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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dez. 2015

 

TEMA: ANÁLISE DE GRUPO E GRUPOS EM ANÁLISE

 

Transferência em psicoterapia de grupo de orientação analítica

 

Transference in analytically oriented group psychotherapy

 

La transferencia en la psicoterapia de grupo de orientación analítica

 

 

Leonardo Haddad da Costa Barros

Agregado do Núcleo de Psicanálise de Marília e região - NPMR. Trabalho de Conclusão de Curso (FAMEMA). Apoio da Comissão Científica do NPMR. Agradecimentos a Patrícia Nunes (membro do Instituto de Psicanálise de São Paulo), ao NPMR e dra. Roseli Vernasque Bettini, orientadora vinculada à Faculdade de Medicina de Marília - FAMEMA. clinichaddad@hotmail.com

 

 


RESUMO

A transferência é um importante recurso terapêutico desde os primórdios da prática psicanalítica. Na clínica da psicoterapia de grupo, ela adquire um importante alcance à medida que repousa no arcabouço subjetivo de cada membro do grupo. O presente artigo contempla as implicações da transferência no âmbito da grupoterapia de orientação analítica. Assim, levando em conta o espaço e a importância reservados à transferência no setting analítico e o progressivo interesse dos estudos relacionados aos grupos na atualidade, foi realizada uma pesquisa bibliográfica com análise qualitativa em que foram encontradas três principais categorias que representam os resultados obtidos: (i) transferência em grupoterapia - conceito e importância, (ii) implicações dos processos intersubjetivos na transferência e (iii) transferências múltiplas e cruzadas. Foi abordada a representação da transferência no processo de grupoterapia de orientação analítica e descrita diante dos âmbitos de desenvolvimento psíquicos e intersubjetivos. Revelou-se a importância de se abordar a transferência no que diz respeito ao mundo interno dos indivíduos que participam desse tipo de processo.

Palavras-chave: psicoterapia de grupo, psicanálise, transferência (psicologia)


ABSTRACT

Transference is considered to be an important therapeutic resource since the early years of psychoanalytic practice. In the clinical practice of group psychotherapy, transference achieves a significant level as it lies in the subjective framework of each member of the group. This paper considers the implications of transference in analytically oriented group therapy. Taking into account the space and the importance of transference in the analytical setting, and a currently increasing interest in studies related to groups, the author did a literature research using qualitative analysis. In that research, he found three main categories, which represent the results: Transference in group therapy: concept and importance, implications of intersubjective processes in transference, and multiple and crossed transferences. The author wrote about the representation of transference in the process of analytically oriented group therapy, and he also described that representation in the field of psychic and intersubjective development. This papers demonstrates the importance of approaching transference when it comes to the internal world of the individuals in this kind of process.

Keywords: group psychotherapy, psychoanalysis, transference (Psychology)


RESUMEN

La transferencia es un recurso terapéutico fundante de la práctica psicoanalítica. En la clínica de la psicoterapia de grupo adquiere un importante alcance en la medida en que se apoya en el marco subjetivo de cada miembro del grupo. El presente artículo contempla las implicaciones de la transferencia en el ámbito de la Terapia de Grupo de Orientación Analítica. Teniendo en cuenta la importancia que tiene la transferencia en el setting analítico y el creciente interés que existe en estudiar grupos, realizamos una búsqueda bibliográfica, analizada cualitativamente, de la cual obtuvimos tres categorías principales: Transferencia en terapia de grupo: concepto e importancia; Implicaciones de los procesos intersubjetivos en la transferencia y, por último, Transferencias múltiples y cruzadas. Luego, se abordó la representación de la transferencia en el proceso de Terapia de Grupo de Orientación Analítica y su descripción en los ámbitos del desarrollo psíquico e intersubjetivo. Se destaca la importancia de abordar la transferencia en lo que concierne al mundo interno de los individuos que participan de este tipo de proceso.

