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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Hipocrisia e trauma: elaborações para uma metapsicologia da técnica em Ferenczi1

 

Hypocrisy and trauma: elaborations for a metapsychology of Ferenczi's technique

 

Hipocresía y trauma: contribuciones para una metapsicología de la técnica de Ferenczi

 

 

Maria Elisa Pessoa Labaki

Psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso de Psicossomática Psicanalítica do mesmo instituto, mestre em Psicologia Clínica PUC-SP, autora do livro Morte, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001. São Paulo. mpessoa@uol.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo coteja as abordagens sobre a técnica em Freud e Ferenczi, problematizando o conceito de trauma e a posição do analista diante do analisando. A autora lança a hipótese de que o método clínico baseado nas coordenadas da teoria do sexual recalcado desarticulou do enquadre o objeto, este outro da análise. Desarticulação que, por sua vez, operou (na França e seus satélites): um recalque dos elementos contratransferenciais e da presença viva do analista (seu corpo também); uma negação da dimensão relacional do processo analítico, que ficou circunscrito a uma experiência exclusiva da interioridade do paciente; e uma concepção de transferência reduzida à dimensão da repetição. Assim, o artigo mostra como Ferenczi recuperou a necessidade de se observar a presença do analista e sua contratransferência enquanto elementos instituintes do processo analítico comprometido em favorecer transferências mais indutoras de transformação que de repetição.

Palavras-chave: Ferenczi, Freud, trauma, repetição, transformação


ABSTRACT

This article compares Freud's and Ferenczi's approach to the technique, questioning the concept of trauma and the nature of the analyst's relationship with the patient. The author's hypothesis is that the clinical method based on the theory of repressed sexuality has disarticulated from the framing of the object. This disarticulation has caused in France and its satellites the repression of countertransferential elements and the live presence of the psychoanalyst (as well as his own body); a denial of the relational dimension of the analytic process, which was circumscribed to an exclusive experience of the patient's interiority; and a conception of transference reduced to the dimension of the repetition. The article shows how Ferenczi restored the need to observe the analyst's presence and his countertransference as constituting elements of the psychoanalytic process committed to favouring more transferences inducing transformations than repetitions.

Keywords: Ferenczi, Freud, trauma, repetition, transformation


RESUMEN

El presente artículo coteja los abordajes técnicos de Freud y Ferenczi, problematizando el concepto de trauma y la posición del analista frente al analizando. La autora trabaja con la hipótesis de que el método clínico fundado en las coordenadas de la teoría de la represión ha desarticulado del encuadre el objeto, ese otro del psicoanálisis. Esa desarticulación, por su vez, habría operado en Francia y sus satélites, la represión de los elementos contratransferenciales y de la presencia viva del analista (inclusive de su cuerpo); una negación de la dimensión relacional del proceso de análisis, quedando circunscrito a una experiencia exclusivamente interior del paciente; y una concepción de transferencia reducida a la dimensión de la repetición. El artículo muestra como Ferenczi comprometido en favorecer transferencias más inductoras de transformación que de repetición, recupera la necesidad de considerar la presencia del analista y su contratransferencia como elementos instituyentes del proceso analítico.

Palavras clave: Ferenczi, Freud, trauma, repetición, transformación


 

 

O campo psicanalítico não resiste em levantar infinitas indagações cujos encaminhamentos nunca soam completamente satisfatórios, tampouco definitivos. Marca de seu movimento, a clínica no contexto psicanalítico tem por dom a produção contínua de objetos do conhecimento - seus problemas de pesquisa - graças ao que se mantém vivo e pulsante. Basta notarmos quantas diferentes percepções e análises são possíveis em uma discussão clínica. Praticamente tantas quantas pessoas houver no grupo que discute. Essa diversidade, que não se esgota jamais, traduz a natureza única do conhecimento produzido em psicanálise e é também responsável pela importância que esse campo concede ao caso clínico.

Fruto de um inacabamento vitalício, seus achados resistem ao tempo. Não envelhecem como o primeiro telefone nem ficam obsoletos como os primeiros veículos. Tanto seus conceitos e pressupostos teóricos, frutos de sua metapsicologia, quanto interpretações de sentido que operam na clínica a partir da percepção dos fenômenos psíquicos não são apagados nem substituídos por formulações mais "novas e atuais", up to date, mas mantém sua aplicabilidade clínica e teórica ao lado de formulações mais recentes. Ainda que hipóteses teóricas e clínicas pareçam abandonadas, o são apenas provisoriamente para, em breve, serem retomadas de modo a se somarem, compondo um quadro multidimensional de saberes que não se anulam, mas se complementam. Em suma, teorizações mais antigas no tempo de sua origem coexistem às novidades do campo, dialogando com elas e mantendo sua atualidade.

Na teoria, temos vários exemplos para ilustrar essa concepção de diversidade na incompletude. Em relação ao aparelho psíquico, vários são os modelos propostos por Freud em momentos distintos da construção de suas teorizações: os iniciais do trabalho sobre "As afasias" e de "O projeto de uma psicologia científica"; o tópico/econômico de "A interpretação dos sonhos"; o estrutural de "O ego e o id". Assim como as duas teorias pulsionais - cada uma compondo uma dualidade: pulsão narcísica x pulsão objetal, pulsão de vida x pulsão de morte - revelam a potência da psicanálise em desdobrar suas concepções sem perder as anteriores, operando de acordo com o ponto de vista a partir do qual se pretende conhecer o objeto.

