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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

A autobiografia de Wilfred Bion Taming. Transitoriedade entre si mesmo e o grupo

 

The Autobiography of Wilfred Bion Taming. Transition between the self and the group

 

La autobiografía de Wilfred Bion. Taming. La transitoriedad entre sí mismo y el grupo

 

 

Anne Lise Silveira Scappaticci

Membro efetivo e professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Psicanalista infantil da Tavistock Clinic (Roma) e psicoterapeuta familiar pelo Instituto de Terapia Familiare e Scuola Romana di Terapia Familiare (Roma). Doutora em Saúde Mental pelo Departamento de Psiquiatria da unifesp EPM. São Paulo. annelisescappaticci@yahoo.it

 

 


RESUMO

A autora tece comentários sobre a obra póstuma de Wilfred Bion. Trata-se da primeira parte de sua autobiografia, The Long Week-End. Tendo escrito grande parte de sua obra, Bion nos deixa esse texto como legado. Nele, no final de sua vida, ele testemunha sua experiência emocional, sua infância e juventude. Numa atividade literária na qual parece permanecer no gap, entre os tempos, entre o indivíduo e o grupo, ele forja uma linguagem com intuito criativo, uma aproximação de si mesmo e de uma publicação para o seu grupo.

Palavras-chaves: biografia, experiência emocional, linguagem, poesia


ABSTRACT

The author comments on Wilfred Bion's posthumous work. This is the first part of his autobiography, The Long Week-End. Having written much of his work, Bion leaves us this text as a legacy. In it, at the end of his life, he witnesses his emotional experience, his childhood and youth. With a literary activity which seems to remain in the gap, between times, between the individual and the group, he forges his own language with creative intent, an approximation of himself and of a publication for his group.

Keywords: biography, emotional experience, language, poetry


RESUMEN

La autora realiza un comentario sobre la obra póstuma de Wilfred Bion, la primera parte de su autobiografía, The Long Week-End. Después de haber escrito la mayor parte de su obra, Bion nos deja este texto como legado. En esa obra, estando ya en el final de su vida, nos brinda testimonio de su experiencia emocional, su infancia y juventud. En una actividad literaria que parece permanecer en el gap, entre los tiempos, entre el individuo y el grupo, Bion forja un lenguaje con intención creativa, en una aproximación de sí mismo y de una publicación para su grupo.

Palabras clave: biografía, experiencia emocional, lenguaje, poesía


 

 

Sustentados pelo aro, trinta raios rodeiam um eixo, mas é onde os raios não raiam que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso, mas é o vazio que perfaz a vasilha.
Levantam-se paredes e se encaixam portas, mas é onde não há nada que se está em casa.
Falam-se palavras e se apalavram falas, mas é no silêncio que mora a linguagem.
O ser presta serviços, mas é o nada que dá o sentido.

(Dao-de-jing, cap. XI)

Ao escrever sua autobiografia, Bion coloca a psicanálise no centro da vida, uma atividade autopoiética, de autocriação, uma possibilidade sempre presente. Com frequência o autor cunha palavras, utiliza termos antigos, salmos, hinos, patrimônio de todos, algo da sua/nossa infância, repertório conhecido, um manejo cuidadoso, de cada expressão, de repente, de modo não usual e surpreendente. Arrasta, assim, o leitor para o espanto da experiência. Procura estimular o outro (o analista) a reinventar-se, na busca de dar conta de si mesmo, de sua alma, de sua pena e de seu entorno. Já tendo escrito grande parte de sua obra, o autor ainda escreve, taming, perscrutando, percorrendo, caçando-domesticando, por vias in-expressas da mente, wild, pensamentos selvagens. Estes, livres, impensáveis, de ninguém e da humanidade e, por isto mesmo, inapreensível.

Do mesmo modo, Italo Calvino (Lezioni Americane, 1988) deixou seu testamento artístico identificando qualidades que somente o poeta e a literatura poderiam preservar - leveza, rapidez, exatidão, multiplicidade, consistência; virtudes norteadoras dos próximos milênios de nossa existência. Infelizmente, testamento, já que Calvino faleceu antes de completar a obra e, portanto, a sexta "pro-posta" permanecerá como atenção futura. O mesmo ocorre na poesia que Bion recitava quando criança de Rudyard Kipling, The Elephants' Child. Bion a recoloca como introdução do livro que reúne seus trabalhos do período denominado por alguns autores epistemológico como The Seven Servants.

