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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Entrevista: Ronald Britton1

 

 

A formação psicanalítica e seus espaços triangulares

AMF2 - O senhor poderia falar sobre as principais influências que identifica em seu trabalho?

Britton - Diria que a principal influência em todo meu pensamento foi a de Freud, provavelmente. Do passado, além de Freud, eu poderia citar Melanie Klein e Bion. Também fui muito influenciado por meus supervisores, que foram Hanna Segal, Betty Joseph e Herbert Rosenfeld, e meus contemporâneos de formação. Fui membro do que chamávamos "Workshop clínico de Betty Joseph" por mais de 25 anos como analista, depois de ter me qualificado. E naquele grupo de pessoas, que incluía John Steiner, Michael Feldman, Priscilla Roth, Inês Sodré e várias outras pessoas, todos nos influenciávamos uns aos outros. Era um workshop no qual nunca discutíamos teoria, apenas discutíamos casos detalhadamente, fazíamos apresentação de casos. Portanto uma forma de pensar muito baseada na clínica, que era realmente nossa abordagem. As pessoas variavam, claro, mas acho que foi uma base de muita influência, o minucioso exame do trabalho de cada um, o qual só se pode fazer quando as pessoas estão juntas por um bom período de tempo e confiam plenamente umas nas outras. Porque todos acabam se expondo, particularmente no que diz respeito à contratransferência, no que se pensa que está acontecendo entre paciente e analista, de uma forma completamente aberta. Era um grupo de cerca de 12 pessoas, e eu diria que foi minha maior influência.

AMF - Em sua opinião, o que qualifica uma pessoa para ser analista?

Britton - É interessante que você tenha usado a palavra qualifica. É preciso muito tempo para alguém se tornar analista, acredito. Então, quando você diz "o que qualifica uma pessoa para se tornar analista", isso sugere que alguém se torna analista quando se qualifica para isso, o que por várias razões é realmente apenas o início. Uma pessoa continua a se desenvolver quando termina a formação e se desenvolve mais, em minha opinião, depois disso, à medida que se torna mais ela mesma como analista. Leva tempo encontrar seu próprio caminho. Em literatura um autor descreveria esse processo como encontrar sua própria voz e experiência. Então o que faz de alguém um analista? Aptidão. Nem todo mundo tem aptidão. Não tenho certeza de que se possa descrever ou observar facilmente o que é aptidão. Não tem a ver com inteligência, há muitas pessoas inteligentes que não têm aptidão para ser analistas. Existe, então, essa aptidão particular, que, à medida que se desenvolve, leva ao pensamento, pensamento simbólico, por exemplo, metafórico. E há pessoas com uma espécie de habilidade para captar clinicamente que têm uma sensibilidade em relação a outras pessoas. Essa sensibilidade que se tem em relação ao estado de mente da outra pessoa aumenta à medida que se progride como analista. Socialmente isso é quase uma maldição.

AMF - O que isso significa?

Britton - Bem, não é normalmente desejável ser tão supersensível aos estados de mente das outras pessoas em situações sociais. Isso pode tornar as situações sociais ainda mais desconfortáveis do que seriam. Mas esse é certamente um elemento importante para um analista. Outro elemento importante é a imaginação, que eu também ligaria a uma habilidade para pensar em termos de fantasia. E provavelmente, por fim, uma capacidade de desenvolver o autoexame, a capacidade de testemunhar a si mesmo sendo quem se é. Ou seja, ser tanto subjetivo quanto objetivo ou ter objetividade na subjetividade.

AMF - Todas as características que o senhor mencionou - aptidão, sen sibilidade e imaginação - talvez já estejam presentes antes de um treinamento analítico formal. Então, em sua opinião, o que um instituto pode oferecer a um analista?

Britton - Bem, eu primeiro diria, simplesmente, dar um sólido conhecimento teórico sobre o campo, através de fontes primárias. Sempre gosto que as pessoas leiam as fontes primárias. Tenho visto que Freud nem sempre é tão lido diretamente na fonte, mas secundariamente, e isso nunca faz jus a Freud. Diria o mesmo sobre Klein, gosto que as pessoas leiam Klein, e isso acontece ainda menos do que com Freud, em parte porque ela não é uma escritora tão elegante nem fácil de ler como Freud. Ela é bem prolixa, tende a fazer digressões e ser detalhista, o que se aprende a apreciar mais tarde quando se volta a essas leituras. Mas no início parece uma sobrecarga para um candidato, acredito.

