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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dez. 2014

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Da horda à comunidade psicanalítica: a função da fratria na transmissão da psicanálise

 

From horde to the psychoanalytic community, the function of phratry in the transmission of psychoanalysis

 

De la horda a la comunidad psicoanalítica a la función de la fratria en la trasmisión de la psicoanálisis

 

 

Cláudia Amaral Mello Suannes; Mariangela Kamnitzer Bracco

Membros filiados ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. clausuannes@gmail.com, mkb@bracco.com.br

 


RESUMO

Neste artigo procuramos refletir sobre a função da fratria na transmissão da psicanálise. A partir do trabalho de Maria Rita Kehl, A função fraterna, apontamos para a importância da troca entre pares que, baseada numa identificação horizontal, pode desestabilizar uma imagem idealizada que o psicanalista tem de si próprio e da psicanálise. Nesse sentido, o "pacto entre irmãos" preserva a memória dos pais e dos antepassados, ao mesmo tempo que imprime uma marca de renovação na herança recebida. Unidos por laços identificatórios, os colegas constituem a comunidade psicanalítica, que se encarrega, por sua vez, da transmissão renovada da psicanálise.

Palavras-chave: transmissão da psicanálise, função fraterna, institutos de psicanálise


ABSTRACT

In this article we reflect on the function of the phratry in the transmission of psychoanalysis. Starting from Maria Rita Kehl's article, Fraternal Function, we analyze the exchanges between peers based on a horizontal ID that disrupts an idealized image that the analyst has of himself and psychoanalysis. In this sense, the "pact between brothers preserves the memory of parents and ancestors, while printing a renovation mark on inheritance received." United by identificatory bonds, colleagues constitute the psychoanalytic community, which is responsible, in turn, for the renewed transmission of psychoanalysis.

Keywords: transmission of psychoanalysis, fraternal function, psychoanalysis institutes


RESUMEN

En este artículo se reflexiona sobre la función de la fratría en la transmisión del psicoanálisis. A partir de artículo Maria Rita Kehl, Función fraternal, se analizan los intercambios entre pares se basa en una identificación horizontal que interrumpe una imagen idealizada que el analista tiene de sí mismo y el psicoanálisis. En este sentido, el "pacto entre hermanos conserva la memoria de los padres y antepasados, mientras que la impresión de una marca de renovación de la herencia recibida. Unidos por estrechos lazos identificatorios, colegas constituyen la comunidad psicoanalítica, que es responsable, a su vez, la transmisión renovada del psicoanálisis.

Palabras clave: transmisión del psicoanálisis, función fraterna, institutos de psicoanálisis


 

 

Introdução

Em 2013, o Jornal de Psicanálise criou uma sessão para artigos produzidos pela Associação dos Membros Filiados. Esse espaço, ao mesmo tempo que endossa a importância da associação, nos convoca a produzir um novo artigo a cada nova edição. Não é pequena a tarefa: colegas se reúnem e redigem um artigo coletivo que, por sua vez, deve expressar os anseios e perspectivas de um grupo maior.

Uma imagem viva e bem brasileira deu colorido a esse desafio: a roda de capoeira. Como nela, em que um grupo maior marca o ritmo e dá contorno a uma dupla ou a um trio que vai para o centro da roda, os pequenos grupos que se formam para a redação do artigo apresentam uma questão e, depois, retornam ao grupo maior para dar sustentação às novas duplas ou trios que se formam. Para acompanhar o ritmo dessa dança, retomaremos brevemente os trabalhos publicados por nossos colegas, afinal, o que escrevemos se insere de alguma forma na ciranda, na roda, do que já foi escrito.

