SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47 número87Trabalhos com famílias em psicologia social índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

RESENHAS

 

Psicanálise na UTI - morte, vida e possíveis da interpretação

 

 

Renato Tardivo

Psicanalista e escritor. Mestre e doutorando em psicologia social (IP-USP), professor do Centro Universitário São Camilo, autor dos livros de contos Do avesso (Com-arte/USP) e Silente (7 Letras) e do ensaio Porvir que vem antes de tudo - literatura e cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê/Fapesp). São Paulo. rctardivo@uol.com.br

 

 

Autora: Fernanda Sofio
Editora: Escuta/Fapesp, São Paulo, 2014
Resenhado por: Renato Tardivo, São Paulo

 

Vida severina

E não há melhor resposta
Que o espetáculo da vida:
Vê-la desfiar seu fio,
Que também se chama vida

(João Cabral de Melo Neto, 1994, p. 60)

Psicanálise na UTI - morte, vida e possíveis da interpretação retoma a entrada da autora, Fernanda Sofio, na psicanálise, em seu primeiro estágio pós-universitário, ocasião em que foi psicóloga em UTIs de adulto de um hospital geral universitário. Essa experiência já havia sido ressignificada ao longo de seu mestrado em psicologia pela PUC-SP em sua dissertação, defendida em 2007. Nesse sentido, o livro ora publicado parte do - e se movimenta pelo - debruçamento da autora sobre camadas de sua própria experiência, um trabalho realizado em temporalidade après-coup.

Sofio apresenta no primeiro capítulo as noções centrais da Teoria dos Campos - pensamento psicanalítico proposto por Fabio Herrmann - acerca da interpretação, mapeando de início o modo com que ela vem trabalhando em psicanálise ao longo das diferentes camadas, estas reunidas nesse livro. Escreve a autora:

Tem-se pensado, cada vez mais veementemente, a psicanálise como método interpretativo. A ideia é que Freud criou teorias a partir desse método, não o contrário. A crítica se faz, particularmente na Teoria dos Campos, de que os psicanalistas, depois de Freud, frequentemente ficaram presos na compreensão das teorias e não se debruçaram sobre a depuração do método interpretativo. (p. 21)

Assim, no esteio da Teoria dos Campos, Sofio pensa as possibilidades contidas na interpretação por meio do conceito de ruptura de campo. Acompanhemos passagens elucidativas a esse respeito: "Campos, de acordo com esse pensamento, são as regras ocultas que geram sentidos, implicados na fala ou ação do paciente" (pp. 24-25). E ainda:

A ruptura de campo é a ação que define a interpretação e que, ao mesmo tempo, resulta dela. Implica uma "ruptura" na rede de sentidos que vigora na comunicação humana, e acontece pelo desencontro de escutas, pela escuta num campo diferente daquele proposto de início. (p. 25)

Com efeito, o pensamento original e criativo de Fabio Herrmann amplia as possibilidades contidas na psicanálise, uma vez que, desse ponto de vista, esta não se prende à técnica ou à teoria, embora se valha delas, mas é no método interpretativo que ela encontra a sua especificidade. Decorre daí a noção de clínica extensa, outra forma de nomear a psicanálise, mas que preconiza a superação das molduras, uma clínica para além do setting preestabelecido que, nessa medida, é "uma psicanálise criativa, que tem a possibilidade de fazer leituras do homem, do mundo, do homem no mundo" (p. 28).

É nesse âmbito que Fernanda Sofio retoma o seu estágio nas UTIs, com o objetivo de, "considerando as concepções de interpretação psicanalítica e de psique da Teoria dos Campos, tomar a própria UTI como paciente" (p. 35). Esta é uma das metáforas mais belas e fundamentais do trabalho: a paciente UTI. Pela perspectiva da clínica extensa, opera-se uma inversão do dado, do instituído: é a Unidade de Terapia Intensiva que demanda escuta, uma vez que se trata de um espaço que se propõe asséptico, coisifica os pacientes (literalmente chamados por números correspondentes aos seus leitos) e por onde transitam profissionais que muitas vezes nada podem fazer diante da morte irremediável. A autora conta:

Procurei escutá-la pela via do exercício da função terapêutica da psicanálise. Parece esquisito escutar sem ouvir. Mas o que se mostra é que a escuta psicanalítica não está unicamente atrelada à fala. Nas psicanálises do cotidiano, é possível escutar também o que não "ala". (p. 36)