Tenho relido Klein recentemente por conta do trabalho que apresentarei aqui3 e fiquei quase surpreso. É como voltar a Freud, você lê novamente pela enésima vez, por exemplo, para ensinar, e encontra coisas que não tinha reparado antes. O mesmo acontece com Bion. Nunca achei Bion difícil de ler, mas muitas pessoas dizem que acham. Bion deixou Londres na época em que eu estava fazendo a formação. Ele tinha se mudado para a Califórnia, mas seu fantasma ainda estava em Londres, particularmente na Tavistock, onde frequentei ao mesmo tempo que no Instituto de Psicanálise. Quando ele voltou a Londres para fazer palestras eu o encontrei e o conheci. Então cresci com Bion, não como muitas pessoas tinham feito antes, quando tudo ainda era novidade. De certa forma, conheci Bion ao mesmo tempo que conheci a psicanálise. Isso tornou as coisas mais fáceis. Para ser sincero, as pessoas dizem que ele é difícil de ler, mas penso que ele não escrevia muito bem, não tinha facilidade para escrever como Freud, por exemplo. Às vezes pode ser um engano achar que se trata de obscuridade mística quando é apenas obscuridade.

AMF - O senhor acha que o conceito clínico de terceira posição e espaço triangular poderia também ser usado para pensar sobre a formação analítica?

Britton - Claro. Quando falei sobre minha trajetória pertencendo ao Workshop de Betty Joseph, de certo modo tudo o que fazíamos era escutar os casos uns dos outros. Nunca discutíamos teoria, mas falávamos sobre a interação paciente e analista quase todo o tempo. Então, realizar esse tipo de coisa com colegas em quem se possa confiar ajuda a criar um caminho de observação de si próprio em ação, é realmente a terceira posição. Observar o próprio estado de mente e a própria interação. Se for possível, pois é algo difícil de ser alcançado. Veja, quando primeiro escrevi a esse respeito pode-se dizer que foi mais por desespero do que por inspiração. Estava trabalhando com algumas personalidades severamente borderlines, com as quais esse tipo de observação era extremamente difícil, e tentava identificar justamente por que era tão difícil analisar esses pacientes. Não havia uma terceira posição, havia apenas uma oscilação lá e cá entre interações intersubjetivas geralmente perturbadoras. E foi o esforço para escapar disso, para poder ser capaz de ver o que estava acontecendo comigo e com meu paciente, que me fez ter essa ideia. Precisei disso para me distanciar de certa forma, não para sair da minha posição, mas para vê-la a partir de outra perspectiva.

AMF - Como uma testemunha?

Britton - Sim, de si mesmo e do paciente. Mas é uma posição a ser alcançada, algo que você luta para conseguir. Tenho visto em analistas muito experientes e capazes, que ocasionalmente procuram pessoas como eu em busca de supervisão ou ajuda para casos muito difíceis, como isso os auxilia em situação desse tipo. Falar com um colega facilita que essa posição seja mais facilmente alcançada.

AMF - Também poderíamos relacionar isso ao conceito de "ansiedade de publicação" sobre o qual o senhor escreveu?

Britton - Se vocês lerem o que escrevi, penso que verão que se trata de um homem que tinha um problema e resolveu escrever sobre ele. A maioria dos meus trabalhos surge de algum tipo de problema.

AMF - E não acontece assim com todos os trabalhos psicanalíticos?

