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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Pensamento clínico: diálogo com um jovem colega

 

Clinical thought: dialogue with a younger colleague

 

Pensamiento clínico: diálogo con un joven colega

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. marion.minerbo@terra.com.br

 

 


RESUMO

Na forma de perguntas e respostas, e ancorada na prática clínica, a autora procura transmitir com simplicidade a ideia e a importância do pensamento clínico. O pensamento que emerge da clínica articula história de vida e história da análise, integra teoria e clínica e orienta o analista em suas intervenções e na condução do processo.

Palavras-chave: pensamento clínico, escuta analítica, construções, história emocional, integração teórico-clínica


ABSTRACT

In the form of questions and answers, and based on clinical facts, the author tries to convey in a simple way the idea and importance of clinical thought. The comprehension that emerges from clinical practice allows the analyst to articulate life history and analytic history, to integrate theory and clinic and to conduct the analytical process.

Keywords: clinical thought, analytic listening, constructions, emotional history


RESUMEN

En formato de preguntas y respuestas, basadas en la clínica, la autora intenta transmitir con simplicidad el concepto y la importancia del pensamiento clínico. El pensamiento que emerge de la práctica clínica permite articular la historia de vida y la historia del análisis, integra clínica y teoría, y orienta al analista en sus intervenciones y en la conducción del proceso analítico.

Palabras-clave: pensamiento clínico, escucha analítica, construcciones, historia emocional, integración teórico-clínica


 

 

Olá, caro colega, em que posso ajudá-lo hoje?

Estou atendendo uma paciente há vários anos, mas acho que pouca coisa mudou. Trata-se de uma mulher casada que veio há uns três anos querendo se separar do marido, mas não consegue. Percebo que ela espera que eu lhe diga o que fazer, como se eu fosse uma espécie de consultor sentimental. Para evitar entrar nesse papel e tentar me manter psicanalista, tenho trabalhado na linha de descrever a experiência emocional da dupla no aqui e agora. Por exemplo, disse-lhe que espera que eu tome decisões por ela, talvez por medo de se respon sabilizar por suas escolhas. Ou que imagina que eu saiba o que é melhor para ela. Ela concorda, mas volta a falar do marido. Acho que algo me escapa, pois a análise não avança.

É possível; podemos tentar ver juntos o que poderia ser. Há no material clínico elementos para entendermos o que significa "não consegue se separar"? Pergunto porque há mil razões para que alguém não consiga romper um vínculo. Por exemplo, ela pode ter o sentimento de que vai abandonar o marido, vivido como uma figura frágil e impotente. Ou ao contrário, pode ter medo de não conseguir sobreviver sem ele. Como você sabe, para o psicanalista, o comportamento em si mesmo não quer dizer grande coisa, e, sim, a dinâmica psíquica que o determina.

Não tenho uma noção muito clara do que está em jogo com essa pacien te. Ela fala muito do marido, mas fala pouco dela mesma. Não faço ideia de quem eu sou na transferência. Gostaria de explorar as várias possibilidades que você mencionou.

É uma boa ideia, até porque, sendo dinâmicas diferentes, abrem caminhos distintos em termos de pensamento clínico e de trabalho analítico.

Você usou um termo que eu escuto raramente: pensamento clínico. O que é isso?

É um bom tema para a conversa de hoje. Você tem toda razão em querer sair do plano do consultor sentimental para ocupar seu lugar de analista. Do meu ponto de vista, não é bem que algo esteja lhe escapando: falta-lhe um pensamento clínico - um pensamento que, sensibilizado pela teoria, brota inteiramente da interpretação dos dados da clínica e lhes confere alguma inteligibilidade. Sem um pensamento clínico fica difícil ter uma ideia do tipo de dificuldades que você está enfrentando e como fazer para tentar superá-las.

Green (2002) diz que o pensamento clínico é "uma forma original e específica de racionalidade que emerge da experiência prática" (p. 11). Essa noção desconstrói uma dicotomia muito frequente entre nós, que separa a clínica, de um lado, e a teoria, do outro - aliás, talvez isto também esteja atrapalhando você. O autor lembra que o pensamento clínico nasce quando Freud relata o caso Dora, mas também pode ser reconhecido nos outros historiais clínicos: o pequeno Hans, o Homem dos Ratos, o caso Schreber e o Homem dos Lobos. Tais relatos articulam

a história de vida do paciente, a história da doença, a história do tratamento, a compreensão das relações entre passado e presente, a aplicação dos conceitos psicanalíticos (sexualidade infantil, fantasia inconsciente, complexo de Édipo) vistos pelo ângulo da especificidade da transferência. Vemos um analista pensando, mas unicamente a serviço do paciente. (Green, 2002, p. 17)

Preciso reler os historiais clínicos de Freud. Você disse que o pensamento clínico brota da clínica. Poderia explicar melhor?

Quando digo que "brota da interpretação da clínica", está implícita uma escuta analítica baseada nos conceitos fundantes da psicanálise, inconsciente e transferência. Você se lembra da nossa primeira conversa? Naquela ocasião lembrei que transferência nada mais é que a manifestação do inconsciente, e defini transferência da maneira mais simples que consegui. Permita-me uma autocitação:

Quando a criança-no-adulto toma as rédeas numa relação qualquer, quando é ela que está sentindo, pensando e agindo, aquela relação está marcada pela transferência. E quando a criança-no-adulto está "adormecida", quando é o adulto quem está sentindo, pensando e agindo, com as rédeas na mão, então é uma relação comum. A criança-no-adulto é uma espécie de cicatriz viva da personalidade, testemunho do trauma e das defesas que tivemos que usar ao longo de nosso desenvolvimento psíquico. (Minerbo, 2013, p. 172)

Percebo que você tem falado em "escuta analítica". Eu costumo usar o termo "observação". Procuro observar o que está acontecendo entre mim e o paciente a cada momento.

