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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015

 

AULA INAUGURAL

 

O analista e sua circunstância

 

 

Leopold Nosek

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. nosek@terra.com.br

 

 

Quero começar lembrando que uma aula inaugural é, antes de tudo, uma cerimônia de boas-vindas aos novos filiados e o marco inicial de mais um ano de atividades do nosso Instituto. Essa prática, mais do que qualquer outra, representa o ponto de encontro entre os novos membros e os membros antigos da Sociedade. Agradeço a honra de participar desta atividade.

É um encontro da tradição com o futuro, e isso aponta para o desafio que o presente sempre nos traz. O mistério do presente vem de estar entre o que já foi e o que ainda não é. Ele se situa no estreito espaço entre as reminiscências e os desejos e utopias, entre o que já é memória e aquilo que, pela ausência de construção, revela o território do insólito. Nesse trajeto, às vezes temos em uma fulguração o sinal do atual, temos uma centelha de percepção.

Na nossa precariedade, precisamos do outro e necessitamos do diálogo, no mínimo, porque a associação livre e a atenção flutuante são pilares da nossa prática. Pretendemos a conversa isenta de intenções a priori e de projetos para o futuro. Se a psicanálise tivesse se originado no interior do Brasil e não no Império Austro-Húngaro, talvez usássemos a expressão "jogar conversa fora" ou "picar couve", ou qualquer outra que sugerisse coloquialidade, e não mistério para iniciados. Por outro lado, esta nossa conversa, por ser psicanalítica, seguirá inevitavelmente junto do abismo da dor, do sagrado do nascimento da palavra, da poesia de sua eficácia, e será movida pelo profano desejo humano. Sendo assim, o que pretendo hoje não é mais do que "puxar uma conversa", que será necessariamente pessoal, precária e provisória.

O tema que abordarei é amplo o suficiente para ter sido objeto de reflexão de diferentes escolas de pensamento. Aparece, por exemplo, em Marx, no matemático e filósofo alemão Edmund Husserl, criador da fenomenologia, ou no filósofo espanhol Ortega y Gasset, autor da célebre afirmativa que inspira o título de minha fala - "Eu sou eu e minha circunstância" (1981) -, o homem é um ser inevitavelmente permeado pelo que o circunda, pelo contexto em que vive. Aqui, obviamente, se inicia uma discussão infindável sobre o que se entende por "circunstância", mas não me aprofundarei nessa questão. Vou tomá-la quase como uma afirmação do senso comum.

De qualquer forma, a discussão está presente também no meio psicanalítico. Assim é que se acusava o pensamento kleiniano de não atentar para o ambiente dos eventos que embasam a organização de um modo de ser, e assim é que se acusava Winnicott de não dar a devida importância ao acontecimento pulsional. A questão também continua a nos dividir em escolas ditas das relações objetais e escolas ditas freudianas, que privilegiariam o mundo da pulsionalidade. De minha parte, devo dizer que tenho dificuldade em considerar os destinos das pulsões sem observar as relações objetais que determinam sua realização, do mesmo modo que me é impossível pensar em relações objetais sem me voltar para a raiz pulsional que lhes dá origem e destino. Talvez sejam encontrados aí, nesse sistema ecológico de ideias em que me movimento, os primeiros elementos que compõem minha circunstância.

Mas sigo pelo caminho das histórias, e a memória me leva a 1977, quando assisti à minha primeira aula inaugural na SBPSP. Naquele ano, esboçava-se uma mudança nos rumos da instituição. Pela primeira vez, formávamos uma turma grande de candidatos a psicanalista. O quadro de analistas didatas havia sido ampliado, e as filas para ter acesso a uma análise didática começavam a ser questionadas. Não tínhamos mais de firmar o compromisso de que não denominaríamos a nossa prática psicanálise - essa palavra estava reservada aos membros da Sociedade -, mas, por outro lado, ainda dependíamos de uma avaliação favorável do nosso analista para poder frequentar o Instituto.