Britton - Sim, e esse era outro problema. Foi algo que me ocorreu quando comecei a escrever, ainda sob a influência de meus antecessores, que estavam à minha volta. No meu caso, Betty Joseph, Herbert Rosenfeld, Hanna Seagal e alguns outros mais. Eram como pais ou mesmo avós observando. Então isso me levou a pensar sobre o que é uma publicação, qual é a ansiedade? Lembro-me que um dos comentários favoritos de John Steiner era "Eu não fico ansioso falando com a Sociedade como um todo, com todos os diferentes grupos teóricos. Só fico ansioso quando estou falando com os kleinianos". Foi o que eu quis dizer a respeito de influências. Esse foi meu ponto de partida e pensei: "bem, co- mo posso ilustrar essa questão?". Fiquei muito impressionado pelo modo como penso que Abraham viveu esse problema, quando começou a produzir suas próprias ideias. Algumas eram novas, mas pelo jeito que escrevia percebe-se que ainda tinha Freud sobre seus ombros. Ele estava prestes a introduzir algo novo, por exemplo, sobre a importância central da figura materna na depressão. Claro que o complexo paterno estava no pano de fundo, e isso é claramente o tipo de coisa que acontece quando se tem um antecessor por perto. Queria ilustrar isso, mas pensei: "quem eu poderia usar como exemplo?". Decidi usar a mim mesmo, anonimamente, como exemplo de alguém que no início do artigo estava esmagado pela presença ancestral. Usei, então, um trabalho que apresentei ao grupo de estudos kleinianos, e enquanto estava lá percebia o que estava acontecendo com a pessoa que havia escrito aquele trabalho, que era eu mesmo. Havia mencionado os três supervisores em referências bibliográficas, já no primeiro parágrafo, sem necessidade alguma!

AMF - Em sua opinião, quais são as principais diferenças entre a formação psicanalítica oferecida pelos institutos atualmente e a da época em que o senhor era candidato? São semelhantes ou houve mudanças?

Britton - Isso é muito interessante. A Sociedade Britânica, como vocês sabem, estava tomada por controvérsias. Quando fiz minha formação, as controvérsias ainda estavam em seu auge, envolvendo três grupos. Originalmente eram dois, o de Anna Freud e o de Klein, chamados simplesmente de a e b. Mas então a se dividiu em dois, o das pessoas mais próximas a Klein, na verdade membros de seu seminário, que costumávamos chamar de grupo do Meio, o maior grupo da Sociedade e com visões teóricas variadas daquela época, e o grupo de Hampstead, que era o grupo de Anna Freud enquanto ela estava viva e influente. O que mudou em relação a isso? Bem, durante anos lidamos com essas controvérsias mediante um acordo de cavalheiros, o que significava que dividíamos tudo por três. Na época em que fui presidente abolimos isso, formalmente, porque era quase aritmético e não estava funcionando muito bem. Os grupos não tinham o mesmo tamanho, alguns estavam crescendo, outros, encolhendo, e ainda assim era preciso ter três de tudo, painéis, comitês etc. Então conseguimos mudar isso, não muito tempo atrás, em 2003, mas poderia dizer que o espírito continua. Originalmente acho que foi proveitoso, por que permitiu que as pessoas prosseguissem com suas próprias preocupações. Era uma grande ajuda, por exemplo, para os kleinianos, não se preocuparem como suas ideias se ajustavam, mas que elas continuassem sendo desenvolvidas. Claro que a formação sempre se manteve tendo como base o fato de que as pessoas precisavam entrar em contato com todas as abordagens, e isso permaneceu assim. Então sempre houve muita fertilização cruzada. Muitas pessoas pensam que foi uma grande solução conciliatória, e foi, manteve uma Sociedade, que teria se dividido em duas, como uma só Sociedade. A única desvantagem é que eventualmente se constituíram quase como agrupamentos sociais, o que tende a perpetuá-los para além das diferenças teóricas. As pessoas se conhecem e daí temos as linhas de descendência: quem foi analisado por quem e supervisionado por quem. Então é difícil imaginar que haja uma mudança nesse aspecto. Está mudando, as ideias se interpenetraram, isso é claro, mas acho que existe um certo tipo de agrupamento que tem a ver com familiaridade, com as pessoas que se conhecem. Com frequência, em psicanálise, as questões reais são algo como "a quem você encaminharia um paciente?". E isso não tem necessariamente relação direta com a orientação teórica.

AMF - Nesse caso, o senhor acha que a formação de hoje em dia possibi lita que o analista seja teoricamente mais livre, ou mais criativo e imaginativo que antes?