De fato, o termo "observação" é muito usado entre nós. Confesso que nunca entendi como se pode observar o inefável. Não gosto muito desse termo porque dá a impressão de que os dados da nossa clínica são empíricos, algo que está ali, dado, que é só observar e descrever. Com certa pretensão de objetividade, a ideia de observação abre pouco espaço para a imaginação clínica, precursora do pensamento clínico. Por isso prefiro pensar em termos de escuta analítica. Eu usaria o termo observação para descrever comportamentos, mas a transferência está longe de se reduzir a uma interação comportamental entre duas pessoas.

Sim, lembro bem da nossa primeira conversa sobre transferência (Minerbo, 2013). Agora você está falando de duas posturas diante do material clínico: uma é, digamos, visual, e a outra é auditiva.

Exatamente. Veja, a psicanálise nasce quando Freud se dá conta da divisão no seio do sujeito, primeiro entre uma parte consciente e outra inconsciente, depois entre várias instâncias, e, por fim, ele define o eu como um precipitado de identificações (Freud, 1975d/1923). Às vezes a gente perde de vista a revolução e a desconstrução que essa ideia produziu na concepção de indivíduo - que significa "não dividido". Para o analista, o analisando não é um indivíduo: é plural, muitos, uma multiplicidade de identificações. Ora, cada identificação tem uma "voz" própria, que precisamos ser capazes de reconhecer no discurso do paciente. Por isso prefiro o termo auditivo ao visual: escutar está mais voltado para o sentido de algo que tenta se dizer (ainda que de forma não verbal), enquanto observar me leva mais para o lado do comportamento.

Às vezes quem está falando com o analista é um aspecto da criança-no-adulto. Outras vezes, quem fala pela boca do paciente é um aspecto da figura parental, com a qual o paciente está identificado. Para mim, isso é a base da escuta analítica. Trata-se de uma escuta criativa, imaginativa. Tivemos na Sociedade um ciclo sobre escuta poética e outro sobre escuta musical.1 São escutas que precisam ser formadas, educadas e cultivadas. O mesmo se dá com a escuta médica. O aluno aprende como soa, ao estetoscópio, um pulmão que ventila bem e outro que não ventila - e o que isto significa. A escuta analítica - que tem pontos de contato com o musical e a poética - também precisa ser formada e cultivada. No meu caso, essa escuta não é uma conquista definitiva: se eu não estiver sempre lendo alguma coisa de psicanálise, a escuta vai se embotando. A teoria embebida na clínica fertiliza uma prática informada pela teoria e vice-versa. Não menos importante é a análise do analista, em que a gente tem a experiência viva de ser escutado analiticamente.

Vamos conversar sobre escuta analítica outro dia. Agora gostaria de vol tar para a questão do pensamento clínico.

Pois bem: o pensamento clínico - pelo menos o jeito como eu penso a clínica hoje - começa com uma ideia simples, mas que faz toda a diferença. Se sua paciente diz que não consegue se separar do marido, se passa sessões e mais sessões falando desse casamento, precisamos escutar imaginativamente que a criança-nela está enroscada com um aspecto de seu objeto primário. E que a relação com o marido é um mero suporte transferencial desse enrosco. Em outros termos, "casamento", aqui, pode ser escutado como cicatriz viva do vínculo traumático no "casamento" da criança com o objeto primário. Ela fala da relação com o marido porque é assim que a criança-nela consegue presentificar o "enrosco primário" que precisa ser simbolizado.

Falando assim, parece fácil! (risos)

Tem razão, não é nada fácil encaminhar o processo de simbolização da situação traumática a partir de suas manifestações transferenciais. Ora, isto tem maiores chances de acontecer se a gente conseguir entender minimamente de que enrosco se trata. O pensamento clínico serve para isso.

Começo a entender por que ela fala tanto do marido. Tentei muitas vezes fazer com que falasse dela, achando que a fala sobre o marido fosse defensiva.

Acontece que quando ela fala do marido está, necessariamente, falando de si, ou melhor, da natureza do vínculo entre ambos. Pois, como estamos vendo, o vínculo atual representa o vínculo traumático entre a criança e seu objeto, internalizado ao longo da história de constituição do aparelho psíquico.

Podemos agora começar a construir um pensamento clínico para a primeira hipótese que levantei no começo desta conversa. Lembra-se? Imaginei que ela não consegue se separar do marido porque tem o sentimento - que não precisa ser consciente - de que vai abandonar uma figura frágil e impotente. É claro que essa hipótese só pode ser feita com base na interpretação do material clínico. Aqui gostaria de dizer algo importante: se queremos que a teoria brote da clínica, precisamos escutar rigorosamente o que o paciente está dizendo, e não ficar fazendo conjecturas apressadas, e muito menos forçar nossas teorias prediletas "de fora para dentro".

Vamos supor que sua paciente tenha descrito situações em que salta à vista a atrapalhação, a passividade ou a depressão do marido. Talvez tenha falado da falência de sua empresa, ou de como a diabetes está limitando a vida dele. Lembra-se de que eu disse que precisamos escutar imaginativamente o enrosco da criança-nela com um aspecto de seu objeto primário, e que a relação com o marido pode ser escutada como um suporte transferencial desse enrosco? Então pode ser que ela sinta que se separar dele equivale a um crime do tipo "abandono de incapaz" - conhece essa figura jurídica?

