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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

O pensamento clínico e o analista contemporâneo1

 

Clinical thought and the contemporary analyst

 

El pensamiento clínco y el analista contemporáneo

 

 

Bernardo Tanis

Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, e docente do Instituto Durval Marcondes da SBPSP. Editor da Revista Brasileira de Psicanálise desde 2010. São Paulo. tanis@uol.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho parte da constatação no campo da nossa disciplina da existência de um hiato entre a clínica e a teoria. Procura caracterizar a ideia de pensamento clínico inspirado na obra de André Green e outros autores, como uma singular racionalidade, e trata de criar pontes entre a experiência vivida na clínica e certos parâmetros norteadores da teoria (ou teorizações ad hoc) que não tornem a experiência uma mera aplicação técnica, mas que em contrapartida não desabem numa idealização da espontaneidade irrefletida e/ou atuada. A fecundidade da noção de pensamento clínico nos casos limite será explicitada a partir de um relato clínico no qual podem ser investigadas e reconhecidas noções como enquadre, trauma, limite da representação, indiscriminação afeto-representação e traumatismo narcísico-identitário.

Palavras-chave: pensamento clínico, enquadre, limite da representação, afeto, trauma narcísico-identitário


ABSTRACT

this work emerges from the realization in our discipline's field of the existence of a hiatus between the clinical and the theoretical. An attempt is made to characterise the idea of the clinical thought inspired by the work of André Green and other authors, as a binding thought between both. It is about creating bridges between the lived experience in the clinical and certain guiding parameters of the theoretical (or ad hoc theorizations) which do not turn an experience a mere technical application, but which on the other hand will not collapse in an idealization of the unthinking and/or acted idealization. The fertility of the notion of clinical thought in limit cases will be made explicit from a clinical account where notions such as framing, trauma, representation limit, affection-representation indiscrimination and narcissistic-identity trauma can be investigated and recognized.

Keywords: clinical thought, framing, representation limit, affection, narcissistic-identity trauma


RESUMEN

Este trabajo parte de la constatación, en el ámbito de nuestra discipl ina, de la existencia de una brecha entre la clínica y la teoría. El autor intenta caracterizar la idea de pensamiento clínico inspirado en la obra de André Green y otros autores, como un pensamiento de enlace (una singular racionalidad) entre ambas. La idea gira en torno de construir puentes entre la experiencia vivida en la clínica y ciertos parámetros rectores y algunas teorías (o teorías ad hoc) que no hacen de la experiencia una mera aplicación técnica, pero que tampoco acaban en la idealización de una espontaneidad irreflexiva o una actuación. La fecundidad de la noción de pensamiento clínico en los casos limite (borderline) se pondrá de relieve en un breve informe clínico del cual emanan y pueden ser investigados conceptos como encuadre; trauma; límite de la representación; no discriminación afecto-representación y trauma narcisista-identitario.

Palabras clave: pensamiento clínico, encuadre, límite de la representación, afecto, trauma narcisista-identitario


 

 

Seria um risco, para não dizer um erro, considerar que a clínica é somente uma prática, mesmo que a aproximemos da arte ou do artesanato. Alguns analistas, perante a distância e as diferenças entre clínica e teoria, muitas vezes optam por certa idealização da primeira e certo desprezo pela segunda. As relações entre clínica e teoria são complexas. Jovens terapeutas, e outros não tão jovens, em face das angústias que desperta um campo clínico, mantêm uma relação ambivalente com a teoria: às vezes, idealizam-na - querem reconhecer rapidamente nos seus pacientes aquilo que estão aprendendo nas suas leituras; outras vezes, mobilizados pela dor e sofrimento psíquico dos seus analisandos, descartam qualquer teoria, como se isto os distanciasse da vontade de auxiliar na dor e no sofrimento.

O difícil é se aproximar de um pensamento clínico - que tentaremos caracterizar neste trabalho - que possa criar pontes entre a experiência vivida na clínica e certos parâmetros norteadores que não coisifiquem a experiência, que não a tornem uma mera aplicação técnica, mas que também não caiam numa espontaneidade irrefletida e atuada.

Às vezes, como resposta a determinados momentos em que, em nome da teoria, certos excessos e distanciamento da experiência ocorrem como abusos interpretativos, "tradução simultânea" ou cegueira e rigidez perante o novo que não se encaixa no saber mais ou menos constituído, assistimos nos dias de hoje a movimentos que privilegiam uma espécie de intuição sem pensamento, e isto não apenas em uma ou outra escola de pensamento: vemos esses excessos em analistas inspirados em Bion, Winnicott, Lacan ou outros - embora, claro, de formas diferentes -, em um gradiente que vai de respostas identificatórias ao sofrimento e à dor do outro e que pode chegar a uma folie à deux ou atos analíticos, mais próximos da atuação que do corte.

Mesmo que todos os analistas possam conscientemente se referir, em maior ou menor grau, a seus modelos teóricos inspiradores, desde os anos 1980 (Sandler, 1983) tem se evidenciado e incrementado a discussão em torno da distinção entre "a face privada" da teoria do analista (teoria implícita) e a "face pública", sendo que a primeira obedece a um sistema de identificações inconscientes, restos de análise, supervisões, ideologia do analista etc. Soma-se, então, à pluralidade de modelos teóricos, um outro conjunto de variáveis que aumenta a dispersão dos modelos e das referências com os quais operamos. Sofre-se ainda mais com a questão: "Qual teoria?". Será Freud? Klein? Lacan? Winnicott? Alguma salada bem temperada, recolhendo (mas com quais critérios?) alguma coisa de cada um?

Os grupos de trabalho2 (conhecidos como working parties) que tiveram origem na Federação Europeia de Psicanálise surgiram como uma tentativa interessante para auferir essa relação entre clínica e pensamento clínico.