Naquele ano, o palestrante convidado para a aula inaugural foi o dramaturgo e ator Gianfrancesco Guarnieri, que também era diretor do Teatro de Arena, um grupo que, como se sabe, tinha uma atuação forte na oposição ao regime ditatorial que se instalara no país na época. Entre orgulhoso e assustado, esperei pela conferência que marcava o início do meu trajeto nesta instituição. Como hoje, é claro, cumpriram-se os rituais, e primeiro falaram o presidente da Sociedade, Gecel Szterling, e o diretor do Instituto, Yutaka Kubo, duas figuras inesquecíveis que quero hoje recordar e homenagear.

Nosso convidado daquela noite, a quem os quartéis não amedrontavam, começou a palestra visivelmente alcoolizado, falando-nos do seu medo de se dirigir a uma assembleia de psicanalistas. O que ele poderia inadvertidamente revelar? Que misteriosos poderes teriam aquelas pessoas? A transferência era, digamos, cultural. Não lembro o que mais ouvi naquela noite, mas a cena ficou gravada em mim. Nossa turma - que já se beneficiava das lutas de uma geração um pouco mais velha - pela primeira vez reunia cerca de vinte alunos. Já não éramos tão poucos. A cena revelava um anseio por nos retirarmos de um isolamento real que costumava ser tachado de elitista, mas que certamente era também defensivo. Revelava, pela presença de Guarnieri, que tínhamos a percepção de ser parte integrante da cultura e de que a cultura merecia - ou melhor, nós merecíamos - a grandeza de uma tentativa de diálogo. Sempre são tentativas...

Observando as últimas aulas inaugurais, constato uma oscilação entre tendências mais voltadas para o conhecimento psicanalítico propriamente dito e posições que se preocupam mais em estabelecer vínculos com outras disciplinas das humanidades. Devo dizer que o diálogo, a busca por reflexões nascidas de outras tradições e o reconhecimento de que a psicanálise caminha com seu meio me são mais simpáticos.

Para assinalar apenas o que é mais evidente, a psicanálise não se confunde com suas instituições. Vocês verão, ou já sabem disso, que toda instituição depende de regras e buscas universais, enquanto a psicanálise é possivelmente a forma de conhecimento em que a singularidade se manifesta de forma mais radical. É um truísmo que sempre repetimos: cada analisando é único, cada sessão é única, cada momento de uma análise também o é - nenhum deles pode ser repetido -, e, por fim, também o analista é único. Em suma, entre as instituições e a psicanálise haverá sempre uma área de correspondência e áreas de conflito. Inevitavelmente, teremos de ir além da psicanálise para pensar sobre suas instituições, sua época, sua história, sua inserção ideológica e o meio em que se desenvolve a prática psicanalítica.

O conhecimento psicanalítico é então impossível? Não creio, não sou cético. Ocorre apenas que caminhamos por consensos grupais provisórios, oscilamos entre o alinhamento com as disciplinas científicas e o parentesco com a literatura ou a arte, ou por vezes tomamos a psicanálise como uma disciplina ética. O que é indiscutível é o seguinte: o que sabemos rapidamente esbarra na mobilidade e num imenso território de desconhecimento. Lembro uma experiência que todos compartilhamos: ao ler um texto freudiano, esse texto, de algum modo, nos escapa, a cada releitura vamos nos defrontar com esquecimentos e novas associações, e um mesmo conceito tem diferentes níveis de acesso e de profundidade. Voltaremos aos textos e à clínica sempre expostos à insegurança característica do nosso campo de conhecimento, ainda que ancorados naqueles pontos definidores que tenham obtido o consenso provisório.