No primeiro desses trabalhos, os autores ressaltaram que a Associação exerce a importante função de terceiro frente a um pacto narcísico que pode ocorrer entre membro filiado e instituição. Já o segundo trabalho se apoiou em Roussillon para se referir à Associação como "espaço intersticial", que propicia a troca, e, assim, as vozes individuais, muitas vezes difusas, ganham a potência de um discurso compartilhado e compartilhável. O terceiro trabalho, por sua vez, discorreu sobre as vicissitudes da formação dos membros filiados que, morando em outras cidades, se deslocam semanalmente para São Paulo para fazer análise didática, supervisão ou participar de seminários clínicos e teóricos. Nesse texto, entre outros temas, abordou-se a importância da amizade e do contato com o estrangeiro como propiciador de maior integração dos aspectos estrangeiros de nós mesmos.

Diferentes entre si, os trabalhos mencionados tinham um ponto em comum: trataram da importância do outro na vida institucional. Essa questão também animou nossas conversas enquanto amadurecíamos o conteúdo do atual artigo. Inicialmente nos ocorreram lembranças que, de alguma forma, diziam que o outro, personificado na figura do colega, era fundamental na construção da identidade psicanalítica. O colega que ocupa o mesmo lugar no espaço institucional acolhe e rivaliza, referenda e desestabiliza, compreende e provoca. Nem idêntico a si próprio, nem radicalmente diferente, o outro traz em si a marca do semelhante, criando um contraponto que rompe com uma prisão especular que pode advir da identificação com o analista ou o supervisor.

Nesse contexto, a metáfora da irmandade cai como uma luva para ilustrar a complexidade da relação entre colegas e para expressar como a troca entre pares é constitutiva dessa identidade psicanalítica. De fato, em nossas conversas, referíamos de maneira jocosa a nossos colegas como irmãos, primos; enfim membros de um mesmo clã, de uma mesma família.

Mas a metáfora da irmandade adquiriu um novo sentido; apontou para a ideia de uma nova geração. Geração esta que não só preserva a memória dos pais e antepassados, mas que imprime também uma marca de renovação na herança recebida. Estendendo essa metáfora para o âmbito institucional, são os colegas unidos por laços identificatórios que constituem a comunidade psicanalítica, que se encarrega, por sua vez, da transmissão renovada da psicanálise.

 

O pacto fraterno como operador da função paterna

Em A função fraterna, Maria Rita Kehl chama a atenção para o caráter necessário da participação do semelhante no processo de subjetivação humana e procura examinar a ideia de fratria na psicanálise, tendo como eixo de sua reflexão o pacto estabelecido entre os irmãos, o qual pressupõe uma identificação com o pai primevo. Retomando o mito freudiano da passagem da horda para o grupo, exposto em "Totem e tabu", a autora lembra que o ato cometido pelos irmãos contra o pai funda, a um só tempo, a culpa e a lei.

De acordo com Kehl:

Ao desamparo que se seguiu à morte do pai opressivo, porém protetor, a função paterna instituiu-se como modo de amparo simbólico aos membros da nova comunidade: a Lei estabelecida pelo acordo entre os irmãos exige a renuncia de algumas satisfações pulsionais, como condição para se pertencer à coletividade e se beneficiar das vantagens asseguradas pelo pacto civilizatório. Assim, o pacto entre os irmãos é que possibilita que a função paterna continue operando após a morte do pai, e o faz a partir da instauração da cultura e da linguagem. (2000)

Ora, se por um lado o pacto civilizatório cria a condição de uma memória compartilhada e de uma proteção possível diante do desamparo, por outro lado só pode ser estabelecido pela aliança entre semelhantes e não pela consagração do idêntico. Iguais em termos do vínculo que têm com o ancestral comum, cada um dos irmãos é um sujeito singular e, como tal, apropria-se da herança do pai a sua maneira.

