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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dez. 2014

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

O mito dos argonautas e a travessia até a conquista da adolescência

 

The myth of the argonauts and the crossing until the conquest of adolescence

 

El mito de los argonautas y la travesía hasta la conquista de la adolescencia

 

 

Marly Terra Verdi

Psicóloga e psicanalista. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São José do Rio Preto. marlyver@terra.com.br

 

 

 


RESUMO

O presente trabalho traz a trajetória da análise de um jovem que por vivências mentais primitivas não conseguia transpor adequadamente os obstáculos ao ingresso na adolescência. O relato mítico dos argonautas em sua corajosa viagem permite discutir e apontar os mares revoltos que encontram todos os adolescentes em seu percurso, as "ilhas" que podem fazê-los aportar e desistir de sua tão promissora e assustadora viagem pela vida. Os heróis adolescentes do "Argo" fazem contraponto com os terrores individuais que podem impedir essa travessia. A psicanálise é o que permite ir tecendo as relações entre a clínica e o mito, indivíduo e grupo. É a experiência do apaixonar-se e ser amado que levará à definitiva aceitação da alteridade e à descoberta de um corpo transformado, mas reconhecido. O relato das sessões permite acompanhar o temor de desatracar do cais familiar e empreender sua aventura, vivido pelo paciente durante sua análise.

Palavras-chave: psicanálise, adolescência, mitos, argonautas, desenvolvimento


ABSTRACT

This paper presents the analysis of the trajectory of a young man that due to primitive mental experiences, could not properly transpose the entry barriers into adolescence. The mythic story of the argonauts on their courageous journey permit us to discuss and to point out the rough seas that all adolescents meet on their path, the "islands" that can contribute and make them give up their so promising and frightening journey through life. The teen "Argo" heroes are compared to the individual terrors that can prevent this crossing. Psychoanalysis is the weaving that enables the relationship between the clinic and the myth, individual and group. It is the experience of falling in love and being loved which will lead to the final acceptance of the otherness and the discovery of a transformed, but recognized body. The sessions' accounts allow the tracking of the fears of leaving the familiar pier to live the adventure of life, experienced by this patient during his analysis.

Keywords: psychoanalysis, adolescence, myth, argonauts, development


RESUMEN

Este trabajo presenta la trayectoria analítica de un joven que debido a sus vivencias mentales primitivas no conseguía transponer adecuadamente las barreras de ingreso a la adolescencia. La historia mítica de los argonautas en su viaje lleno de coraje es utilizada para discutir e ilustrar el mar revuelto de dificultades que todos los adolescentes encuentran en su camino, así como las "islas" que pueden ayudarlos a seguir o hacer que renuncien al viaje tan prometedor y aterrador por la vida. Los héroes adolescentes de "Argo" se contraponen a los terrores individuales que pueden impedir esta travesía. El psicoanálisis permite establecer relaciones entre la clínica y el mito, el individuo y el grupo. La experiencia de enamorarse y ser amado es lo que conducirá a la aceptación definitiva de la alteridad y al descubrimiento de un cuerpo transformado, pero reconocido como propio. El relato de las sesiones nos permite acompañar el temor a desatracar del muelle familiar y emprender la aventura, que será experimentada por el paciente durante su análisis.

Palabras clave: psicoanálisis, adolescencia, mitos, argonautas, desarrollo


 

 

A vida com suas etapas poderia ser comparada, e frequentemente o é pelos poetas ou escritores, com uma viagem cheia de percalços.

Proponho o mito helênico de Jasão e dos argonautas em busca do velocino de ouro para discutir a passagem pela adolescência e suas vicissitudes.

Meu paciente é um adolescente vivendo sua trajetória cheia de atrasos, com paradas nos desvios infindáveis que o fazem se perder pelos mares da vida e ser enredado, tal como os argonautas em sua fantástica viagem.

Mário: "É, lá em casa está difícil, não sei como fazer, é muita coisa ao mesmo tempo. Meus irmãos vivem bem, se a água levar, eles boiam e vão na correnteza e se divertem. Eu não, eu sempre me seguro nas pedras, eu não vou na correnteza".

Analista: "Você às vezes se sente diferente deles e se aflige".

Mário: "É, e eu sou".

Jasão, filho de Esão e de Polímede, ou Alcímede, muito menino ainda sofreu as amarguras do exílio, pois seu pai havia sido afastado do trono e do poder por Pélias, seu irmão mais novo.

Temendo este que ao ódio do irmão viesse a se acrescentar o ressentimento do sobrinho, resolveu matar o recém-nascido. Avisados a tempo da desgraça que ia cair sobre eles, os pais de Jasão fizeram-no passar por doente. Pouco depois, simularam um luto profundo e espalharam o boato de que o filho havia morrido. Mas, aproveitando a noite, enquanto as mulheres faziam ressoar as paredes do palácio com seus gemidos, envolveram Jasão em cueiros de púrpura, e sua mãe foi confiá-lo ao centauro Quíron. (Meunier, 1976, p. 161)

Mário vem ao mundo após uma depressão materna; nessas circunstâncias não houve, provavelmente, a possibilidade da vida ser celebrada com alegria, e assim o luto encobre e disfarça o vínculo, tal como no mito. Talvez como Jasão, Mário é entregue pelos cuidados amorosos dos pais à ajuda de alguém que possa zelar por ele e encaminhá-lo ao crescimento e ao futuro. Talvez seja este o papel das análises, buscadas por seus pais, desde que ele tinha tenra idade.

No mito, um oráculo adverte Pélias que seu trono será conquistado por alguém que chegará sem uma sandália, com um pé descalço. Podemos lembrar Édipo, que miticamente também teve seus pés deformados e sofreu um abandono prematuro. Meu paciente traz consigo também as marcas desse início de vida que ele parece ter vivido como o de alguém enjeitado e sem condições de enfrentar as asperezas de seu percurso. Mário parece-me resistir a viver heroicamente sua própria vida, e o trajeto de sua adolescência, até o momento, foi vivido como uma viagem que ele rejeita, mantendo-se preso a aspectos primitivos e arcaicos de seu desenvolvimento psíquico.