Os sete pilares da sabedoria são:

Eu tinha seis honestos serviçais
Eles me ensinaram tudo o que sabia
Seus nomes eram O quê, Por quê, Quando/Como, Quem
Eu os enviei a leste e oeste | Mas após terem trabalhado para mim
Eu dei a eles um descanso (e termina): aquele que falta completa os sete.
(Bion, 1985, p. 19, tradução da autora)

O elemento que falta é a marca essencial do humano. Permanecemos suspensos na incompletude, submetidos à nossa intolerância para o pensar, ou a espera do vir a ser.

O enfoque estético ou o recurso à qualidade poética possibilita permanecer em contato com a mente adimensional que sustenta o paradoxo, expressão do pensamento subjetivo, de uma primeira experiência mental de si mesmo. Essa forma primitiva ou primeira do pensar, assim como a expressão poética e artística, está em íntima relação com o pensamento onírico e com o infantil (Gaddini, 1989). "Proponho a substituição dos dois princípios de funcionamento mental de Freud por três princípios de vida. São eles: 1. sentimentos; 2. pensamentos antecipatórios; 3. pensamentos + sentimentos + Pensamentos." (Bion, 1979, p. 5, tradução da autora).

Assim, a busca artesanal pela palavra escrita, em que cada termo minuciosamente escolhido revela o engajamento e a consideração pela própria vida, o que é ao mesmo tempo incerteza e denúncia de nossa precariedade: pa-la-vra. O problema que o escritor Bion afronta é especulativo e metafísico, aquele que domina a história da filosofia de Parmênides a Descartes e Kant: a relação entre espaço e tempo absolutos e a nossa limitada cognição empírica de espaço e tempo.

uma intuição instantânea que apenas formulada assume a "definitividade" que não poderia deixar de ser; mas também o tempo que escorre sem outra intenção a não ser deixar que os sentimentos e pensamentos se sedimentem, amadureçam, se destaquem de cada impaciência e de cada contingência efêmera. (Calvino, 1988, p. 53, tradução da autora)

O autor Bion busca expressão para a condição humana, que é passageira. Faz, então, um salto para o futuro que soa como uma "pré-visão": o doloroso penar pela ausência da capacidade de pensamento diante da nossa condição de transitoriedade; crepúsculo.

Através da aba na entrada da barraca o sol ao bater no chão vai drenando a cor da grama e tornando intensamente negro tudo para além do círculo de luz. Luz intensa; negro intenso; nada no meio; nenhuma penumbra. Sol severo e silêncio; noite negra e barulho violento. Coaxar dos sapos, pássaros martelando caixas de lata, sinos que tocam, gritando, berrando, urrando, tossindo, gritando, zombando. Naquela noite, aquele é o mundo real e o ruído real. Quando os macacos superinteligentes com suas ferramentas superinteligentes tiverem se deixado explodir em um acesso e num estado propício a fornecer delicado alimento aos próximos senhores e senhoras da criação, o supermicróbio sapiens, então os seres humanos que entulham a terra vão atingir sua glória, o maravilhoso colorido da carne putrescente a se deteriorar e feder e servir de berço à nova aristocracia. (Bion, 1982, p. 18, tradução da autora)

Neste, como em muitos trechos da escrita, permanecemos na cesura confeccionada de imagens e sons, melodia, por exemplo, ao falar do entardecer na Índia. Bion conta que sua família se reunia próxima ao órgão portátil onde sua mãe tocava:

hinos sobre a verde colina - tão verde comparada à Índia queimada e árida do dia apenas terminado - e sobre os seus muros em miniatura, encastrados de joias. Pobre pequena verde colina; por que não tem muros de cidade em seu entorno? Precisei de muito tempo para me dar conta o que o poeta infeliz queria dizer que a pequena colina não tinha muros de cidade, e ainda mais para me dar conta de que ele queria dizer - por quanto mais incrível pudesse parecer - que ela se encontrava fora dos muros da cidade.1 (Bion, 1982, p. 9, tradução da autora)2

Muitas crianças se equivocam sobre o significado de without, que quer dizer seja "fora de", que "sem". Nessa pintura polifônica, o autor-poeta traz a personificação da natureza, a Verde Colina que, como a pequena criança, precisa servir-se de uma pele, do que denominará posteriormente nesse seu livro, de um exoesqueleto, para não ficar submetida ao desamparo. Esse seria um "espaço-pique-protegido" e seguro? Um espaço sagrado e misterioso? Questões abordadas por ele e que são esmiuçadas por nossos autores da psicanálise como Esther Bick, em seu conceito de Segunda pele psíquica, e Frances Tustin, Terror de aniquilamento.