Assim, as diferentes gerações se necessitam mutuamente. Precisamos da tradição e do acervo dos mais velhos, e, dada a insuficiência intrínseca do arquivo, precisamos que os mais novos façam seus questionamentos e nos obriguem a dar um passo a mais. Esse diálogo não ocorrerá sem choques, sem contradições, sem conflito, mas, com a passagem das gerações, a tendência é que ocorra movimento. Se a geração mais nova devesse apenas aprender com seus antecessores, a humanidade faria somente decair, o que não é o que acontece... Podemos discutir infinitamente onde está o progresso; estaremos sempre sujeitos a forças amorosas e a forças destrutivas, mas sem dúvida o mundo se move. Alguma institucionalidade ou agrupamento é uma circunstância inevitável aos analistas, se bem que, de preferência, temperada por uma dose de subversão.

Lembro uma história que me agrada. Conta-se que os beduínos, ao final de uma jornada, antes de entrarem em seus lares, descem do camelo, sentam-se em roda e permanecem ali, quietos. Isso porque, segundo diz a tradição, o corpo chega antes do espírito, da alma, que é mais lenta. É preciso esperar até que a alma alcance o corpo, e aí, sim, pode-se entrar em casa e rever os entes queridos.

Não é diferente a nossa realidade. Perseguimos todos o espírito dos tempos, o que é atual, o que é o nosso sentido; buscamos além das expectativas e além dos nossos pressupostos. Às vezes somos mais pretensiosos e procuramos a verdade; outras vezes, mais modestos, contentamo-nos em atribuir um sentido às coisas. Todavia somos sempre matizados pelos costumes, pelas ideologias e pela cultura de onde vivemos.

Nossa especificidade - a dos psicanalistas - está em identificar e rever criticamente os pressupostos que organizam nossos alicerces e modulam a nossa visão do atual. Procuramos nossas raízes infantis para, como dizia Freud, poder evitar os sofrimentos inventados e, assim, nos liberarmos para sofrer os infortúnios inevitáveis. Se isso não nos traz as vantagens de possuir a verdade, de alguma forma pode nos instruir no benefício do pensamento crítico. Claro, o exercício da crítica pode muito bem se estender para além da infância. Ele pode e deve estar sempre atento às nossas circunstâncias culturais e ideológicas. Dou alguns exemplos:

• Ao ler a tradição cristã assentada por Santo Agostinho sobre o corpo e a elevação do espírito, podemos nos perguntar se não cabe problematizar o conceito de sublimação como um resquício religioso em nosso pensamento dessacralizado.

• Fomos todos educados numa tradição bíblica em que a narrativa se passa em três tempos: criação, revelação e redenção. Não vemos, com frequência, esses restos ideológicos se imiscuírem inadvertidamente nas nossas salas de análise? Sem a presença da reflexão crítica, não estamos sempre em risco de trazer esses três tempos para a clínica?

• Conseguiremos em nossa prática ser como os gregos, com muitos deuses? Seremos capazes de nos despojar do anseio monoteísta por uma verdade única?

• Diante do recrudescimento de radicalismos fundamentalistas em nome de alguma suposta "verdade revelada", podemos evitar uma reflexão sobre as condições da pós-modernidade que tornam esse modo de pensar mais e mais presente em nossa realidade? Podemos evitar o pensamento acerca da realidade que em cada meio socioeconômico faz nascer uma tradição diversa?

• Como é ser analista em Paris ou Londres? Ou em Nova York, Nova Déli, Buenos Aires ou São Paulo etc.? Cada um desses centros urbanos tem uma cultura, uma tradição filosófica, uma tradição política diversa. E como se caracterizaria o exercício da profissão numa mesma cidade, porém, com a mobilidade e as injunções que cada época nos traz?

• Como fica a psicanálise quando a maior parte da prática é gerida por seguros sociais? Como fica a psicanálise na concorrência com outras terapias se, para sobreviver, ela se sujeita a prazos e à apresentação de resultados quantitativos baseados em cortes diagnósticos que lhe são estranhos? O poder das grandes companhias farmacêuticas conta?

• Que alterações os novíssimos meios de comunicação poderão trazer (ou já trazem) à nossa prática?

• A psicanálise integra o grupo das ciências ou o grupo das humanidades?