Palabras clave: psicoterapia de grupo, psicoanálisis, transferencia (psicología)


 

 

Introdução

Freud se interessou em refletir sobre a psique das coletividades em seus estudos. No entanto, com o crescente interesse na psicologia de grupo, autores de viés psicanalítico se propuseram a descrever o funcionamento psíquico das interações grupais.

Os primórdios da prática grupanalítica contam com autores como Slavson, Burrow, Zulliger, Foulkes, Pontalis, Anzieu, Bion, Kaës e Pichon-Rivière, que lançaram mão do interesse das vicissitudes das inter-relações grupais e suas submersões inconscientes.

Os primeiros, contudo, a se aterem à prática grupal foram Slavson e Burrow. Tais autores trabalhavam com a transferência e resistências individuais, restringindo o grupo a uma espécie de moldura. Era a psicanálise em grupo. Já na década de 1950 teve início a psicanálise de grupo com Siegmond Heinrich Foulkes (1898-1976), em que a técnica psicanalítica era submetida ao todo grupal, levando em consideração as transferências múltiplas. Foulkes criou a escola Análise de Grupo.

Na escola francesa, Pontalis descreveu o grupo como um objeto de catexização, sendo que Didier Anzieu e René Kaës são pertencentes à escola de Pontalis. Kaës desenvolveu e descreveu, além da teoria de grupo como sendo o corpo materno, imagos familiares associadas ao grupo, aparelho psíquico grupal (como id, ego e superego) e a teoria da compreensão do grupo como um todo (Térzis, 2010).

Bion situa o grupo em funcionamentos de grupo de trabalho ou de inconsciente grupal, formulando a teoria dos pressupostos básicos inconscientes e compreendendo o grupo como sendo um espaço que representa a relação continente-conteúdo (Bion, 1975).

No entanto, ao examinar artigos recentes publicados em periódicos científicos relacionados à transferência e à grupoterapia, pôde-se chegar, por meio de pesquisa bibliográfica, à conclusão das temáticas que têm levantado maior interesse no contexto das práticas grupoterápicas em tempos recentes.

Em relação à pesquisa, Gomes (2007) ressalta que, para delimitar problemas, explorar novas concepções e propiciar novas conclusões a respeito de determinado tema, a pesquisa do tipo bibliográfica constitui um bom método, ao passo que a análise realizada, a análise de conteúdo, está, segundo Turato, (2003) para a pesquisa qualitativa assim como as técnicas estatísticas estão para as pesquisas quantitativas. É possível criar e elaborar conceitos e teorias a respeito do assunto estudado elaborando inferências. Penso ser aí que se situa a importância desse tipo e pesquisa para o presente artigo.

Assim, por meio de pesquisa bibliográfica realizada entre 2006 e 2010 chegou-se a três importantes assuntos estudados quanto à psicoterapia de grupo de adultos: transferência em psicoterapia de grupo, implicações dos processos intersubjetivos na transferência e transferências múltiplas e cruzadas.

 

1. Transferência

Sabemos que é de fundamental importância considerar no trabalho analítico que as representações mentais sob a forma de "protótipos", "imagos", constituem importantes informações analíticas. Constitui um recurso essencial considerar de que modo o analista está inserido transferencialmente em uma das séries psíquicas constituintes do mundo interno do analisando. Faço, aqui, um breve levantamento cronológico acerca do conceito.

Como consta nos primórdios da construção do conceito de transferência, Freud (1895/1974) esboça-o como um deslocamento para a pessoa do médico de representações do passado do paciente. Ferenczi (1909, citado por Laplanche e Pontalis, 2001) também já havia mostrado, nas técnicas de sugestão e hipnose, que o paciente fazia com que o médico desempenhasse figuras parentais amadas ou temidas. Porém, em 1912, época considerada como consagradora da transferência como estratégia analítica, é que encontramos a primeira exposição de conjunto sobre o termo "transferência". Freud (1912/1974) presenteia a prática clínica ao associar conceitualmente as representações de figuras do passado projetadas no analista às resistências ao tratamento e às reimpressões de fantasias inconscientes que deveriam ser tornadas conscientes no decorrer do processo analítico. Após, em 1914, em "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/1976), o autor associa a transferência ao conceito de compulsão à repetição.