"Revesti-vos da inteira armadura de Retidão", disse São Paulo, era um texto que me trazia muito conforto - até que eu senti a inadequação de uma armadura moral. É maravilhoso o que pode ser feito com nada, mas quando colocada, é preciso uma boa dose de suor para retirá-la. (Bion, 1982, p. 28, tradução da autora)

Meg Williams (2011) cita esta passagem onde o colo da mãe é ao mesmo tempo caloroso e seguro, tornando-se, de repente, frio e assustador. A autora enfatiza que a presença da mãe de Bion está associada aos seus chapéus, cuja singularidade evocativa contribui como brecha para adentrar na atmosfera daquela relação. Um chapéu ricamente ornado por cachos de uva, de que ele, pequeno, tanto gostava, mas que não era bem-visto quando ela ia à igreja, soava como se ela fosse an abandoned woman. E ainda, ao descrever o momento da separação de sua mãe na Inglaterra, em Delhi:

Não tinha nenhuma casa (lar) que pudesse sentir saudades - somente pessoas e coisas. Então, quando me encontrei sozinho na quadra da escola preparatória na Inglaterra, onde com olhos enxutos tinha dado um beijo de adeus a minha mãe, pude ver, acima da cerca que me separava dela e da estrada que consistia a fronteira para a vastidão do mundo verdadeiro, o seu chapeuzinho que se movia aos trancos para cima e para baixo como um bolo militar curiosamente forjado realizado sobre a onda da cerca verde. E então ele se foi. (Bion, 1982, p. 33, tradução da autora)

Esse chapeuzinho, descrito como the military cake evoca a cena do tanque de guerra que se desloca pelo prado, experiência que o jovem Bion viveu na Primeira Guerra Mundial. Meg Williams complementa:

a dualidade é parte do sistema Big Brother pelo qual tudo parece desamparadamente subjetivo: ela o teria abandonado ou ele a ela? Em que sentido ela estava abandonada a si mesma? Embora a criança possa ler seus sentimentos em seu rosto..., há um embargo não reconhecido sobre qualquer expressão genuína de sentimento, o que faz com que suas próprias emoções permaneçam incontidas. Onde não existe linguagem para confronto de emoções, o pensar fica impossível, e assim "o problema da supressão da realidade psíquica está linguisticamente expresso; ou ainda Bion expressa como este é evacuado: como o sem palavras e o sem pensamentos estão juntos". (2011, p. 7, tradução da autora)

Em War Memories, Parthenope Talamo Bion comenta que seu pai, até o final de sua vida, nunca abandonou seu interesse pelo fenômeno da guerra e pela investigação do funcionamento de grupos, sobretudo pelo pressuposto básico luta-fuga. A sua teorização posterior, ela afirma, sobre a dinâmica de grupos (1948, 1952) utilizou a ideia da protomente como a matriz que substancia o fenômeno dos pressupostos básicos; e, ainda, o autor acrescenta:

suspeito que a experiência de pânico descrita em seu Diário de guerra, dar-se conta dos contagiantes efeitos da alta ou da baixa moral..., assim como sua percepção dos efeitos degradantes do tédio e da completa falta de disciplina, tudo isto foi parte da experiência emocional real na qual a sua teoria se baseia. (1997c, p. 311, tradução da autora)

Para alguns autores (Lopez Corvo; Meg Williams, entre outros), The Long Week-End é um meio de prover uma introdução, uma complementação, à leitura dos três volumes de A memórias do futuro, iluminando algumas obscuridades da vida e da linguagem privada, assim como de pontos subjetivos e singulares de referência: Arf Arfer, o pássaro da febre, o jardim hortifruticultural. Temas, conjecturas, pequenas histórias aparecem como continentes forjados, uma linguagem que é ao mesmo tempo subjetiva e exitosa em provocar a experiência e, assim, comunicar, "colocando num conjunto, o método externo e interno de aproximação, a formulação do fenômeno o mais próximo possível do nômeno" (Williams, 2011, p. 16, tradução da autora).

