compreendido entre 1940 e 1970/75, é a tão conhecida "Era das escolas", em que encontramos núcleos de teorização divergentes, com trajetórias próprias relativamente impermeáveis entre si: "A diáspora da psicanálise pós-freudiana tem, como uma de suas raízes, o recorte e o trabalho intenso sobre cada um dos modelos que ele construiu. Ao fazer isso, cada escola o tornou mais complexo e mais rico, mas também deixou de lado esse sopro inconfundível que atravessa os textos freudianos, e que se manifesta na extraordinária capacidade de invenção teórica que o conduz a reformular tantas vezes o arcabouço do seu pensamento" (p. 207). Mas tais escolas não derivaram apenas da fragmentação da herança freudiana, tendo também uma função nisto os debates que se deram em uma etapa intermediária entre a época em que Freud era quase o exclusivo criador da disciplina e a "Era das escolas".

O quarto período, situado de 1975/1980 até hoje, é apresentado pelo autor como contendo duas grandes vertentes da psicanálise. Uma delas segue como um prolongamento das escolas, e a outra, talvez essa sim venha a caracterizar o movimento de uma psicanálise contemporânea, tal como nos propõe André Green (2008), permite "uma circulação mais desimpedida entre os diversos quadrantes do universo psicanalítico" (p. 54).

Impossível em uma resenha fazer jus ao laborioso percurso de Mezan nesse livro: cartas que testemunharam o romance familiar dos inícios da psicanálise são apresentadas e discutidas por ele, conceitos e problemas clínicos são abordados à luz dos diferentes autores que se afetam mutuamente, o ambiente cultural em que se passam as descobertas psicanalíticas é descrito e a guerra e o pós-guerra articulam-se com a clínica e a teoria da época. Com um trabalho fino de rastreamento das aproximações e divergências metapsicológicas e técnicas a partir das matrizes clínicas, tecemos com Mezan uma trama capaz de iluminar os desenvolvimentos psicanalíticos em suas ligações e debates com antecessores e contemporâneos, permitindo uma leitura menos dogmática do movimento psicanalítico, incluindo nesse movimento autores pouco lembrados quando empregamos uma leitura rápida da história de nossa disciplina. É o exemplo do autor Sándor Radó, que ao tratar do problema da melancolia traz observações das quais M. Klein extraíra consequências de grande peso. Mezan caminha também por Abraham, Reik, Ferenczi, suas aproximações e diferenças, e afirma que ideias aparentemente rejeitadas pela psicanálise propostas por eles tiveram sua entrada posterior pelas mãos de outros autores. Para falar dos primórdios da psicologia do Ego, Mezan traz Robert Waelder, incluindo-o em um debate que parte da clínica da psicose, derivando dela uma consequência diferente daquela que tirou M. Klein ao se ocupar do mesmo tema, ambos tentando se apropriar das consequências clínicas e teóricas das ideias freudianas dos anos 1920. Neste exemplo, Mezan vai dando corpo à ideia de que as elaborações se diferenciam e ganham tendências teórico-clínicas divergentes muito pelo acento dado a determinados elementos. Tanto os que adotaram a psicologia do Ego quanto os que seguiram as ideias de Klein, por exemplo, precisavam naquele momento falar de ego e de superego e pesar suas implicações no funcionamento psíquico e no tratamento psicanalítico.

Na parte II, Mezan ainda nos brinda com aproximações sobre Freud presentes na reprodução de sua aula ministrada no Instituto Goethe e através de textos sobre o Witz, o Caso Dora e sobre o Freud retratado no filme Freud além da alma. Vale acrescentar uma linha sobre o trabalho que temos em mãos no que diz respeito ao tão conhecido Caso Dora. Mezan se pergunta o que teria se passado com Freud entre a carta animada escrita a Fliess após a redação do caso e sua publicação. Ao longo do capítulo acompanha com sua lupa os detalhes do caso, as hesitações e lapsos do Herr Professor, para rastrear não apenas as nuanças clínicas, como o que esse atendimento representava para Freud no contexto de seu primeiro modelo metapsicológico.

A parte III fecha o livro, dando-nos a oportunidade de acompanhar ideias sobre as fronteiras da psicanálise, pesquisa e cientificidade.

Ao aceitar o convite de Mezan para acompanhá-lo pelos meandros da história do movimento psicanalítico, ousando ir além dos mitos de origem das escolas, o leitor se vê construindo uma enorme árvore, com muitas ramificações, com galhos aparentemente distantes, embora tenham pontos de partida que se tocam. Descobrimos nessa árvore que as ramificações não partem diretamente da raiz, mas se apoiam em um tronco e se ramificam a partir de galhos que permitem muitos ramos. Desfilam em seu texto autores como Abraham, Ferenczi, Jung, Adler, Tausk, Melanie Klein, Helen Deutsch, Franz Alexander, Anna Freud, Reich, Fenichel, Balint e Lacan, por exemplo.

Muitas obras apresentam visões e construções de cada autor, o difícil é encontrar uma, como esta, que apresenta os autores em conversas entre si, construindo-se em debate com outras orientações, herdeiros de teorizações ora comuns, ora distintas. Difícil é encontrar uma obra que demonstre com fineza microscópica como algumas sutis diferenças de leitura (outras são mais óbvias e perceptíveis) podem derivar diferenças radicais, levando a caminhos que pouco se poderia adivinhar. Como um homem de seu tempo, Mezan vem na esteira daqueles pensadores que propõem uma psicanálise que não se organize em guetos, o que de melhor nosso tempo tem para oferecer: uma psicanálise pós-escolas, que a tome como complexa, exigindo debates. A possibilidade de um debate, para Green, está condicionada ao bom uso da linguagem metapsicológica freudiana. Mezan o faz com maestria.

O tronco e os ramos é um convite a uma psicanálise que conversa, que se abre para a incompletude dos modelos, uma psicanálise não obtusa, que se faz menos em busca de uma versão verdadeira construída pela destituição do diferente e mais interessada na complexidade do que a constitui. É o convite à superação do narcisismo das pequenas diferenças.

 

Referências

Mezan, R. (1985). Freud, pensador da cultura. Brasília: Brasiliense.         [ Links ]

Mezan, R. (2006). Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Green, A. (2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 16/6/2014
Aceito em: 6/7/2014

 

 

Berta Hoffmann Azevedo bertaazevedo@terra.com.br
1 "Apresse-se lentamente, não perca a coragem, cem vezes no tear recoloque seu trabalho." (citado por Mezan, 2014)

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