Isso já nos ajudaria a entender que a criança-nela se mantém ligada ao objeto primário pela obrigação de mantê-lo vivo. Se é assim que a paciente percebe as coisas, é evidente que não pode se separar do marido/objeto primário! Do ponto de vista metapsicológico, o que estou chamando de enrosco é uma zona de não diferenciação entre o sujeito e seu objeto interno. Já é um primeiro passo na construção de um pensamento clínico. Como pretendo mostrar a você, o pensamento clínico deve ser capaz de articular os processos intrapsíquicos aos intersubjetivos.

Você está falando da transferência?

Pode-se dizer que sim. No famoso capítulo vii da Interpretação dos so nhos, Freud (1975a/1900) concebe um modelo de aparelho psíquico e descreve seu funcionamento. Nessa ocasião usa o termo transferência para falar do deslocamento da energia psíquica de uma representação inconsciente inadmissível, ligada à sexualidade infantil, a outra "inofensiva". É uma transferência intrap síquica. Já no caso Dora, quando dá uma segunda definição de transferência (Freud, 1975b/1905), ele reconhece que, sem perceber, entrou como ator coadjuvante na repetição das questões intrapsíquicas e inconscientes de sua paciente. Ligadas às vicissitudes da sexualidade infantil, tais questões compareciam nos sonhos e em todas as histórias que Dora contava sobre sua relação (transferencial) com o sr. e a sra. K. Mas, ao mesmo tempo, elas estavam sendo sutilmente agidas na transferência com Freud! Percebe como as duas se articulam? Enquanto ele pensava estar apenas analisando o intrapsíquico - e essa era, certamente, uma parte importante do trabalho -, tudo o que ele dizia não estava sendo escutado de maneira neutra por Dora, e, sim, como uma tentativa de sedução. Freud fora transformado, transferencialmente, no próprio adulto sedutor.

Quer dizer que a transferência intersubjetiva com Freud não faz sentido algum se amputarmos Dora de sua história e de todas as marcas intrapsíquicas que esta deixou?

Isso mesmo. Acontece que, em 1905, Freud estava mais ligado na transferência intrapsíquica, e só descobriu a intersubjetiva porque foi atingido de chofre pela atuação de Dora, que interrompeu o tratamento. Hoje, tenho a impressão de que estamos na situação inversa: estamos muito mais ligados na escuta e interpretação da transferência intersubjetiva do que da intrapsíquica, como se esta tivesse sido superada e substituída por aquela que realmente importa, a única que seria realmente "mutativa", para usar o conhecido termo de Strachey (1934): a transferência intersubjetiva. Green (2002) faz uma leitura histórica bem interessante de como chegamos a essa situação. Ao longo de boa parte de sua obra, Freud estava ocupado em criar e desenvolver a metapsicologia. Num primeiro momento, o pensamento clínico descrevia o funcionamento do aparelho psíquico a partir de suas fontes endógenas, a pulsão. Sem negar a transferência intersubjetiva, ele descreveu os processos ligados à exigência de trabalho colocado ao aparelho psíquico pelo corpo e pela sexualidade infantil - em suma, pela pulsão.

Num movimento reativo, que Green (2002) chama de "guerra ao solipsismo" (p. 23), as gerações seguintes - Ferenczi, Fairbairn, Klein, Bion, Winnicott, Kohut, Lacan, Laplanche e outros - reconheceram a importância do objeto na constituição do aparelho psíquico. A teoria das relações de objeto se desenvolveu, então, com grande vigor. Naquele momento da história da psicanálise, o pêndulo se deslocou para o extremo oposto: a interpretação da transferência intersubjetiva passou a predominar no pensamento clínico, como se fosse sinônimo de transferência. A atenção quase que exclusiva dada à relação de objeto acabou obscurecendo a dinâmica intrapsíquica, o inconsciente e seus efeitos na vida do analisando. Como, por exemplo, o fato - enigmático para ela mesma - de sua paciente não conseguir se separar do marido.

Tendo lido criticamente autores da segunda e terceira gerações, Green defende a pertinência de um pensamento clínico complexo, capaz de tomar em consideração o par pulsão-objeto, articulando, portanto, as duas transferências: intrapsíquica e intersubjetiva. Esta seria uma das marcas da psicanálise contemporânea, segundo ele. Sua posição decorre diretamente de sua ideia de um aparelho psíquico constituído por um duplo limite.

Um limite vertical entre dentro e fora. E no seio do dentro, o limite horizontal entre o consciente, no andar de cima, e o inconsciente no andar de baixo. Desde então, dois campos [de trabalho analítico] se configuram. O do intrapsíquico, dentro, resultante das relações entre as partes de o compõem, e o do intersubjetivo, entre dentro e fora, cujo desenvolvimento compreende a relação com o outro. (Green, 2002, pp. 38-39)

A articulação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo passa, então, pelo reconhecimento de que a pulsão não pode ser pensada sem o objeto que ela investe e de que o objeto investido está simultaneamente dentro e fora. O marido, de quem sua paciente não consegue se separar, está investido ao mesmo tempo como objeto externo e interno. O analista também é um objeto externo, e um representante do objeto interno resultante das identificações com as figuras parentais. Como você vê, a coisa é complexa...