Mário: "Sabe, quando eu era mais novo saía com um amigo meu, ia na padaria com ele comprar sanduíche, ele comprava pra mim também. Ele tinha um passarinho, um periquito, vinha no dedo dele. Um dia o periquito morreu.

Outro amigo meu também tinha um periquito que ele adorava, ele gos tava tanto que foi dormir com o periquito, virou em cima dele e o periquito morreu amassado (ri). Outro amigo meu tinha um passarinho que ele adorava, entrou um ladrão e o roubou. Chovia muito e ele nem percebeu".

Mário, nesse momento, mostra como vê os outros meninos capazes de ter os seus "periquitos". Fala da força vista fora, no outro, capaz de ter e, quem sabe, lhe dar alimento (sanduíche), fala também de suas fantasias dessa força ser destruída num contato mais próximo se, inadvertidamente, ao se movimentar, destruir o "periquito" ou este ser roubado.

Ele parece, nesses momentos, fantasiar que possuir um pênis é correr o risco de perdê-lo ou destruí-lo. Como esse temor pode ser grande, "cede" aos outros esse órgão e as capacidades associadas ao falo. É o "temor à castração", que Freud aborda em diferentes textos. Em "Sobre as teorias sexuais das crianças", comenta essas ideias:

O efeito dessa "ameaça de castração" é proporcional ao valor conferido ao órgão, sendo extraordinariamente profundo e persistente. As lendas e os mitos atestam o transtorno da vida emocional e todo o horror ligado ao complexo de castração, complexo este que será subsequentemente lembrado com grande relutância pela consciência. (Freud, 1994c/1908, p. 197)

Jasão, após muitos anos de exílio, retorna a sua pátria e lá é enviado por seu tio, que o reconheceu devido ao pé descalço, a buscar o velocino de ouro que lhe daria direito ao reino do pai. A busca era considerada por seu tio uma tarefa impossível, e dessa forma ele o envia pela segunda vez à morte, afastando-o do direito a seu reino.

Mário, meu paciente, também se vê impedido de viver ou de entrar no reino adulto de seu pai. Vê-se como alguém que não pode transitar pelo caminho dos jovens e enfrentar seu destino, suas viagens e riscos.

Vive sua adolescência de forma particular, vendo-se ainda aprisionado a um mundo inanimado, como se o tempo tivesse parado em um sono que congela a sua infância, mantendo vivas e ativas as fantasias e vivências infantis que lhe dificultam aceitar a alegria da vida e seus movimentos.

Mário: "É que é difícil estas coisas que você diz". (Silêncio) "Não sei o que falar."

Analista: "Difícil começar, mas observe: já começamos, você já está fa lando".

Mário: "Vou ter prova". (Silêncio)

Analista: "Prova de quê?"

Mário: "De química. Mas estudei, estou sabendo. Parece engraçado quando lembro que antes eu não conseguia saber nada, não tirava nota, não entendia".

Analista: "Parecia outra química?"

Mário: "É, parecia. Não sei como era, mas eu não entendia nada. Agora estou indo bem. Só não vou bem com as meninas. Falei com os meninos que não transei, zoaram comigo. Fiquei danado de ter falado. Também todos já fizeram, menos eu".

Neste trecho, mais explicitamente, surge o tema do desejo de viver a sexualidade e o medo de que não possa, que se sinta "castrado" em sua fantasia. Novamente a ideia de que os outros meninos têm um pênis e ele não se sente capaz de viver a existência e eficiência do seu.

Essa "castração" aparece também no falar do início das sessões. A fala, como falo, está na analista, e ele o projeta em busca de poder descobrir em si essa capacidade. Segundo Freud, a dificuldade de separação é a primeira vivência de castração, aquela através da qual o simbólico encontra suas bases de desenvolvimento.

Mário vivencia ali na sessão seus sentimentos, projetando em mim o falo-fala, dando-me a palavra e precisando que eu inicie suas sessões, ajudando-o a adquirir gradativamente sua linguagem-força, a manejar símbolos, a se juntar e separar através da linguagem, no tempo-espaço das sessões.

Mário ainda se coloca dessa forma dependente, o que o impede de procurar os companheiros jovens, que tanto o ajudariam a ter coragem para sua jornada, a de se separar e crescer.

Jasão se reúne a 53 heróis gregos para fazer a viagem, são todos jovens e corajosos e estão animados para a aventura.

Mário: "Minha mãe e minha irmã adoram fazer psicólogo. Minha irmã diz que quer fazer a vida inteira. Eu não quero, não".

Analista: "Fica, assim, como uma coisa das mulheres? Mãe, irmã, eu?".

Mário: "É, acho que minha irmã está sendo mimada demais. Por isso nem conseguiu ficar na faculdade. Meu pai e minha mãe mimam demais, eu também. Deus me livre, eu quero ficar fora, para conseguir minhas coisas".

Analista: "Talvez aqui também você queira garantir de ter as chaves, para não ficar preso, poder ir e voltar, e assim crescer, né?".

Mário: "É".

Essa separação que ele teme em relação a sua mãe e aos vínculos importantes, como comigo, sua analista, dificulta a sua condição de pensamento e simbolização. Dessa maneira, reage sempre a colocações que fujam ao plano concreto.

Mário: "Que bom, hoje é sexta-feira. Não tenho aula. Segunda também não vou ter. Me dá água?". (Abre e fecha a gaveta várias vezes)

Trago a água, ele bebe, vira o copo e com ele tira a cera da mesa que contém a gaveta.

Analista: "Está vendo como é por dentro e deixando suas marcas? Está verificando se aqui há lugar para você existir e ter seu espaço?".

