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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

RESENHAS

 

Mandrágoras, clínica psicanalítica

 

 

José Waldemar Thiesen Turna

Psicólogo, psicanalista, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, coordenador do Núcleo Psicanálise e Psicose (Centro de Estudos Psicanalíticos, CEP), professor dos seminários sobre a Clinica das Psicoses, professor do Núcleo de Psicanálise e Adicções (CEP), coordenador grupal nos seminários do Núcleo Psicanálise em Instituições (CEP), supervisor clínico de Serviços de Atendimento Especiais (CRAS, SEAS, Abrigo Infantil) no município de São Paulo

 

 

Autores: Sérgio de Gouvêa Franco,
Manoel Tosta Berlinck e
Karin Hellen Kepler Wondracek
Editora: Primavera Editorial, 2013

Seria a prática clínica uma metáfora complexa dos poderes da mandrágora?

A planta a que se atribuem propriedades medicinais também pode ser letal, tudo depende, como sabemos desde Hipócrates, da dosagem, da intensidade.

A clínica pode ser afrodisíaca, pode elevar os ideais do clínico a eróticas distantes, e por vezes desastrosas, se o mesmo não tratar dessa erótica adequadamente.

Sérgio de Gouvêa Franco, Manoel Tosta Berlinck e Karin Hellen Kepler Wondracek nos alertam desde o início a respeito dos efeitos afrodisíacos do encanto que a paixão na clínica provoca, bem como das consequências destrutivas se a mesma não se alicerçar no rigor que a inteligência demanda.

Os autores nos convidam, como pesquisadores de renome e clínicos de escuta fina, a revisitar uma sagaz arqueologia de textos da clínica freudiana e conceitos da clínica winnicottiana. A partir de argutas e eruditas construções e uma releitura sensível dos temas propostos, sugerem apostas de intervenção, pensamentos reelaborados e críticas decisivas a respeito da atividade do pensar e agir clínico.

O livro é dedicado, numa bela e cuidadosa narrativa, a dois mestres: Freud e Winnicott. Os autores nos brindam com uma escrita precisa e cativante, o rigor do pensamento é preponderante, nos exige esforço e conduz em momentos precisos à reflexão profunda.

A primeira parte é dedicada a Freud e sua clínica. A técnica e a teoria são revistas com minucioso cuidado.

O primeiro artigo, "Freud e o caso AB", teve como inspiração laboriosa uma troca de correspondências entre Sérgio e Karin. Os dois trabalham o desejo investigativo do enigmático caso AB de Freud.

Em um tempo difícil para Freud, já marcado por seu tumor no maxilar e por situações de vida bastante dolorosas, uma sombra melancólica e depressiva se abate sobre ele.

Foi o pastor Pfister, amigo e colaborador, que o encoraja a atendê-lo e encaminha AB para Freud. Os autores refazem os passos desse encaminhamento, resgatando a trama deste caso desde a relutância inicial de Freud em atendê-lo até a surpresa de descobrirem que, além do processo analítico iniciado, Freud também recebe e hospeda o jovem em sua casa de campo, onde tirava férias com sua família, nos Alpes em Semmering.

Pontos cruciais no desenrolar clínico e psicodinâmico desse caso são: a desistência de Freud de se ater a um diagnóstico fixo (tendo como direção de conduta prioritariamente a psicodinâmica) e as ideias propostas pelos autores acerca da técnica com pacientes fronteiriços, psicóticos e somatizantes. Seria AB o precursor desse tipo de paciente?

Esse artigo termina com uma (rara) entrevista de Freud concedida a um jornalista norte-americano; um belíssimo retrato das ideias de Freud sobre a vida, sobre sua existência e - principalmente - sobre um mal-entendido que impera até hoje nos meios psicanalíticos acerca de sua esperança a respeito da vida.

O segundo capítulo versa sobre "Erotismo, sexualidade e religião"; a ambiência é retratada desde a Alemanha do século xix, onde Freud é influenciado por Feuerbach e Brentano, influências decisivas (apesar de âmbitos distintos) no pensamento freudiano acerca da etiologia sexual na neurose obsessiva.

O autor desse capítulo nos faz refletir sobre o pensamento de Freud e a religião; para tanto, revisa os principais textos que tratam da religião e suas consequências tanto clínicas quanto sociais. São estes: "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna", "Atos obsessivos e práticas religiosas" e "O futuro de uma ilusão" (além de textos que comentam a questão sem necessariamente terem a mesma como foco central na discussão). Todos os textos são trabalhados e discutidos com o leitor.

