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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dez. 2014

 

RESENHAS

 

Trabalhos com famílias em psicologia social

 

 

Flávio Carvalho Ferraz

Psicólogo e psicanalista, livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. ferrazfc@uol.com.br

 

 

Autora: Belinda Mandelbaum
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2014; 162 p.
Resenhado por: Flávio Carvalho Ferraz

Trabalhos com famílias em psicologia social é um livro decorrente da tese de livre-docência defendida por Belinda Mandelbaum no Instituto de Psicologia da usp, onde ela é professora no Departamento de Psicologia Social. Trata-se de um trabalho em que, como o próprio título já anuncia, a família ocupa o lugar central. Entretanto, a obra de Belinda possui uma complexidade tal que seu objeto não pode ser visto de modo independente do método que engendra sua apreensão. O que vamos percebendo, à medida que avançamos na leitura desse livro, é que o método, como tema, vai concorrendo com a temática anunciada na construção de um todo coeso, em que os princípios epistemológicos que regem a pesquisa no campo da psicologia social se explicitam para tornarem-se, em si mesmos, parte integrante da própria temática.

Ora, já se deduz aqui a inteligência que cimenta os diversos aspectos da obra, tornando-a um trabalho extremamente rigoroso sob o ponto de vista epistemológico e metodológico, ao mesmo tempo que se afigura como um texto claro e de leitura agradável. Porque, ao lado da professora e pesquisadora erudita, está a escritora impecável, capaz de fazer compreensível para o leitor elaborações sofisticadas e só passíveis de construção quando alicerçadas - como é o caso - em um cabedal de conhecimentos que parece infinito. A escrita, em seu estilo elegante, não é o mero veículo para a transmissão daquilo que Belinda busca comunicar, mas, antes, parte integrante do próprio trabalho. Se é para tratar de um assunto como a narrativa e seu valor para os sujeitos, a autora então faz do meio um demonstrativo, pois sua escrita já vai soando como uma narrativa (às vezes, inclusive, na primeira pessoa!). Aliás, quem já teve contato com as excelentes traduções feitas pela autora de textos fundamentais da psicanálise inglesa não se surpreenderá com esse aspecto de seu livro.

Assim, dando a impressão de infinitude à qual me referi, um universo desfila aos olhos do leitor na fruição dessa bela obra: a literatura, a filosofia e as ciências humanas em geral. Esse recurso inesgotável da autora enriquece sobremaneira o campo da psicologia social, visto que não circunscreve a pesquisa ao campo estrito dos procedimentos propriamente investigativos da ciência, peculiares ao trabalho universitário. O que Belinda faz é colocar no mesmo nível de fonte do material que nos informa sobre a família tanto o resultado de suas pesquisas acadêmicas quanto a literatura e a história.

Os diversos materiais que, de acordo com as divisões do conhecimento vigentes, situam-se em diferentes áreas da ciência aparecem, no trabalho de Belinda, amalgamados de maneira orgânica, quase como se já se dissolvessem as rachaduras - cicatrizes? - que costumam resultar da justaposição convencional da psicologia com outras áreas como a psicanálise, a história, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a literatura e a crítica literária. É impressionante como a leitura de Belinda (atenção para o "de", que se refere tanto à forma como a autora lê como à forma como é lida, por efeito de transmissão de seu estilo de elaboração), mais do que da de qualquer autor que eu tenha lido dentro desse campo, rompe com a artificialidade da divisão do conhecimento e dos fazeres intelectual e artístico, integrando um campo ao outro com tal naturalidade que acabamos por esquecer a origem de cada contribuição. Assim, por exemplo, a poesia de Carlos Drummond de Andrade e a prosa de Kafka vão desvelando um profundo saber sobre a identidade dos sujeitos em sua conexão inexpurgável com suas origens, sejam familiares, sejam histórico-culturais (isto é, às Weltanschauungen que os engendram).