Nesse sentido, Joel Birman (1993) analisa o papel dos impasses do pro cesso psicanalítico, "sempre o aguilhão insistente que levava Freud a questionar a consistência da teoria psicanalítica, o que demandava a produção de rupturas conceituais significativas" (p. 13). Mas que, no entanto, não implicavam no descarte das teorizações e, sim, na visão de que o limite nela encontrado aponta para a necessidade de se produzir um salto no conhecimento, modificando os pressupostos teóricos que antes assentavam seus alicerces. Ou, nas palavras de Décio Gurfinkel (2001), em seu excelente ensaio "O infantil em Ferenczi e o problema da ingenuidade": "talvez em psicanálise não se trate de superar teorias, mas, sim, de ampliar continuamente o campo de investigação, enriquecendo-o com novas noções que equivalem a um ponto de vista diferente, um novo ângulo de observação sobre o objeto" (p. 70). Os caminhos do conhecimento em psicanálise se dão por rompimentos, aberturas e retomadas, compondo um plano descontínuo e inacabado, naturalmente receptivo a inflexões que alteram a estrutura de algumas concepções.

Assim, no intervalo entre paradas e retomadas, este artigo pretende levantar alguns problemas de natureza clínica e refletir sobre seus efeitos - renovação, ruptura, invenção - para a teoria e para a técnica. Especificamente, discutirá algumas implicações clínicas para a psicanálise contemporânea resultantes de impasses criados por situações de fracasso no tratamento analítico que, a despeito de não terem sido levadas adiante por Freud, encontraram ressonância em elaborações de outros autores. Entre eles, colocará no centro dessa polifonia Sándor Ferenczi, seu discípulo e colaborador, o mais freudiano de todos e um apaixonado pelo campo da técnica (Balint, 1967/1992).

Clínico original, com fina capacidade de observação, espírito livre e hipersensível ao outro, a obra de Ferenczi pôs à prova alguns princípios da psicanálise. Sua atitude interrogativa manteve acesa a chama que revitalizou alguns conceitos e noções deixados em segundo lugar por Freud. Entre eles, dois planos de inteligibilidade articulados, o da clínica e o do trauma, são por ele recuperados segundo um encaixe inovador. Retomou a eficácia traumatogênica do acontecimento real na etiologia da neurose, deixada de lado por Freud com a descoberta da sexualidade infantil e da formulação da gênese traumática da fantasia. Especificando: perturbações e conflitos reais com o mundo exterior, cuja natureza de choque e excesso dão impulso à criação de direções anormais do desenvolvimento (Ferenczi, 1992c/1930). E transferiu suas indagações para o setting analítico se perguntando em que medida o método clínico, tal como estruturado segundo as coordenadas técnicas vigentes na época, estaria no fundo repetindo, em vez de curar o paciente das marcas deixadas por suas experiências traumáticas infantis.

Da clínica inicial freudiana, comprometida com a decifração do inconsciente, às propostas técnicas dos anos 1910-1914, muitas foram as conquistas introduzidas e desenvolvidas com o conceito de transferência, mas Freud não prosseguiu com outras implicações decorrentes a partir daí; basta lembrarmos a ausência da contratransferência, apenas poucas vezes lembrada. Às teorizações da virada metapsicológica dos anos 1920 não sucederam releituras da técnica apropriadas à clínica dos estados não neuróticos, esboçados por ele em seus últimos trabalhos. Assim, Freud formulou e reformulou a metapsicologia e Ferenczi prosseguiu, propondo ampliações análogas no campo da clínica, particularmente quanto aos aspectos técnicos articulados às teorizações sobre o trauma.

Na esteira do imbricamento clínica/trauma, que se apresenta salpicado em muitos de seus últimos trabalhos, foi ele quem primeiro problematizou a necessidade de se considerar a qualidade da presença do analista e sua psicopatologia como elementos significantes na condução e manejo de processos analíticos, a ponto de poder, inclusive, determinar o destino destes. Nesse sentido, o Diário clínico (1990/1932) é uma demonstração emblemática de seu esforço em trabalhar os problemas e conflitos inerentes à posição de psicanalista: aspectos psíquicos que estão na raiz do desejo de ser analista, ao mesmo tempo que são oriundos exatamente do exercício dessa posição. Com rara sinceridade, nesse livro Ferenczi apresenta a histórica clínica de seus pacientes, mas também a sua, mostrando coragem e ousadia ao escancarar sentimentos, ideias, intuições e sensações difíceis de seguirem caminho até a consciência, quanto mais tornarem-se palavras (Judith Dupond, 1990/1985).

A partir de 1928, no tempo em que chegava perto do que seria o final de suas elaborações, quatro anos antes de falecer, ele é eloquente, em diversas passagens, sobre o valor traumático do método clínico aplicado sem técnica e sugere "cedo ou tarde a elaboração de uma higiene particular do analista" (Ferenczi, 1928/1992, p. 35), bem como a necessidade de a psicanálise delimitar um campo de pesquisa metapsicológica sobre a técnica articulado a uma metapsicologia dos processos psíquicos do analista.