Talvez a fonte dessa problemática resida no hiato, no campo da nossa disciplina, entre a clínica e a teoria, um hiato que já Bleger (2003/1969) reconhecia como tensão entre a dimensão dramática, vivencial, da experiência analítica em contraposição à dimensão racional inerente à teorização.3 Essa brecha ou tensão dialética entre experiência e teorização pode, então, ser forçada até tornar-se um abismo intransponível e cair numa apologia da experiência intuitiva. Vários modelos interessantes de que dispomos talvez careçam de uma elaboração mais acurada do que poderíamos chamar, com Green (2010a/2002), de pensamento clínico: "um modo original e específico de racionalidade surgido da clínica" (p. 12).

Novas modalidades de subjetivação, prazer e sofrimento. Novas abordagens epistemológicas. O analista está em busca de equilíbrio a partir do desequilíbrio. Entre a paixão e o medo. Apego ao conhecido vs. coragem e ousadia de enfrentar o novo. São novas as maneiras de viver e de padecer daqueles que chegam até nós e propõem novas demandas. Como psicanalistas, de que modo respondemos a essas solicitações?

As situações atuais de excesso, fragmentação e paradoxos vinculares, entre outras da chamada condição pós-moderna, guardam correlação com a predominância do ato-sintoma e não favorecem a capacidade de simbolização e a função onírica.4 Vários autores sustentam essa hipótese.

Nesse contexto, ficaria cada vez mais difícil - como nos mostram as configurações não neuróticas: borderline, bulimias e anorexias, adições, patologias do vazio etc. - construir um ideal de ego e um projeto identificatório.

Ainda mais, o aprofundamento em torno da dimensão constitutiva da subjetividade a partir do binômio intrapsíquico-intersubjetivo tem como corolário novos lugares e funções para o analista e nos indaga sobre os fundamentos das transformações no nosso fazer clínico cotidiano.

As configurações não neuróticas, caracterizadas pela indiscriminação afeto-representação (Green, 2010b/2002) e por traumatismos narcísico-identitários (Roussillon, 1998), geraram novos desafios para a clínica psicanalítica nas últimas décadas, tornando-se um dos eixos centrais para a reflexão acerca do pensamento clínico contemporâneo.

Esse cenário clínico torna indispensável retornar com força renovada ao estudo do narcisismo, retornar à constituição do Eu e às relações intrínsecas com o dualismo pulsional de vida e morte, mantendo uma atenção redobrada à natureza masoquista imbricada no Eu ideal que neutraliza a força de Eros.

Nesse contexto, quais as condições de escuta que oferecemos e nos outorgamos? E de que modo elas permitem ou não uma adequação para determinadas configurações subjetivas?

Coloca-se a importância de uma reflexão teórico-clínica em torno do enquadre, como já fora proposto por Bleger (1967) há décadas e retomado por analistas como Winnicott e Lacan, mais recentemente por Green e, com bastante abrangência, por Roussillon (1995/2012), entre outros - reflexão esta que contempla também o enquadre interno do analista, suas possibilidades e limites.

Obviamente meu intuito é convidá-los ao diálogo e intercâmbio de ideias, sem nenhuma pretensão de apresentar respostas prontas, mas, sim, de encarar com entusiasmo a indagação e as ricas contribuições de alguns analistas que apontam na direção do pensamento clínico atual, de quem é e como trabalha o psicanalista na atualidade.

Antes de avançar rumo à clínica, acho oportuno sinalizar algumas características contextuais da passagem do moderno para o contemporâneo, mantendo no horizonte epistemológico a paradoxal tese de Agamben (2003) sobre a opacidade em relação ao tempo presente, o que garante nossa perplexidade e, ao mesmo tempo, nossa pertença ao atual.

 

Passagem do moderno para o contemporâneo

A eclosão da Primeira Guerra Mundial foi um marco histórico para as grandes transformações que tiveram lugar no século XX. Assinala o colapso da civilização ocidental tal como estava estruturada até o século XIX - uma burguesia exultante com os avanços da ciência e do conhecimento, com o progresso material e moral e com o eurocentrismo. Inicia-se uma escalada de crueldade e violência,5 uma marca da crescente brutalidade que caracterizaria o século XX (Hobsbawm, 1995).

Podemos pensar que aquilo que seriam as possíveis "regras" de uma guerra foram quebradas nesse conflito. O setting das guerras mudou e atingiu as cidades, chegando aos civis. O enquadre estava perdido. Após a i e a II Guerras, após o Holocausto, a maneira de viver e pensar o mundo e a si mesmo não poderia mais ser a mesma.

Freud conceitua a pulsão de morte (1984a/1920), assim como drásticos mecanismos defensivos: a desmentida (Verleugnung) e a recusa (Verwerfung). O Id já não possui as mesmas características representacionais do inconsciente reprimido; transforma-se em lugar pulsional por excelência. O Eu, as identificações e as instâncias ideais tornam-se muito mais complexos investidos na dialética pulsional. O olhar do psicanalista e sua percepção do analisando necessariamente mudam. Essas descobertas de Freud se constituem em um legado para o psicanalista contemporâneo.

a) Modernidade

Como introdução, eu os convido a colocar, como operador interpretante, a ideia de passagens6 - entre o moderno e o contemporâneo. Sempre me seduziu a ideia de passagem, fronteira, limites; penso que as angústias e desafios nos períodos e regiões de transição evidenciam com maior nitidez as diferenças. Isto porque a psicanálise pode ser entendida, em sua primeira investida, como porta-voz original do movimento modernista - porta-voz que, mesmo sem desacreditar o projeto emancipatório da modernidade, coloca em evidência suas fraturas e impasses. Seguem algumas teses que sintetizam parte dos argumentos sobre a relação da psicanálise com a modernidade expostos por Birman (2012), um dos autores que, no Brasil, mais se dedicaram ao estudo do tema.