É notório que a dimensão da compreensão do fenômeno transferencial revelou a Freud (1912/1974) a importância de substituir a neurose comum, clínica, com seus sintomas nosológicos, pela neurose de transferência, constituindo assim um campo de trabalho que se estabelece em direção ao que, na época, se entendia como uma possível cura e que, atualmente, representa uma melhoria no diálogo objetal e processos de pensamento. Assim, consideramos que a prática clínica dá conta de nos engendrar na exploração do terreno transferencial sob o qual repousam as relações de objeto do indivíduo inseridas no campo analítico.

 

2. Transferência em psicoterapia de grupo

Torna-se, contudo, um tanto mais complexo estudarmos a transferência no campo da psicoterapia de grupo analítica. Por tratar-se de um setting que envolve uma diversidade de mundos internos personificados pelos pacientes que ali estão e por ser um espaço também propício às transformações, algumas considerações são necessárias diante das semelhanças e diferenças relacionadas à intervenção individual.

Vinogradov e Yalom (1992) relatam que a psicoterapia de grupo é a aplicação das técnicas psicoterapêuticas a pacientes em grupo, em que tanto as interações paciente-terapeuta e terapeuta-paciente como paciente-paciente acontecem, pois ocorrem no setting do grupo: "O próprio grupo, bem como a aplicação de técnicas e intervenções específicas do terapeuta treinado, servem como instrumento para a mudança. Essa característica dá à psicoterapia de grupo seu potencial terapêutico singular" (Vinogradov & Yalom, 1992, p. 3).

Para Anzieu (1993), toda vida de grupo se encontra presa a uma trama simbólica que o faz perdurar e, sendo assim, qualquer grupo humano é resultante de uma tópica subjetiva. Essa tópica seria projetada sobre o grupo por cada membro. Levando em conta a transferência, ela não só ocorre em direção ao psicoterapeuta ou psicanalista, como também de uma maneira cruzada entre os diversos membros do grupo da mesma forma que a contratransferência. Dessa maneira, todos os pacientes, além de transferirem, também poderiam responder com a contratransferência (Py, Nobre, Castellar & Freitas, 1987).

Cortesão (1989), ao se referir às transferências em grupanálise, pensa na estruturação do grupo como sendo uma tríade entre o indivíduo, o grupo e o analista. Afirma haver um entrelaçamento de conexões transferenciais dos membros do grupo com o grupanalista, não havendo conexões parciais e isoladas, conferindo uma estrutura triangular que é pertinente ao processo grupanalítico e à elaboração do complexo de Édipo. Desta forma, poderia haver deslocamento para o analista como analista-pai ou analista-mãe e para o grupo como sendo grupo-mãe ou grupo-pai, ficando o indivíduo com o papel da criança.

Nos settings de grupo, os pacientes têm à sua disposição um leque imenso de relacionamento; devem interagir uns com os outros, com os líderes dos grupos, com pessoas de diferentes bagagens de vida ... Os membros devem aprender a lidar com suas simpatias, antipatias, similaridades, diferenças, inveja, timidez, agressão, medo, atração e competitividade. Tudo isso ocorre sob escrutínio do grupo onde, com uma cuidadosa liderança terapêutica, os membros dão e recebem feedback acerca do significado e efeito de suas várias interações uns com os outros. (Vinogradov & Yalom, 1992, pp. 13-14)

Quando pensamos nesse imenso leque de relacionamentos, podemos nos remeter às imagos introjetadas dos pacientes que serviriam como aspectos transferenciais suficientes e de evidente importância para a psicoterapia. Essas imagos emergem em um setting individual, porém, uma incontestável e ampla gama de possibilidades de troca e interações dessas imagos se torna possível em grupo, oferecendo ao psicoterapeuta de grupo um mais amplo e mais rico material para a investigação analítica.

