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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

RESENHAS

 

Atendimento psicanalítico do autismo (série Prática Clínica)

 

 

Adela Stoppel de Gueller

Psicanalista. Doutora em Psicologia clínica pela PUC-SP. Pós-doutoranda pela UERJ. Professora de Teoria Psicanalítica COGEAE/PUC-SP e Psicanálise com crianças no Instituto Sedes Sapientiae, SP

 

 

Autores: Fátima Maria Vieira Batistelli,
Maria Lúcia Gomes de Amorim et al.
Editora: Zagodoni, 2014

"Por que eu gosto de luz?":

Esclarecimentos sobre o trabalho psicanalítico com autismo

Atendimento psicanalítico do autismo se insere na série Prática Clínica, dirigida por Isabel Gomes, que convoca a enfrentar um desafio instigante e necessário: voltar a escrever sobre a clínica. Constata-se que nas últimas décadas, a literatura psicanalítica se empobreceu pela falta de relatos. Para não correr riscos, escreviam-se poucas linhas de modo a que elas funcionassem para introduzir ou justificar a investigação teórica, técnica ou metapsicológica. Mas, desde que Freud escreveu as "Cinco grandes psicanálises", a clínica foi posta a serviço de causar o pensamento psicanalítico, questionar, interrogar e, ao mesmo tempo, comunicar à comunidade psicanalítica as descobertas e as novas hipóteses que iam sendo construídas a partir da experiência. Esse desafio, contudo, implica enfrentar riscos, sobretudo éticos. Como estender-se para além das vinhetas clínicas preservando a confidencialidade? As autoras de Atendimento psicanalítico do autismo encontraram uma solução criativa: a não identificação do analista. Como se trata de um grupo de pesquisa, as oito autoras - Fátima M. V. Batistelli, Maria Lúcia G. de Amorim, Alicia B. D. de Lisondo, Marisa H. L. Monteiro, Maria Cecília P. da Silva, Maria Thereza de Barros França, Mariângela Mendes de Almeida e Regina E. L. Coimbra - assumiram relatar os casos como trabalhos da equipe, dificultando, assim, a identificação dos pacientes. É necessário, para tanto, abandonar o narcisismo das pequenas diferenças e levar a sério que o pensar é sempre resultado de um trabalho coletivo entre pares. O livro mostra, assim, a importância do diálogo e da interlocução propiciadas pelo encontro que a instituição psicanalítica propiciou.

 

O livro é necessário em função da medicalização da infância, dos debates em torno da cientificidade e da eficácia da clínica psicanalítica e da ênfase à prevenção que vigora nos dias atuais e que corre sério risco de incrementar os índices de patologia ou de tornar a detecção precoce um instrumento a serviço da medicalização. Três questões que excedem amplamente a questão do autismo, mas que são especialmente despertadas por ele tanto no campo social como no campo científico. Portanto a questão que o tratamento das pessoas com autismo coloca em relevo neste momento histórico traz à tona questões centrais do campo da saúde mental como um todo e, particularmente, da saúde mental infanto-juvenil, que transcendem a especificidade de uma patologia. É preocupante que, por efeito da medicalização e da patologização da infância e em nome da eficácia terapêutica e da suposta validade científica, a subjetividade seja desconsiderada. Essas razões tornam o livro Atendimento psicanalítico do autismo muito bem-vindo neste momento! Os ataques ao referencial psicanalítico se situam na esteira de práticas que visam a medicalização do sofrimento psíquico e exclusivamente o apagamento de sintomas, sem considerar a subjetividade e a singularidade do sujeito, e os variados relatos desse livro mostram a importância de dar-lhes lugar.

Escrever sobre a clínica põe em jogo as invenções que cada praticante cria no encontro singular com o paciente e que são inimitáveis. Nesse sentido, cabe a pergunta: por que então narrá-las? Justamente para encorajar outros praticantes a ousar se dispor a suportar as condições indispensáveis ao psicanalista para sustentar "as dúvidas, incertezas e o 'não saber' durantes as sessões", essenciais em toda análise e mais ainda no caso do autismo (p. 79). A riqueza dessa transmissão fala da disposição necessária do clínico para narrar aos outros sobre essa aventura. Lembro aqui, por exemplo, da sessão em que Marcos pede para a analista ajuda para pensar no casamento da mamãe e do papai. Como simbolizar o tempo em que ele não tinha nascido? E a analista encena uma cerimônia nupcial com o menino (p. 74).