Gostaria de voltar à minha paciente e ao pensamento clínico baseado na sua primeira hipótese. Não sei se visualizo na prática como ele poderia articular o intrapsíquico e o intersubjetivo.

Se a paciente se sente presa à missão de manter o marido vivo, de onde será que ela tirou essa ideia? A formulação dela sugere que estamos muito além da simples solidariedade, e confirma que a criança-nela estabelece algum tipo de transferência com o marido enquanto representante de seu objeto primário. Se em vez de pensar na sua paciente apenas como uma adulta casada com um marido deprimido pudermos sintonizar também com a criança-nela presa à tarefa de manter seu objeto vivo, já começamos a vislumbrar a natureza do enrosco, a descolar do conteúdo manifesto e a sair do papel de consultor sentimental.

As histórias que, sessão após sessão, vão desenhando o vínculo tenaz, conflitivo, asfixiante, pesado e provavelmente amoroso com o marido deprimido são relatadas ao analista. Não podemos nos esquecer de que, para a escuta analítica, o relato das cenas cotidianas, tanto quanto o relato de um sonho, são linguagem e têm o estatuto de representação. O relato não é uma descrição objetiva da realidade, e, sim, uma criação psíquica em cima de algo que de fato existe.

"O relato em sessão é uma criação psíquica em cima de algo que de fato existe." Gostei da frase. Quando a paciente me descreve seu marido deprimi do, tendo a acreditar nela, e muitas vezes levo um puxão de orelha por estar dando atenção à realidade, a algo que se passa fora da sessão. Mas não consigo concordar plenamente com a ideia de que ela apenas "vê" o marido como um deprimido - como se fosse uma fantasia ou uma distorção dela. Esse paradoxo me ajuda a sair da dicotomia realidade / fantasia.

É isso mesmo. O relato do paciente é um criado-achado, para usar um termo de Winnicott. Não temos por que duvidar do que os pacientes nos contam, até porque nosso recorte não é a realidade material dos fatos, e, sim, o relato que ele faz desses fatos. A sua paciente fala de seu cotidiano, mas é como se ela estivesse lhe dizendo: "Tive um pesadelo. Eu tinha me separado do meu marido. Entro em casa e vejo que ele tinha encolhido e se transformado em uma espécie de anão. Ficava desesperada". Escutando assim, saímos do plano da realidade externa e passamos para o plano da realidade psíquica, na qual o material inconsciente é transferido/deslocado para representações que se prestam a isso. Já estamos pensando analiticamente.

Naquela nossa primeira conversa sobre transferência (Minerbo, 2013), você disse que Green chama isso de transferência sobre a fala, ou sobre a lin guagem. A outra era sobre o objeto.

Boa memória. É claro que essa divisão tem algo de artificial, mas ajuda a entender. Como vimos, o material psíquico inconsciente, em si mesmo inacessível, é transferido para representações pré-conscientes, os restos diurnos - no caso, a representação "marido deprimido". Até aqui, a função do analista é escutar analiticamente a fala do analisando, reconhecendo a transferência entre representações, ou intrapsíquica. Nesse sentido, não é "alvo" dela. Mas é o destinatário dessa fala, por isso temos de considerar ao mesmo tempo a trans ferência intersubjetiva, ou transferência com o objeto. Quanto a esta, acho útil diferenciarmos uma transferência "básica" de outra mais específica. A básica é típica de muitas relações marcadas pela assimetria entre as posições subjetivas: o analista - mas também o médico, o professor - é um objeto investido de algum saber e do poder de entender, de cuidar ou de ajudar. Sem a transferência básica, o paciente nem chega a procurar análise. A transferência que nos interessa é a específica, ligada à repetição do não simbolizado da história da criança com seu objeto primário. É nesse nível que se situa o enrosco que mencionei há pouco.

Como assim?

Explico. Como a figura parental é dotada, ela mesma, de um inconsciente, a psique em formação será sempre colonizada, de alguma forma, por sua dinâmica inconsciente. Essa colonização origina uma zona de não diferenciação sujeito-objeto, que está na origem da transferência específica. É ela que revela o tipo de enrosco que precisará ser desenroscado na análise (que sua paciente chama de "não conseguir se separar do marido"). Pois bem: a transferência será agida e afetará o analista - veja onde entra a contratransferência! -, chance preciosa para que seja progressivamente simbolizada.

Em outros termos, o enrosco entre a criança e seu objeto primário, a zona de confusão sujeito-objeto ligada à colonização da psique em formação pelo inconsciente parental, determina a impossibilidade de se separar do marido e também a transferência específica - ou simplesmente a transferência - sobre o analista. Ela é sutil, e costuma se revelar depois de muito tempo, a posteriori, de forma surpreendente, sem que a gente precise "correr atrás dela". Além disso, "tem que ser adivinhada" por indícios mínimos (Freud, 1975c/1914) e com a ajuda da contratransferência.

Vamos imaginar duas situações contratransferenciais igualmente plausíveis para reconhecer a transferência intersubjetiva. 1) Em certo momento o analista pode se perceber cansado do drama da paciente, irritado de ter de ouvir sempre a mesma coisa, lutando para se manter acordado e atento; eventualmente, desejando que esse "caso difícil" vá embora, e logo culpando-se por estar desistindo dela, cuja vida não ata nem desata. 2) Ou então o analista não entende por que a paciente, que visivelmente gosta muito da análise, anda faltando. Aí ele descobre, meio por acaso, que ela não veio porque "não tinha nada de interessante para contar". A transferência intersubjetiva está sendo agida, revelando o quanto a paciente acredita piamente que sua função é manter o analista "animado e interessado" e como essa tarefa lhe é penosa e angustiante, a ponto de preferir faltar a se sentir em falta com sua missão.