2.1 Transferência em psicoterapia de grupo: conceito e importância

Muitos dos relacionamentos interpessoais mal adaptados baseiam-se nas distorções surgidas nas experiências primordiais de desenvolvimento. Ao refletir sobre como ocorre a transferência, os grupanalistas Foulkes, Kadis, Krasner e Winick (1976) referem que "a atmosfera e clima familiar-familial proporcionados pela grupoterapia facilita a experimentação e expressão de sentimentos de transferência" (Foulkes et al., 1976, p. 109).

Ao estudar grupos, deparamos com a realidade grupal que remete à realidade do grupo primordial, em que os membros podem ter o mesmo tipo de comportamentos e reações que tenham tido melhor aceitação na infância, com seus familiares.

Descreve Andréa (2006) que, para o desenvolvimento do processo grupal, deve-se considerar os sentimentos e as relações estabelecidas tanto com o terapeuta como entre os elementos do grupo, caracterizando assim a importância do vínculo transferencial. Com o desenvolvimento da teoria e da técnica analítica, vários aspectos sobre a transferência foram abordados e descobertos por Freud, sendo que inicialmente a transferência era tida como uma resistência ao tratamento.

Sabemos que a transferência traz consigo o indicador que aponta a proximidade do conflito inconsciente. Anna Freud (1942, citada por Tuttman, 1996) acentuou que as fantasias transferenciais têm, amiúde, suas fontes nas relações objetais do início da vida. Essas fantasias possuem um valor incomparável como meio de proporcionar informações sobre as experiências emocionais passadas do paciente.

Mas é importante considerar compreensões distintas da transferência. Zimerman (2008) entende que há duas vias de compreensão da funcionalidade da transferência. Uma em que seria produto de uma necessidade de repetição, e a outra em que seria uma forma de repetir uma necessidade não satisfeita no passado. Zimerman discute as concepções de Freud, em que a transferência, além de culminar numa resistência ao tratamento, é também "uma necessidade de repetições de antigos traumas psíquicos que foram muito mal resolvidos" (Zimerman, 2008, p. 8).

Bechelli e Santos (2006), no relato sobre o conceito de transferência, descrevem-na como a atualização dos desejos inconscientes por meio de novos objetos do presente e que repousa em um determinado tipo de relação. Trata-se, portanto, de uma repetição. Repetição oriunda de protótipos infantis que são vivenciados, não obstante, com um sentimento de atualidade marcante. Consideram ainda que expressar as vivências de intensa carga emocional possibilita um novo estágio para uma nova referência de percepção afetiva, e, assim, uma das funções da transferência pode ser a de facilitar a catarse.

Considero importante a forma como esses autores compreendem a transferência. O setting psicoterápico é o terreno ideal para o florescimento da situação transferencial. A própria natureza da situação terapêutica e a ampla liberdade para abordar o material inconsciente conferida ao paciente dentro de um ambiente seguro e num ritmo que lhe é próprio podem estimular gradativamente o estabelecimento da transferência. Respaldado pelo enquadre estabelecido, é nesse espaço analítico que se espera haver um continente para as angústias do indivíduo e que, assim, o sujeito possa experimentar novamente as vivências anteriores para assim poder modificá-las.

Para tanto, devemos considerar que a transferência se dá a partir do momento em que o paciente toma conhecimento de um dado do psicoterapeuta, como o seu nome ou assim que entra no grupo (Bechelli & Santos, 2006). Autores como Zimerman (2008) salientam a importância das atitudes do psicoterapeuta no desencadeamento da resposta transferencial do paciente. O vínculo entre paciente e terapeuta vai além do acervo das representações mentais e de objetos internos do paciente. É também determinado pelo modo como o profissional se relaciona com ele, respondendo ou não a estes aspectos, conferindo um grande papel também à contratransferência do psicoterapeuta.

Assim, o enquadre estabelecido, o vínculo, a expressão do sentir do paciente e as atitudes do terapeuta são de considerável importância para o estabelecimento e curso da transferência.