Mário: "Você gosta de pássaros?".

Analista: "Eu gosto".

Mário: "Eu também. Hoje um amigo do trabalho perguntou se, se eu nascesse bicho, o que gostaria de ser. E eu disse 'maritaca'. Elas gritam, falam, são alegres".

Analista: "Você gostaria de ser assim?".

Mário: "Eu gostaria. A maritaca é menor, verde, com penacho. O peri quito é um pouco maior, só verde. Depois vêm os papagaios e as araras, que são grandes e coloridas e fazem barulho, tenho um amigo que tem uma. Gosto das aves e dos cachorros, não gosto dos gatos".

Analista: "Só das gatas".

Mário: "Das meninas, sim, mas dos bichos, não. Fazem muita bagunça". Analista: "Coisas vivas fazem bagunça, barulho e são alegres também"

Preenche sua vida com atividades solitárias no computador, que, segundo me parece, está sob seu controle, não assustando tanto como os seres vivos. Bion (1980) nos fala sobre essa necessidade de imobilidade dos objetos em pacientes com dificuldades em constituir seu aparelho psíquico para pensar seus pensamentos.

A vida é movimento constante, a mutabilidade das percepções e das experiências é o que rege a nossa existência. Sem possibilidade de conter em sua mente esse movimento, Mário torna as coisas o mais previsível possível, como no computador.

No início das sessões, durante muito tempo, Mário trouxe a mesma frase.

Mário: "Fala aí". (Silêncio) "Está quente, fala alguma coisa".

Analista: "Você está me propondo que eu ocupe um espaço aqui?". (Estou tentando, uma vez mais, interpretar, após muito tempo de responder a essa formulação que inicia suas sessões)

Mário: "Não acho certo isso, só a gente tem que falar. Você não fala nada, por que psicólogo não fala?".

Analista: "Você está testando se sou uma psicóloga que 'funciona'?".

Mário: "É, eu faço isso com todo mundo. Primeiro eu testo, vejo como a pessoa faz, é sempre assim, eu vejo como 'funciona'".

Analista: "Como com as máquinas, liga e faz um teste?".

Mário: "É, mas já vem você com isso das máquinas. Fiquei muito no computador, e tenho tido dor na mão, tá doendo. Se eu não puder fazer isso, vou fazer o quê? Ser padeiro, pedreiro, o que eu vou fazer?".

Parece-me que neste caso, em que o mundo fica identificado, em seus movimentos com as ameaças de destruição da compreensão ou da capacidade de pensar, os movimentos são controlados no exterior. Mas as situações com pouco movimento externo, como a análise, propiciam a erupção de movimentos internos, e o controle sobre estes também se torna intenso, o que dificulta a vivência do tempo analítico.

Essas defesas aparecem sempre na análise de Mário. E ele se mostra então temeroso de viajar externamente pelos mares revoltos que ele vislumbra e internamente por mares que parece desconhecer. Freud (1994a/1933), na Conferência XXxi das "Novas conferências introdutórias", diz que o reprimido é território estrangeiro para o ego - território estrangeiro interno - assim como a realidade é o território estrangeiro externo.

Mário necessita reconhecer-se em experiências precoces, deixar suas marcas. Olhar dentro da gaveta, verificar o interior do corpo materno (primeiro continente), ver se este está inteiro, se não foi danificado, se não perdeu a mãe alegre ("maritaca"). Ele pode, na análise, verificar a integridade desse continente através do olhar de dentro da gaveta.

Quando ele vira o copo e novamente marca a mesa-seio, a boca do copo encontra a mesa. O continente copo se estrutura, se fecha, a abertura fica contida pela mesa, criando um espaço interior. Marcar com a boca-copo a mesa-seio, verificar se cabe a sua marca, se as mordidas de sua boca podem marcar o seio, sem destruí-lo.

A boca-seio, encontro primeiro de relações sutis, objetais, que permitem os primeiros registros, marcas mnêmicas que abrirão caminho para o pensamento, que estruturarão as primeiras aberturas dos neurônios y para configurar caminhos associativos e desejar buscar no mundo essa figura e reconhecê-la como objeto de satisfação. No "Projeto de uma psicologia científica", Freud o descreve:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos motivos morais. (Freud, 1994b/1950, p. 370)

Considero que as experiências e ações de Mário têm uma função de trazer essa "linguagem", copo-na-mesa, representando boca-no-seio, de forma semelhante a essa ação reflexa que Freud descreve, que em seu desenvolvimento transformará o psiquismo, podendo trazer uma outra linguagem e criando a "função secundária da comunicação". Essa experiência, ou acting out, vai devagar traduzindo para mim e para ele que é possível a boca e o seio serem reencontrados, vividos nessa experiência, e reaproximados, para só depois serem representados. A analista tem aqui o papel da "pessoa experiente", que alimenta com as palavras, buscando sentido e permitindo essa experiência.

Em uma sessão posterior, já em outra linguagem, temos:

Mário: "Fico imaginando se um paciente aparecesse em sua casa. O que você faria? Mandaria embora, ficaria brava?".

Analista: "Você sabe que não. Nós já nos encontramos fora daqui".

Mário: "É mesmo, lembra?".

Analista: "Lembro, mas acho que você quer saber se longe podemos nos reencontrar em pensamento, se você pode pensar em mim e se eu me lembro de você".

Mário: "Me dá água?".

Trago a água, ele experimenta e diz: "Tem gosto de soro, aquele soro caseiro".

Analista: "Como é o soro?".

Mário: "Aquele soro que tomamos quando ficamos doentes".

Analista: "Para alimentar e fortalecer?".

Mário: "É".

Analista: "Aqui tem certas palavras e ideias que alimentam, né?".

Mário: "Sabe, estou indo bem na escola...".