Na autobiografia, portanto, a "verdade" em psicanálise está próxima da verdade poética e estética... É como contar um sonho. O Taming, o esforço de Bion em sua Grade pessoal, oferece um modelo ao analista, à procura de seu método para alcançar o público contemporaneamente ao seu espaço mais íntimo e privativo: socialismo, narcisismo, uma "transiência" contínua. O Taming busca encontrar formulações provisórias onde o valor constante prejudica a flexibilidade necessária para o desprendimento e, assim, a disposição para o sentir os sentimentos, pensar premonitoriamente, expandir a mente em um novo Pensamento - parafraseando Bion (1979). Trata-se de uma proposta de acolher a nós mesmos, nossa condição humana de incerteza. Visa retirar do desamparo as ideias que ainda virão e que, quem sabe, continuarão presentes na mente do analista sem ganhar maior sofisticação.

Abordei exaustivamente a questão e outras como: "o xarope dourado é mesmo feito de ouro?",3 - primeiramente com minha mãe, e em seguida também com meu pai, mas sem ficar satisfeito com nenhum dos dois. Concluí que na verdade minha mãe não entendia bem destas coisas; apesar dela tentar de todos os modos, parecia tão desconcertada quanto eu. Com meu pai as coisas se complicavam ainda mais. Ele começava a explicar, mas parecia irritar-se quando eu não entendia a sua explicação. O clímax se deu quando repeti a minha pergunta sobre o xarope dourado pela "centésima vez". Ele ficou muito bravo. Poxa!, disse minha irmã em tom apreciativo. (Bion, 1982, p. 9, tradução da autora)

A diferença de vértice entre o menino, cheio de perguntas - interessado em questões como no destino da Pity my Simply City, do tigre, entre outras "personificações de sua natureza psíquica", do pequeno Bion -, e seu pai, um engenheiro que construía ferrovias pela Índia, culminou no episódio da expedição de caça (The Big Game Shoot), dia do aniversário de Bion. Na tensão entre o indivíduo e seu establishment, a criança e a sociedade, esse episódio evoca o nascimento psíquico ou ainda o encontro entre caça e caçador - o acampamento foi rondado à noite pela fêmea do tigre que tinha sido morto e que em seu rugido invocava seu réquiem. Na ocasião, Wilfred ganhou um trem elétrico que infelizmente logo parou de funcionar, para a frustração sua e de seu pai. Sua Aya tinha ensinado ao portador como funcionava os "terrenos-elétricos". Ocorreu então uma tentativa de curar o trem pelo método oriental, passando no mesmo a melhor manteiga e deixando-o ao sol. "Desta vez meu pai se virou e fugiu. Tive medo que ele fosse chorar e, na verdade, ele deve ter ficado muito desapontado" (Bion, 1982, p. 17, tradução da autora).

Aqui, os estímulos sensoriais parecem estar mais próximos à experiência vivida, trazendo o frescor da emoção. Giuseppe Civitarese (2011), questionando a atribuição de um status mais elevado aos elementos alfa em relação aos elementos beta, os coloca em correspondência, arriscando a hipótese de que os elementos beta seriam os contêineres para o primitivo da mente, seus vestígios, o território mental anterior à possibilidade do verbal, o "pré": pré-concepções, pré-monições, mitos da pré-humanidade; algo que pode ser aproximado pela intuição. Seria como pensar que estivemos aqui antes de nós mesmos? Alguma coisa maior... "Posteriormente, parecia que tivesse sido criado (imposto) tal abismo entre a matemática aplicada e aquela pura que não conseguiria satisfazer-me propriamente, naquele tempo ou agora, a respeito da conexão (relação) entre o número cem e pela centésima vez." (Bion, 1982, p. 10, tradução da autora).