1. A problemática do descentramento do sujeito foi formulada de maneira sistemática no discurso freudiano desde A interpretação dos sonhos (1979/1900). O que estava em pauta, na tese do descentramento, era o enunciado da existência do registro psíquico do inconsciente, concebido como sendo de ordem sexual e pulsional, tese que se aprofunda na leitura sobre a sexualidade e a pulsão, empreendida nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1978/1905). Um inconsciente de natureza sexual e desejante.

2. A modernidade, como sabemos, continha um projeto político emancipatório, a partir do qual se desloca o poder do monarca absoluto, ancorado no divino, para o indivíduo como valor. A liberdade passa a ser um valor psicanalítico, num movimento que vai do abandono da hipnose e da sugestão para a elaboração da transferência. Desejo, sexualidade e recalcamento são as marcas que dominam a primeira tópica. A psicanálise, nessa primeira versão, alude à dimensão conflitiva da vida psíquica entre a sexualidade e a autoconservação; a ruptura e a interpretação são ferramentas que permitem o alargamento da consciência alienada.

3. A expressão clínica desse projeto emancipatório é o movimento da hipnose à associação livre e à transferência. Freud realiza, como se sabe, uma leitura crítica do dispositivo da hipnose. Reconhece a ideia de poder do hipnotizado e sua influência. Lugares desiguais e hierárquicos marcam a hipnose - Freud irá aprofundar isto em "Psicologia das massas e análise do ego" (1984b/1921). A hipnose supunha uma evidente relação de poder entre as figuras do médico e do doente.

4. Isto conduz Freud à associação livre, à descoberta do enquadre psicanalítico e à abstinência de satisfazer as demandas do analisando, criando, assim, uma nova postura ética para o campo psicanalítico, que se sustenta na liberdade e permite evidenciar a força do desejo, do conflito e do recalque. A terapia psicanalítica funciona por via di levare, e não por via di porre. Qual veio a ser o destino desse movimento?

5. Assim como Freud abre, a partir de A interpretação dos sonhos (1979/1900), as portas para o inconsciente, descobrindo a nova gramática do processo primário, os modernistas inauguram uma nova forma discursiva a partir da subversão dos processos convencionais de representação artística.

b) Contemporaneidade

1 . Os limites da capacidade de representação na clínica e na cultura, assim como a crise dos modelos conceituais que a sustentavam, impulsionam novas descobertas e postulações: força pulsional do narcisismo, o traumático, a compulsão à repetição que se insinua como tendência para além do princípio do prazer, indícios de transformações inesperadas na concepção do psiquismo, sua estrutura e as forças que o animam.

2 . Também no campo social e cultural começam a se delinear novas feições após a i Grande Guerra, e vão ficando para trás os ideais da modernidade. Inaugura-se uma era de incertezas, falência de certa ordem estabelecida, incremento da vivência de caos, excesso e desamparo em diferentes formas. Depois de Auschwitz, problemas para as identificações, construções de ideais e supereu.

3. Soma-se a isso, desde uma perspectiva epistemológica, um questionamento de modelos que visam a completude, bem como o fechamento numa teoria representacional, num único campo. São denunciados como redutores. Surgem novos modelos de pensamento de inspiração fenomenológica, linguística, semiótica e dialética. Há questionamentos em torno da hegemonia e das possibilidades da representação. Começam a aparecer modelos que apontam na direção de uma metapsicologia da presença. Darstellung e Vorstellung. Há uma indagação genealógica/desconstrutiva, herdeira de Nietzsche, que coloca em perspectiva os diferentes dispositivos (Foucault, 2007/1975) clínico-institucionais e discursivos e seus vínculos com mecanismos hegemônicos e de poder. Mais recentemente, o pensamento complexo, como formulado por Edgar Morin (2011), coloca em perspectiva a interdependência de diferentes sistemas, o que põe em xeque a compartimentalização dos saberes e discursos. A abstração não pode se dar eliminando os contextos. Envolve o indeterminado e a incerteza. Enfatiza a transdisciplinaridade. Lida com o paradoxo de que o reconhecimento do global permite uma aproximação ao singular.

4. Freud propõe um olhar mais acurado sobre o traumático, o não representado e o irrepresentável. Uma nova tópica se esboça para reordenar as novas descobertas, novas defesas mais drásticas (clivagem, recusa) frente aos conflitos com a realidade, a pulsão e os objetos, que tornarão mais complexos os processos de simbolização que até então pareciam garantidos pela existência do recalque e do processo secundário. Coloca as bases do que será nossa clínica atual. Marucco (2013), por exemplo, fala que trabalhamos concomitantemente com o que ele chama de zonas psíquicas: sonho, narcisismo, traumático/pulsional, identificações, fetichismo - mais do que nunca, o psicanalista está exposto, no seu fazer, à multiplicidade. Devemos estar atentos a duas formas sintéticas nas quais Freud define o objetivo do fazer psicanalítico e que imageticamente podemos apresentar como: "Tornar consciente o inconsciente" e "Wo Es war, soll Ich werden" ("Onde era o Id, Eu devo advir"), mas acrescente-se que não se trata apenas de um Id pulsional, já que não podemos excluir o potencial traumático do objeto. Aqui, Ferenczi, Winnicott, Lacan, Green, Laplanche são fundamentais.