Mário, numa outra sessão, já metaforicamente, fala sobre seu cachorro, que deixa marcas no prato que usa. Comento com ele que são essas marcas que tornam o prato do cachorro só dele, especial. Se trocarem sempre o prato, ele não poderia reconhecê-lo. Mário gosta de falar sobre isto, parece ir reconhecendo com alívio que criar marcas em seu contato com o mundo o imprime no mundo e, ao mesmo tempo, imprime a imagem dele próprio em sua mente. Esse encontro do ser com as imagens do corpo, com as representações do Eu, talvez sejam os fundamentos para as construções simbólicas.

No mito de Jasão, a perigosa missão de busca do velocino de ouro conta com a ajuda de uma elite de guerreiros e príncipes, entre eles Orfeu, cuja função era cantar para estabelecer o ritmo dos remadores e para evitar que no encontro com as sereias o canto destas atraísse os argonautas para a morte.

Chega e diz: "Fala aí".

Analista: "Sobre o que você quer falar?".

Mário: "Fala sobre alguma coisa. Não quero falar, e se você não falar nada fica um vazio".

Analista: "O que você gosta que eu fale para não ficar vazio?".

Mário: "Qualquer coisa".

Analista: "O que for, tanto faz o assunto?".

Mário: "É, tanto faz, fale alguma coisa".

Analista: "O que você gosta, do som ou do assunto?".

Mário: "Do som, gosto de ouvir".

Analista: "E o que você gosta no som, como é?".

Mário: "É delicado, é macio".

Analista: "Feminino?".

Mário: "É, acho que é".

Analista: "Parece que quando eu falo assim e você gosta, fica bom. Talvez quando eu falo um assunto que você 'ouve', aí não gosta e fala que é psicanálise".

Mário: "É, talvez. Mas gosto de ouvir, e você vá falando, não quero falar".

Analista: "Sabe que das primeiras coisas que percebemos é o som na barriga da mãe, tem uma espécie de música".

Mário (fala animadamente): "É, eu vi, em algum lugar, que os bebês gos tam de música na barriga da mãe, que já ouvem. É interessante".

Analista: "É, os bebês ouvem os sons do coração da mãe e da voz".

Mário: "Diz que os bebês quando nascem conhecem a voz da mãe".

(Sinto que estamos próximos)

Em sessões seguintes posso já comentar com Mário como essa atração pelos sons lembra o mito das sereias e o quanto o seu apego à mãe às vezes o impede de "seguir viagem".

Sabemos da paixão que têm os adolescentes pela música, o som alto, e diferente daquele apreciado pelos adultos, de outra geração. A música de cada geração embala os grupos de adolescentes, ajudando na identificação com sua época própria e seu percurso, diferenciando-os e afastando-os da "música da mãe".

A deusa Hera, no mito, é quem incute nos jovens a vontade de ir para longe de suas mães, em busca de aventura, já que a vontade de ficar junto a elas impediria a partida do Argo.

A análise tem, de certa forma, o papel de incutir essa coragem e, ao mesmo tempo, ajudar na construção de um aparelho psíquico que suporte melhor as rápidas mudanças e alterações vividas no processo em direção ao crescimento. A análise de adolescentes, em geral, tem a função de desatracar e impulsionar para a busca de si mesmo, como essa viagem a um país desconhecido, mas fundamentalmente seu.

Jasão deveria ir em busca do velocino de ouro. Gostaria de comentar que velocino é a pele do carneiro sagrado. Também é necessário que o psiquismo conquiste em seu percurso uma pele, e podemos dizer que essa pele psíquica, conceito de Esther Bick (1991), delimitará o mundo interno e permitirá viver as experiências psíquicas como organizadas e não catastroficamente caóticas. O ouro do velocino poderíamos relacionar ao brilho que adquire essa pele psíquica quando é alcançada uma maior abstração, e com ela se completa a noção de individualidade do ser. Se bem resolvido o triângulo edípico, reeditado na adolescência, o Eu vai ser agora mais forte, mais estruturado. O narcisismo resolvido configurará um ego que, por permitir a alteridade, possibilitará ao indivíduo uma vida rica de possibilidades, com o brilho da alegria de viver.

Voltando ao mito, o navio construído chama-se Argo, que significa rápido. A deusa Atena dirigiu sua montagem, teceu as velas e deu-lhe um mastro feito de um carvalho sagrado, da floresta de Dodona.

O Argo nos remete a uma combinação de figura materna que contém e protege em seu interior a figura paterna, com seu grande mastro, que com a vela estabelece direção e movimento. Essa estrutura é necessária como base psíquica para empreender o caminho da abstração, das viagens psíquicas que levam mais e mais longe nossos voos.

Como disse Mário em sua sessão, a evolução das aves, da maritaca aos papagaios e araras, nos leva a considerar sua evolução de pensamento, que se dá ampliando seus voos, crescendo gradativamente sua condição de compreensão, como nos mostra ele ao comentar sobre a química, que antes não podia apreender.

Parece que para auxiliá-lo nesse caminho, ele precisa do incentivo da voz alegre da analista, tal como da maritaca de que ele tanto gosta e cujo canto talvez substitua a entonação triste do início de sua vida. Daí a importância de me ouvir a cada início de sessão e perscrutar se estou alegre ao recebê-lo, no nascimento de cada uma de nossas sessões.

Atena é a deusa guerreira, que incute nos jovens argonautas a coragem de se dirigir ao destino desconhecido, e dá ao mastro mágico a condição de falar e a capacidade de singrar os mares. Os adolescentes de todas as épocas enfrentam lutas e batalhas e vão com seu idealismo criar novas linguagens e vivenciar novos destinos, abrindo, assim, os caminhos humanos.

O mastro do qual o mito fala nos remete a um grande falo como potência mágica e temida ao mesmo tempo. Na fantasia dos adolescentes, seus feitos sexuais são sonhos e pesadelos, e essa é uma grande batalha interna a ser vencida.