Outro destaque desse trabalho são casos de adolescentes narrados no livro, vários deles tendo já um longo percurso de análise. Essas falas e as interrogações que suscitam são de incalculável valor, não só por dar precisão às particularidades do autismo neste momento da vida como também por possibilitar acompanhar os notáveis efeitos do tratamento psicanalítico ao longo do tempo, raros de ser encontrados em textos que falam de autismo na perspectiva psicanalítica. Assim ouvimos Flávio, com 16 anos de trabalho psicanalítico, dizer: "quando eu era pequeno eu não falava. Eu tinha medo das pessoas" (p. 102 e ss.).

O capítulo que discute o lugar dos pais na clínica dos estados autísticos, embora curto, toca o tema mais difícil na atualidade da clínica psicanalítica com essas crianças e aquele sobre o qual mais temos a avançar. Ele remete às duas acusações mais fortes que a psicanálise tem recebido recentemente: a afirmação da "mãe geladeira" (Bettelheim, 2001) e a questão da causalidade do autismo, ambas entrelaçadas em função de diversos mal-entendidos. Os ataques têm sido tão violentos que tem se produzido dentro da psicanálise um movimento no sentido contrário: muitos dos trabalhos apresentados na atualidade falam da clínica psicanalítica com o autismo excluindo o trabalho com os pais. Corre-se assim um novo risco: foracluir essa questão fazendo de conta que podemos falar da abordagem psicanalítica do autismo sem falar do necessário trabalho com eles. Necessário porque a psicanálise sustenta que a subjetividade se constitui no laço com os outros significativos do entorno, e por isso o trabalho com os pais é essencial quando fazemos clínica com crianças. E, no autismo muito especialmente, como precisamos abrir caminho para que a subjetividade encontre um lugar, o trabalho com a família é fundamental. São os pais que podem nos contar das particularidades da história de cada criança, permitindo encontrar significantes chaves para ela. É com eles que podemos procurar janelas pulsionais para nos aproximar da criança e experimentar jogos e fontes de prazer que possam fazer inscrições psíquicas e armar laços com os outros. Sabemos que, quando podemos fazer esse trabalho, são produzidas mudanças muito significativas na criança e na família.

Sigo, então, de perto o que texto traz. O capítulo 3 (pp. 52-59) começa contando como chegam os pais: desgastados após uma longa via crucis de avaliações e buscando uma solução mágica sem poder pensar no que está acontecendo com o filho (p. 53 apud Bollas, 2013). De início, então, o trabalho com eles tem o desafio de abrir esse espaço para o "pensamento", para a fala. Mas sabemos que para isso é necessário um trabalho prévio que visa o estabelecimento de um laço de confiança com os pais para que eles sintam que podem falar sem ser "acusados" ou "culpabilizados" pelo que está acontecendo com o filho. Nesse momento "a aliança com o terapeuta é uma conquista a ser alcançada e não imposta", dizem as autoras (p. 59).

O caso de Paula (pp. 53-54), de 2 anos e meio, é exemplar nesse sentido: os pais chegam e colocam no colo da analista um pesado prontuário médico. O que fazer com ele? A analista folheia o prontuário e ao ver uma foto de Paula exclama: que lindos olhos azuis! Ao descentrar o foco da informação médica para um traço da beleza da menina o pai se emociona e chora e a mãe diz: "é uma boneca de porcelana". A analista insiste: ela pode ser bonita como uma boneca de porcelana mas é uma menina que tem corpo e alma. A apresentação desse caso coloca, de início, aquilo que será central na abordagem psicanalítica: dar lugar para a subjetitvidade. Mas nos dias de hoje uma intervenção assim abre uma questão complexa: poderia parecer que a psicanálise desconsidera o aspecto médico ou orgânico do caso e que em função disso evita dar diagnósticos. Trata-se, no entanto, de mostrar que a psicanálise cria um campo e um objeto diferente que precisa poder dialogar com a medicina. Daí que a abordagem psicanalítica do autismo requeira um trabalho interdisciplinar, único modo de levar em consideração a complexidade etiológica e terapêutica que esses casos demandam.

Hoje os pais chegam cheios de informações, falam dos livros que leram, das pesquisas na internet, são verdadeiros pesquisadores e como tal nos inquirem, nos testam. É frequente que precisemos passar por interrogatórios sobre nossos conhecimentos específicos sobre o autismo. A oferta de informação e de tratamentos é imensa e os coloca na difícil tarefa de escolher qual é o melhor tratamento possível. Essa característica de nossos tempos coloca evidentemente questões transferenciais muito diferentes das que Freud teve que enfrentar. São questões preliminares a um possível tratamento. Entretanto como as autoras falam, "essas informações, mal digeridas ... inflam a racionalidade defensiva e não têm o poder de mudar o vínculo parental" (p. 57).