Por seu pioneirismo nesse âmbito, alguns autores da atualidade concederam a Ferenczi o status "de verdadeiro fundador da psicanálise como técnica clínico-terapêutica" (Fédida, 1988, p. 99) ou o "coautor da psicanálise a partir de 1908" (O'Dwyer de Macedo, 2011, p. 37). No entanto, sabemos que no meio psicanalítico foi erigida uma grande resistência contra suas ideias. De um lado, isso se deve a maledicências do porta-voz da história "oficial" da biografia de Freud, Ernest Jones, que o manteve aprisionado à posição de eterno analisando deste. Ou "louco". De outro lado, divergências teóricas entre ele e Freud, mágoas e idealizações pessoais em sua relação com o mestre e analista colocaram-no em uma situação de isolamento.

Precisou se passar um tanto de tempo, quase meio século, para suas ideias saírem da penumbra e começarem a circular (Dupond, 1990/1985). Dos autores atuais de língua francesa, destacamos André Green, Pierre Fédida, Joyce McDougall, entre outros proeminentes que fizeram trabalhar proposições de Ferenczi. Entre os brasileiros, temos os cariocas Tereza Pinheiro, Chaim Samuel Katz, Octavio Souza, Daniel Kupermann, Heitor O'Dwyer de Macedo e outros; e em São Paulo, Luis Carlos Menezes, Luis Claudio Figueiredo, Renato Mezan, Décio Gurfinkel, Felícia Knobloch, entre outros que recuperaram Ferenczi em seus estudos e publicaram artigos e ensaios apresentando e comentando a obra desse enfant terrible da psicanálise.

Ainda que espaçado no tempo, há também sinais de uma clara filiação entre a maneira de Winnicott conceber e praticar a clínica com a de Ferenczi (Kupermann, 2008a). É conhecida, aliás, a "revelação" de Winnicott sobre Ferenczi de que este conduzia seus pacientes em análise quando isso se mostrava possível; caso contrário, fazia qualquer outra coisa. De fato, considerado hoje à frente de seu tempo, os escritos de Ferenczi parecem antecipar, em pelo menos 20 anos, uma série de problemas técnicos, especialmente impasses quanto ao papel e implicação do analista no processo analítico (Balint, 1958, citado por Haynal, 1995).

De minha parte, a obra de Ferenczi me surpreendeu por sua atualidade e sintonia com os problemas que nós, psicanalistas, temos debatido hoje em relação à clínica conduzida com pacientes não neuróticos: fronteiriços, psicossomáticos, adictos, melancólicos, perversos e outras organizações psíquicas complicadas. Espero conseguir demonstrar com este trabalho que algumas propostas de Ferenczi, relativas à clínica do trauma, estão na base da clínica psicanalítica contemporânea. Minha sensação é a de estar encontrando o futuro da psicanálise, 80 anos depois de cunhado por ele. E, se esta minha experiência de estudo puder não se intimidar diante da percepção de que me atrasei, ficará como saldo, além do aprendizado, a convicção de que consegui identificar um porto onde fundear as embarcações psicanalíticas do mundo contemporâneo: Ferenczi. E la nave va.

 

Freud cientista e o psicoterapeuta Ferenczi

Um dos aspectos que impulsionaram Ferenczi a inovar no campo da técnica resultou de sua abertura para receber em análise pacientes com grande sofrimento e muito desorganizados, que não tinham sido absorvidos por outros analistas ou que não conseguiram prosseguir com seus tratamentos anteriores. Era um analista muito comprometido com a vertente terapêutica da psicanálise, à medida que, acima de tudo, interessava a ele na clínica o ato de cuidar e curar. Tinha uma posição peculiar em relação à definição de analisabilidade porque, diferente de Freud2 e outros, considerava que todo aquele que viesse pedir ajuda devia ser escutado e receber atendimento, competindo ao analista inventar a melhor maneira de responder aos problemas que lhe eram apresentados. Desconfiava de que os eventuais fracassos fossem menos consequência da incurabilidade dos pacientes que da inabilidade do analista. A esse respeito, escreveu:

Fórmulas tais como: "a resistência do paciente é insuperável", ou "o narcisismo não permite aprofundar mais este caso", ou mesmo a resignação fatalista em face do chamado estancamento de um caso eram e continuam sendo para mim inadmissíveis. (1992d/1931, p. 71)

E continua:

A causa do fracasso será sempre a resistência do paciente? Não será antes o nosso próprio conforto que desdenha adaptar-se às particularidades da pessoa, no plano do método? (1992d/1931, p. 71)