O piloto do navio Argo era Tífis, que, segundo o mito, foi ensinado por Atena na arte da navegação, até então desconhecida.

Talvez possamos considerar que a adolescência seja a etapa da Grande Viagem: desatracar do cais familiar e navegar em direção aos mares de outros vínculos, mais abertos, mais inconstantes, mais perigosos, menos incondicionais e que, portanto, exigem maior confiança interna para arriscar-se em busca dos outros e de si mesmo concomitantemente.

Poderíamos formular etapas cada vez mais elaboradas para nossa tarefa de transitar do narcisismo aos vínculos, tal como observamos no desenvolvimento cada vez maior do processo de abstração. Desde o nascimento até a adolescência, vamos nos encaminhando para um investimento pulsional mais e mais refinado e sutil.

Nesse percurso os vínculos são narcisicamente também experimentados, o adolescente se vê através do outro em uma identidade que absorve desse outro sua própria condição. Como diz Freud: "'identificação' - isto é, a ação de assemelhar-se um ego a outro ego, em consequência do que o primeiro ego se comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o, e em certo sentido assimilá-lo dentro de si" (1994a/1933).

O adolescente, dessa maneira, vai delineando uma visão de si que é em geral uma visão positiva das relações encontradas entre os iguais, companheiros de jornada, heróis do Argo.

Inversamente, os adultos são experimentados como tios traidores ou como pais espoliados, que por isso são abandonados e, depois, superados, para a criação de uma pátria própria, de um trono arduamente conquistado.

Viagens fantásticas devem ser vividas na realidade e na imaginação.

Na falta dessa vida imaginária ser compartilhada, ou melhor, no aprisionamento dentro de um cais familiar, impossibilitado de ver aos seus como traidores ou destituídos, Mário fica atracado ao concreto, sem imaginar este mundo de aventuras ou conquistas que valeria a pena buscar.

Sabemos que a adolescência revive o Édipo para dissolvê-lo e caminhar mais resolutamente para novos vínculos.

Mário permanece prevalentemente fixado aos aspectos primitivos de seu Édipo. Por isso não pode se identificar adequadamente com seus companheiros nem com seu pai. A partir dessa estruturação, suas vivências com as mulheres parecem estar marcadas pelo medo, pelo temor do incesto ou da indiscriminação.

As sereias, ou mulheres belas e fatais, surgem em sua fantasia e o impedem de sair para encontrá-las.

Diz o mito:

longa e movimentada foi a navegação, pois antes de atingir o fim longínquo da viagem, deveriam encontrar numerosos obstáculos e sobrepujar terríveis provações. Lemnos foi a primeira escala. Nessa ilha habitada apenas por mulheres, os valorosos argonautas perderam dois anos. (Meunier, 1976 p. 163)

Lá se uniram às lemníades, dando-lhes filhos, uma vez que estas haviam assassinado todos os maridos.

Mário chega e diz: "Fala aí".

Analista: "Como vai?".

Mário: "Vou bem, até que vou bem. E você, o que fez no fim de semana, ficou em casa como eu?".

Analista: "Você ficou em casa no fim de semana?".

Mário: "Fiquei em casa, só dormi, comi e mexi no computador. Hoje começa tudo outra vez, não tenho vontade de ir à escola na segunda, não gosto de estudar à noite".

Analista: "Às vezes me parece que você prefere ficar com as coisas que conhece bem: a casa, o computador, e que, quando sai, sente medo de encontrar coisas novas e se assustar".

Mário: "É isso mesmo, mesmo em casa não gosto de sair, fico muito no meu quarto".

Analista: "Você gosta de se sentir protegido, no seu quarto se sente pro tegido".

Mário: "É, lá eu gosto de ficar, como na minha caverna". (Silêncio) "Quem desenhou? Vejo as marcas aqui na mesa. Tenho vontade, já pensou? De deixar umas marcas grandes". (Faz movimentos sobre a mesa) "Já pensou deixar marcas? E aquele menino que saiu daqui? Tem problemas de cabeça, né? A gente nota".

Analista: "Você está podendo perceber que algumas pessoas têm proble mas e está me falando que às vezes não sabe que tipo de marca deixar. Marcas de ter problemas ou de não ter problemas... Quer saber se seu espaço aqui existe, se é só seu e está protegido".

Mário: "Coisas da psicanálise... Cada paciente deve falar de si". Analista: "Aqui você pode falar do que quiser".

Mário (olha para mim): "Por que você está me olhando assim com esta cara?".

Analista: "Como é minha cara que te assustou?".

Mário: "Não sei, uma cara feia, brava. Você está pensando que eu não tenho jeito mesmo".

Analista: "Parece que eu fiquei uma Marly que pensa coisas ruins a seu respeito, critica, fica brava, meio bruxa, assim...".

Mário (ri): "É, uma cara ruim, você fica brava, briga com seus filhos?".

Parece que Mário tem em relação às mulheres um tipo de idealização que as torna figuras meio míticas, distantes, misteriosas e que parecem dispor de uma linguagem que ele não compreende, nem sente que será compreendido adequadamente. Nessa sessão ele demonstra o receio de que eu possa repreendê-lo por ter percebido algo e tido curiosidade. Poderíamos supor que toda pesquisa ou produção mental seja sentida por ele como passível de ser atacada ou repreendida, levando-o a uma extrema cautela em suas incursões intelectuais. Parece também aqui temer a "castração" de sua curiosidade ou pensamento.

Mário fala novamente em marcas, estranhas marcas que vê nessa sessão, já que deixar suas próprias marcas tem sido muito importante para ele. Essas marcas sugerem o processo que os etólogos denominam de imprinting (Hesse, 1973), ou seja, marcas que no início da vida promovem o reconhecimento da mãe e fixam essas experiências, dando ao bebê a possibilidade de seguir suas mães e sentir que podem aprender com elas fazendo seu caminho e, futuramente, construir um caminho próprio. Mário idealiza as mulheres porque parece não ter consolidadas essas marcas iniciais, e por isso deve buscá-las continuamente ou, não as alcançando, se proteger em sua caverna.