E o pensamento clínico?

O pensamento clínico tentará articular vários elementos, que juntos formam uma figura relativamente coerente, embora sempre parcial e provisória. 1) O "sintoma", ou o enrosco que atravanca a vida da paciente, e que a trouxe à análise: não consegue se separar do marido - com mais rigor, trata-se de toda a dinâmica inconsciente que determina essa impossibilidade. 2) A transferência intrapsíquica entre representações: a figura do marido deprimido funciona para nós como uma representação, uma espécie de imagem onírica, que revela como ela se sente responsável por um objeto interno/externo frágil e dependente dela. 3) A transferência intersubjetiva sobre o objeto. Por ser também um sujeito que sente, pensa, sonha, o analista pode contar com sua contratransferência para reconhecer a transferência específica, aquela que tem a ver com a história não simbolizada do trauma primário. Pode ser que o analista esteja no lugar da criança-nela, que não suporta mais o peso de uma mãe deprimida. Ou pode ser que ele se dê conta, de repente, de que a paciente não aguenta o peso de ter de manter o analista, confundido com a figura materna, vivo.

Não sei se você pensa como eu, mas os pacientes nos procuram em busca de alívio para o sofrimento psíquico. Eles intuem que estão encarcerados na repetição por conta de enroscos desse tipo. Vêm com a esperança de que a análise os liberte para desfrutar de uma vida mais plena e criativa. Nossa responsabilidade é enorme. Daí a importância do pensamento clínico: com base na escuta analítica, tentamos reconstruir, ou construir, um pedacinho da história emocional de uma criança que ficou capturada na dinâmica ligada ao inconsciente parental.

Você quer dizer que a relação com o analista não é um fim em si mesmo, mas um meio para construir um sentido que seria libertador em relação a essa captura.

O analista não está lá para ser uma mãe ou um pai melhor do que os que o paciente teve, e, sim, para ajudá-lo a construir um sentido possível para as experiências vividas, mas não simbolizadas, com as figuras parentais. No nosso exemplo, o intrapsíquico teria a ver com a colonização do psiquismo por elementos inconscientes ligados à depressão materna.

O analista escuta o que diz o paciente, e ao mesmo tempo registra corporalmente, na contratransferência, os elementos não verbais que o afetam e que correspondem à dimensão "agida" na transferência. Segundo Roussillon (2012), o inconsciente é o negativo da própria história em ato. O negativo da própria história é aquilo que foi subtraído à subjetividade, isto é, que foi negativado por meio do recalque ou da clivagem. Esses elementos não são rememorados (representados), mas repetidos (presentados, presentificados): por isso pertencem ao registro do ato. É o que chamamos de transferência, lembra?

O analisando vem para que o analista possa escutar, sentir, perceber aquilo que ele não conseguiu escutar, sentir e perceber de si mesmo e de sua história, de sua relação com as figuras parentais. "O analista deve aceitar ser o que propus chamar "o espelho do negativo" do sujeito, aceitar ser o portador do que o sujeito, de uma maneira ou de outra, repudia de si. É uma posição paradoxal que o conduz a ter que aceitar se identificar aos estados internos do sujeito que este rejeita" (Roussillon, 2012, p. 31).

A criança, colonizada pela "sombra do objeto", internaliza essa relação e fica presa à tarefa de manter vivo o objeto interno/externo. Ao mesmo tempo, odeia essa figura interna/externa (o marido) da qual depende e que não está psiquicamente disponível. Mas também ama e deseja ficar ali para salvá-la a qualquer preço. Percebe qual é a dinâmica que faz com que ela não consiga se separar do marido? Isto é um pedacinho de pensamento clínico.

Você diria isso à paciente?

Não necessariamente. Claro que depende do que me ocorre na hora. Mas também do que me pareça mais produtivo no momento. O importante é que, tendo um pensamento clínico, muitos caminhos se abrem.

Posso falar do marido, que talvez gostaria, mas não consegue, ser um companheiro mais presente; ou do marido, que em sua depressão nem percebe o quanto ela fica sozinha no casamento. Eu teria em mente que minha fala diz respeito simultaneamente ao objeto externo e interno. Essa intervenção tenta tornar pensável o fato de que o objeto primário, agora representado pelo marido, tem, como todo mundo, suas limitações. É comum que a criança atribua a si própria a causa da depressão materna. Perceber essa construção, bem como a tentativa impossível de reparação, pode ser libertador.

Posso sintonizar com o desespero da criança-nela, presa à tarefa de manter o outro vivo. Se eu consigo essa sintonia, torno-me na transferência um objeto vivo, indo ao encontro da pré-concepção de um objeto que a ajude, aqui e agora, a dar sentido à experiência mal assombrada que a habita. Naturalmente, estou considerando que o traumático é o não sentido vivido na solidão, e que a simbolização passa pelo sentido construído junto a um objeto.

Posso falar a partir da contratransferência (minha culpa de tirar férias e "abandonar" a paciente) algo que sirva para dar voz à criança-nela que nunca ouviu, nem pode dizer a si mesma: a gente tem direito de ter vida própria, e que isto não é o mesmo que condenar o outro à morte. Ou, também, a partir da contratransferência, posso compartilhar com ela o sentimento de como a gente se sente mal por não aguentar o peso do outro, mas que a gente também tem limites.