O autor nos remete à articulação fundamental entre ética e religião, sua origem em comum, em que a religião seria uma forma mitigada de delírio:

A ilusão nasce do desejo humano. É o desejo que cria a ilusão. O que distingue mesmo a ilusão é o seu desprezo pela realidade. À ilusão pouco importa a confirmação pelo real. A ilusão, portanto, é a satisfação do desejo sem verificação pela realidade. Uma forma mitigada de delírio. A religião realizaria a mais profunda aspiração humana de proteger o homem da natureza e lhe garantir um destino feliz na história. Ela é produto, portanto, da nostalgia do Pai. (p. 47)

Mas não pensemos que Sérgio Franco se desfaz da religião como resto psíquico e defensivo de uma subjetividade confrontada com a natureza. Ele retoma a obra de Karl Barth para "recompor a teologia de Deus após os ataques de Feuerbach" (p. 40). Para Barth "Deus é Outro, completamente Outro, não é projeção. Não pode ser pensado a partir da cultura. Recusa os antropomorfismos" (p. 40).

O tópico sobre "O risco do religioso desistir da sexualidade" retoma a noção primeira de "sublimação" para Freud, e, se apoiando em G. Bataille, proporá "A constituição de uma erótica que leva em conta a espiritualidade", nos oferecendo palavras profundas e belas como resultado dessa escrita: "A verdadeira espiritualidade não será uma evitação da vida, um apego infantil a Deus. A mesma coisa podemos dizer da sexualidade: não poderá ser uma evitação da vida e um apego infantil ao outro" (p. 58).

Em "O caso Nancy: a dor saindo pela pele", os autores Sérgio Franco e Manoel T. Berlinck conduzem uma reflexão a partir de um caso clínico. A partir daí interrogam a transferência e suas formas de manifestação entre o paciente e o clínico.

Os autores nos propõem pensar que "as manifestações somáticas são uma necessidade de defesa contra uma dor psíquica que literalmente não pode ser dita e, em consequência, tem de ser somatizada" (p. 72).

O capítulo seguinte trata de uma retomada fundamental acerca da noção de realidade em Freud. O título "A realidade na neurose, na perversão e na psicose" se atém a pensar sobre o estilo próprio de lidar com a realidade ou, como propõe Sérgio, de se afastar da realidade nos três modos propostos do Ego transitar pelo mundo da linguagem e da castração.

A partir da evolução do conceito de realidade na teoria freudiana, o autor utiliza o texto Da interpretação: ensaio sobre Freud (1977), do francês P. Ricoeur, para retomar a função de amor e sua subordinação à procriação em última instância, ou seja, do amor e sua relação com o destino da espécie. A partir daí trabalha a noção econômica do Ego e o estilo de afastamento que irá submetê-lo aos índices nosográficos propostos (neurose, perversão ou psicose), articulando comentários argutos e sensíveis sobre os cinco textos da nosografia freudiana para a compreensão do tema. São eles: "Neurose e psicose" (1924[1923]), "A perda da realidade na neurose e na psicose" (1924), "Fetichismo" (1927), "Divisão do ego no processo de defesa" (1940 [1938]) e "Esboço de psicanálise - O aparelho psíquico e o mundo externo" (1938).

Sérgio Franco termina o capítulo chamando a atenção para onde aponta Freud quando quer pensar a saúde psíquica, ou seja, quando quer pensar o melhor da possibilidade humana. O melhor é ao mesmo tempo aceitar e rejeitar a realidade, acolhê-la e transformá-la, mais precisamente acolhê-la para transformá-la. Este tema será revisto na segunda seção do livro, a partir de Winnicott.

No capítulo "A transferência na histeria: um estudo no caso Dora de Freud", Sérgio vai utilizar os comentários de Jacques Lacan em seus Escritos para pensar o clínico e a clínica, a situação de Dora com Freud e em Freud. O capítulo visa observar os percalços pelos quais passa o clínico se não se atentar para suas limitações e idealismos. Retomando a novela clínica/histérica de Dora e seus comentários, encontramos uma crítica completamente atual, apesar de não contemporânea.

Da questão lacaniana "O que quer uma mulher?", derivamos: o que quer um analista?

Como propõe Sérgio: "Ao analista cabe não acolher nem rejeitar esse amor. Cabe a ele escutar esse amor e interpretá-lo, para que a histérica descubra o que há em si mesma nessa oferta de amor. Cabe ao analista possibilitar à paciente que continue em análise, produzir a revolução dialética que dissolve a resistência de que fala Lacan" (p. 105).

O último capítulo dessa seção é "Uma leitura de recordar, repetir e elaborar". Serão comentadas as fases da técnica psicanalítica, divididas em três partes: a primeira é a da catarse de Breuer, a segunda substitui a hipnose pela associação livre, a terceira, onde não há mais problemas específicos a ser procurado; o trabalho analítico começa no que está presente no discurso. A interpretação volta-se para a resistência.

A clínica nos orienta a respeito da "recordação como uma luta contra a resistência", como diz o autor: "a compulsão à repetição só pode ser substituída pela recordação no manejo bem-sucedido da transferência" (p. 116). O analista "deve compreender que a neurose do paciente está sendo substituída pela neurose de transferência e que esta última pode ser curada" (p. 116).

Sérgio nos relembra a proposta de Emiliano Galende: "O inconsciente freudiano é uma história que não se reconhece como tal" (p. 117). O texto desembaraça os trâmites técnicos freudianos para a construção terapêutica desse processo, permitindo ao paciente se reconhecer como sujeito de seu sintoma e assim - até onde possível - se tornar senhor de seu destino.