Chaves para refletir sobre o pensamento clínico

a. Falar de pensamento clínico significa, dirá Green (2010a/2002), aludir às transformações ditadas pela angústia, o sofrimento, a dor; às estratégias para negá-los ou combatê-los, para tratar de se desvencilhar deles e também para tentar superá-los.

b. Mesmo que não fale diretamente de um analisando em particular, o pensamento clínico suscita em quem ouve ou lê a lembrança de um paciente ou um grupo de pacientes, o momento de uma análise. O pensamento clínico, diz ainda Green parafraseando Botella, fala unicamente a mim, mas também aos outros.

c. O pensamento clínico reconhece o hiato intransponível entre a clínica e a teoria, que não admite uma correspondência unívoca, mas é nesse próprio hiato que transitam e nele reconhecemos os movimentos e novos rumos da nossa prática.

d. O reconhecimento da existência do pensamento clínico, do esforço por comunicação, de tornar pensável o tido como inefável, nos vacina contra transferências alienantes e os modismos que muitas vezes se instalam em nossas instituições.

e. Sustentar a ideia do pensamento clínico é, a nosso ver, manter revigoradas e com liberdade de criação as tensões inerentes ao pensamento freudiano. Por exemplo, a retomada do par pulsão-objeto, sem negar um dos polos, e guiados por uma lógica da terceiridade, que procura estabelecer pontes de inteligibilidade nos cruzamentos e passagens dos processos primários para os secundários, dos afetos para representação, constitui uma aposta na possibilidade de trabalhar a tensão constitutiva da subjetividade humana.

f. Temporalização (Tanis, 2013) da experiência psíquica.7 Cronos, Aión e Kairós são, neste contexto, a abertura da clínica de hoje, com que ela vai além do modelo do sonho como formulado na primeira tópica, abordando os casos-limite, as passagens para o ato, as somatizações. Isso, mais do que nunca, força os limites do pensamento clínico e o reenvia à sua origem, origem temporal e também originalidade, novidade, perplexidade.

 

Da clínica

Vou expor de modo sucinto certas características de uma experiência analítica com um jovem a quem chamarei Pedro. Essa versão pode ser lida como um relato ficcional e como um paradigma representativo (evidentemente, cada experiência será singular e única) de muitos jovens que nos procuram hoje na expectativa de poder lidar melhor com seu sofrimento. Pedro é um adolescente que se apresenta nos primeiros contatos a partir de uma imagem que oscila: entre uma deterioração generalizada de sua autoestima, física e psíquica, um palhaço na sala de aula, um aluno que fracassa, um ser falido e, em contrapartida, uma onipotência, na qual me fala de livros publicados, de seus dotes artísticos em exercício, de sua bissexualidade praticada (que é motivo ora de orgulho, ora de angústia). Sua fala irônica destitui defensivamente a possibilidade de estabelecer um vínculo mais estável comigo. Come compulsivamente. Em relação a mim, busca me controlar como objeto imaginário que pode ser manipulado, procura me assimilar à sua analista anterior, não há encontro com alteridade, me coloca num lugar predefinido no qual não me reconheço. Filho adotivo, desde os primeiros dias de vida habita um mundo marcado pela tensão entres seus pais, que se separaram quando ele ainda era muito pequeno, separação que envolvia brigas e desfeitas intensas. Embora seja procurado pelo rotundo fracasso escolar, Pedro deixa entrever uma demanda de auxílio em face da dimensão traumática de uma configuração narcísico-identitária precária - na falta de um continente capaz de fazer face às demandas pulsionais e a traços e afetos não simbolizados. Bleichmar (2011) nos fala, nesse contexto, das marcas do vivido que não podem se transformar em experiência: o sujeito é afetado e jogado numa gangorra de estados emocionais e atuações constantes. Pedro procura uma saída mágica que imagina poder mitigar sua dor: cirurgia plástica, vínculos simbióticos, drogas. O teatro, a teatralidade e o mundo das imagens filmadas são, ao mesmo tempo, campo de atuação e de perlaboração; se bem obedecem ao registro da Darstellung (presentificação), na qual não há um espaço entre si e o objeto, permitem a busca de um caminho da Vorstellung (representação/ simbolização). Não vou me alongar na análise com Pedro: acho que isto é suficiente para os fins deste trabalho.

Para Roussillon, com quem concordamos, o inconsciente, nesses casos, não remete ao percebido recalcado, mas àquilo que não conseguiu encontra lugar subjetivo para se inscrever. Trata-se de uma fragilidade narcísica que regula tanto suas relações objetais como as com sua própria imagem.

O aspecto frenético e a precipitação da passagem ao ato mostram que a satisfação é procurada na intensidade e na atemporalidade mais próxima dos processos inconscientes, ou seja, "em ruptura com os processos secundários que caracterizam, em referência à realidade e à história, o funcionamento do ego". E ainda mais: "O fracasso da elaboração de sintomas por simbolização e pela formação de compromisso testemunha a fragilidade do contrainvestimento e do recalcamento secundário" (Brusset, 2003, p. 144).