Posso falar de um filme que me ocorre espontaneamente, e que tem a ver com a história dela, tal como reconstruída pelo pensamento clínico. Posso comentar o filme com ela, sabendo que estou usando material transicional para simbolizar, aqui e agora, algum aspecto do trauma precoce.

Em todas essas formas de intervir, eu já me descolei do plano concreto da relação conjugal, e por isso posso me referir a ela quando achar conveniente. No começo da nossa conversa você disse que não fazia ideia de quem você era na transferência. Como você vê, posso não saber quem sou, ou melhor, que posição ocupo, mas certamente sou parte constituinte do campo transferencial, e por isso não preciso me incluir explicitamente na formulação da interpretação.

O material clínico que circula nos espaços oficiais da instituição traz, muitas vezes, interpretações cujo modelo é "você aqui comigo". É um modelo forte...

Assim funcionam as instituições: ideias complexas tendem a ser simplificadas para serem usadas na sustentação da identidade individual e grupal (Kaës, 1991). É como se a simples presença de pelo menos uma interpretação desse tipo garantisse a condição de psicanalista e o valioso pertencimento ao grupo. É uma necessidade humana perfeitamente compreensível. Mas nem por isso precisamos abandonar uma postura crítica, não é mesmo? Cada um precisa descobrir por si mesmo o que faz sentido na sua clínica e o que não faz.

É por isso que gosto destas conversas. Mas por enquanto prefiro voltar ao nosso tema. Você tinha imaginado uma segunda hipótese para o fato de mi nha paciente não conseguir se separar do marido: ela depende dele e tem medo do seu ódio vingativo. Que tipo de pensamento clínico você poderia construir a partir disso?

Vou lhe contar um caso que atendi há muitos anos, e que cabe perfeitamente na segunda hipótese. Foi um lindo processo de análise; não tenho anotações, mas ainda me lembro da luta dessa mulher inteligente e sensível para, nas palavras dela, "virar gente". Formou-se em literatura, mas trabalhou na empresa do pai até ter seus filhos. Quando os dois já estavam criados, chegou-me com a demanda explícita de se tornar analista, mas sequer percebia que estava gravemente deprimida, tal a cisão defensiva que lhe permitia viver.

A descrição de um cotidiano de "socialite", que ela considerava agradável, mas vazio, nos permitiu reconhecer a falta de um projeto pessoal consistente. Além disso, não tinha voz ativa em um casamento de fachada com um homem que descrevia como arrogante e violento. Para dar uma ideia de sua passividade e submissão ao marido - é ela mesma que faz essa leitura -, aos 50 anos nunca tivera uma conta no banco em seu nome. No talão de cheques o seu nome nem constava: era Fulano e/ou. Em compensação, e para minha surpresa, era uma leitora voraz. Seu maior prazer era ficar sozinha na casa de praia com uma pilha de livros: não ter que servir marido e filhos e poder ler à vontade.

Na primeira entrevista a paciente disse duas coisas que, interpretadas, antecipavam o trabalho que teríamos pela frente. Primeiro, que seu cabelo era tingido. Segundo, que seu sonho era viajar sozinha a outro país, coisa que nunca havia ousado fazer. Defendida atrás de uma elegância adequada, leve e alegre (o cabelo tingido), a boa menina, que nunca deu trabalho, havia perdido de vista o que era autêntico e próprio. E precisava "virar gente", aceder à condição de sujeito, conquistando alguma autonomia e satisfação ("viajar sozinha"). Perguntava-se, com toda razão: "o que vou fazer nos próximos 30 anos?".

Dizia que, em casa, marido e filhos a consideravam burra. De fato, um vocabulário um tanto precário para seu nível sociocultural chamava minha atenção. Em sua família de origem, os pais apostaram tudo no filho homem. De certa forma, ela se via, e se apresentava, como uma "sonsa". Mas tal sonsice não me convencia, pois quando falava sobre seu cotidiano, é como se escrevesse "crônicas verbais" bastante perspicazes. Sessões e mais sessões se passavam dessa maneira. Os assuntos eram variados: filhos, amigas, marido, lugares, livros. O que se repetia era a forma esteticamente agradável.

Seria uma tentativa de sedução?

Talvez, mas, curiosamente, ela não se dava conta de como suas observações eram interessantes e vivas e como me despertavam curiosidade e prazer em ouvi-la. Mesmo que fosse algum tipo de sedução, isto não basta para construir um pensamento clínico. Que função tinham aqueles relatos? O que tentava me comunicar? Eu poderia pensar neles como defensivos da sua depressão, e eram mesmo. Mas o que eu ganharia em denunciar a defesa? O que ganhamos em mostrar ao paciente que ele não consegue pensar, integrar, sentir raiva, depender, tolerar frustrações etc.?

Na minha experiência como paciente e como analista, essas intervenções soam como críticas.

E com razão! O paciente está deitado no seu divã justamente porque não consegue tais coisas, o que lhe produz sofrimento psíquico. Até aí morreu Neves. O pensamento clínico começa quando o analista se pergunta por que esse paciente não consegue pensar, integrar, sentir raiva, depender e tolerar frustrações. O que, na história de sua relação com o objeto primário, teria impedido tudo isso?