Britton - Não estou bem certo disso. Como disse, tive muita sorte em minha formação, então não posso me queixar em relação a qualquer falta de incentivo para ser livre ou imaginativo. Especialmente quanto às pessoas que me influenciaram. Hanna Segal na verdade escreveu um belo trabalho sobre a liberdade, ela era alguém que acreditava que esse era o objetivo da análise, logo isso estava muito presente na época da minha formação. Talvez eu seja muito velho, mas não me parece que haja realmente um progresso linear. Há avanços e retrocessos. Acho que a habilidade para trabalhar na transferência e contratransferência aumentou e, assim, consequentemente, a capacidade de abordar o que está realmente acontecendo na sala aqui e agora. Mas quando penso sobre isso, e escutando o trabalho de outras pessoas, não acho que a geração mais nova está tão simbolicamente familiarizada como estávamos na época de nossa formação. Não está tão na ponta da língua como costumava ser. Acho que perdem algumas coisas dentro dessa perspectiva.

AMF - É como se houvesse um retrocesso nesse sentido?

Britton - Bem, podemos dar dois passos para frente e um para trás e não um passo para frente e dois para trás. Sempre haverá algum tipo de sacrifício.

AMF - O que o senhor quer dizer com "simbolicamente familiarizado"?

Britton - Klein é a mais rica autora em termos de simbolismo, penso eu, e os aspectos simbólicos foram enfatizados em demasia durante um certo tempo, com muitas interpretações de objetos parciais e partes do corpo etc. Isso ficou fora de moda, e acho que acertadamente. Mas houve alguma perda na sensibilidade para ouvir o material, coletando referências simbólicas escondidas na geografia do corpo, e naquela tradução rápida que se pode desenvolver, fazendo uma ligação entre o que o paciente está falando abertamente e o que poderia ser visto simbolicamente.

AMF - Em seus textos pode-se também perceber a importância dada ao re pertório cultural do analista. Há um diálogo constante entre literatura, poesia, filosofia etc. Do seu ponto de vista, quais são as principais contribuições desse diálogo para a psicanálise e como as duas partes podem se beneficiar disso?

Britton - A literatura é realmente meu outro tema. Não sou filósofo, mas preciso saber filosofia o suficiente para ver se o que estou falando faz sentido. Quando escrevi sobre crença, por exemplo, parti inteiramente da clínica e não estava certo sobre a solidez do meu próprio pensamento. Então pedi a uma pessoa para dar uma olhada, como filósofo, e dizer se aquilo estava filosoficamente correto, se não era algo nonsense, em outras palavras. Mas quanto à literatura, vejo escritores sérios como nossos colegas. Os poetas sérios, especialmente desde o romantismo, desde Milton, e certamente colocaria Shakespeare como um antecessor, e depois os novelistas têm estudado o mesmo assunto que estudamos. Eles foram, em certo sentido, os pré-analistas, e Freud foi enormemente influenciado pela literatura, um leitor extraordinariamente abrangente. Seu conhecimento de literatura inglesa, é claro, era enorme, porque ele era bastante anglófilo. Ele, na verdade, quis viver na Inglaterra em uma época, e adotou muitas ideias inglesas quando era jovem, antes de ser médico. O modo como Freud começou, descobrindo o que agora chamamos de complexo de Édipo nos pacientes, muitas mulheres, na verdade, e o exemplo que ele dá logo que fez essa descoberta, em uma carta a Fliess, foi o de um sonho de sua própria empregada; depois em sua autoanálise, em cuja época ele se volta para a literatura e lê Sófocles, que foi de onde tirou o nome e o tema. E na época em que estava escrevendo Interpretação dos sonhos, pouco tempo depois, ele se volta para Hamlet, de Shakespeare. Ele não se volta para a psicologia ou psiquiatria como apoio a essa altura, ele procura regularmente aliados na literatura, como se buscasse um paralelo literário, e o faz repetidamente.

AMF - O senhor estava falando sobre as crenças e sobre um olhar para a filosofia...

Britton - Para ter certeza de que não era nenhuma bobagem, sim...

AMF - E estava pensando na ressonância de seu trabalho no campo da história, no que se chama "história das ideias", quando se vê como uma ideia poderosamente atravessa gerações.

Britton - Um sistema dominante de crenças, certamente...

AMF - Então, quando o senhor estava falando sobre os pré-analistas de Freud, também poderíamos incluir esse sistema de crenças?