Ao longo do texto, Maria Rita Kehl desconstrói a conexão presente no senso comum entre fraternidade e igualdade e ressalta: a condição fundamental da fraternidade é a semelhança na diferença. Ou, dito de outra forma, a aliança estabelecida entre semelhantes só se faz mediante a constatação da diferença. Depois do assassinato do pai primevo, há uma divisão de tarefas e discriminação de lugares segundo critérios de habilidades, ordem de nascimento, entre outros. Os nomes de cada um dos filhos têm uma dupla inscrição, o prenome e o patronímico, que expressa o que o sujeito tem de singular e de social. Os irmãos criam um ideal coletivo que legitima o pacto social e, ao mesmo tempo, são forçados a se haver com essas diferenças. Sendo assim, o surgimento do novo ou do inusitado não abalaria necessariamente os alicerces do que foi deixado pelo fundador, uma vez que a aliança está fundada na diversidade.

Retornando à questão que nos anima, que é o papel da fratria no processo de transmissão da psicanálise, prossigamos, então, a reflexão enfocando o papel dos institutos de psicanálise.

 

O mal-estar na formação: o papel dos institutos

O Jornal de Psicanálise propôs uma trilogia sobre o tema "transmissão". Como mencionado na carta-convite para esta edição,

Toda instituição tem um espaço psíquico próprio, cuja dinâmica solicita a compreensão por parte de seus membros. ... Caberia, assim, aos institutos de formação garantir espaços para pensar sobre seus funcionamentos internos e externos, suas inevitáveis zonas de não ditos, seus contratos narcísicos e demais elementos inconscientes que escapam a qualquer formalização ou regulamentação. (Equipe Editorial, 2014, p. 16)

Pensando no papel dos institutos, Márcio Giovannetti (2004) aponta para dois modelos alternativos de formação psicanalítica, e para ilustrá-los ele se utiliza de metáforas provindas de material clínico.

A primeira delas é o de uma catedral gótica. Uma paciente, durante uma viagem pela Europa, se perdeu e teve sua angústia aplacada ao ver a grande catedral iluminada. A Sociedade de Psicanálise, segundo essa imagem, seria esse lugar sagrado que abriga um saber canônico, ao qual se recorre como referência inquestionável. E aqui acrescentaríamos: não convida a prosseguir viagem pelas vielas estreitas e mal iluminadas que estão na cercania do grande monumento.

A segunda metáfora, por sua vez, alude a um apartamento perfeito, almejado por um paciente, cuja aquisição, porém, não se efetivou. Ela representa a Sociedade como um lugar idealizado que, contudo, foi perdido. E aqui vamos citar o próprio Márcio (2014):

Estão postas aí as alternativas que temos hoje em nossos institutos. Ou os tratamos como catedrais, lugares do sacrossanto saber, ou encaramos a angústia da sua perda como lugares idealizados. Não é necessário dizer que a transmissão se fará de modo muito diferente, quer adotemos uma ou outra perspectiva. Uma das maiores feridas narcísicas decorre da constatação de que nossos pais não foram excelentes. Apenas nos deram a vida dentro de todas as suas limitações humanas. Nossos antepassados psicanalíticos, a despeito de toda sua fertilidade e paixão, também tinham um inconsciente e estavam inseridos em seu momento histórico... (Giovannetti, p. 51)

Tendo em vista o que foi exposto a respeito da função fraterna, não nos parece ousado aplicar o "mito científico" do parricídio e canibalismo aventado por Freud em "Totem e tabu" aos dois modelos propostos por Giovannetti.

No primeiro deles, o da catedral, os filhos estariam submetidos de maneira reverencial ao poder do pai e dos antepassados, e a transmissão da psicanálise se daria num registro basicamente vertical. As ideias de autoridade e de valor prevalecem, e o temor reverencial impede justamente que o pai seja incorporado e mantido como um pensamento vivo e atual. Unidos por um pacto melancólico, os herdeiros não conseguem fazer o movimento de tornar seu aquilo que lhes foi transmitido e, assim, não conservam em si a inventividade clínica e a fecundidade de seus antepassados. Há nesse modelo um caráter religioso, que promove a sensação de segurança àqueles que a ele aderem. Trata-se, entretanto, de uma reprodução ritualística da psicanálise que tende a esgotá-la, pois, à medida que ignora o presente com suas mudanças, não amplia o acervo psicanalítico para que possa ser aproveitado pelos contemporâneos e vir a ser transmitido às novas gerações.