Em seu livro Pensando o século xx, o historiador inglês Tony Judt nos fala da experiência de lecionar nos Estados Unidos e conta que, em fins da década de 1970, os reitores de certas universidades tinham dúvidas sobre onde inserir a disciplina de história: nas ciências sociais ou nas humanidades? Para mim, foi uma surpresa, pois nunca tive dúvidas de que as humanidades são o campo de existência da história (ainda que muitos ângulos dessa complexa discussão me escapem).

Mas e a psicanálise? Está nas ciências ou nas humanidades? Confesso que desde o início as dúvidas me assediaram. A análise pessoal me trazia respostas e também mais dúvidas e inquietações; ia se revelando a mim um território que eu nem suspeitava existir, mas, se ela podia me trazer alguma tranquilidade, obviamente não tinha como responder a todas as minhas perguntas. Creio que fui me tornando mais modesto e menos crítico em relação a mim mesmo, as expectativas que tinha a meu próprio respeito ganhavam mais realidade. Serei sempre grato a esse acompanhamento analítico no momento em que iniciava a vida familiar e profissional - e, felizmente, ali a psicanálise nunca apareceu como conhecimento hegemônico.

Retomando, então, interesses de antes da formação, voltei à história do conhecimento, aos pré-socráticos e a velhas dúvidas. No século v a.C., Parmênides me ensinava: "O que é, é - e não pode deixar de ser". Ou então: "O que é, é - do contrário não seria". Quem poderia duvidar dessa assertiva? Ela me parecia evidente por si só. Não me dava conta de que estava diante do nascimento do princípio lógico da identidade, que um século depois, com Aristóteles, iria se desdobrar na fórmula filosófica da adaequatio rei et intellectus, isto é, da correspondência entre realidade e intelecto, significando que a verdade se produz na correspondência do que se quer conhecer com a representação conceitual formada pela consciência. Também isso me parecia indiscutível.

Mas sempre há um mas, e páginas e páginas adiante surgia Heráclito, de quem pouco se sabe, mas de quem se diz que renunciou a um reino. (Abro um parêntese para antecipar minha simpatia cada vez maior pelo historiador da arte Aby Warburg, um filho de banqueiro que renuncia à herança em troca da possibilidade de construir uma extraordinária biblioteca, concretizando uma teoria da cultura um tanto obscura. Voltarei a ele no final deste trajeto.) Mas Heráclito, eu dizia, com sua escrita por aforismas, via a realidade como um fluxo constante em meio ao conflito: "O homem se acende e se apaga como uma luz no meio da noite". Ou, em seu aforisma mais citado: "Tu não podes entrar duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti". O que eu podia fazer se também essa afirmação me parecia indiscutível, apesar de contradizer completamente meu aprendizado anterior? A questão não deixa de ter implicações práticas: como separar a clínica em sua singularidade dos universais que definem uma teoria?

Falo dessas coisas não como um trajeto filosófico, mas para lembrar que a nossa vida de analista não é fácil, como vocês seguramente já sabem. O pensamento de Heráclito é o que mais se aproximaria do que vivo na minha prática clínica e teórica, mas sem dúvida encontro colegas que respeito e que se sentiriam mais à vontade na vertente aristotélica. Esses misteriosos personagens estão na origem do nosso logos. Quando as duas tradições se encontram, obrigam meu pensamento a se mover para além da sedução que uma verdade sólida possa exercer sobre mim.

O pensamento filosófico se organiza em sistemas totalizantes, que têm sido objeto de inúmeras críticas. Não cabe explorar o tema nesta nossa conversa, mas, apenas sugerindo uma direção, posso lembrar que somos herdeiros das grandes discussões que fundam o pensamento ocidental. No debate atual sobre o locus em que se situa a psicanálise, persistem as interrogações: seria no território das humanidades ou no das ciências positivas? Freud era um iluminista? Fundou uma ciência positiva? Ou estaria entre aqueles que no século xx fizeram a crítica do Iluminismo e sua proposta de domínio da natureza, da sociedade e do próprio homem? Afinal, Freud desenvolveu um saber - a metapsicologia - sobre aquilo que é gestado na obscuridade dos sonhos e os liberou da magia e da superstição. Ao mesmo tempo, porém, chamou esse saber de feitiçaria. Ou seja, encontramos em Freud referências em ambas as direções.