 

Transformações, a distância entre a geometria-sensorial e a álgebra-abstrata

Arf Arfer era muito assustador. Algumas vezes, quando ouvia os adultos conversando, eles caiam em gargalhadas sem sentido. Arf! Arf! Arf! Faziam. Isto acontecia especialmente quando eu e minha irmã tínhamos dito alguma coisa. Nós os olhávamos sérios, os olhos arregalados. Depois, íamos a uma outra sala e nos exercitávamos. Arf, arf, arf! Eu dizia. Minha irmã unia-se a mim estridentemente: Arf, arf, arf; e no final dava vontade de rir, porque a coisa parecia boba... Às vezes em meus sonhos pensava ouvir Arf Arfer arfando. Era um rumor terrivelmente amedrontador. Uma vez os chacais sentados em um círculo enquanto um deles emitiu um "fiau". Era terrível. "Este é um Arf Arfer", eu pensei. "Arf Arfer era parente, mesmo se distante, de Jesus, que por sua vez, estava implicado em nossos hinos: Jesus me ama, isto eu sei/porque a bíblia me disse assim." (Bion, 1982, p. 13, tradução da autora)

Arf-Arfer, o início do Pai-nosso, Our Father who are in Heaven, assim como ressoa ao ouvido infantil, (calembours) é a lembrança da poderosa risada dos adultos, personagem aparentado com Jesus, verbo de conotação sexual "arfing", superego monstruoso que aparece de vez em quando... Intraduzível.

A distância entre os vértices no indivíduo e no grupo parece ser o pano de fundo desse romance autobiográfico. Bion, mais velho, reinventa-se nos olhos de um menino. Um garoto extremamente sensível e atento ao funcionamento mental de si próprio na relação com seu grupo. Aqui, o Édipo (On Arrogance, 1968) é entendido como uma preconcepção da humanidade, entrada do indivíduo no grupo. A criança intui a personalidade das pessoas e a atmosfera que a envolve. Experiência emocional tão intensa que a fará ir em busca de expressão o resto da vida; busca por sua realização. Em sua descrição, Bion observa o método com o qual cada um conhece e lida com a verdade. A criança curiosa que faz perguntas, o adulto que, submetido ao Superego severo do grupo, já abandonou há tempos sua capacidade de perguntar. "Que tipo de artistas podemos ser?", perguntou Bion (1975-9). A natureza da psicanálise é ciência em evolução, assim como o desenvolvimento do próprio psicanalista.

Assim o Taming consiste no escrutínio, a observação da personalidade, da atmosfera criada no grupo. Investigação presente em toda a sua obra, na reversão de perspectiva de experiência em grupos, em continente e contido, no místico e o grupo.

Tínhamos uma belíssima imagem na qual estavam prefigurados vários animais, incluindo um leão e um carneiro; um menino de camisola (poderia também tratar-se de uma menina) estava em pé com o braço em torno do pescoço do leão. Todos estavam ali sem fazer nada de particular, como os personagens dos Saltimbancos de Picasso. Sem fazer nada em particular. Ninguém acreditava que eu pudesse permanecer ali, sem fazer nada. (Bion, 1982, p. 18, tradução da autora)

 

 

Nesse episódio, Bion continua a assoberbar sua mãe com suas perguntas, descreve sua familiar inquietude na fase rosa de Picasso, Os Saltimbancos. Pablo Picasso se dedicou a esse mesmo tema em muitos trabalhos, alterando a composição, acrescentando figuras. A paisagem é sempre desolada e, apesar de o pintor reunir os personagens numa bela composição, muito bem equilibrada, cada figura está psicologicamente isolada uma da outra. E do espectador. Nessa fase rosa, ou do circo, ele se afasta do azul que denotava sofrimento, mas em A Família de Saltimbancos, obra-prima dessa fase, o espírito de introspecção e de triste contemplação da vida ainda prevalece.

Cada um olha para fora da pintura:

A postura de minha mãe era seguramente mais amorosa, sinceramente mais amorosa do que aquela de meu pai; isto nela não era uma postura; o que nele era. Ela nos amava; ele amava a imagem que tinha de nós. Ela sabia de ter incorrigíveis moleques, e renunciava a suportar este fato. Meu pai sentia um amargo rancor dirigido à ameaça de uma realidade que pudesse colocar à prova aquele parto de fantasia. (Bion, 1982, p. 23, tradução da autora)