No entanto, é fato que a obra de Ferenczi também se desenrola apoiada em experiências de caráter pessoal derivadas, entre outros, do sofrimento que vivenciou na posição de paciente e discípulo do mestre Freud. Como analisando, não se sentiu compreendido, nem escutado, em suas transferências negativas. Camufladas por uma idealização, deixaram restos não resolvidos, que lhe custaram no futuro uma dura autoanálise (Dupont, 1990/1985). Foi, por isto, implacável com Freud. Acusou-o de desprezar seus pacientes, exceder-se na aplicação da técnica da frustração, relacionar-se num tom professoral e autoritário demais, bem como sentir-se superior ao paciente. Criticava também o estilo excessivamente severo do interlocutor e colega Freud, responsável por criar efeitos de inibição no autor e analista Ferenczi. Mas o ponto crucial de seu julgamento destaca os efeitos danosos da ignorância do analista em relação àquilo que nomeou restos não resolvidos. Isto é, zonas de obscuridade do psiquismo do analista, cuja existência, se desconsiderada em sua potência significante, faz desencadear toda a sorte de atitudes alheias às exigências clínicas e éticas intrínsecas a essa posição: ódio subliminar, manifestações truculentas verbais e não verbais, estilos obturados e autoritários de escuta, desinteresse, interesse em demasia, insensibilidade e falta de tato.

Essa ideia encontra eco nas concepções defendidas por autores contemporâneos (Macedo, 2011; Fédida, 1988) de que teorizamos a partir dos fracassos de nossas análises. Isto é, de que os restos não analisados ressurgem nas formulações teóricas de hipóteses e problemas colocados pela experiência clínica. Assim, Macedo (2011) escreve:

Freud pedia a Fliess para ocupar o lugar do pai. Como ele era incapaz disso, Freud teorizou a importância desse lugar na vida de um sujeito. ... Ferenczi pedia para Freud ser a mãe que ele não tinha tido. Para Freud isso era duplamente difícil: primeiro porque, tendo a sua sido uma boa mãe, era-lhe custoso imaginar que uma mãe pudesse ser destrutiva, depois porque, pela sua experiência, quem engendra o sujeito é antes o pai. Por esse fracasso na sua relação com Freud, será Ferenczi quem primeiro teorizará a importância da mãe-ambiente na gênese da criança e do sujeito e que aceitará este lugar na transferência. (p. 42)

É interessante perceber que a dificuldade de Freud foi danosa para a análise de Ferenczi, mas muito proveitosa para a teoria de ambos.

Por outro lado, tendo em vista a insuficiência das análises curtas e temporárias, pelas quais eram submetidos os analistas nos primórdios da psicanálise, Ferenczi leva às últimas consequências a afirmação de Freud (1976a/1910) de que "nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas" (p. 130). Redefine, assim, o cumprimento da segunda regra fundamental, a análise do analista, pois "quem quer analisar os outros deve, em primeiro lugar, ser ele próprio analisado" (Ferenczi, 1992b/1928, p. 26). E, dentro disto, lamentava por Freud não ter tido a chance nem de uma análise curta, tendo que se conformar com uma autoanálise que não permitiu a ele superar sua cegueira quanto à avaliação dos efeitos de seus restos não resolvidos da análise de transferência (Fédida, 1988). Aliás, a esse respeito, formula um primeiro paradoxo, segundo o qual alguns pacientes serão mais bem analisados do que os analistas, chegando a afirmar, talvez com certa ironia, que o melhor analista é aquele paciente curado (Ferenczi, 1928/1992).

De fato, Freud não se interessava pela vertente propriamente terapêutica da psicanálise. Tampouco questões sobre a técnica orientavam suas buscas investigativas, a não ser à medida que tivessem valor de método posto a serviço das descobertas teóricas sobre o psiquismo humano (Fédida, 1988). Utilizava o setting analítico como uma espécie de tubo de ensaio em que testava suas hipóteses. E não é estranho que assim se passasse, afinal tinha o modelo científico como norteador de sua postura ética e clínica, não desejando cavar para a psicanálise um lugar entre os saberes que não fosse reconhecidamente o da ciência. Assim, conformado com os seus limites, escrevia nas "Novas conferências": "Talvez saibam que eu jamais fui um entusiasta da terapia; não há perigo de eu fazer um mau uso desta conferência, entoando louvores. Prefiro ser lacônico a me exceder" (Freud, 1933/2010, p. 314).

Com efeito, as divergências entre Freud e Ferenczi, no que tange aos aspectos técnicos da terapêutica psicanalítica, bem como a seus objetivos, foram aumentando. Haynal (1995) sugere que a prática clínica de Ferenczi, cada vez mais voltada ao atendimento de pacientes regredidos, afetava Freud, que, com embaraço, relembrava as primeiras experiências de descontrole pela regressão da época breueriana com Anna O., bem como a relação apaixonada e enlouquecida vivida entre Jung e S. Spielrein e entre o próprio Ferenczi e Elma. De fato, seus limites pessoais também influenciavam sua técnica e estilo. Suportava mal as irrupções violentas dos afetos de pacientes desequilibrados, manifestações de hostilidade, bem como as regressões que transbordavam via sexualidade e psicose. Tudo isto parecia ameaçar o laboratório idealizado por ele - e parecia ameaçá-lo também. Mas a resignação de Freud aos seus limites já se mostrava bem antes em sua obra. Nas primeiras linhas das recomendações aos jovens médicos, escreve: "devo enfatizar que esta técnica revelou-se a única adequada para minha individualidade. Não me atrevo a contestar que uma personalidade médica de outra constituição seja levada a preferir uma outra atitude ante os pacientes e a tarefa a ser cumprida" (1910/1912b, p. 148).