A psicologia social no trabalho de Belinda se liga à psicanálise, fato que, não custa lembrar, não ocorre em todas as formas de se fazer psicologia social. A figura do hífen que une (e separa) o psíquico ao social, quando se propõe uma abordagem psico-social dos fenômenos culturais, acaba por se tornar, ele próprio, elemento de análise no espectro de reflexão da autora. Mas a psicanálise que ali comparece não é a velha disciplina de difícil mestiçagem, que vem a campo para explicar toda ordem de fenômenos. Não se trata disso, em absoluto. Constatando que, no século xx, a psicologia social foi recorrendo cada vez mais ao campo do psíquico, Belinda busca na psicanálise um instrumento que se enriquece exponencialmente quando - atenção para o paradoxo - não tem a última palavra (como muitas vezes aparece na escrita do psicanalista que é apenas psicanalista), mas ajuda a desvelar, no plano metapsicológico, fenômenos que se desenham no plano coletivo e que, assim, podem ser apreendidos por outras abordagens das ciências humanas. Para exemplificar: se Freud faz descortinar o luto melancólico diante de perdas para as quais o sujeito não encontra reparação, o estado psíquico de desorientação de tal sujeito é o mesmo que se encontra na imagem da ruína com que Benjamin descreve o coletivo assolado pela perda das bases identitárias na violência da ruptura com sua história.

O livro de Belinda se compõe de dez capítulos, que podem ser lidos separadamente como ensaios autônomos. Mas que, quando lidos na sequência em que se apresentam, vão demonstrando a profunda interpenetração do argumento de um texto com o de outro. A obra se abre com um ensaio sobre o campo da psicologia social, em que os parâmetros teórico-metodológicos que fundamentam a pesquisa se explicitam. É ali que Freud se apresenta ao lado da Escola de Frankfurt, como acabamos de ver. É ali também que a autora se vale do trabalho clássico de Nicolas Abraham e Maria Torok para ligar os aspectos elementares da construção dos sujeitos - a forma como a criança se apega à mãe e percebe seus gestos e palavras - ao processo de sua integração ao mundo, que se inicia no corpo materno, passa pela família e se amplia na tradição cultural. Temos aí um belo exemplo de como se aborda com naturalidade a passagem do campo do individual ao familiar e ao histórico, como já apontei ao caracterizar o estilo de Belinda.

O desfile dos temas prossegue com um capítulo sobre o emprego do método hermenêutico na pesquisa em psicologia social, justamente quando o já mencionado hífen é tematizado. Trata-se de uma explicitação de princípios metodológicos, que só podem se esclarecer quando alinhados à definição do próprio campo. Assim, para que se justifique o recurso ao método em que a interpretação é o trabalho central, o campo da psicologia social tem que estar referido às relações entre o individual e o coletivo, mas não como entidades separadas. Esta é a dificuldade da área, e esta é, ao mesmo tempo, a riqueza do trabalho de Belinda, que logra êxito em apresentar, na sequência do livro, capítulos em que demonstra como isto se resolve em sua pesquisa. Comparece nessa argumentação o filósofo alemão Dilthey, mostrando como o conhecimento do homem não pode se dar pelo mesmo método de apreensão do objeto da natureza, abrindo caminho para uma revolução epistemológica que permitiria diferenciar o imperativo da explicação daquele da compreensão, libertando, assim, o objeto da ciência humana do jugo da ciência da natureza (Naturwissenchaft).

Na resolução do drama epistemológico no trabalho de investigação que se apresenta a partir do terceiro capítulo, portanto, não se tratará como materiais de natureza distinta: a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a obra de Kafka, o atendimento a famílias, a escuta do desempregado e - ponto alto - a memória e história pessoal da autora! Sempre será possível, em razão da potência do método, deduzir a experiência dos sujeitos e, a partir daí, ligá-la à compreensão do modo de construção dos sujeitos, na família e na história.