Como percebemos, estamos em face não apenas de uma manifestação sintomática, mas de outro modo de organização psíquica, pobre em recursos representativos capazes de simbolizar as precárias relações com o objeto originário. Assim caracteriza McDougall (1983/1978) o ato-sintoma presente nas bulimias, nas adições (tabagismo, álcool), nas compulsões sexuais:

Descobrimos nesses casos uma carência na elaboração psíquica e uma falha de simbolização, as quais são compensadas por um agir compulsivo, procurando desta forma reduzir a intensidade da dor psíquica pelo caminho mais curto. Todo ato-sintoma ocupa o lugar de um sonho nunca sonhado, de um drama em potencial, onde as personagens desempenham o papel de objetos parciais ou até são disfarçados de objetos-coisa, numa tentativa de imputar aos objetos substitutivos a função de um objeto simbólico que está ausente ou danificado no mundo psíquico (ex., os alimentos ou a droga que servem como resposta à depressão) ... Deste modo a exteriorização de um "agir" esconde uma história relacional e passional cujos intuitos, ainda que sua leitura nos seja acessível, está petrificada em um ato alienante. (p. 134)

Para Silvia Bleichmar (2011), cujo trabalho se inspira na obra de Laplanche e na clínica com crianças, trata-se de traços mnêmicos que não foram fixados pela memória, mas aos quais o sujeito se vê "fixado". As clássicas interpretações simbólicas, dirá a autora, obturam a possibilidade de estabelecer um nexo mais profundo; estará em jogo estabelecer um tecido simbólico capaz de cerzir o desgarrado. Propõe a ideia de simbolizações de transição cujo sentido é possibilitar um nexo para capturar restos do real que não podem ser apreendidos pela livre associação ("autotransplantes psíquicos").

Trata-se, segundo a autora, de transformar o ato em indício, ou, como diz Peirce, do representamen que faz signo, algo da ordem do real que se impõe ao sujeito e o obriga a uma interpretação. Vamos retomar essa ideia logo mais.

Mesmo sem pretender uma correlação direta ou determinista entre cultura e subjetividade, podemos nos indagar acerca do contemporâneo e talvez observar algumas correspondências.

Retornemos à citação de McDougall: "Todo ato-sintoma ocupa o lugar de um sonho nunca sonhado". A pergunta que se impõe é: será que as condições de excesso, fragmentação e paradoxos vinculares, entre outras da chamada condição pós-moderna, guardam alguma relação com a dominância do ato-sintoma, em lugar de favorecer a capacidade de simbolização e a função onírica? Vários autores sustentam essa hipótese. Nesse contexto, por exemplo, para os sintomas da bulimia seria, como assinala Brusset (2003), cada vez mais difícil para essas personalidades "construir um ideal de ego e um projeto identificatório" (p. 138). Se na clínica das adições e compulsões alimentares predomina o ato com um mínimo de representação, isso não alude necessariamente a uma subjetividade sem sujeito, mas a um psiquismo que se estruturou em um severo prejuízo representativo, em uma precariedade dos processos de simbolização. Isto, sim, demandará, seja do analista, seja de uma equipe de profissionais, uma estratégia clínica diferente daquela que domina os processos compulsivos na neurose obsessiva. Estaríamos à procura de modelos clínicos que possibilitem a construção mais do que a interpretação; a emergência e a neogênese subjetiva fornecerão elementos para permitir que, a posteriori, essas compulsões possam ser inscritas em uma cadeia de sentido. Por outro lado, esse contexto e a pressão na constituição da subjetividade, assim como a frequência dessas patologias, teriam impelido os analistas a refletir com maior intensidade em torno do que poderia ser caracterizado como sintoma social, colocando, como disse anteriormente, desafios complexos para a metapsicologia e também para a clínica.

Interessa-nos o símbolo enquanto signo inserido numa trama, numa cadeia que permite sua função de circulação dos afetos e sentidos.

Falar de simbolização implica ... o trabalho psíquico a partir de vivências que se dão no encontro-desencontro com o outro e que com base nos movimentos metonímico-metafóricos em nível representacional configuram cadeias de representações a partir das quais se constitui uma verdadeira trama que permite a circulação do afeto. (Schkolnik, 2007, p. 28)

Retornemos a Pedro: a meu ver, coexistem diferentes modos de funcionamento psíquico, numa heterogeneidade sígnica. Certas demandas podem ser articuladas de modo simbólico, enquanto outros processos aludem a uma incompletude ou precariedade da terceiridade, dominada por processos que operam na esfera da secundidade (processos fusionais / indiscriminação / não diferenciação masculino-feminino) ou da primeiridade (pura qualidade pulsional). Pensar os processos de simbolização desde essa perspectiva significa, a meu ver, levar à risca a ideia de que eles poderão se desenvolver no contexto vincular - vínculos que devem ser experimentados e investigados, a partir de uma perspectiva polifônica, no espaço intermediário, potencial, entre as condições reais de nossa existência e a dimensão simbólico-pulsional do acontecer humano. Acontecer ameaçado pelo risco do desenraizamento, excessos de informação, fenômenos de exclusão social, insegurança e medo, assim como pela violência que desafia o frágil tecido das nossas representações. Estará em jogo como nós, analistas, pensamos e, principalmente, elaboramos clínica e teoricamente essas configurações paradoxais. Esses pacientes, como Pedro, nos convocam a lidar com sua sobrevivência psíquica; passagens para o ato são constantes dentro e fora da sessão, descargas pulsionais, estados depressivos. Muitas vezes nos sentimos encurralados: se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come. Minhas intervenções podem ser experimentadas como intrusivas se contiverem algum elemento que possa tocar um núcleo traumático na esfera do narcisismo; por outro lado, qualquer fala cujo caráter possa ter um elemento de suporte explícito pode ser vista como tola e acabar sendo censurada. De onde vemos que a dimensão do signo que alude ao três desde o início, e não à esfera da dualidade, é a necessária para superar as armadilhas às quais esses pacientes nos convocam. Trabalhamos o vínculo no contexto transferencial; estamos sempre no fio da navalha.