O protagonista busca permanecer na cesura, propondo assim um novo paradigma. Olhando dentro e fora, nos vários vértices, intrapsíquico e interpessoal, a intensa tensão entre o grupo e o indivíduo transparece o tempo todo. Salmos, hinos, histórias, alegorias no meio do discurso. As religiões como invólucro diante da fragilidade ou como teorias para explicar o mundo e assim se acalmar. Todo o tempo tem algo novo ou alguém morrendo, e já se sabe, vai para o Céu ou para o Inferno? Profecias, o determinismo paralisante traça o destino do sujeito que fica pego pela paranoia. Tudo tem a chance, a possibilidade está por surgir. A necessidade de figurabilidade da emoção que não pode nascer e urge por existir no espaço do papel. Anacronismo, vários tempos presentes na mesma página como num retrato multidimensional. Eric or Little by Little - A tale of Roslyn School, de Frederic W. Farrar, era um romance vitoriano de tom profundamente moralístico para meninos, no qual morrem multidões de meninos "maus", inclusive o próprio Eric. Através desse personagem, o próprio Bion se apresenta: "a cada quarta-feira lembrávamos que alguém estava morrendo, a cada domingo, eu mesmo morria" (Bion, 1982, p. 36). "Já era hora de ir à escola, para que eu liberasse a cabeça de todos aqueles absurdos: nesta época não tinha uma mente, só uma cabeça. Neste estágio de minha vida um crepúsculo, no entanto teve. De fato, deve ter se tratado da aurora: a aurora da inteligência." (Bion, 1982, p. 19, tradução da autora).

Durante a escola, Bion e seus colegas traduziam o evangelho. Sua família era descendente de huguenotes, calvinistas provenientes da França. Assim, a tarefa proposta pela escola reproduzia uma tradição de seu grupo, desde a Reforma: os reformistas traduziam e comentavam os cânticos dos pobres de Israel. Estes se tornaram a base de toda a Bíblia hebraica. Ao ler a autobiografia, sentimo-nos próximos ao operado da Transliteração, ou seja, da representação do texto original por meio de caracteres latinos para que possam ser pronunciados da forma mais próxima possível da língua em questão por leitores, por exemplo, brasileiros. Traduzir a autobiografia é como o investimento da mãe ou do analista. Como proposto por Haroldo de Campos (1991), toda a literatura é fruto de Transmigração, Transcriação. Ele afirma numa entrevista: "prefiro a vanguarda à retaguarda. Mesmo que não use o conceito de vanguarda e sim de invenção, terei Camões, Goethe e Dante como inventores da linguagem". E acrescenta: "Na medida que a Bíblia é um grande poema, inovador, e para muitos divino, Deus é um poeta da vanguarda".

Bion parece utilizar da sua bagagem cultural, social, familiar e particular para transformar os salmos em versos. Onde a poesia faz jus à psicanálise. Inicia o livro com as palavras do brasão de sua família: Nisi dominus frustra (Sem Deus, nada tem significado). A mesma divisa escolhida pela cidade de Edimburgo e que remonta ao salmo 127:

Se o Senhor não constrói a casa,
Os construtores trabalham em vão;
Se o senhor não cuida da cidade,
De nada adianta a vigília dos guardas.

Como uma epígrafe, essa introdução do livro é um ato de fé, de busca do indivíduo por si mesmo, da resiliência ao próprio naufrágio, imerso em seu grupo...

A cultura religiosa é utilizada para "manter-se coeso" - "calçado pelo evangelho" (Bion, 1982, p. 45, tradução da autora) - ou ainda para a descrição mítica e poética dos estados mentais. O salmo de David, citado por Bion, pode ser pensado dentro da tradição católica, ou seja, como prece para afastar os perigos e aflições e ainda como ato de fé, aproximação do próprio sujeito a sua condição ínfima diante do infinito mistério do universo. Uma das possíveis traduções para o português é que David era o irmão mais novo, entre os numerosos filhos de Jessé. Segundo o profeta Samuel, David, quando inspirado por uma força divina, matava feras para defender as ovelhas de seu rebanho. Daí a forte referência pastoril.

O Eterno é meu pastor e nada me faltará. Far-me-á repousar em pastos verdejantes e me conduzirá por um lugar de plácidas águas. Minha alma será restaurada; guiar-me-á nas veredas da justiça por amor de Seu Nome. Se tiver que seguir pelo sombrio vale da morte, não recearei nenhum mal, porque Tu estarás comigo. Teu apoio depois do Teu castigo ser-me-ão por consolo. Diante de mim preparará uma mesa de delícias na frente dos meus inimigos. Ungiste com óleo de unção a minha cabeça e o meu cálice transborda de fartura. Unicamente a felicidade e a misericórdia me seguirão durante a minha vida. E o meu habitar será por longos dias na mansão do Eterno.