A caverna de Mário parece ser o lugar onde ele tenta se assegurar de não sofrer danos, protegendo a vida. Gostaria de pensar se o momento do imprinting poderia ser aquele em que o ser primitivo de todos nós vive o encontro com a mãe (ou quem lhe faça a função) e também o encontro mítico entre o corpo e a alma. No livro O ramo de ouro, de sir James Frazer, o autor nos diz:

Mas pode haver circunstâncias nas quais, se a vida ou a alma permanecerem no homem, correm um risco de sofrer um dano maior do que se estivessem guardadas em um lugar seguro e secreto. Assim sendo, nessas circunstâncias, o homem primitivo tira a alma de seu corpo e a deposita, por motivos de segurança, em algum lugar recôndito, com a intenção de reconduzi-la ao corpo quando o perigo tiver desaparecido; ou então, se ele puder descobrir um lugar de absoluta segurança, ficará contente se ali deixar sua alma permanentemente guardada. A vantagem disso está em que, enquanto a alma continuar segura no lugar onde foi depositada, o próprio homem é imortal: nada pode matar-lhe o corpo, já que a vida não está nele. (1986, p. 236)

O sabor de viver se dá a partir do encontro do bebê com sua mãe, o im printing permite juntar a vida do corpo com a alegria do viver da alma, e daí surgiria toda a busca de crescimento e aprendizagem. Quando esse encontro é perturbado, talvez o bebê sinta tanto medo que sua vida perca o sabor do saber, e ele mantenha seu corpo vivo escondendo sua alma nas cavernas conhecidas, evitando o movimento das descobertas.

Parece que o caminho da adolescência implica enfrentar novamente esses fantasmas; na adolescência há um renascimento, ou um nascer no plano interpessoal, que vai além da proteção familiar.

Retomemos agora a sequência do mito de Jasão e os argonautas e vejamos como seguiram sua viagem.

Os heróis do Argo seguiram para a Samotrácia, a conselho de Orfeu fizeram a iniciação nos mistérios. Entrando pelo Helesponto, chegaram à ilha do rei Cízico, país dos Doliones. Foram recebidos com hospitalidade. O rei preparou-lhes um banquete e muitas provas de amizade. Na noite seguinte nossos heróis partiram. Sopraram fortes ventos contrários que, sem eles perceberem, os fizeram retornar às costas de Doliones, de madrugada. Os habitantes, desconhecendo tratar-se dos hóspedes que regressavam, temeram-nos por acreditar tratar-se de piratas pelasgos, que viriam atacar seu país. O rei Cízico compareceu para dar apoio a seus súditos. Foi morto pelo próprio Jasão, que atravessou-o com sua lança. Os outros heróis mataram muitos nessa batalha. Quando o dia clareou, os dois lados perceberam seu erro e lamentaram profundamente. Jasão organizou um luxuoso funeral para o rei. Os argonautas prestaram sua homenagem com jogos e rituais fúnebres. Clite, a jovem esposa de Cízico, enforcou-se em desespero. As lágrimas das ninfas foram tão abundantes que se formou uma fonte, que passou a chamar-se Clite. Uma tempestade impediu os argonautas de partirem logo e eles neste tempo erigiram uma estátua à Cibele, a mãe dos deuses, num alto morro.

Este trecho do mito nos parece assemelhar às fantasias edípicas, que ressurgem na adolescência. O adolescente precisa desconhecer o pai na obscuridade dessa etapa, enfrentando-o como um inimigo, que encobre um querido e conhecido monarca, que o acolheu hospitaleiramente, cuidou e abrigou. Esse "desconhecimento" permite ao jovem medir forças, sentir-se valente e, em uma boa resolução, vencer a batalha, matando a figura inatingível do pai e dos adultos, para absorver em si essas capacidades. É necessário não apenas isso, mas a morte mítica do casal parental, já que morto o pai, a mãe também morre, em sua juventude, por sua própria vontade, não ameaçando o jovem com desejos incestuosos. E depois, já na maturidade, é necessário pranteá-los e erguer monumentos em sua homenagem, reconhecer sua nobreza, para só então reparar os danos descobertos pela luz do dia ou da consciência.

No trabalho de análise com adolescentes percebemos que esse impasse entre destituir os pais e amá-los provoca um intenso sofrimento e demanda lutas internas poderosas, entre luzes e trevas, e de resultado incerto. A difícil travessia deve prosseguir, com seus vaivéns, como os do Argo, que volta às costas ao que acabou de abandonar, para resolver os conflitos do aprisionamento familiar. Essa doce prisão é ao mesmo tempo a terra firme, onde o adolescente sente-se seguro do afeto, do reconhecimento que ocorre mesmo depois de seus desatinados atos e sentimentos.

Esse desconhecimento ocorrido na batalha, em que todos vivem nas trevas um "terrível engano", parece traduzir os sentimentos intensos vividos pelos adolescentes e seus familiares que, para poderem entrar em conflito, devem desconhecer-se, estranharem-se e reencontrarem-se cotidianamente. Dessa complexa, dinâmica e maravilhosa trama vivida e sentida como tragédia muitas vezes vem à luz o surgimento da individualidade do jovem.

Mário: "Diga alguma coisa".

Analista: "De que tipo? Que Marly será?".

Mário (ri): "Múltipla escolha. Marly Terra, Marly Planeta Terra, Marly Terra Seca, Marly Terra Verde e nenhuma das alternativas".

Analista: "Qual será?" (rimos os dois).

Mário: "Marly Terra, Marly Planeta Terra".

Analista: "Para poder crescer bastante".