É por isso que, no caso que estou comentando com você, eu preferia pensar que ela estava tentando, inconscientemente, "me contar", ou melhor, "me mostrar", do jeito possível, a história de sua depressão. Não através de palavras, mas através de atos: ela repetia o gesto, ou a mensagem, que teria ficado sem resposta, caído no vazio, no vínculo primário. Roussillon (2012) diz que o ato, o comportamento, a fala agida, enfim, a interação com o analista são "proposições em hold", no aguardo de uma resposta que mostre ao sujeito que foram decodificadas. As defesas entram em cena quando a comunicação primitiva fracassou e a criança "perdeu" o vínculo com seu objeto. Por isso acho pouco útil ficar apontando defesas, e prefiro trabalhar com aquilo que as tornou necessárias.

Em certo momento vem-me a imagem da criança que faz um desenho e o mostra à mãe, buscando saber de si através dela. Pensei também na relação com o pai, com quem tinha grandes afinidades em torno da leitura. De qualquer forma, a parte mais "pesada" da análise, ligada ao trauma primário e ao sofrimento narcísico que emperrava sua vida, aparecia nas muitas menções aos ataques e humilhações que um sobrinho sofria por parte do pai dele. O garoto acabou tendo um surto psicótico na adolescência. Esse material clínico me ajudou a perceber que era bem isso que vivia com o marido, representante do objeto primário.

Seja como for, um primeiro fragmento de pensamento clínico tem como base minha impressão de que ninguém, nem ela mesma, tinha visto a beleza de seu "cabelo autêntico", recoberto desde sempre com alguma tintura. São elementos "colhidos" no campo transferencial/contratransferencial. Como você vê, o material clínico bruto já está trabalhado e pensado a partir de teorias que estão implícitas no relato.

Por favor, poderia explicitá-las?

Sim, mas primeiro, uma observação: as teorias são redescobertas a partir da clínica. Digo redescobertas porque eu as conheço, estão latentes em mim, e são "ativadas" no meu contato transferencial com essa paciente - e não com todos, indiscriminadamente! Por isso emergem como novidade para mim. Se eu não as conhecesse, não poderia redescobri-las, e por isso é importante ter um repertório teórico diversificado. Muitas vezes me vi diante de um paciente que me levou - ou deveria ter me levado! - a estudar novos autores. A responsabilidade e a ética profissional nos obrigam a correr atrás. Imagine um médico que tratasse sua asma como pneumonia porque só estudou a última? Por outro lado, você percebe como redescobrir a teoria é diferente de aplicá-la à clínica?

Poxa, como é difícil explicitar as teorias que usei! Fica meio bobo, até porque há muitos "níveis" de teoria, desde o mais básico, como inconsciente e transferência, até as mais específicas para o caso. Além disso, elas estão tão metabolizadas que já se tornaram parte de mim, são minha própria "carne". Mas vamos lá. Quais são as teorias mais específicas que usei? Há ideias de Winnicott sobre a hiperadaptação defensiva, falso self e sobre a função espelho do rosto da mãe na constituição do sujeito. Há a teoria kleiniana da cisão defensiva como solução para o conflito, com perda de funções egoicas. Também poderíamos pensar no recalque da agressividade necessária a uma afirmação pessoal, necessário frente a uma figura parental que não tolera diferenças. Certa infantilização perante a vida e a falta de autonomia sugerem também uma zona de indiferenciação sujeito-objeto, efeito do trauma precoce na relação com o objeto primário, levando à constituição de identificações incorporativas na linha da "sonsa". A teoria do trauma é fundamental em meu pensamento clínico. Aqui tenho a impressão de ter lido sobre isso em diversos autores, cada qual explorando um recorte do tema. Uso também a noção de pulsão mensageira, de Roussillon - as proposições da criança que ficaram sem resposta -, para entender o fracasso na constituição de um bom narcisismo de base.

Além das teorias, há também certa postura diante do material clínico: reconheço o que foi negativado pelos mecanismos de defesa, bem como dimensões do trabalho psíquico que o analisando não consegue realizar - a dimensão "negativa" do material -, mas não fico apontando isso. Acho que soa crítico e não abre para novas associações. Prefiro trabalhar com a dimensão "positiva" do material clínico: parto do princípio de que tudo, mesmo a fala mais evacuatória, continha originalmente uma mensagem que "degenerou" por falta de resposta adequada. É no encontro, e em função da resposta do analista às proposições do paciente, que a mensagem agida se constitui como mensagem simbolizante e que o processo de simbolização pode ser "regenerado".

Interessante essa sua postura: mesmo a fala mais evacuatória poderia vir a significar alguma coisa. Poderia agora retomar o pensamento clínico? Qual seria a história emocional dessa submissão empobrecedora?

Pude reconhecer, a partir da interpretação do material clínico espalhado por muitas e muitas sessões, como a criança-nela aceitou, ou melhor, precisou se transformar numa "sonsa" para não ameaçar o narcisismo frágil da figura materna (representada pelo marido). E, por ter se tornado "sonsa", passou a depender inteiramente de uma figura forte, protetora e... intocável. Assim descrevia a mãe: uma matriarca intocável e com um grande prestígio social. No começo do nosso trabalho, ela tinha medo de se ouvir criticando o marido. Era como se estivesse descumprindo sua parte do contrato, já que uma sonsa, por definição, não tem senso crítico.

Pudemos reconhecer como estava presa na repetição desse "contrato", que regeu o casamento por 25 anos. Só agora percebia o preço que pagava pela sujeição ao outro. Não me recordo de suas palavras exatas, mas lembro que eram fortes: "estou morta, só esqueci de deitar e fechar o caixão". Começava a fazer contato com afetos de tonalidade depressiva, até então evitados.