Britton - Sim, particularmente, podemos dizer que houve uma enorme mudança na filosofia desde que Deus desapareceu dela. E veio, no final do século XVIii e início do XIX, o desenvolvimento do chamado supernaturalismo natural. O natural se tornou objeto de estudo, incluindo a pessoa, com mais ênfase ainda no século XIX. E assim essa exploração teve início. É possível ver o desenvolvimento e a confluência dos avanços da neurociência na época de Freud, um avanço bastante considerável, com o tipo de interesse que era particular a Freud, porque ele estava mergulhado em seu background de literatura e filosofia, além de ser neurocientista. E em Freud não há interrupção nesse sentido, há uma linha contínua de pensamento, não é mesmo? Seja quando ele fala de Hamlet ou quando tem uma ideia sobre neurônios.

Gostaria de dizer algo sobre o que escrevi a respeito de crença. Sempre tenho dificuldade para que percebam que o que entendo por crença é o que as pessoas consideram como fatos. Porque, no momento em que você menciona "crença", elas pensam que se trata de algo como uma posição racional, o que, de todo modo, é frequentemente uma racionalização, em oposição ao que é tratado como fato, que apenas subsequentemente é descoberto, o que é bastante parecido com a noção de terceira posição, apenas subsequentemente você percebe que na realidade é algo em que você acreditou, não um fato. Você pensou naquilo como um fato, mas o que é realmente fato é que você acreditou nele. Esse é o processo de crença. Eu o vejo como um processo, para mim, crença é como uma ligação a um objeto, uma ligação a uma ideia ou a uma fantasia e uma ligação terrivelmente poderosa e muito difícil de ser rompida, de ser abandonada. Porque há um sentimento de perda, um grande sentimento de perda.

AMF - Pela sua descrição, é algo interno e muito profundo. A questão en tão seria onde procurar, já que frequentemente não reconhecemos nossas pró prias crenças para questioná-las.

Britton - É interessante, pois foi o ponto de partida de Descartes. Ao questionar qualquer coisa e tudo, ele estava mais ou menos dizendo que é preciso admitir que estranhas crenças nós temos, seja quando criança ou enquanto crescemos e assim por diante; seria como imaginar de que forma posso confiar naquilo que agora creio ser um fato. Então não é uma ideia nova, está na filosofia desde aquela época.

AMF - Então quais são suas crenças a respeito da psicanálise hoje e no futuro?

Britton - Bem, acredito que a psicanálise vai passar por fases nas quais o espírito da época lhe será favorável e por períodos em que o espírito da época será muito desfavorável e tortuoso. Então terá que sobreviver a ambos. Um período no qual o clima é favorável demais, que penso ser o que aconteceu na América do Norte, não ajuda a psicanálise, pois ela se tornou um modismo e superficial.

AMF - Nos anos 1950?

Britton - A verdade é que até mais cedo. Voltem aos anos 1920 e 1930, quando ela se tornou dogmática, eu acho, estreita, supervalorizada. E então, claro, ela passa por uma fase como a de agora na Europa, quando enfrenta um período bastante árido. Por dois motivos, creio. Primeiro há uma grande ênfase no cognitivo, não em um método cognitivo, mas na cognição. Culturalmente, uma crença da qual pensei que havíamos nos livrado é aquela segundo a qual é possível racionalizar a respeito de tudo, que é preciso somente trabalhar com a lógica da razão, e isso está mais presente agora do que quando eu era mais novo, pois na minha época isso era justamente o que estava sendo desacreditado. Em segundo lugar, o que é muito contra nós, temos o grande desejo por soluções rápidas, soluções óbvias e evidentes. Basta ouvir entrevistas no rádio sobre qualquer assunto, particularmente quando é uma entrevista boa, como, por exemplo, quando estão falando com um cientista. Eles vão tentar fazer o cientista explicar algo que é relativamente novo e a pergunta seguinte é: "E, então, o que fazemos com isso?". E com um bom cientista há sempre uma espécie de silêncio, como se dissesse "Bem, isso é muito novo. Essa não é uma pergunta muito relevante. Temos agora que nos familiarizar primeiro com algo que estamos sabendo agora, mas não sabíamos antes. Sequer sabemos como isso vai funcionar e que implicações terá com o que pensávamos antes". E isso é um pouco como a psicanálise. Quando produzimos, se é que de todo produzimos uma ideia nova, o quanto ela modifica uma ideia mais antiga? Leva tempo e não somos muito bons nisso. Então temos um enorme quarto de entulhos para teorias psicanalíticas, algumas redundantes, mas quem tem coragem de adentrar ao sótão? É como o sótão das pessoas. Sempre temos algumas coisas das quais nunca conseguimos nos desfazer, e acho que as teorias psicanalíticas são um pouco assim.