E assim vão se entrelaçando textos sobre temas aparentemente tão diversos como: as famílias de origem em Kaspar Houser, Édipo e Abraão; as cartas de Kafka a sua irmã Elli sobre a educação de crianças (em que Belinda detecta a contribuição do autor para a mudança do paradigma da autoridade do pai na cultura do século xx); o desemprego na contemporaneidade (em que a identidade subjetiva se mostra amalgamada à identidade ocupacional e sofre risco de ruptura quando esta se quebra); a violência nas relações; o espaço familiar quando de sua ruptura, como pode ocorrer na separação dos pais etc.

No impressionante trabalho em torno do desemprego, Belinda mostra a potência da psicanálise na escuta de um fenômeno que, sendo eminentemente individual e familiar em seu aspecto elementar, qual seja, a experiência mesma do desempregado e de sua família, é passível de teorização quando suas consequências mais nítidas podem, de certo modo, serem generalizadas. Daí, junto com Dejours, a autora mostra, entre muitas outras coisas, que o desemprego pode trazer como corolário um processo de dessocialização que ataca os próprios alicerces da identidade do trabalhador. A possibilidade de se pronunciar sobre o assunto decorreu de nada menos que quatro anos de pesquisa junto a trabalhadores de pouca qualificação no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Freguesia do Ó, em São Paulo. Eu pergunto: quando a clínica psicanalítica convencional poderia ao menos "arranhar" um problema psicossocial de tamanha envergadura? Na quase totalidade de artigos que lemos nos periódicos psicanalíticos nem sequer é o caso de tecer considerações, por exemplo, ao valor pago pelos pacientes por uma sessão de análise nos confortáveis divãs das regiões mais valorizadas das cidades. Como poderia ser possível ali considerar a realidade do desemprego, para com ela apreender algo do funcionamento psíquico dos sujeitos nessa condição?

Mesmo considerando que cada um desses assuntos tem importância capital na construção do todo do livro, eu gostaria de ressaltar um ponto de particular relevo para o psicanalista. Conforme já enfatizei, materiais de fontes distintas são nivelados (no bom sentido do termo) como fonte de informação sofre a experiência dos sujeitos em sua construção identitária e cultural. É assim que a autora não se furta a trazer suas memórias particularíssimas sobre a separação de seus pais, ligando-as ao contexto social em que isto se dava, mas sobretudo articulando a história ao próprio corpo, no belo capítulo "Algumas letras sobre família, lentilhas e aftas". Sua experiência pessoal é alçada ao mesmo plano da literatura e da clínica para a construção do conhecimento (científico!) sobre o humano. Ora, não é sequer necessário lembrar o modo como Freud inaugurou o conhecimento psicanalítico com a análise dos próprios sonhos, abrindo as portas para a revolução que essa ousadia traria no campo da epistemologia nas ciências humanas. A coragem de Belinda lembra também o belo trabalho de Joyce McDougall, no livro Teatros do corpo, em que ela busca argumentos para a teoria psicossomática nas memórias da infância na fazenda da avó, na Nova Zelândia, quando era acometida por uma alergia ao leite. Mas cumpre lembrar que também na boa tradição da psicologia social, que no livro traz a marca da referência a Ecléa Bosi, o pesquisador faz parte do campo investigado, e só um compromisso à moda da "comunidade de destino" pode legitimar o fruto da investigação.

Por fim, o trabalho se encerra com uma análise do trabalho de Sylvia Leser de Mello no campo da família e dos processos de socialização, num capítulo que é, ao mesmo tempo, uma homenagem à professora que orientou e inspirou o trabalho de Belinda no mesmo campo e da qual a autora veio a se tornar uma espécie de sucedânea na Universidade de São Paulo. Professora da qual direi, en passant, que tive o privilégio de ser aluno ainda no segundo ano de graduação.

Para finalizar, eu gostaria de concluir com poucas palavras, saindo da consideração ao conteúdo do livro para reiterar o admirável trabalho de escritora e narradora que sustenta essa belíssima obra, que mostra ao psicanalista quão necessária é a sua inserção no campo mais amplo da arte e das ciências humanas e, ao psicólogo, mostra a potência que o método psicanalítico pode ter para além das paredes convencionais dos consultórios.

 

 

Recebido em: 6/10/2014
Aceito em: 14/10/2014

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