 

Alguns elementos em destaque no pensamento clínico na atualidade

Embora muitas vezes aparecessem isolados, vejo a articulação de alguns elementos como necessária para avançar no pensamento clínico atual. Esses elementos são um precipitado reflexivo de experiências clínicas com analisandos aqui representados por Pedro e de analistas que ousaram penetrar em territórios desconhecidos e que souberam ir além dos aspectos descritivos, procurando identificar elementos comuns a certas configurações psíquicas, aos modos de se organizar defensivamente face ao traumático, a precariedade representativa dos desafios aos quais o analista se vê submetido no contexto transferencial-contratransferencial, e que, além disso, constatam certa insuficiência nas palavras de ordem ou aforismas sedutores para nortear a clínica. Convido você, leitor, seja um jovem colega ou um analista experiente, para aprofundar nossa compreensão em torno destes elementos, que certamente irá reconhecer em sua experiência:

1. Enquadre/ enquadre interno do analista;

2. Traumatismo narcísico-identitário;

2.1 Da indiscriminação afeto-representação;

2.2 Das condições de simbolização, paradoxos, terceiridade;

3. As instâncias ideais/ projeto identificatório/ gozo;

4. Instituição/ formação.

 

Enquadre/enquadre interno do analista

A clínica atual nos coloca fora de territórios seguros. Se quisermos ser fiéis a uma ética psicanalítica que não se enquadra no normativo, que mantém distância do paradigma cognitivo-comportamental e de uma psiquiatria cada vez mais afastada da psicanálise e cada vez mais próxima da neurociência, teremos que enfrentar os desafios de trabalhar em zonas mais desconhecidas, nos confins e bordas da subjetividade nos quais as cartas náuticas nem sempre chegaram. Teremos que lidar com os efeitos de nossa presença e de nossa ausência - as distâncias se encurtam entre analista e analisando. O domínio do verbal encontra seus limites nas inomináveis angústias atuadas. Agirem,enactments. Green sugere uma dupla perspectiva do enquadre: uma matriz ativa, núcleo da ação analítica, e uma configuração externa e variável (face a face, divã, número de sessões, trabalho em instituições) como estojo protetor da primeira. Como se articulam esses dois aspectos do enquadre diante dos desafios da clínica atual? Estamos no interjogo transferencial-contratransferencial. Identifico nesses casos um risco de situações de análise interminável pela dimensão de captura em uma trama dual, dominada pela indiscriminação afeto-representação. Trata-se, talvez, de um manejo das condições espaço-temporais do enquadre, do uso da palavra e do silêncio para que, uma vez que ambos habitem o espaço da ilusão, o trabalho do negativo possa encontrar meios de se fazer. Ferenczi e Winnicott já sinalizaram o caminho que envolve o manejo do enquadre - enquadre que, mesmo em pacientes neuróticos, o próprio Bleger identificava como depositário de aspectos psicóticos da personalidade. Mais recentemente, Green nos falava do enquadre como estojo da matriz ativa e processual da análise, sinalizando a importância do enquadre interno do analista como garantia da função analisante. Mas do que se trata quando falamos de enquadre interno? Alizade (2002, 2009), em uma interessante reflexão, nos convida a pensar que talvez a institucionalização da psicanálise e o receio de contaminação por fatores de outras disciplinas tenham produzido um controle excessivo sobre o que se veio a denominar "enquadre". Essa excessiva ênfase no aspecto externo do enquadre parece ter definido um enquadre "tipo". Assim, propõe a ideia de enquadre interno implícito na regra da livre associação, a regulação dos processos psíquicos que emanam das configurações internas do analista, a capacidade de empatia e permeabilidade do analista, seu próprio inconsciente, e o desenvolvimento da sua capacidade criativa na arte de curar. O trabalho com e no silêncio, com a condição não formalizável dos afetos. A esse enquadre interno, a autora confere um estatuto teórico-vivencial, no qual o analista pode encontrar uma espécie de espontaneidade livremente flutuante.

 

Traumatismo narcísico-identitário: paradoxos, terceiridade, primórdios da simbolização

"A representação inconsciente, mais que um dado de partida, é produto de um trabalho" (Green, 1996/1987, p. 147). A análise, ao lado de um trabalho sobre as representações, passa a ser também espaço para o trabalho de representação. E quase como uma conclusão: "A representação é a representação-meta da psicanálise, esta sinaliza na direção de fazer representável, pela palavra, o que estava fora da representação consciente" (p. 152). Mas, ao mesmo tempo, sabemos que nem tudo pode ser dito, simbolizado ou elaborado pela linguagem verbal. Coloca-se aqui o lugar do jogo, da criatividade, da sublimação.

Durante certo tempo prevaleceu no campo psicanalítico, e ainda se faz presente, uma cisão entre o pensamento que enfatizava a metapsicologia centrada na teoria pulsional e uma abordagem pautada pelas relações de objeto. A meu ver, essa cisão ofuscava a possibilidade de compreender, em maior profundidade, a complexidade e riqueza da noção de narcisismo, como desenvolvida por Freud, e as imbricações no que diz respeito tanto ao desenvolvimento e estruturação do Eu, dominando o aspecto mais demoníaco da pulsão de morte, quanto ao aspecto iatrogênico das idealizações e excesso sublimatórios. Um primeiro olhar para a questão do narcisismo patológico e do narcisismo estruturante poderia ser seguir os passos de André Green quando ele nos propõe a superação do dualismo entre pulsão e objeto, ao falar do duplo limite (dupla fronteira) interior-exterior, inconsciente Prcs.-Cs. "O par pulsão-objeto já não se apresenta como par, mas como substrato fundamental único do qual nasceram sucessivamente o Eu e os demais produtos da estruturação psíquica" (Green, 2001, p. 154). A partir dessa perspectiva, o objeto como revelador da pulsão far-se-á presente desde os primórdios da estruturação, de modo que a qualidade da sua presença opere como elemento regulador de angústias de abandono e separação, assim como de aspectos intrusivos dessa presença.