 

A sexualidade infantil e algumas consequências para o laboratório de Freud

À parte as tendências psíquicas de Freud, que devem ter tido mesmo ascendência sobre suas escolhas técnicas, importa-nos perseguir a hipótese de Fédida (1988), para quem a técnica elaborada por Freud é um método de investigação derivado de suas hipóteses sobre o funcionamento psíquico e aperfeiçoado nas psicoterapias das neuroses, esperando com isto saber em que medida suas aplicações comprovavam ou enriqueciam a ciência psicanalítica. Em outras palavras, as questões da técnica funcionavam para Freud como apêndices metodológicos em busca da demonstração de suas descobertas teóricas. Neste sentido, sugerimos que a descoberta da sexualidade infantil, bem como o domínio central que as teorizações em torno do tema tiveram para a psicanálise como um todo, foi responsável pela criação de parâmetros do enquadre analítico que acabaram por dissociar no setting o analista do paciente, os pensamentos dos afetos, o método da observação e a experiência do processo. Era preciso comprovar que o sofrimento do paciente resultava da ação de suas fantasias e conflitos relacionados com sua sexualidade recalcada. Ainda que o conceito de transferência tenha representado uma tentativa de restabelecer definitivamente a afetividade na relação analista-paciente, negligenciada desde o abandono da hipnose catártica, sua inclusão no âmbito dos mecanismos de tipo projetivo acabou por limitar seu manejo a uma clínica da repetição. Assim, vejamos.

A substituição do método catártico na hipnose3 pelo da associação livre enfraqueceu a "relação intensamente emocional" (Ferenczi, 1992c/1930, p. 55) entre analista e paciente. No lugar do analista que dirigia a cena histérica4 surge um investigador curioso a respeito do inconsciente sexual, que lá pesquisa as causas da neurose, e um hermeneuta sóbrio, que interpreta os sentidos subjacentes ao encadeamento do discurso do paciente, decifrando nesses seus desejos conflituosos e fantasias. O setting, agora mediado pela palavra do paciente e pelo silêncio do analista, traz a marca da austeridade e do controle. E, no lugar da sugestão, a interpretação se torna o dispositivo analítico principal para revelar no material associado as censuras e os disfarces contrabandeados pelas resistências que mantêm o recalcamento.

Se, portanto, do lado do paciente a associação livre se mostrou vantajosa em relação à hipnose catártica, porque permitiu a ele saber sem se esquecer as causas envolvidas em seus sintomas e sofrimento, do lado do analista a interpretação como ferramenta o posicionou no setting a um ponto tal de distância do paciente que prejudicou sua capacidade de apreender o que via e ouvia no plano da sensibilidade, assim como reconhecer-se uma presença viva implicada no processo analítico. O afeto ejetado - diria Joyce Mc Dougall - converteu o processo analítico "numa espécie infinita de associações, um processo essencialmente intelectual" (Ferenczi, 1992c/1930, p. 35), forjando uma dissimetria que, em nossas palavras, instaura uma relação de exterioridade do analista à cena à qual pertence. Ora, nossa hipótese supõe haver semelhanças entre a posição concedida ao analista na cena clínica da associação livre e a do sedutor na cena da segunda teoria do trauma infantil. Em alguma medida, a participação, inegável, de ambos foi cortada do drama em favor da supremacia do mundo interno da psicossexualidade pulsional.

Todos sabem à exaustão que a consolidação das descobertas de Freud sobre a sexualidade infantil provocou uma inversão na perspectiva da gênese do trauma, da figura do sedutor, para a força das pulsões. Se nos inícios o trauma resultava da sedução da criança por um adulto, com a nova teorização sobre a sexualidade infantil os aspectos internos tomaram lugar dos externos na etiologia da histeria. Tratou-se, pois, de privilegiar a precedência do regime pulsional sobre as influências das experiências,5 daí derivando a perspectiva que concebe na origem do trauma infantil a violência interna de um corpo pulsional. Para Freud, portanto, diante dos aguilhões do sexual pulsional, o adulto sedutor de outrora cai em desuso, perdendo relevância clínica.

 

Ponderações metodológicas

Por outro lado, é preciso também ponderar algumas conclusões, porque a ênfase em determinado recorte na teoria, iluminando apenas um lado, pode, por contrataste, criar uma dicotomia cega, que ora privilegia o interno, ora o externo, ou o sexual pulsional no lugar da experiência. Todo cuidado é pouco, e devemos ter cautela antes de concluir. De fato, em trabalhos posteriores, a despeito de ter mantido a precedência da sexualidade infantil na etiologia das neuroses, Freud (1976b/1916-1917) não recusou6 a coparticipação de fatores exógenos na etiologia da histeria. É fundamental a lembrança de Gurfinkel (2001) de que ele teria combatido uma simplificação implícita à oposição endógeno-exógeno, ou externo-interno, ao manter a importância da complexidade implicada no modelo da sobredeterminação. A equação implicada na proposta das séries complementares aponta para um arranjo entre os dois componentes, do qual depende o destino da psicopatologia de cada um. Em suas palavras: "A importância das experiências infantis não deve ser totalmente negligenciada, como as pessoas preferem ... Elas determinam as mais importantes consequências, porque ocorrem numa época de desenvolvimento incompleto e, por essa mesma razão, são capazes de ter efeitos traumáticos" (Freud, 1976b/1916-1917, p. 422). E, nesse mesmo artigo, lança os gérmens que embasam as teorias contemporâneas sobre a importância da precocidade do trauma, ao assemelhar os efeitos patógenos da situação traumática infantil aos graves distúrbios de desenvolvimento de um embrião quando picado por uma agulha em uma camada germinal, no ato de sua divisão celular.