Mário: "Para crescer é difícil lá em casa, com aquela mimação. Minha irmã só vive mimada, gasta muito. Eu vejo lá na minha escola, pagar um real é difícil. Minha irmã gasta trinta ou quarenta a qualquer hora. Assim, trabalhar é difícil, porque eu vejo meu amigo (se referindo a um amigo que já trabalha), o sacrifício que faz para receber cem reais".

Analista: "Como precisamos abrir mão da 'mimação' para fazer nosso próprio caminho, mesmo que no começo ele pareça mais difícil".

Mário: "É, outro dia fiquei bravo. Meu pai estava dizendo a um amigo dele que na época deles é que era difícil, e agora é fácil. Mas é ele que fica faci litando tudo, e depois ainda põe a culpa em mim".

Dou-me conta da culpabilidade inconsciente que o atormenta, mesmo quando recebe coisas boas.

Analista: "Às vezes fica difícil quando não nos põem limites. Parece que ficamos sozinhos e ainda culpados, né?".

Mário: "É, lá em casa não se põe limite em nada. Eu vejo minha irmã, meu irmão, eu não quero, mesmo que eu não consiga fazer as coisas, mas eu quero tentar fazer. Falei para minha mãe e ela disse que com 17 anos é assim mesmo, os pais que sustentam".

Analista: "Mas você quer achar seu próprio caminho, sua própria força".

Mário: "É, eu quero. Sabe o que a gente gasta de análise, quando eu falei que gasto tudo isto. Mas preciso, senão enlouqueço".

Analista: "Acho que você quer ter a capacidade de crescer e sair da aná lise, e que eu lhe assegure que isto não é loucura".

Mário: "Eu quero mesmo".

Analista: "Isto é muito importante. Ter espaço para crescer, sem se cul par ou se sentir preso".

Mário: "Se é! Lá em casa a gente se sente enredado, tenho que ter cuida do para conseguir sair disso e fazer as minhas coisas".

Analista: "Acho que isso que você está dizendo são coisas muito impor tantes. Continuaremos na próxima sessão".

Mário parece ainda temer que o afeto, denominado por ele "mimação", o impeça da coragem para a luta, mas já pode perceber esses aspectos ambivalentes, falar deles, se ligar à análise, percebendo-a como fortalecimento de seus recursos integradores, permitindo-lhe valorizar sua vontade de crescer, de buscar identidade, de lutar por seus projetos de independência. Nessa sessão, demonstra a percepção das forças que o enredam e mostra sua vontade de se lançar em viagem, de se buscar fora das redes das relações familiares, conhecer-se em novos mares.

Eu diria que é necessário para Mário viver a figura da analista não como uma ilha, mas como um planeta inteiro, um continente tão amplo onde, por qualquer mar ou terra em que se encontre, possa sentir-se protegido. Acredito ser necessária essa ilusão (Winnicott, 2000), vivida prematuramente na etapa da simbiose mãe-bebê, para assim, garantido, poder percorrer outros caminhos, explorando suas possibilidades, sua força, seus limites. Isso aparece no mito de Jasão, na construção da estátua de Cibele, que por ser mãe de todos os deuses é a mãe mítica, a Mãe-Terra.

A etapa seguinte dos argonautas levou-os para a costa da Mísia. Os habitantes também os receberam com presentes e alegria. Enquanto os heróis se ocupavam de preparar a refeição, Hércules tinha perdido seu remo, que se havia partido pois era muita a força com que remava, ele foi à floresta procurar uma árvore com cujo galho pudesse fabricar outro.

Hilas, rapaz que Hércules amava, sairá do Argo a procura de água doce para o preparo da refeição. As ninfas ficaram maravilhadas com sua beleza e o atraíram para sua fonte, onde ele se afogou. Os argonautas ouviram seu grito. Hércules se lançou em seu socorro e o procurou por toda a noite, quando o Argo partiu, nessa madrugada, ele não se encontrava a bordo. Foi sem Hércules e Polifemo, que também saíra para a busca, que os argonautas continuaram sua viagem. Polifemo fundou a cidade de Cio, e Hércules continuou sozinho seus famosos feitos.

Seguindo o mito, uma etapa a ser ultrapassada para seguir na conquista do amadurecimento envolve a resolução de componentes homossexuais, nos aspectos que dizem respeito à atração narcísica denotada nessa volta libidinal para o próprio sexo. Freud, no "Três ensaios para uma teoria sexual", descreve a problemática homossexual da adolescência: "Uma das tarefas implícitas na escolha do objeto consiste em não se desencontrar do sexo oposto. Isso, como é sabido, não se soluciona sem certo tateamento. Com frequência as primeiras moções depois da puberdade se extraviam sem que haja nenhum dano permanente" (1994d/1905, p. 216).

O fascínio com a própria beleza aparece como no mito de Narciso, e a beleza leva à morte no fundo da fonte. Presos a esse lugar, e atraídos pela busca do companheiro, os jovens argonautas interrompem sua viagem; um deles, Hércules, como todos sabemos, está preso para sempre à força física, ligado muito ao corpo e pouco ao pensamento, tal como é descrito em todos os relatos de suas aventuras.

Mário: "Sabe, nosso cachorro anda desesperado esses dias. Tem uma ca chorra no cio, perto de casa. Ele grita, quer sair. Aquele sai e volta, pode deixar ele em qualquer lugar que ele volta para casa".

Analista: "Como ele sabe qual é a sua casa, e quem tem casa não tem medo de sair, de se perder. Interessante, não é?".

Mário: "Mesmo se botar ele para fora, não adianta. Ele volta do mesmo jeito. Sai, vai longe, mas volta. E essa cachorra que está no cio é uma filhinha de mamãe toda chique, que toma banho, tosa, vive no colo da dona, essa não é para ele, aquele 'linguiça' lá. Mas ele está louco estes dias, sabe que eu acho que ele é bicha?".

Analista: "E por quê?".