A dimensão narcísica desses primeiros intercâmbios, que compreendem os processos de investimento, fusão e desfusão pulsional, objetalização e desobjetalização, ofereceu o cenário afetivo-representacional para as primeiras identificações. Quando bem-sucedidas, o narcisismo se instaura como guardião da vida e possibilita uma estrutura que regula os investimentos libidinais e garante certo apaziguamento das forças desobjetalizantes. As possibilidades de fracasso das simbolizações primárias, das primeiras marcas significantes, poderão edificar os andaimes iniciais de um Eu ou, em contrapartida, produzir traumatismos narcísico-identitários, no dizer de René Roussillon (2014). No que segue, vou me valer da sua conceituação.

Para esse autor, se o sofrimento psíquico está em primeiro plano, ele produz um estado de agonia (Winnicott,); se ele se mistura com o terror ligado à intensidade pulsional envolvida, produz um terror agonístico ou um "terror sem nome" (Bion). Esses estados traumáticos primários possuem um certo número de características que os especificam. São, como os estados de desamparo, experiências de tensão e de desprazer sem representação (o que não quer dizer sem percepção nem sem sensação), sem saída, sem recursos internos (foram esgotados) e sem recursos externos (falhos) - são estados para além da falta e da esperança. Esses estados traumáticos primários reencontram, então, um impasse subjetivo; eles provocam um estado de desespero existencial, uma vergonha de ser que ameaça a existência da subjetividade e da organização psíquica. A clivagem do eu é a modalidade defensiva para essas angústias. São as modalidades de ligação primária não simbólica que especificam melhor os quadros clínicos das patologias narcísico-identitárias. Não podemos nos estender aqui, dada a complexidade do tema, mas vale mencionar que nos encontramos frente a diferentes modalidades descritas por Roussillon (1998) e outros autores, como a neutralização energética (neutralizar o retorno do clivado por uma organização da vida psíquica destinada a restringir, tanto quanto possível, os investimentos de objeto e as relações que arrisquem a reativação da zona traumática primária e o estado de falta degenerativa que a acompanhou), a sexualização (são o masoquismo "perverso" e o fetichismo, comportamentos que resultam de uma utilização perversa da sexualização, e não de sua organização fantasmática), a ligação não simbólica primária somática (uma das bases narcísicas, o corpo, encontra-se dessa forma sacrificada em uma de suas partes ou uma de suas funções para ligar o que "ameaça" a psique), soluções psicóticas e outras. Eis aqui um caminho possível para elucidar a distinção entre narcisismo estruturante e sua dimensão patológica, herdeira de traumatismos precoces.

O trabalho com Pedro revelava pouco a pouco, e às vezes repentinamente, muitos desses aspectos. Predominava a ausência de separação do objeto, seja por sua dimensão intrusiva, seja por ausência e inadequação; dominavam modos de relação e apego de caráter destrutivo e masoquista. Assim, ao relatar episódios de encontro e desencontro com seus amigos ou parceiros, as vivências eram absolutas, ou tudo ou nada, ou fundia-se com estes ou caía num vazio angustiante após algum desapontamento. A sexualidade era submetida a um regime compulsivo, a uma constante decepção. Reconhecia a falta de formações intermediárias, ou seja, produções psíquicas mais organizadas que implicam um início de trabalho de discriminação afeto-representação. Para o analista, a passagem da fusão da ilusão para a esperança comporta que ele acolha sem sucumbir à demanda de fusão. Estarão em jogo os paradoxos no sentido winnicottiano, que permitem a elaboração das experiências de ruptura e descontinuidade através de uma não discriminação unívoca das experiências do dentro e do fora, do interno e do externo, do eu e do não eu, da presença e da ausência. Desse modo, o dito anteriormente sobre o enquadre ganhava muito sentido; fazia-se necessário para mim um intenso trabalho de elaboração interna para poder estar ao lado de Pedro, ao mesmo tempo que era requerida uma flexibilidade nas condições do enquadre externo.

 

As instâncias ideais/ projeto identificatório/ gozo

Tive a oportunidade de me debruçar sobre esse aspecto específico da clínica atual em outra oportunidade (Tanis, 2014), razão pela qual não gostaria de me repetir. Apenas assinalarei alguns elementos no que concerne ao pensamento clínico. No atual contexto, abandona-se o cânone e reinam as singularidades, relativizam-se as verdades; trata-se de uma nova geografia a ser ainda investigada no campo do político e que busca novos critérios ante os fracassos ou questionamentos dos modelos totalitários, neoliberais, pragmáticos, de fanatismos religiosos ou de anomia social. De alguma forma, isso afeta o modo como o analista lida com o enquadre e as representações que possui sobre a análise; a singularidade e o enquadre interno do analista podem conduzi-lo a um solipsismo no qual se veja impedido de encontrar certas invariâncias.

Qual será o lugar das instâncias ideias (Eu-ideal, Ideal do Eu, Supereu) na composição das identificações do jovem analista? Sabemos que ocupam um lugar de garantia narcísica e também resistencial, mas também possuem função reguladora dos afetos, garantindo certo equilíbrio econômico e representacional para o psiquismo.