No segundo deles, o do apartamento perdido, os filhos que tanta admiração tinham pelo pai o devoram e se apropriam canibalisticamente de suas qualidades. À refeição totêmica sobrevêm o desamparo e o luto. Premidos pela culpa e cientes de que o parricídio só pode ser consumado devido à união entre os irmãos, eles acordam que doravante todos são herdeiros da psicanálise e nenhum deles será o detentor único do legado do pai, da verdadeira psicanálise. De acordo com esse modelo, a transmissão não se dá apenas no sentido vertical, da identificação com o patriarca, mas comporta uma identificação com o semelhante, na linha horizontal, o que possibilita a inovação, a ousadia e a criatividade.

 

Considerações finais

Como dissemos inicialmente, este trabalho se insere numa rede de artigos escritos pela AMF. Em todos eles, o acento colocado na importância da troca entre pares põe em relevo um dos aspectos da formação psicanalítica, que é âmbito público dessa formação.

Não menos importante que os outros elementos do tripé, a participação em seminários clínicos e teóricos é o eixo da formação que caracteriza pela circulação de ideias. Estamos falando, entretanto, de circulação de ideias dentro de uma disciplina em que a reflexão teórica está imbricada nas experiências de intimidade e de subjetividade.

Assim, a dimensão teórica da formação psicanalítica se articula de forma dialética com a experiência de intimidade e o mergulho na subjetividade propiciados pela análise pessoal e pelo atendimento clínico. Tudo isso ocorre nos institutos. Concordamos com Myrna Pia Favilli (2012) quando ela afirma que o instituto é o coração da Sociedade.

Lá estão abrigados os membros filiados. Eles representam, no imaginário institucional, os filhos, a nova geração. Vimos com Maria Rita Kehl (2000) que a função fraterna escora a função paterna. E Márcio Giovannetti (2014), por sua vez, nos mostrou, por meio de metáforas, que, quando a função fraterna não é operante, os institutos se transformam em catedrais.

Dessa forma, é a função fraterna que faz pulsar o instituto e oxigena a Sociedade, pois põe em circulação as singulares apropriações do corpus psicanalítico, transformando a horda em comunidade que reinventa a própria psicanálise. E aqui não é demais citarmos a frase de Goethe, tão cara a Freud: "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu".

 

Referências

Azevedo, B. H., Peiter, C., Socha, A., Porto, T. S. & Rosenzveig, A. M. V. (2013). Pra que AMF? Jornal de Psicanálise, 46(84),181-190.         [ Links ]

Equipe editorial (2014). Carta convite: Transmissão da psicanálise e regulamentação. Jornal de Psicanálise, 47(86),15-17.         [ Links ]

Favilli, M. P. (2012). Depoimentos. Dimensões. Sociedade Brasileira de Psicanálise, 673-683.         [ Links ]

Giovannetti, M. F. (2014). Sobre a transmissão da psicanálise. Jornal de Psicanálise, 47(86),49-53.         [ Links ]

Kehl, M. R. (2000). A função fraterna. Recuperado em 10 de agosto de 2014, de www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=60        [ Links ]

Mourão, H. C. C., Silveira, I. U. & Nunes, P. (2014). Entre o instituto e as cidades. Jornal de Psicanálise, 47(86),227-235.         [ Links ]

Suannes, C. A. M., Saliby, M. F., Mello, R. A. A. & Leite, R. L. (2013). Das vozes difusas dos corredores à potência de um discurso: a AMF como espaço instersticial. Jornal de Psicanálise, 46(85),205-208.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/11/2014
Aceito em: 25/11/2014

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