De fato, é necessário lembrar que o próprio Freud destacou o caráter traumático e a origem exógena do outro, nos textos pós-1920. Outro que surge como intérprete da realidade interior da criança e responde, nos processos constitutivos, pela passagem da força pulsional para a dimensão da representação e do corpo. Com efeito, em "Além do princípio de prazer" Freud identifica o caráter traumático da separação do outro (mãe) por uma tentativa de elaboração (da criança) através do ato de repetir compulsivamente a experiência desagradável (Fort-Da). Em "Inibição, sintoma e angústia", a privação da presença materna vai instaurar no bebê a dor (e não a angústia), por sua vez responsável pelas primeiras percepções da existência de um corpo. Nos artigos sobre sexualidade feminina, a presença materna que cuida e higieniza vai, com sua atividade, propagar o Eros no infante, erogenizar seu corpo.

Observa-se que das posições iniciais parcializadas - estabelecidas com a teoria que fez primeiro prevalecer o fator externo da sedução e depois a hegemonia do sexual pulsional - às últimas mais sintéticas (nas quais Freud torna explícita uma profunda articulação do interno com o externo, ou da pulsão a seus objetos), dá-se um salto de qualidade que, a despeito de não ter produzido correlatos no método analítico de Freud, impulsionou Ferenczi a criar novas teorizações. No que tange a suas formulações técnicas, Ferenczi foi quem primeiro recuperou a necessidade de se observar a presença do analista e sua contratransferência como elementos instituintes do processo analítico, sendo esta inclusive uma postura ética e técnica compartilhada por muitos autores da psicanálise atual e de correntes de pensamento derivadas, como a psicossomática psicanalítica.

Nossa hipótese é a de que o método clínico psicanalítico baseado nas coordenadas da teoria do sexual recalcado desarticulou do enquadre o objeto, este outro da análise. Por sua vez, essa desarticulação consolidou um pensamento preponderante (principalmente na França e seus satélites) que operou:7 um recalque dos elementos contratransferenciais e da presença viva do analista (seu corpo também); uma consequente negação da dimensão relacional do processo analítico, que ficou circunscrito a uma experiência exclusiva da interioridade do paciente; e uma concepção de transferência reduzida à dimensão da repetição.

A seguir, esboçaremos uma introdução à contribuição de Ferenczi para uma clínica integrada e comprometida com uma concepção de transferência, potencialmente mais indutora de transformação que de repetição.

 

Enquadre traumático e repetição do analista

Na origem das perspectivas técnicas de Freud e Ferenczi está também uma concepção distinta de trauma. Sem negar a força das pulsões, Ferenczi (1992c/1930) conclui que as razões do traumatismo deviam-se menos à sensibilidade constitucional do que a tratamentos inadequados, cruéis mesmo, do ambiente. Define, assim, a estrutura bifásica do trauma: uma primeira fase em que a criança sofre uma hiper ou hipoestimulação pelo ambiente; seguida, em sua busca por reparação, de uma experiência de desmentido ou desqualificação pelo adulto a quem ela recorre. Trocando em miúdos: sedução erótica, constrangimento ou agressão por parte de um adulto, realmente forte e autoritário, de quem a criança evidentemente depende para viver e por quem se sente abandonada à solidão da incompreensão.

Ferenczi (1992c/1930) percebia que processos analíticos entendidos como método de investigação e pesquisa aplicado ao tratamento e baseado na separação sujeito/objeto não traziam benefícios reais ao paciente. Até o contrário, análises estabelecidas sobre tais bases pareciam alimentar um paradoxo perverso, pois corriam o risco de repetir as violências traumáticas com o paciente em vez de curá-los das sequelas. Ponderava que a regra de abstinência, promovida pelo silêncio e reserva do analista para quebrar as resistências e permitir o fluxo associativo, era frequentemente aplicada em excesso, impelindo o paciente a reviver sem motivo experiências semelhantes àquelas que na infância o fizeram adoecer e se estagnar. Da mesma forma, a técnica da frustração, que impunha ao analista a medida da não resposta às necessidades do paciente, não lograva êxito em colocá-lo frente a frente com as causas de seu sofrimento, pois o mantinha quase sempre encurralado em um beco da transferência, sem resposta ou saída, impotente quanto a reencontrar o caminho almejado de retorno do investimento em si e na realidade que cerca sua vida. Desconfiava da centralidade da interpretação enquanto ferramenta de acesso ao inconsciente e não o agradava o tom professoral de Freud. Preocupava-o que análises conduzidas nesses termos submetessem os pacientes a cotas de sofrimento mais intensas do que o necessário para o processo, e via nisto um contrassenso da psicanálise, iatrogenia em escala expressiva. Em uma de suas deliciosas imagens, entre tantas que nos fazem rir como criança, escrevia: "o fanatismo da interpretação é uma das doenças de infância do analista" (Ferenczi, 1992b/1928, p. 33). Infância do analista, infância da psicanálise? Seja lá de que infância for, suscetível às fragilidades e inconsistências da imaturidade, como tudo in statu nascendi é.