O que tentei enfatizar é o fato de que o movimento de ideias é inevitável. Algumas vezes da coerência para a incoerência e incerteza. Esse é um passo para o desenvolvimento e, claro, ele vai se integrar ao passo seguinte. Acho que houve muita ênfase, desde Melanie Klein, em pensar sobre a posição depressiva como um período de integração e que esse seria um objetivo final. Houve uma época, quando eu era um jovem analista, que as pessoas eram consideradas maduras se estivessem na posição depressiva e imaturas se não estivessem. Assim como no pensamento freudiano, em que o conceito a ser alcançado era o de genitalidade madura, como uma espécie de objetivo que as pessoas esperavam alcançar durante a análise, caso pretendessem tornarem-se analistas. Bem, essa posição depressiva de que se está falando é a posição depressiva de ontem e, portanto, é de fato uma organização patológica a essa altura. Está querendo de certa forma ficar em algum lugar. Então propus o que chamo Ep (n+1), que significa mais fragmentação e uma tolerância disso. Um grau de não integração, não uma desintegração, e, sim, não integração até que alguma coisa realmente surja. Venho enfatizando isso e passei a acreditar que essa é a situação da psicanálise. Então, se você me perguntar "onde está a psicanálise?", eu responderia nos meus próprios termos que está em Ep (n+1). Há fatos que entulham a sala, há descobertas, você pode encontrar algumas certezas, mas elas não se aglutinam facilmente em uma certeza geral, abrangente e articulada. Então é preciso tolerar diferença e fragmentação.

AMF - O senhor esteve recentemente em nosso país, no ano passado. Poderia nos contar sobre suas impressões a respeito da psicanálise no Brasil e na América Latina?

Britton - Vocês podem não concordar, mas para alguém que está vindo da Europa, uma impressão inicial e muito agradável é a de entusiasmo. Há entusiasmo pela psicanálise na América Latina, mais do que na Europa. Estamos sempre na contracorrente, especialmente na Inglaterra. É um triste fato que a psicanálise britânica tenha sido muito influente, exceto na Grã-Bretanha. Mas também temos uma situação privilegiada porque muitos estrangeiros foram morar lá, e ainda vão. Esse é um ganho que temos na Grã-Bretanha, atraímos pessoas, então temos esse benefício. Também há um tipo de questionamento que parece ser característico na América Latina, eu diria. Que pode ter muitas raízes culturais e políticas, um descrédito na autoridade. Seja em relação à psicanálise ou a qualquer outra coisa. Há um desejo por novidade, frescor. Na Inglaterra, as pessoas se sentem mais seguras com o que lhes é mais familiar.

AMF - Muito obrigado, foi um prazer tê-lo aqui conosco.

Britton - Obrigado por suas perguntas, elas me fizeram pensar.

 

 

1 Analista didata da Sociedade Britânica de Psicanálise (bps), autor dos livros O Complexo de Édipo hoje: implicações clínicas (1989, coautoria), Crença e imaginação: explorações em psicanálise (1998) e Sex, Death and the Superego (2003). A Associação dos Membros Filiados, dando continuidade à série de entrevistas já realizadas, teve a oportunidade de recebê-lo no dia 23 de abril de 2014, por ocasião de sua visita à SBPSP. Nesta conversa, Ronald Britton conta sobre sua trajetória e revisita alguns de seus principais conceitos, articulando-os em torno da temática da formação em psicanálise.
2 Estiveram presentes Berta Hoffmann Azevedo, Mônica J. Fischbach Saliby e Alexandre Socha.
3 A situação edipiana: desenvolvimento natural ou ruptura de relações?, conferência proferida na SBPSP no dia 24 de abril de 2014.

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