Como percebemos, deve-se pensar a transferência com certa cautela. Guirado (2006) afirma, ainda, que é necessário um ajuste no conceito a partir do momento em que nele existe uma instituição entre o grupoterapeuta e o paciente, o que pressupõe uma relação prévia com o estabelecimento em questão. Existe antes do atendimento uma situação transferencial formada pela instituição, que pode ter relação com vivências e imagos do passado do indivíduo. Levando em consideração esse ajuste, podemos supor que a transferência, anteriormente a ocorrer com terapeuta, ocorre entre indivíduo-instituição, que influencia a maneira como a transferência será modulada no campo grupal.

A partir desse raciocínio, podemos perceber que a transferência se prende nas imagos que foram previamente formadas. Se a imago tem uma determinada configuração de características identificáveis pelo indivíduo em algum nível inconsciente, a tendência é que a transferência revele este padrão por associação, por quaisquer semelhanças, ainda que sutis ao próprio indivíduo.

2.2 Implicações dos processos intersubjetivos na transferência

Conforme já discutido, as experiências do passado introjetadas pelo indivíduo podem fazer uma significativa diferença ao se estabelecer novos vínculos, de forma a resultar não em novas experiências, mas na revisão das antigas.

Partimos do pressuposto de que o espaço grupal é um campo em que vão aparecer a subjetividade e intersubjetividade humanas. É um campo em que as pessoas vão interagir e pôr em atividade interpessoal seus mundos internos.

Ao estudar o fenômeno transferencial, percebemos que há uma tendência interna do paciente em ver o psicoterapeuta conforme o viés de sua própria história de vida. O psicoterapeuta pode parecer, por exemplo, alguém digno de confiança, gentil e cordial, ou, então, de modo inverso, alguém descortês e pouco confiável, podendo ser bem diferente do que ele possa ser na realidade. Passa a ser vivenciado não exatamente como ele é, isso é, com seus reais atributos, mas como um ou mais objetos infantis constituintes do acervo construído cumulativamente ao longo da história de desenvolvimento do paciente, constructos esses correspondentes a influências afetivas profundas ou a conflitos inconscientes.

Os pacientes, entretanto, percebem não só o terapeuta com aspectos distorcidos da realidade, mas também uns aos outros. Frequentemente interpretam sentimentos, desejos, atos e palavras sob a luz de seu próprio mundo interno. Bechelli e Santos (2006) afirmam que no presente são impostas atitudes, sentimentos e expectativas adotadas outrora, no passado. Não têm sustentação na realidade, sendo regidas pelo processo primário de pensamento e embebidas no mundo fantasmático.

Segal (1964, citada por Tuttman, 1996) afirma, por meio das formulações de Klein, que representações mentais internas emocionais (libidinal e agressivamente matizadas) que se encontram represadas na psique no início da vida se mantêm presentes em camadas primitivas do inconsciente dos membros do grupo. A lente por meio da qual o paciente concebe a outra pessoa, tanto o terapeuta quanto os outros participantes, é propensa a grandes distorções. De tal modo, conforme Anzieu: "O grupo é uma colocação em comum das imagens interiores e das angústias dos participantes" (Anzieu, 1993, p. 21).

Assim, podemos pensar que há uma tendência do paciente a não pensar, realizando actings e agindo em conformidade às relações interpessoais que foram constituindo o seu mundo interno.

Bion (1967/1994), quando em seus trabalhos a respeito da parte psicótica da personalidade, afirma a coexistência simultânea na personalidade de diferentes modos de funcionamento mental. Mas como se caracterizaria tal condição no campo grupal?

Ao que parece, o grupo se organiza em formatações que implicam uma condição primitiva de funcionamento baseadas na transferência. Bion (1975) ao estudar grupos, refere que ao trabalhar os pressupostos básicos arcaicos, inerentes ao funcionamento inconsciente de um grupo, o conceito de transferência é acionado. Os pressupostos básicos são estados afetivos arcaicos e pré-genitais que incluem as possibilidades que ocorrem na vivência de um grupo e que se definem pela relação estabelecida entre os participantes e desses com o terapeuta. Descreve três pressupostos: dependência, quando há a busca por proteção; luta-fuga, quando discutem entre si; e acasalamento, em que os membros do grupo voltam-se uns aos outros para salvação ou por diversão. Os pressupostos básicos surgem em momentos diversos, sendo um predominante e que mascara o restante, em potencial, constituindo o sistema protomental.