Sua experiência com alguns pacientes, cujos processos analíticos conduzidos nesses termos fracassaram (Ferenczi, 1992a/1926), o levou à conclusão de que a aplicação rígida dessas normas instituía um nível de tensão8 tão grande que, em vez de levar o paciente a trabalhar suas associações, criava um fosso entre ele e o analista que reproduzia experiências traumáticas da infância, como o isolamento, o abandono e a submissão. Conclusão: o processo analítico, conduzido para ajudar o paciente a conhecer as razões de sua neurose e superá-la, tornava-se, paradoxalmente, uma situação de reforço de impotência e paralisação, no contexto de transferências negativas. Desse impasse decorreram as propostas de Ferenczi no campo da técnica.

Afirmava que as queixas, reações e comentários dos pacientes sobre suas atitudes, gestos, silêncios e interpretações - como, por exemplo, a de que parecia estar emocionalmente morto já que não mostrava compartilhar do sofrimento deles - remontavam a traumas infantis profundos. De fato, sua observação tenaz e sensibilidade fina lhe permitiam verificar analiticamente que "o paciente vê a reserva severa e fria do analista como a continuação da luta infantil contra a autoridade dos adultos e (que) repete agora as reações caracteriais e sintomáticas que estiveram na base de sua neurose propriamente dita" (Ferenczi, 1992c/1930, p. 61). Isto é: a repetição de uma situação infantil de submissão da criança ao adulto de quem depende. A esse respeito, afirma que o paciente esconde percepções e sentimentos sobre o analista, temendo que sua confissão leve o analista a se magoar com ele. Daí, define a hipocrisia profissional como atitude que, revestida de aparente amabilidade, priva o paciente do que ele mais precisa: presença real. Enquanto este sofre e se debate em dor, "estamos lá tranquilos fumando nosso charutinho, entediados, às vezes fazemos uma observação convencional, às vezes cochilamos... e nos esforçamos para nos mostrarmos amáveis e compassivos" (Ferenczi, 1992/1932, p. 224). Escreve ainda: "a hipocrisia é a consequência da covardia daqueles que dão o tom" (p. 191), querendo dizer que o analista não só se aproveita da dissimetria entre as posições para se proteger como estabelece uma ordem de poder com ela. Enfim, suas reflexões agudas foram como facas amoladas que talharam novas fronteiras técnicas na psicanálise.

Aqui é preciso retomar o conceito de repetição e transferência. É notório o lugar privilegiado da repetição transferencial no processo analítico. Freud a considerava um mecanismo intrínseco à neurose que institui uma espécie de estado transitório muitas vezes inevitável entre o recalque e a rememoração. Se todos se lembram, ele é categórico ao afirmar que nada especialmente particular no processo analítico é responsável pelo desencadeamento das transferências, sendo elas apropriadas a toda e qualquer situação. Cito-o:

Não é correto que durante a psicanálise a transferência surja de modo mais intenso e desenfreado que fora dela. ... Essas características da transferência não devem, portanto, ser lançadas à conta da psicanálise, mas atribuídas à neurose mesma" (Freud, 2010a/1912, pp. 137-38)

Forjada artificialmente pelo processo analítico, através da figura da neurose de transferência, a repetição corresponde àquela parte do recalque impedida de ser posta em palavras, dada a resistência que se exacerba quando o trabalho se aproxima de um conteúdo conflituoso. Repete-se, portanto, em vez de lembrar; atua-se em vez de falar. E, como "não se pode vencer um inimigo ausente ou fora de alcance" (Freud, 2010c/1914, p. 199), tornou-se padrão no tratamento analítico entender a repetição nas transferências negativas como um "mal" necessário, e sua dissolução, o objetivo a ser alcançado pelo método clínico através da interpretação de seus sentidos.

Ferenczi, por outro lado, não compunha com a ideia de que a transferência negativa fosse um aspecto inevitável na análise, tampouco com a concepção que reporta suas raízes somente à neurose e a suas resistências. Imbuído da benevolência que lhe era peculiar, mas, acima de tudo, tomado pelas novidades que via despontar na clínica, a partir das articulações que sua teoria do trauma fazia com a metapsicologia pós-virada dos anos 1920, desconfiava que a tal neurose artificial, que de artificial nada parecia conter a seus olhos, era, na verdade, a manifestação mais clara e viva da demoníaca compulsão à repetição se fazendo presente pelas mãos da técnica. Repetição que ali não traduzia o efeito neurótico da resistência ao retorno do recalcado, mas, sim, a compulsão do vazio da inscrição psíquica aberta com a violência traumática. Entendia, pois, que ali assistíamos ao enquadre analítico gerando novas versões do trauma.

