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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

RESENHAS

 

Psicanálise entrevista - volume 1

 

 

Josiane Cantos Machado

Psicóloga com atuação clínica e pesquisadora em história da psicanálise, especialista em teoria psicanalítica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, orientada pela profa. dra. Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira, com o trabalho Emergência da psicanálise no Brasil: O pansexualismo de Francisco Franco da Rocha. Mestre em psicologia clínica pela mesma instituição, orientada pelo prof. dr. Renato Mezan, com a pesquisa A história da psicanálise no Brasil nas primeiras décadas do século XX e sua influência na concepção e constituição de saúde mental. São Paulo. josicantosmachado@hotmail.com

 

 

Organizadoras: Maria Selaibe e Andréa Carvalho
Editora: Estação Liberdade, 2014
Resenhado por: Josiane Cantos Machado, São Paulo

 

Revisitando a história de uma geração

A Revista Percurso, publicação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de extrema importância para a psicanálise brasileira, completou 25 anos de contribuições para o cenário psicanalítico e, para comemorar esse feito, lançou, neste ano, o primeiro volume do livro Psicanálise entrevista.

A coletânea, contando com quase 800 páginas, foi brilhantemente organizada por Maria Selaibe e Andréa Carvalho, ambas psicanalistas do Instituto Sedes Sapientiae. Os livros reúnem as principais entrevistas realizadas pela Revista Percurso desde o seu primeiro ano de vida, em 1988, com importantes profissionais que, de alguma forma, contribuíram para o pensamento psicanalítico. Em sua maioria psicanalistas, mas contando, também, com profissionais de outras formações que "esbarraram" com a psicanálise e fizeram dela uma aliada aos seus trabalhos.

No primeiro e único volume lançado até então, 18 profissionais são entrevistados, num período que vai de 1988 a 2009, dando a possibilidade de o leitor percorrer mudanças de perspectivas e acompanhar, principalmente, o que pensa a geração formada entre as décadas de 1960 e 1970.

Entre os entrevistados do primeiro volume, 12 são estrangeiros, seis são brasileiros e apenas um não tem formação psicanalítica.

O livro é um convite para o leitor conhecer um pouco melhor figuras de destaque na história da psicanálise. Conta com uma leitura bastante acessível, já que os entrevistadores se apresentam bem preparados e, na maioria dos casos, o que era para ser uma entrevista, torna-se um diálogo despretensioso, uma conversa acerca de conceitos psicanalíticos, da história da psicanálise e perspectivas para o seu futuro contada de forma bastante cativante pelos próprios personagens.

Os diálogos exploram o percurso de formação de cada entrevistado, nos apresentando como e por que se deu o encontro com a psicanálise, como foi o desenvolvimento do pensamento de cada um, suas influências, as amizades, as rupturas e as discrepâncias entre os cenários em que todas as histórias se dão, seja na França, nos Estados Unidos, na Argentina, na Inglaterra ou no Brasil, além da avaliação que fazem da atualidade.

Outrossim, a leitura se torna ainda mais compreensível por termos a oportunidade de, através de uma apresentação que o livro nos propicia, conhecer um pouco mais, mesmo que brevemente, sobre a vida e a obra do entrevistado.

Para quem se interessa pela história da psicanálise e a tem como objeto de estudo, como eu, é um prato cheio para conhecer melhor gerações tão importantes que transformaram a psicanálise no que hoje conhecemos.

A obra é prefaciada pelo coordenador da revista e brilhante mestre, Renato Mezan, que, com sua vasta experiência psicanalítica e detentor de profundos conhecimentos sobre a história da psicanálise, nos presenteia com informações importantíssimas a respeito do pano de fundo em que se formaram essas gerações.

Múltiplas são as questões discutidas, entre elas, a saúde mental e as novas patologias surgidas na modernidade, o mal-estar contemporâneo e a aplicação da psicanálise ao social, conceitos psicanalíticos essenciais como a pulsão de morte e o complexo de Édipo, que são aprofundados e questionados, a escuta analítica, as instituições, as escolas, os mestres e as filiações.

Determinados assuntos são levantados pela grande maioria dos entrevistados: deve o analista fazer parte de uma instituição? Se sim, deve ser uma instituição ligada à ipa ou à apa deixou de ter o poder que tinha no passado? Qual o critério para uma instituição ser considerada um legítimo local de formação de psicanalistas e como ela deve ser? Quem pode ser considerado psicanalista? E quanto à transmissão da psicanálise, o que mudou da década de 1950 para cá? O que avançou em termos de teoria e de prática?

Estamos falando do momento de reelaboração da psicanálise, da famosa proposta de "retorno a Freud", e muitos dos entrevistados fizeram parte dessa época e nos contam suas experiências.

No tocante a esse momento, destaco as inúmeras vezes em que Lacan é mencionado. Ao que parece, todos tiveram algum contato com ele, seja na aproximação de sua obra, seja como seu analisando ou supervisionando.