É frequente também que os pais "recebam conclusões equivocadas", tais como "o diagnóstico do autismo só poderá ser confirmado após os 6 ou 7 anos de idade da criança" ou "o autismo não tem cura" (p. 43). Muitas vezes são efeitos devastadores sobre a família e sobre a criança e difíceis de reverter. Mas é justamente ali que o psicanalista pode oferecer uma escuta para o sofrimento psíquico por entender que não falar, não ver, não pensar, não sentir acarretam novos sintomas ou atuações e podem enrijecer mais ainda as defesas psíquicas constituídas consolidando ou agravando a patologia. O delicado dessa intervenção é que os pais se sintam condenados ou culpabilizados, interrompendo o trabalho, como nos casos de Nina e Thiago. Nessas ocasiões a saída na forma de acting-out tem revertido em acusações que se voltam contra a psicanálise e inclinam as escolhas dos pais em direção a trabalhos mais diretivos. Esses tipos de reação, que já foram muito mais frequentes outrora, têm-nos feito repensar sobre nosso modo de intervir com os pais. Hoje, entendemos que o sofrimento enorme dessas famílias levanta defesas maciças que não cedem a uma interpretação feita no modelo clássico. O essencial é que o laço dos pais com seu filho possa ser restabelecido em moldes diferentes, e para isso é necessário um trabalho de construção conjunto com os pais. O psicanalista coloca isso como uma tarefa prioritária. Podemos ver como no caso da Stella "sua mãe colaborou com o tratamento ao guardar em garrafas as lagartas pelas quais a menina tinha se interessado" (p. 65). Foi ela que percebeu o novo interesse da filha e o recolheu. E as lagartas permitiram um belo trabalho de simbolização das transformações, possibilitando que a menina integrasse diferentes espaços, situações e pessoas. Lemos nesse relato como a mãe vai se encantando com Stella, a quem achava um caso perdido, recupera a confiança e começa a ter uma função especular (p. 69).

Não são todos os pais que optam ou ficam num trabalho psicanalítico. Mas no momento atual muitos não querem nem saber que ele seja um dos tratamentos possíveis. É esse um dos motivos pelos quais o mpasp (Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública) se constituiu como movimento. Tem sido sumamente interessante ouvir dos próprios pais quanto um tratamento psicanalítico os tem ajudado a se relacionar com os filhos e quanto eles viram mudanças significativas nas crianças. Dar voz a esses pais através de uma publicação pode ajudar outros a enxergar na psicanálise um tratamento possível. Em síntese, os testemunhos de pais de pacientes com autismo em tratamento na abordagem psicanalítica falam das consequências desse tratamento para suas vidas e a dos seus filhos, derrubando por terra a ideia de "culpabilização dos pais" - com que tantas vezes se ataca a psicanálise.

Um pai questiona: "O que a psicanálise faz quando a realidade não pode ser mudada? Minha filha tem síndrome de Rett. Ela é autista. A senhora vai fazer uma limpeza genética por acaso?" (p. 55). É esse tipo de questão que frequentemente os pais nos endereçam. Como responder? As autoras de Atendimento psicanalítico do autismo dizem claramente que, nesse momento, é importante mostrar em ato, como foi feito no caso de Paula, o quanto fazer um lugar para a subjetividade faz diferença mesmo nas condições mais adversas. Isso possibilita que eles possam "interpretar a doença de outra forma, e isso faz toda diferença" (p. 56).

Assim lemos nas palavras finais do livro "além das 8 mãos... contamos com as duplas mãos dos pais destas crianças que, ao se oferecerem como presença e olhar, valorizaram a importância de uma rede empática ao sofrimento psíquico de todos os envolvidos na tarefa terapêutica" (p. 163).

Não há garantias nem no ato de clinicar nem no ato de escrever e publicar sobre a experiência psicanalítica. Nesse sentido, acho fundamental esse livro porque assumiu correr esse risco necessário do qual não podemos nos furtar para manter viva a psicanálise.

 

Referências

Bettelheim, B. (2001). La fortaleza vacía. Autismo infantil y el nacimiento del yo. Barcelona: Paidós.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 24/6/2014
Aceito em: 1/7/2014

 

 

Adela Stoppel de Gueller adelastoppel@terra.com.br

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