Ora, como proceder diante da conclusão de que as próprias coordenadas do setting, nos termos propostos, eram responsáveis por desencadear em seu playground transferencial a repetição de traumatismos infantis em seu formato mais primitivo, o da compulsão à repetição? Intimamente, Ferenczi sabia que repetir não é reviver. Porque na repetição está fora algo do mental e do atual que é acrescido na revivescência. Renascer, reviver, adquirir novo vigor são palavras que não pertencem à experiência da reprodução na repetição. Em uma imagem metalinguística, não seria um erro afirmarmos que, se repetir é filho natural da compulsão, reviver é obra da pulsão.

Vexado com o que considerava ser uma contradição interna a tal orientação metodológica, Ferenczi se dedicou a apurar como o analista deve alterar sua técnica e, assim, levar seu paciente a alcançar a boa espécie e a boa quantidade de amor de transferência que o permita alcançar a adaptação necessária no decorrer do tratamento (Balint, 1992/1967), sem se perder em transferências negativas e, ainda, economizando sofrimentos desnecessários, frutos do passado traumático. Propõe para isso outra medida de proximidade analista-paciente que não negue as diferenças estruturais entre as posições, mas permita converter a autoridade opaca do analista em disponibilidade para o afeto, forjando, no método que associou ao tato, o tatear, uma profunda integração da observação com a experiência de escuta e atenção flutuante.

Ao analista, propôs trocar a severidade rígida e o amor aparente pela sinceridade que refletisse uma elasticidade capaz de adaptar a técnica às necessidades singulares da criança em cada paciente. Intuía que a transparência do analista a seus afetos permitiria ao processo conduzir-se pelos caminhos da transferência positiva baseada na confiança para, enfim, desembocar numa forma de encontro com o sensível.9 A confiança, diz ele, é "aquele algo que estabelece o contraste entre o presente e um passado insuportável e traumatogênico" (1992/e1933, p. 100), sendo o espaço analítico ideal aquele que permite ao paciente experienciar não somente repetições das causas de sua neurose, mas também, e sobretudo, discrepâncias entre seu passado traumático e o presente acalentador. Isso, esse fragmento que a confiança aporta como diferença, é o que levaria o profissional da psicanálise a sair do lugar de suporte da transferência para alcançar o de analista que suporta, permitindo ao paciente um novo começo.

No embalo de reflexões como estas, Ferenczi funda um pensamento que reconhece no engajamento recíproco de aspectos transferenciais, contratransferenciais e técnicos uma particularidade inextrincável da vocação transformadora e, portanto, terapêutica da psicanálise.

 

Referências

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Recebido em: 09/7/2014
Aceito em: 12/8/2014

 

 

1 Este artigo é uma versão desenvolvida a partir do trabalho "A reserva interior do analista e a atualidade de Ferenczi" apresentado no V Simpósio de Psicossomática Psicanalítica, "Integração, desintegração e limites", organizado pelo curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, junho de 2013, São Paulo.
2 Assim escrevia Freud (2010d/1933): "A outra limitação dos êxitos analíticos é dada pela forma da doença. Vocês sabem que o terreno de aplicação da terapia analítica são as neuroses de transferência, fobias, histeria, neuroses obsessivas, e também anormalidades do caráter desenvolvidas no lugar de tais doenças. Tudo que é diferente disso, estados narcísicos, psicóticos, é inapropriado em maior ou menor grau" (p. 319).
3 Para esta discussão, remeto o leitor ao interessante e esclarecedor ensaio "Por uma outra sensibilidade clínica: fale com ela, doutor!", de Kupermann (2008b), referencial para o presente artigo, em que o autor propõe um percurso através da história da constituição da experiência psicanalítica. Entre outros assinalamentos, os três tempos desse percurso diferenciam os destinos do afeto no espaço analítico e na relação analítica.
4 Imagem forjada pelo autor e que tomo de empréstimo dada sua exatidão estética (Kupermann, 2008b).
5 É preciso lembrar com Gurfinkel (2001) que o fato de Freud ter aberto mão de sua Neurótica, redirecionando a ênfase das determinações da neurose, do valor do trauma aos fatores constitucionais, "implicou em um salto de qualidade com a interpolação da noção de fantasia entre o evento traumático e o sintoma" (p. 70).
6 Nas últimas linhas da longa nota 1 em "Dinâmica da transferência" (1914) Freud escreve que "pode-se ousar ver a constituição mesma como o precipitado das influências acidentais sobre a infinita série dos antepassados" (p. 134), demonstrando a complexidade mesma da questão.
7 Embora a pretendida assepsia e neutralidade fosse central na França - sabemos que à revelia dos pós lacanianos como Green, Laplanche, Le Guen, McDougall e outros -, na Inglaterra o destaque às sensações e sentimentos entre analista e analisando era a tônica em Melanie Klein e seu grupo, Winnicott e Bion.
8 Intitulada técnica ativa, Ferenczi (1992a/1926) acabou por abandoná-la. Cf. "Contraindicações à técnica ativa".
9 Ao leitor interessado indico o belo ensaio de Daniel Kupermann (2008a), "Resistência no encontro afetivo: sublimação e criação na experiência clínica", referência para o presente artigo, em que ele discute profundamente a temática do sensível em Ferenczi.

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