Assim, como as instâncias ideais podem ser reificadas, corremos o risco de naturalizar a violência desenfreada, colocando-a como originária de um aspecto não dominado da natureza humana... Tornam-se marcantes dois extremos: um que alude à dominação da pulsão face ao traumático, e outro que implica um elemento mortífero que vai do sadismo ao desentroncamento pulsional e anobjetalidade.8 Por meio da noção de poder, esses extremos permitem uma interrogação sobre as duas possibilidades de exercício do domínio: (a) domínio da força pulsional e dos estímulos; e (b) domínio sobre o outro através do controle e do sadismo. (Tanis, 2014, p. 187)

O filme Relatos selvagens, dirigido por Damián Szifron, ilustra com maestria notável, em seis breves episódios, a violência desenfreada, a vingança selvagem como resposta a situações de coerção, humilhação social e falta de esperança a que o indivíduo pode ser submetido. Desse modo, podemos nos perguntar sobre os efeitos subjetivos dessa modalidade de poder que penetra os interstícios dos vínculos. Assim, em nosso tempo dito pós-moderno, quais as vias do poder de se fazer presente na situação analítica? De que recursos Pedro se valia, na vida com seus familiares e comigo, para se vingar de um destino que o submetia a um sofrimento vivido como irreparável? Talvez uma cultura na qual as formas de poder aparecem mais difusas, mas nem por isso menos esmagadoras (consumo, narcisismos, controle, mecanismo de gozo etc.), e produzem efeitos na construção dos ideais, das identificações. Uma nova moral para o supereu, através da qual a ética como campo de contato com a alteridade esteja comprometida. Retomemos nossas indagações sem pretender fechar um sentido: de que modo se estruturam hoje as instâncias ideais em relação ao discurso da cultura incorporado via supereu e as identificações? O imperativo moral, o masoquismo moral, parece ceder ao imperativo de gozo; o masoquismo erógeno parece dominar a cena. Isso se faz presente em várias configurações subjetivas e nos remete a nosso lugar como analistas e ao tema do enquadre interno e da ética, do qual falava há pouco.

 

Instituição/ formação

Aceitamos os questionamentos epistemológicos, também as tensões entre a teoria e a clínica; resta saber a nossa margem de abertura para as fronteiras dessa clínica de risco. Essa clínica que subverte os enquadres, o setting tradicional, que sai dos consultórios, que vai para os hospitais, para a rua, para as casas e as famílias, que espaço tem nas nossas instituições, na análise de futuros analistas, na formação analítica nos institutos, herdeira ainda do modelo Eitingon?

Considero que o pensamento clínico pode ser de grande auxílio para enfrentar os desafios clínicos atuais, nos diferentes contextos. Se lugar intermediário, terciário, como elemento que coloca em contato experiência clínica e teoria sem reduzir uma a outra, ele permite tornar pensável no contexto de uma matriz dialógica a complexidade da transformação do lugar do analista na atualidade (Tanis, 2014).

Freud nos mostrou que os mesmos processos psíquicos que agem como determinantes da neurose faziam parte de todos nós; hoje percebemos as insuficiências simbólicas e a incapacidade de transformação de muitos elementos não simbolizados na subjetividade do homem contemporâneo. Talvez, se tivermos condições de olhar para esses restos traumáticos que convidam mais para o ato que para a representação também na nossa formação como analistas e no seio das nossas organizações, bem como no convívio institucional, possamos avançar ainda mais no campo do exercício e do pensamento clínico face às demandas atuais.

 

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Recebido em: 17/11/2014
Aceito em: 25/11/2014

 

 

1 Este trabalho é uma versão elaborada a partir das ideias apresentadas no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise (set. 2013), no XXX Congresso Fepal (set. 2014) e na ix Jornada Científica do cep de Porto Alegre (out. 2014).
2 Cf. "A escuta em questão: os grupos de trabalho", Revista Brasileira de Psicanálise (44), n. 4, 2010.
3 Ver os interessantes comentários de Greemberg (2012) e Faimberg (2012) sobre a atualidade do pensamento de Bleger no International Journal of Psychoanalysis.
4 Tema do nosso futuro Congresso Brasileiro de Psicanálise, em 2015, Sonho/Ato: a representação e seus limites, no qual essas questões serão amplamente debatidas.
5 Essas batalhas, que figuram no rol das mais violentas da história da humanidade, tinham em comum um elemento de base: o sofrimento humano descomunal. Um dos diagnósticos mais frequentes entre soldados era a sensação de perda da condição humana. Em 10 de julho de 1916, um ano e meio antes de sua morte no campo de batalha, o sargento francês Marc Boasson escreveu: "Eu mudei terrivelmente. Não queria lhe contar nada da horrível fadiga que a guerra engendrou em mim, mas você me força. Eu me sinto esmagado, diminuído ... estou pobre e nu por causa das emoções desmesuradas, das experiências desproporcionais à resistência humana. Algo está dando errado, uma perda generalizada. Eu sou um homem esmagado". À sua noiva, o soldado Henri Fauconnier diria em carta datada de 17 de fevereiro de 1917: "É assustador depender tanto do meio em que estamos. Mady, não é com um ser humano que você se casará", advertiu. "Às vezes eu sou um monstro, às vezes uma planta, às vezes um mineral. Nunca um ser humano" (Recuperado em 2014, de http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/).
6 Cf. o vol. 46, n. 2 ("Passagens I") e n. 3 ("Passagens II"), da Revista Brasileira de Psicanálise, 2012.
7 Agamben, em Infância e história (2003), e Deleuze, em Lógica del sentido (2005/1969), confrontam, cada um a seu modo, a necessidade de discriminar o significado das diversas temporalidades na constituição da história, dos mitos, dos relatos, das vivências, da cultura. Dividem a temporalidade de Cronos numa temporalidade circular greco-romana - aquela do mito, da humanidade, da repetição, na qual há um antes e um depois que se alternam em uma ordenação não cronológica, mas "acontecimental" - e numa temporalidade linear judaico-cristã - aquela da revelação, de Deus, de uma origem. A isso se acrescenta uma temporalidade do instante, do presente absoluto, de Aión, que abre a bifurcações infinitas e imprevisíveis, bem como uma temporalidade que concerne à clivagem, o momento justo, sempre singular, que é o de Kairós.
8 Remetemos o leitor a um interessante trabalho de Cardoso (2002), no qual essas ideias são sinalizadas e discutidas.

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