De qualquer modo, a questão continua: como o conhecimento mítico pode se tornar uma unidade de compreensão racional que integre, organize e dinamize os conhecimentos? Gosto do pensamento de Adorno e Horkheimer de que a ideia mítica já é conhecimento em forma embrionária e de que a teoria pode ser tomada como mito quando pretende ter o domínio de seu objeto.

Neste ciclo que se inicia hoje, vocês terão a oportunidade de desenvolver uma posição pessoal e de estabelecer seu próprio roteiro crítico. Estou certo de que poderão desenvolver o pensamento teórico e clínico em múltiplas direções. Vocês terão liberdade real de escolher a análise pessoal seguindo afinidades eletivas. A propósito, se há um consenso no universo psicanalítico, é o de que a análise pessoal é central na formação do psicanalista. No entanto, o papel do didata e os esquemas da análise didática têm sido questionados em todos os centros. Por escolha nossa, este Instituto mantém a tradição, que sem dúvida tem vantagens e sentido. Contudo, há outros modelos de formação na ipa, e nada em nossas regras impede o debate, que não deixa de ser interessante.

Graças a conquistas da minha geração, temos ampla liberdade para organizar o trajeto de estudo que pretendemos seguir e para escolher os cursos e os supervisores. Acolhemos tanto jovens como pessoas experientes; não faria sentido o caminho único. Vocês estão entrando numa sociedade psicanalítica que participa de três instâncias federativas - a brasileira, a latino-americana e a internacional -, o que contribui decisivamente para diversificar os trajetos pessoais e as posssibilidades de troca. Somos a única sociedade que permaneceu sem divisões numa metrópole das dimensões de São Paulo. Como isso terá sido possível?, eu me pergunto.

Num breve texto para a revista Calibán, levantei a hipótese de que a cena inaugural da psicanálise no Brasil e possivelmente na América Latina seria aquela que nos relatou uma de nossas pioneiras, a paulistana Virgínia Leone Bicudo [1910-2003]. Virgínia dizia ter sido a primeira pessoa na América Latina a se deitar num divã. Imaginei, então, uma fotografia em que ela estaria deitada no divã de Adelheid Koch, situação propiciada por Durval Marcondes, que aparecia ao fundo. Virgínia era mulata - pelo lado paterno era neta de uma escrava e avô desconhecido; seu pai era um "empregado de dentro", isto é, trabalhava na casa-grande; a mãe era filha de imigrantes italianos que tinham vindo para trabalhar na lavoura de café. Adelheid era judia berlinense, fugida do nazismo e da catástrofe que se desenhava na Europa. Durval, por sua vez, pertencia à aristocracia rural paulista que sofreria os efeitos da Grande Depressão de 1929, com a consequente quebra da cafeicultura que sustentava o esplendor desse estrato social.

Se essa fotografia existisse, teria sido tirada no final dos anos 1930. Freud foi muito lido pelos modernistas, que o incorporaram ao seu repertório crítico. Formulei a hipótese de que os modernistas, não tendo familiaridade com a literatura marxista, que na época circulava por aqui entre imigrantes pobres, acabaram lendo Freud como fonte revolucionária. Assim, as mudanças sociais teriam origem no mundo pulsional, e esse mundo era o ponto de partida para criticar as instituições retrógradas da sociedade. Nascia aí a visão antropofágica de Oswald de Andrade, de que a cultura brasileira devoraria as tradições europeias dando-lhes um matiz nacional. Integrante desse movimento, Durval Marcondes se encaminhou para a psicanálise, alguns aderiram ao integralismo e outros ainda adotaram diferentes matizes ideológicos de esquerda.