Na Inglaterra, assim como na Índia, a pronúncia é um forte indicador dos estudos e da classe social, da casta a que a pessoa pertence. No texto God, Good and Gud convivem antes de serem extintos ou anteriores à repressão. Deus escolheu Gedeão, um jovem da tribo de Manassés, para liberar Israel da adoração de seus vários ídolos (Jz 6,36-40). Em um Pantheon de deuses, personagens, objetos parciais e não integrados, o funcionamento da mente é no contemporâneo politeísmo e monoteísmo, palimpsesto. Bion está interessado na pré-história do humano e, portanto, sua abordagem é pelo mito, no onírico: "Orsu, soldado de Cristo"; "Se você está cansado, está fraco, está pego por amargos tormentos"; "Você é fraco?". Estas são formulações usadas para tentar descrever estados mentais (Bion, 1982, pp. 50-51, tradução da autora). Aqui, parece descrever estratégias de guerra para livrar-se da culpa diante de um Superego severo e cruel, o grupo despersonificando o sujeito que permanece nele submerso. Mais adiante, o pequeno Bion visa tentar uma discriminação frente ao estranhamento: está chovendo lá fora e Wilfred quer que o grupo da escola toque "Sol esplendente", "sei que o meu redentor vive e no último dia estará em pé sobre a terra" (Bion, 1982, p. 41). Este trecho, ele acrescenta, tentando trazê-lo mais para perto da vivência de alguém que descobre o descompasso entre dentro e fora de si mesmo, pode ser traduzido por "porque sei que o meu vingador vive e no último dia estará em pé sobre a minha tumba" (Bion, 1982, p. 48, tradução da autora). Parece que o estilo militar da música serve como elemento organizador, numa tentativa de permanecer coeso e integrado.

Assim, o autor descreve o crescimento na desidealização, desilusão e na saída da indiferenciação grupal.

Nenhum colégio poderia ser tão mau como as histórias de terror que nós inventamos para nós mesmos. Era esta a fonte das tormentas espantosas a que estamos sujeitos? Tais desastres e cataclismos não podem ser descritos. Eles ainda me perseguem; ainda agora eu sou impelido a escrever, mas o que escrevi é, assim que foi escrito, uma entediante trivialidade da vida de moleques mimados e demasiadamente privilegiados. (Bion, 1982, p. 51, tradução da autora)

Enfim, em sua escrita Bion recupera e utiliza a visão de estranhamento (outsider), retoma "notações" interrompidas de sua infância, não mais como obstáculo a ser afastado nem como triunfo (On Arrogance, Édipo), mas com a finalidade de sair do "senso comum" do grupo para buscar uma interlocução mais fina consigo mesmo. A reversão de perspectiva de um vértice singular ao próprio indivíduo, mas até então incomum ao grupo, busca reinventar-se para poder, assim, reatar a comunicação. A autobiografia é o Taming, tensão e garimpo, testemunho do trabalho infindável para toda a vida, investimento vivo de autoedição, autopublicação.

mas vi tudo isso
tudo isso e mais aquilo
e tenho agora direito a uma certa ciência
e a uma certa impaciência
por isso não me mandem manuscritos datiloscritos telescritos
porque sei que a filosofia não é para os jovens
e a poesia (para mim) vai ficando cada vez mais parecida
com a filosofia
e já que tudo afinal é névoa-nada
e o meu tempo (consideremos) pode ser pouco
e só consegui traduzir até agora uns duzentos e setenta versos
do primeiro capítulo da Ilíada
e há ainda a vontade mal-contida
de aprender árabe e iorubá
e a necessidade de reunir todas as forças disponíveis
para resistir a Mefisto e não vender a alma
e ficar firme
em posição de lótus
enquanto todos esses recados ambíguos (digo: vida)
caem na secretária electrônica.

(Trecho da poesia Meninos eu vi, de Haroldo de Campos)

 

Referências

Bíblia Sagrada (1989). Tradução: João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.         [ Links ]

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Recebido em: 19/12/2013
Aceito em: 12/8/2014

 

 

1 O autor se refere a um hino que em inglês inicia-se com estes versos: there is a green hill far away/ without a city wall/ Where our dear Lord was crucified? Who died to save us all.
2 O texto original foi traduzido pela autora com revisão de Márcia Bernard de Souza.
3 Aqui seria o melado, em inglês, golden sryup.

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