As opiniões não parecem se dividir muito a seu respeito; são feitas críticas sobre a duração das suas sessões de análise, sobre a sua técnica e sobre seu trabalho de supervisão. Um bom exemplo é o de Claude Le Guen, que declara:

Devo igualmente a Lacan, à medida que me opus muito, e muito cedo à sua sistemática ... . Apesar das minhas discordâncias, e talvez por causa delas, tenho uma grande estima pela obra e pela teoria de Lacan, embora fique estarrecido com as práticas catastróficas que ele instituiu. (p. 108)

Ao mesmo tempo que tecem críticas, também confirmam o valor de Lacan para a psicanálise, principalmente o valor dos seus seminários.

No que concerne à clínica, muito se insiste na liberdade da escuta analítica, em criticar a rigidez do setting, na importância da supervisão e no que seria a ética em psicanálise. Inclusive, somos contemplados com ilustrações clínicas notáveis que não só ajudam nosso raciocínio no tocante aos pontos tratados, mas nos revelam o modo de trabalho de cada um e a diversidade que a clínica psicanalítica pode ter.

Nesse caminho, é questionado, por diversos entrevistados, até onde deve ir a neutralidade do analista que, em conformidade com Jean Oury, pode se tornar uma doença.

Ademais, questiona-se até onde a técnica deve se manter única e inflexível, propondo-se, em sua maioria, a adaptação às necessidades do paciente, como sustenta Laplanche: "A psicanálise tem de respeitar a profunda originalidade do paciente; o grave é que há terapêuticas impregnadas de teoria: a teoria passa diretamente à prática" (p. 73).

É discutida a importância da clínica para a evolução da teoria psicanalítica, mas, em compensação, é criticada a utilização da psicanálise somente no âmbito clínico, concluindo-se que ela é e sempre será de enorme importância para pensar a sociedade de forma geral, como declara Jurandir Freire Costa: "Acho que existe, de fato, uma espécie de atrofia dentro do campo psicanalítico ... existe também a ideia de que as circunstancias culturais não têm nenhuma importância, nenhuma pertinência para a teoria psicanalítica" (p. 299).

Seguindo a mesma linha, outros entrevistados analisam o avanço da psicanálise nos estudos da cultura e questionam se houve evolução na teoria desde que Freud escreveu "O futuro de uma ilusão" (1927) e "O mal-estar na cultura" (1930).

Temas frequentes hoje em dia também são confrontados, como o custo-benefício da psicanálise, o tempo de duração de uma análise e a necessidade de cinco sessões por semana, defendida por alguns, como Otto Kernberg, e colocado em dúvida por outros, como Emilio Rodrigué, que não considera essa rigidez essencial.

No que diz respeito às escolas de psicanálise, a maior parte acredita que o fanatismo por um mestre ou por uma escola pode ser um obstáculo ao trabalho de análise, devendo haver a possibilidade de um diálogo crítico entre elas, não deixando a psicanálise cair no risco perigoso de um dogmatismo, como bem expõe Joyce McDougall: "Eu diria que não há limite para aquilo que se pode aprender se se olha para além das muralhas da própria escola de pensamento à qual se pertence; do contrário, esses muros tornam-se os de uma prisão!" (p. 127)

Sobre esse dogmatismo presente na psicanálise, Joel Birman afirma que ele também está presente no Brasil, que está sempre em busca de suas origens.

De forma geral, há uma defesa de um trabalho original, mas pautado sempre nos autores de base, como Le Guen assegura: "não podemos gastar nosso tempo reiterando Freud. Uma vez verificadas as bases, é preciso averiguar as questões que se colocam e tentar ir um pouco mais longe" (p. 114).

Para a psicanalista Silvia Alonso, assim como para Pontalis, a formação do analista nunca termina: "Sim, há um processo interminável de formação do analista ... Há um processo de formação no próprio trabalho clínico, o tempo todo, e naquilo que a partir do trabalho clínico se recoloca para o analista como questão a ser nomeada" (p. 327).

A IPA, com suas regras rigorosas, divide as opiniões. Alguns romperam com ela por não concordarem com as normas estabelecidas e por acharem que ficam aprisionados a elas, perdendo a liberdade de analistas. Em contrapartida, há os que, assim como Jurandir Freire Costa, consideram as instituições necessárias.

Sobre os avanços da psicanálise em termos gerais, Pontalis, por exemplo, não é muito otimista, e diz que a psicanálise está tomada por um conformismo do pensamento analítico. Segundo ele, "retoma-se Freud, mas sem arriscar-se. ... Estamos sobre os trilhos como se, de uma vez por todas, Freud tivesse traçado os trilhos dos quais não devemos nos distanciar" (p. 51).

Ao passo que Emilio Rodrigué é bastante positivo quando diz que:

A psicanálise não envelheceu isso tudo. Ela ainda é bonita e graciosa. ... Fizemos avanços no tratamento das psicoses; as perversões, penso eu, sempre foram o lado escuro da lua; e as neuroses são nosso ganha pão. A leva atual de analistas é menos prepotente e mais sensível ao sofrimento humano. (p. 179)

Opiniões divergentes, pensamentos variados, múltiplos modos de trabalhar, diversas formas de relação com a psicanálise, diversas formações, filiações, detalhes históricos importantes e muita informação de boa qualidade são o que encontramos nessa compilação de entrevistas, que fala de gerações, pano de fundo para a nossa geração e que nos fazem refletir sobre a nossa própria história.

 

 

Recebido em: 14/10/2014
Aceito em: 19/10/2014

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