Não seria de todo insensato considerar que essa origem modernista, essa interpretação da obra de Freud, está presente no caldo de cultura que desembocaria no Cinema Novo, na obra de Nelson Rodrigues e no Tropicalismo, assim como na discutível interpretação de que a pornochanchada foi uma peculiar forma de reação ao obscurantismo da censura praticada pela ditadura militar. Essas raízes, juntamente com as raízes negras do escravagismo, da imigração de trabalhadores europeus, da tradição iluminista e judaica da Europa Central, sem dúvida têm expressão em nossa cultura.

Posso pensar que esse sincretismo cultural contribuiu significativamente para nos tornar infensos a um movimento importante na história da psicanálise: a batalha de escolas pela posse da verdade psicanalítica. Tradições locais proibiram o estudo de escolas divergentes. Em muitos institutos dos Estados Unidos, apenas recentemente se revogou o veto ao ensino do pensamento kleiniano e à psicanálise leiga, que entre nós se fizeram presentes desde o início. Nossa tradição nos fez leitores em espanhol, inglês e francês. A meu ver, a diversidade em maior ou menor grau que marca este Instituto é um dos fatores para explicar por que hoje, enquanto muitos centros se queixam de crise, nós celebramos a chegada de vocês, que compõem este substancial grupo de profissionais.

Podemos, sem dúvida, nos criticar num aspecto fundamental: temos poucos autores, sobretudo no campo da teorização e do pensamento especulativo em psicanálise - e quero mencionar aqui a exceção que foi Fabio Herrmann, de quem sempre teremos saudade. Conto-lhes, por exemplo, a experiência que tivemos no Congresso da Fepal em 2012, realizado aqui mesmo em São Paulo. Houve uma enxurrada de trabalhos de latino-americanos lutando por um lugar na programação. No entanto, especificamente de brasileiros, só começamos a ter trabalhos ao adotar a política de convite à apresentação. Isso pode ser sinal de uma falha e sinal também de que estamos todos muito ocupados com as nossas clínicas, com o atendimento cotidiano dos nossos pacientes. É algo a se pensar, pois, se temos uma larga e diversificada experiência clínica e estamos sempre falando dela, se lemos autores de diferentes escolas de pensamento que aqui necessariamente ganham cor local, ainda não nos mostramos capazes de desenvolver a correspondente reflexão teórica que assentaria entre nós as bases de uma escola própria.

Caminhando para o final, quero lhes falar de Aby Warburg, personagem cuja vida e obra se misturam inextrincavelmente. Warburg nasceu em Hamburgo, em 1866, e morreu com pouco mais de 60 anos, em 1929. Bem cedo trocou o direito à herança do banco da família pelo direito de se dedicar ao que chamava Wissenschaftskultur, a ciência ou conhecimento da cultura, e à construção de uma biblioteca que refletisse sua compreensão da arte, das humanidades e da cultura em geral. Segundo os historiadores Horst Bredekamp e Michael Diers, editores dos escritos reunidos de Warburg - A renovação da Antiguidade pagã: Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento euro peu -, na história da arte e da imagem ele desempenha um papel similar ao de Freud na história da psicanálise.

Warburg atribuía uma importância essencial às imagens num processo civilizacional que, nos primórdios, não dispunha da linguagem e estava "a meio caminho entre a magia e o logos"; sua teoria supõe na imagem a capacidade de "criar um espaço de reflexão da ponderação entre o ser humano e a natureza, espaço no qual as forças ameaçadoras se transformam em meios para a superação do medo", conforme sintetiza Edgar Wind (Warburg, 2013, prefácio). Sua obra, assim, trafega ao lado da nossa disciplina, ao apresentar a oportunidade de reflexão sobre a construção de sonhos e a cura psicanalítica, e ela me interessa antes de tudo porque acredito que atualmente a principal tarefa analítica diz respeito mais à construção de sonhos do que à sua interpretação.