Mário: "Ele se soltou uma vez e transou com um cachorro, nós sepa ramos, e eu não conhecia o cachorro, mas eu o encontrei depois e vi que era macho. E é bicha. Outra vez ele transou com uma cachorra e ela mordeu tanto ele, acho que ele se assustou".

Analista: "Se assustou com as mulheres e preferiu transar com um macho".

Mário: "É, acho que foi, mas às vezes a gente põe a cachorra lá junto com ele e ele não quer nada, parece bicha, mas agora anda louco por aquela que não é para ele".

Analista: "Até achar uma que dê certo, né? Uma é 'filhinha da mamãe', outra morde, outras ele não quer, e você acha que com os machos é mais fácil?".

Mário: "Eu não sei, mas ele fez isso". (Silêncio)

As questões da sexualidade são trazidas por meio do cachorro e introduzidas na análise para serem pensadas metaforicamente. Vários aspectos de fantasias em relação ao sexo oposto emergem, tais como a fantasia primitiva da "vagina dentada", e fantasias mais desenvolvidas são exprimidas através da imagem da "filhinha da mamãe", que ele coloca como inatingível. Uma forma de mediação para essas fantasias é a fantasia homossexual, parecendo expressar com ela uma forma de diminuir o temor e poder entrar em contato com o desejo sexual.

A questão da homossexualidade surge na adolescência como um aspecto importante da sexualidade, que precisa ser ultrapassado, mas que intermedia o contato com o sexo oposto, bem como a formação da identidade sexual, através das importantíssimas identificações desenvolvidas no convívio com o grupo de iguais. Mário fala da importância de reconhecer caminhos de ida e volta, para permitir-se experimentar a saída em busca dos companheiros e a vivência da heterossexualidade.

No seu desenvolvimento o mito dos argonautas leva-os a uma aventura junto das Harpias, aves com cara de mulher e corpo de abutre, com enorme bico e garras aduncas, que deixavam sempre que passavam um cheiro pestilento que podia adoecer a todos. Os argonautas ancoraram o barco para passar a noite, perto de onde vivia sozinho o velho Fineu, a quem Apolo, o-que-fala-verdade, dera o dom da profecia. Fineu predizia, sem erro, o que ia acontecer; isto desagradara a Zeus, que por temer o ciúme de Hera não gostava que aquilo que planejava fazer fosse adivinhado por ninguém. Por isso Zeus impingiu a Fineu um terrível castigo; sempre que chegasse a hora do velho comer, as Harpias, que eram chamadas "as cadelas de Zeus", apareciam e sujavam com fezes mal cheirosas os alimentos. Os argonautas pediram a Fineu (que era cego) que predissesse o futuro de sua viagem. O velho impôs como condição que o livrassem das Harpias. Os argonautas então chamaram Cálias e Zétes, que podiam voar já que eram filhos de um deus do vento, disseram a Fineu que se sentasse na mesa e quando as Harpias apareceram voaram em sua perseguição, até que elas, esgotadas, prometeram não perturbar nunca mais Fineu. Este revelou aos argonautas um perigo que os ameaçaria na viagem: as Rochas Azuis (as Simplégades), recifes móveis que se entrechocam. Para passar ilesos por estes rochedos, Fineu aconselhou-os a enviar pela estreita passagem um pombo. Se este conseguisse atravessar, eles deveriam passar rapidamente para escapar sem perigo. Mas se as rochas se fechassem pegando o pombo, o mais prudente seria desistir da viagem.

Após esse oráculo, os argonautas continuaram sua viagem. Chegando em frente as Rochas Azuis, ou Simplégades, soltaram uma pomba, que conseguiu fazer a passagem, mas as penas mais longas da cauda ficaram presas, já que as rochas se fecharam rapidamente. Os argonautas esperaram que os rochedos se afastassem de novo e rapidamente avançaram com sua nau. O barco saiu são e salvo, mas a popa ficou ligeiramente danificada, como a cauda da pomba. Depois dessa travessia as Rochas Azuis permaneceram imóveis, pois se um navio conseguisse atravessá-las elas não mais se moveriam.

Este trecho do mito nos relata como é necessário que o jovem veja a seu pai, grande adivinho adulto de sua vida de infância, aquele que tudo sabia, alquebrado e atacado pelas fantasias anais-sádicas e orais-sádicas de suas primitivas relações. Lembremos também que na fase anal, durante a primeira vivência de separação e fundamentação do Eu, essas fantasias foram articuladas e vividas de maneira a permitir a estruturação da separação e do símbolo.

Na adolescência, todo conhecimento adulto é atacado, e é preciso que o jovem se sinta aquele que de fato sabe e conhece as melhores formas de salvar o mundo ao seu redor, sendo que essa capacidade vai ser utilizada para resgatar o valor paterno. Se o pai é reconhecido como aquele que sabe do mundo sexual da mãe e das mulheres, o filho aceita orientação e pode caminhar para suas próprias descobertas do mundo feminino.

A metáfora das Rochas Azuis e sua travessia é um lindo relato dos temores de castração e do cuidado que permeia a primeira relação sexual. A representação das fantasias apavorantes do movimento dos rochedos, que cessa após a travessia, nos faz pensar no desconhecimento que envolve o interior do corpo feminino visto como um lugar onde o contato pode trazer a perda alertada pelo adivinho, que adverte que se a pomba não conseguir atravessar, deve-se desistir para sempre dessa tentativa. A pomba na mitologia é tanto um representante dos genitais quanto símbolo do pensamento, ou do espírito.

Nesse sentido, mais uma vez, a vivência sexual se conecta com a capacidade de abstração, e parece que vivê-la franqueia as portas para um nível superior de simbolização. A condição de aceder a uma vida sexual madura acompanha o desenvolvimento das capacidades egoicas de manejo das angústias primitivas, ao lado de maior condição de adequação à realidade, com o avanço do princípio de realidade e o consequente amadurecimento.

 

Referências

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Recebido em: 10/11/2013
Aceito em: 12/8/2014

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