Podemos refletir que o indivíduo, ao vivenciar a situação grupal e, portanto, vivências de dinâmica primitiva, experimenta ansiedades persecutórias e a protomentalidade.

A protomentalidade é entendida por Franco Filho (2008) como sendo a experimentação da indiferenciação entre todo-parte, mente-corpo, dentro-fora e sucessão temporal, constituindo protoemoções num nível de extremo primitivismo. Esse funcionamento se dá para promover uma homogeneidade e uniformidade no grupo, estando esse movimento a serviço de uma defesa contra a mudança e conferindo ao grupo uma eternidade grupal, que Bion nomeou como mudança catastrófica (Franco Filho, 2008):

todos os seres humanos têm medo de seus próprios resquícios de fantasias de objetos parciais primitivos que persistem inconscientemente no banco de memória deixado pelas distorções do início da vida. Além disso, representações mentais relacionadas a essas percepções arcaicas permanecem enterradas nas psiques, e isso pode ser provocador de ansiedade. (Bion, 1959, citado por Tuttman, 1996, p. 86)

Portanto, transferência é, por excelência, um fenômeno do aqui-agora. Na compreensão psicanalítica entende-se que, ao se identificar as explicações no passado para as distorções incômodas dos problemas presentes do paciente, os problemas atuais possam ser elaborados.

A transferência deve ser um veículo e um estímulo para um tipo singular de lembrança que se desdobra gradativamente no processo psicoterápico, que envolve a interpretação e a elaboração da transferência.

Toda nova relação "se estabelece entre o presente e um passado que luta incessantemente para inscrever-se" (Bechelli & Santos, 2006, p. 113). O tipo de vínculo estabelecido entre os membros e o psicoterapeuta é crucial para a psicoterapia analítica de grupo.

2.3 Transferências múltiplas e cruzadas

Ao tratarmos de grupoterapia analítica a atuação se dá diretamente com base no afeto nas relações entre os participantes do grupo e destes com o grupoterapeuta. Temos o afeto como sendo, portanto, um instrumento de trabalho.

Pois bem, no contexto grupoterápico percebe-se que não existe somente um processo transferencial. Múltiplas transferências coexistem e encontram-se estabelecidas entre os participantes, potencializando e ampliando uma gama de sentimentos. O fenômeno transferencial de cada um dos participantes no campo grupal resulta em transferências cruzadas.

Essas transferências múltiplas referem-se ao processo caracterizado pela resposta transferencial, ao que Wolf (1949/1950, citado por Foulkes et al., 1976, p. 108) chamou de características variadamente provocadoras das personalidades múltiplas no grupo. Diferentemente de outras situações que convergem para um só indivíduo, no grupo os sentimentos anexados aos objetos infantis e a todo o complexo de ideias podem se eleger entre vários e diversos membros do grupo, sendo tanto os outros membros quanto o psicoterapeuta. Nesse ínterim, existe uma eminente probabilidade de projeções e deslocamentos consistentes envolvendo um objeto infantil particular. Assim, determinados integrantes comportam-se de tal maneira a corresponderem a partes específicas do self de um determinado membro do campo grupal.

Bechelli e Santos (2006) referem que, como a transferência no contexto grupal assume características multilaterais envolvendo o self, algumas pessoas terão atributos passíveis de se tornarem mais salientes à percepção de determinada pessoa do que de outras. Podemos encontrar sustento para essas concepções na literatura clássica com Pichon-Rivière, que se refere às múltiplas transferências:

Quando várias pessoas se reúnem em um grupo, cada membro projeta seus objetos de fantasia inconsciente sobre vários membros do grupo, relacionando-se com eles de acordo com essas projeções, que se tornam patentes no processo de adjudicação e assunção de papéis. (Pichon-Rivière, 1991, p. 164)

Esses objetos transferenciais projetados recheiam o contexto grupal além de interagirem entre si. O paciente pode, então, por meio da experiência grupal, perceber tais interações e ter acesso à natureza dos relacionamentos que delinearam seus objetos infantis.