A parte II do livro se dedica ao pensamento e prática de Winnicott, bem como às articulações entre seu pensamento clínico e teórico e sua relação com a psicopatologia fundamental.

O primeiro texto se intitula "Psicopatologia e o viver criativo", uma escrita sobre a criatividade diante da psicopatologia fundamental - remetida à obra de Pierre Fédida (falecido em 2002) e continuada pela difusão da noção por Manoel Tosta Berlinck.

Diante da chamada crise inicial da vida, quais seriam as soluções criadoras e criativas para se pensar as demais crises de uma existência?

A noção de consciência atrasada de Husserl é trabalhada no texto apontando para a condição de fragilidade e dependência constitutivas, observando que o nascimento prematuro "permite ao humano um desenho intelectual, social e cultural sem paralelo no mundo animal" (p. 122), gerando como consequência desse ganho um débito eterno: o infantil.

Sérgio relembra que Winnicott chama a atenção aos cuidados que devem ser dispensados ao ambiente desse ser: a crise do nascimento reclama pela noção de cuidado.

Assim, o "Viver de modo criativo" aponta para o ato que propicia a transformação da realidade, ao mesmo tempo que a aceita e a rejeita - exatamente como propõe Freud em sua noção de saúde psíquica -, acolhendo e transformando a realidade.

A criatividade é um atributo do existente e, nesse sentido, Winnicott inverte a máxima existencialista em que a existência precede a essência e dirá que "o ser precede o fazer" (p. 126).

A verdadeira fonte da criatividade se encontra em algo secreto, próprio, pessoal e originário desde a experiência singular que cada um viveu na relação mãe-bebê. A experiência de uma desilusão não traumática para com a realidade, gerando a capacidade de "se surpreender e de ver o novo onde estava o conhecido" (p. 128).

A noção da "capacidade de estar só" é aprofundada e ampliada pelo autor, retomando a noção - tão cara e por vezes problemática em sua compreensão - de "falso-self", e as consequências "quando o viver criativo não se estabelece".

A compreensão desses conceitos se propõe a auxiliar o praticante clínico no processo de situar espaços favoráveis ao estabelecimento de elementos criativos, assim, o capítulo seguinte, intitulado "O brincar e a experiência analítica", será um desdobramento denso e instigante acerca de uma condição fundamental: o brincar.

Sérgio Franco se dedica a relacionar o conceito do brincar winnicottiano desde sua antiga raiz sublimatória freudiana, em que o mesmo só pode ser plenamente compreendido a partir da noção de transicionalidade.

Assim se dirige ao campo intermediário de ocorrência desse agir, em que uma topologia e uma temporalidade convergem para a ocorrência da ação criativa nesse espaço de fronteira.

Se o brincar se dá num espaço e tempo construídos transferencialmente, então se faz necessário pensar quais as condições para que esse espaço se constitua.

O tópico "espaços não convencionais" vai além do setting clínico materializado no tratamento para se dedicar ao paradoxo produzido pelo pensamento winnicottiano; pensamento a respeito de paradoxos nas intervenções clínicas. A partir daí serão destacados e estudados avanços em outras áreas da ciência que suportam os acréscimos propostos por Winnicott em suas questões acerca do tempo e espaço clínico. Isto compreendido tanto no espaço potencial da dialética mãe-bebê quanto no espaço dialético (e também potencial) analista-paciente.

Numa extensão do capítulo anterior e realçando "A criatividade na clínica psicanalítica" e a importância dos espaços não convencionais, Sérgio destaca nesse capítulo que a marca de uma vida vivida como criativa é uma marca que se enuncia como uma "sensação interior" (p. 158). Nesse sentido, o viver criativo é a "impregnação da realidade com nosso toque pessoal" (p. 158).

A criatividade na clínica corresponde a um espaço-tempo-teatro onde a dupla analista-paciente, investida de afeto nesse trabalho subjetivo, atualiza uma brincadeira tão real quanto a realidade socialmente vivida e paticamente sofrida.

O último capítulo do livro se refere ao "Atendimento de pacientes difíceis". A epígrafe desse capítulo traz o impressionante relato clínico que obviamente concerne a esses casos: "O caso difícil, antes de mais nada, é aquele que não é fácil para o analista" (p. 165). A autora da frase, Fátima Florindo César, acerta em cheio, de maneira direta, verdadeira, o que todo clínico que leva em conta a subjetividade no campo psicopatológico deve escutar para se orientar.

Para que o "falso-self" possa se desincumbir da função protetiva em relação ao "verdadeiro-self" que, debilitado, necessita dessa instância pática para protegê-lo, faz-se tarefa do analista oferecer amparo, holding (suportabilidade) e segurança, permitindo, assim, que o trabalho com pacientes difíceis opere a abertura necessária para que as partes verdadeiras do paciente emirjam.

 

Referências

Ricouer, P. (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/6/2014
Aceito em: 1/7/2014

 

 

José Waldemar Thiesen Turna jturna@uol.com.br

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