No campo da teoria da imagem, o filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman não tem dificuldade em se valer de teorizações psicanalíticas, como vemos no conjunto de sua obra e no excelente livro A imagem sobrevivente - História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Talvez nós também possamos deixar de lado as inibições e nos valer de teóricos de outras áreas da cultura para pensar a construção de imagens. Menciono, como exemplo, alguns temas pensados por Warburg e destacados por Didi-Huberman: sobrevivência de formas e impurezas do tempo, linhas de fratura e "fórmulas do pathos", fósseis em movimento e montagens da memória.

Disse antes que a psicanálise trata da construção das raízes da cultura individual e que isso exige compreender as circunstâncias de cada um, as quais são inseparáveis da cultura de uma época, cultura que não implica uma linha de ascensão progressiva, mas precisa ser reconstruída a cada situação concreta. Aí temos o nosso setting - a relação analítica, a transferência e a construção onírica -, que permite que a vida flua. Entre tantos aspectos de interesse, lembro, então, a prolongada internação psiquiátrica de Warburg (foram quatro anos) no sanatório Bellevue, na Suíça, e seu diálogo com Ludwig Binswanger [1881-1966], estudioso e correspondente de Freud e criador da análise existencial. Esse diálogo matizou a obra de ambos, médico e paciente.

Durante um tempo acreditei, ou quis acreditar, que a prática psicanalítica era aparentada com as manifestações mais radicais da arte do século xx e teria um caráter trágico. As construções imagéticas que elaboramos com nossos pacientes são efêmeras. Tanto os atores como o público dessa elaboração se resumem aos dois participantes da cena. Se quisermos relatar o que se passa nesse teatro, precisaremos do talento de narrar e aí se tratará de outra arte. Para piorar, a obra, se for de fato boa, repousará, por trajetos diferentes, no inconsciente do analista e no do analisando. Portanto será esquecida! Não estaremos próximos daquelas performances na arte das quais nos sobrarão apenas alguns restos fotográficos?

Mais tarde, com base nas reflexões de Bauman sobre a pós-modernidade, encontro Lévinas, e me parecerá lógico e essencial que a ética esteja no centro da prática psicanalítica. Para Lévinas, o primeiro passo do conhecimento não é ontológico. Segundo afirma, quando pretendemos tornar o Outro no Mesmo - essa é a antiquíssima fórmula da identidade que vimos em Aristóteles -, o que ocorre é a destruição da alteridade. O gesto ético se configura na submissão ao outro, em permitir que a alteridade fale. Essa submissão, em minha leitura, equivale a oferecer-se ao trauma que deriva da simples presença do outro - isso é atenção flutuante, e a associação livre se dará a partir dessa autorização para que o outro continue a ser o que é.

Paro neste ponto e, mais uma vez, lembro Warburg e sua biblioteca fantasmática. Ele remanejava loucamente os livros, à procura da afinidade mais estreita entre eles. A etnologia estará próxima da sociologia, e esta da filosofia ou da história da arte? A todo momento, deslocava os títulos e refazia as vizinhanças e associações. Sua biblioteca, escapando da sanha nazista, foi transferida em 1933 para a Inglaterra, onde passou a fazer parte da Universidade de Londres. Inspirando-se nas questões teóricas que obcecavam Warburg, os arquitetos a projetaram em formato elíptico, de tal modo que o leitor pudesse se manter equidistante das diferentes disciplinas que a constituíam.

É assim que eu me sinto hoje, remanejando o acervo de associações possíveis sem nunca me sentir constituído. Imagino que, se esta aula inaugural fosse amanhã, eu faria outro trajeto; certas ideias e certas imagens compareceriam novamente, mas em outro tempo, complexo e desigual, e encadeadas de outra maneira. Penso também que todos os tópicos poderiam ter sido aprofundados, mas me consolo lembrando que esta é uma aula inaugural e que eu mesmo, apesar de tudo, também estou sempre num tempo inaugural.

Muito obrigado a todos, e sejam bem-vindos.

 

Referências

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