Apesar disso, não conseguia dar o primeiro passo para tomar em mãos as rédeas de sua vida. Certo dia, quando me contava de um livro que estava lendo, perguntei-lhe o que achava de participar de uma oficina de escrita. Eu conhecia um colega que usava a escrita como mediação terapêutica. A proposta, com valor interpretativo, decorre de todo o pensamento clínico acima elaborado. Eu me lembrava também o quanto minha experiência de tratamento institucional de adolescentes me ensinara sobre o valor das oficinas terapêuticas. Não apenas o material da oficina funciona como meio expressivo das questões inconscientes, e uma oportunidade de elaboração, como a relação com o produto dá ao sujeito uma dimensão de quem ele é.

No começo, ela hesitou, não se sentia capaz. Lembrava-se que suas redações escolares eram econômicas, expunha-se o mínimo possível. Depois foi. A experiência foi fundamental. Mostrou-me alguns de seus textos - lembro-me de sua caligrafia miúda e apertada. Um dia mostrou-os também à família, que não tinha ideia de quem era aquela pessoa que cuidava de tudo em casa e com quem conviviam diariamente. Como antes, não me recordo exatamente das palavras, mas disse um dia, emocionada, que "essa era a primeira coisa que achava que sabia fazer direito".

Nesse meio tempo, sua posição em relação ao marido começa a mudar. Um fragmento ilustra a mudança. "Quando namorávamos, ele dirigia feito um louco e eu achava lindo. Não tinha medo porque ele me parecia forte e seguro de si. Hoje, quando ele dirige assim, vejo um cara sem noção que desrespeita os outros motoristas e nos coloca em risco por uma questão de vaidade pessoal. Se eu peço para ele dirigir mais devagar, acha que quero mandar nele e fica com ódio de mim. Não há comunicação possível." Agora estava ciente de que precisava se posicionar em relação a seu casamento.

Tornar-se sujeito também tem o seu preço... E a vida de "socialite"?

Ela continuava tomando seus cafés no shopping com as amigas, cuja escolha, contudo, se tornou mais criteriosa. Ao mesmo tempo, começou um trabalho com remuneração simbólica ligado à psicologia. O prazer que sentiu em montar sua própria sala, mobiliada a seu gosto, nos dava notícias da construção de um lugar próprio na vida. O processo de tornar-se sujeito mostrava seus frutos. No fim da análise estava se engajando em um trabalho ligado à literatura. Estava feliz, fazia o que gostava, desabrochava.

Nessa altura, o marido, representando o objeto primário, já não era apenas um "sem noção, que dirige feito um louco por pura vaidade". Ele foi ressignificado como frágil, inseguro, que agia com arrogância porque sequer conseguia perceber o quanto dependia dela. Surge um material inédito sobre as dificuldades profissionais e emocionais desse homem que, até agora, aparecia apenas como um tirano. Surge uma figura que se defende do sentimento de impotência e de humilhação narcísica, tiranizando e submetendo o outro. Finalizamos o nosso trabalho de uma maneira surpreendente para mim. "Agora que já me sinto gente, tenho condições de decidir sozinha se fico casada ou me separo. É uma decisão que quero tomar com calma."

Você não se sentiu excluída? (risos)

Achei que ela tinha razão. Precisava de uma analista para "virar gente", e não de uma consultora sentimental para resolver seu casamento! (risos).

Então, caro colega, percebeu como, graças ao pensamento clínico, clínica e teoria não se opõem? No início da conversa eu disse, citando Green (2002), que o pensamento clínico é "uma forma original e específica de racionalidade que emerge da experiência prática" (p. 11). De fato, quando construímos um pensamento a partir da clínica, procuramos criar/encontrar uma articulação e uma coerência entre: a) a forma de ser e de sofrer que está emperrando a vida do paciente, e que o traz à análise; b) o intrapsíquico - e aqui entram todos os elementos da metapsicologia: quais são as identificações que, historicamente, constituíram aquele sujeito, que tipo de trauma deixou suas marcas, quais são as características do desejo, como se deu a constituição do eu, das fronteiras e funções egoicas, como aquele psiquismo faz a gestão das angústias, quais as características da triangulação edipiana, seus núcleos psicóticos etc.; e c) o intersubjetivo: como esse intrapsíquico se manifesta na intersubjetividade, convocando e sendo convocado para certo tipo de interação, criando as condições que estão emperrando a vida do paciente e que se manifestam como "sintoma". Agradeço pela sua vinheta clínica, que nos deu tanto pano para manga.

 

Referências

Green, A. (2002). La pensée clinique. Paris: Odile Jacob        [ Links ]

Freud, S. (1975a). The Interpretation of Dreams. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., vol. 5, pp. 509-622). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1975b). Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., vol. 7, pp 1-122). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1975c). Remembering, Repeating and Working-Through. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., vol. 12, pp. 145-156). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (1975d). The Ego and the Id. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., vol. 19, pp. 1-66). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Kaës, R. (1991). Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In L. Yázigi (org.), A instituição e as instituições. (Joaquim Pereira Neto, trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Minerbo, M. (2013). Transferência: diálogo com um jovem colega. Jornal de Psicanálise, 46 (85),167-182.         [ Links ]

Roussillon, R. (2012). Manuel de pratique clinique. Issy-les-Moulineaux, França: Elsevier Masson.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/8/2014
Aceito em: 12/8/2014

 

 

1 Por iniciativa da diretora de Cultura e Comunidade, Liana Pinto Chaves. Gestão da presidente Nilde Parada Franch, de 2013-2014.

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