Um trabalho que lida com a finitude da vida, com o (pouco) tempo que resta, e que se desenvolve em après-coup não poderia deixar de ser, também, um trabalho sobre o tempo. Ao incluir a temporalidade em suas reflexões, Sofio assume as definições de Fabio Herrmann de tempo curto, tempo médio e tempo longo para caracterizar os tempos da escuta do analista, bem como a temporalidade do futuro do pretérito, que marca as autorrepresentações do paciente. Assim, os diálogos ocorridos na UTI são tomados como tempo curto; a paciente lá internado (campo transferencial), como tempo médio; e a história que se revelou das intervenções (história do paciente e da análise), enquanto tempo longo. De acordo com Herrmann, esses tempos não são cronológicos e tampouco excludentes. Em vez disso, apresentam-se simultaneamente, embora seja possível, conforme a divisão descrita acima, considerá-los em suas especificidades. E, com efeito, considerando os três tempos, a autora opera uma análise minuciosa apresentada no capítulo dedicado à psicopatologia do paciente de UTI. Questões que surgiram - a angústia sobre amputar ou não a perna de uma paciente; o sangue que vazou da bolsa, "o encoberto, representativo do absurdo que deveria ficar oculto" (p. 59), entre outras -, tomadas em consideração, foram revelando o que a autora chama de "tempo do sobressalto": a UTI "é a última instância" (p. 67).

Após o trabalho reflexivo a partir dos tempos curto, médio e longo, a autora apresenta mais demoradamente dois casos - ou, para utilizar suas palavras, de "encontros terapêuticos" (p. 69) - que preparam o desfecho do trabalho com a proposta de um "quarto tempo". Destaco aqui o "paciente triplo" (p. 75), compreendido por Severino, Gerasim (os nomes dos pacientes são fictícios) e pelo neurocirurgião. Esse paciente talvez seja paradigmático de todo o trabalho apresentado no livro, dados os seus atravessamentos (entre dois pacientes, psicóloga e médico), as possibilidades e limites da função terapêutica, além da sensibilidade da autora em apreendê-los - em certa medida, já antecipando os rumos que suas investigações tomariam, mais notadamente as contidas em Psicanálise como forma literária: Literacura, livro ainda no prelo que é fruto do seu doutoramento em psicologia social na Universidade de São Paulo e que aborda a interface da psicanálise com a literatura.

O capítulo final, intitulado "Quarto tempo", propõe "uma nova maneira de considerar todo o processo que se deu e as reconsiderações dessa história no futuro" (p. 87), isto é, um "novo tempo longo", a partir dos apontamentos de Fabio Herrmann, então orientador de Fernanda Sofio no mestrado, proferidos no exame geral de qualificação. Herrmann atentou, na ocasião, para a analogia entre a linguagem da fotografia, tal qual proposta por Vilém Flusser, e a clínica extensa. A ideia principal de Flusser é a de que não há fotógrafo ingênuo, uma vez que sua escolha se pauta sempre em função do seu aparelho. Nessa mesma medida se dá o trabalho em clínica extensa, visto que a produção de sentidos parte do exercício do método e do que o seu projeto permite. Segundo Sofio:

Estamos pensando o ato clínico como aquilo que o analista "clica" do seu paciente, analogamente à forma como Flusser está definindo a realidade, isto é, como a imagem que aparece na fotografia. Tal imagem do mundo está condicionada pelo aparelho e pelo olhar do fotógrafo. (p. 91)

E, assim, Fernanda Sofio termina o livro com a questão da representação, já que o trabalho clínico se presta a trabalhar com as representações do paciente e não com a realidade tomada apenas em sua materialidade. Sugestivamente, a proposição do quarto tempo em analogia com a linguagem da fotografia implica, do ponto de vista da autora, retornar uma vez mais ao vivido e empreender-lhe ressignificações. Há nesse movimento a temporalidade do futuro do pretérito, sobre a qual Herrmann também discorreu em sua obra; o tempo do "condicional, das autorrepresentações do paciente", pois "na interpretação psicanalítica, o passado 'passa a ter sido outro', transformando-se o presente, futuro desse novo passado, tornado indiscutível uma vez que se criou" (p. 94). Terminar o livro dando voz às considerações de Fabio Herrmann (orientador e autor de referência de Sofio) no exame geral de qualificação é ainda mais significativo, visto que Fabio Herrmann faleceria um mês após o exame.

A leitura desse belo e cuidadoso trabalho indica que a passagem da psicanálise (moribunda) na UTI para a psicanálise (potente) da UTI só é possível se houver disponibilidade para a tomada de contato com a morte; dessa perspectiva, morte que traz vida. Não é aleatória a menção que a autora faz à Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, quando analisa o paciente triplo. Afinal, é sempre disso que se trata.

 

Referência

Melo Neto, J. C. (1994). Morte e vida severina - e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 17/11/2014
Aceito em: 21/11/2014

Creative Commons License