Na literatura clássica, quanto às transferências dirigidas ao grupoterapeuta ou aos membros do grupo, Ezriel (1973, citado por Tuttman, 1996) afirma ser o grupoterapeuta uma figura central ao tratamento, tal qual a autoridade dos pais é central na família. Assim sendo, entre os pares as transferências são deslocadas tendo como função produzir segurança entre eles. Fantasmaticamente, o líder poderia ser perigoso e a segurança residiria no desafio dirigido aos pares. Glatzer (1962, citado por Tuttman, 1996) e Stein (1970, citado por Tuttman, 1996) referem ser as transferências redirigidas para os membros do grupo quando as reações transferenciais para com o grupoterapeuta são inibidas. Ademais, se os sentimentos remontam a uma raiva primitiva pré-edípica, os pares podem representar aliados protetores. São desenvolvidos papéis pessoais baseados em fantasias e conflitos inconscientes, tornando os objetos transferenciais múltiplos entre si.

Tais situações vivenciadas com o terapeuta e com os demais membros do grupo representam boas possibilidades de intervenção disponíveis ao psicoterapeuta de grupo. Como compreendem Foulkes et al. (1976), as vantagens da psicoterapia do grupo residem nas transferências múltiplas. De forma similar entendem Coutinho e Rocha (2007) ao refletirem sobre o termo "psicanálise ampliada" ou "prática entre (ou com) muitos". Compreendem a influência que os pacientes exercem entre si podendo, portanto, verbalizar o que muitas vezes é de grande utilidade para outros membros.

Por mais que existam aspectos psicóticos nas relações grupais, em cujo papel a transferência possui lugar cativo, o grupoterapeuta não só pode contribuir trabalhando-as de maneira isolada, mas todas as outras de forma indireta. Bechelli e Santos (2006) afirmam que, ao se intervir focando a transferência de alguém que está momentaneamente ocupando uma posição central no grupo, o grupoterapeuta estará intervindo indiretamente na elaboração das transferências relacionadas aos demais membros do grupo.

Esses autores postulam, ainda, que no momento em que existe uma repetição de padrões de comportamento no grupo, estes se apresentam a diversas pessoas, cada qual inserida em uma relação transferencial específica com o paciente do qual emanou o comportamento repetitivo. Assim, abre-se a possibilidade de não só o grupoterapeuta interpretar, mas cada elemento do grupo comentar um aspecto diferente do comportamento do paciente.

Como se vê, pela própria característica do grupo, os próprios pacientes intervêm uns nos outros, e as reações dos outros membros servem de validação consensual por oferecerem espelhamento e apoio. Rutan e Stone (1984, citado por Kaplan & Sadock, 1996) postulam que as interpretações feitas por outros membros do grupo despertam menor resistência se comparadas às do psicoterapeuta de grupo. Assim, mesmo que estejamos falando de uma transferência e que ela exista também entre os pares, reações menos severas podem ser despertadas, se comparadas às dirigidas às figuras de autoridade, como a do grupoterapeuta.

Vinogradov e Yalom (1992) trazem uma importante reflexão que nos aproxima deste entendimento:

Muitos pacientes ingressam na terapia de grupo com uma história de experiências altamente insatisfatórias em seu primeiro e mais importante grupo, o da família original. Uma vez que a terapia de grupo oferece um leque tão grande de possibilidades de recapitulação, os pacientes podem começar a interagir com os líderes ou outros membros como interagiam, em determinado momento, com os pais e irmãos. (Vinogradov & Yalom, 1992, p. 23)

Como na família original, porém, os membros do grupo podem viver sentimentos variados. Foulkes et al. (1976) afirmam que existe no grupo a tendência de manter certa homeostase frente à ambivalência de sentimentos. Nesse ínterim, o grupo elege um membro como o agente de mudança, podendo ser tanto o grupoterapeuta quanto outro paciente com quem tem uma relação transferencial significativa. O papel desempenhado pelo agente de mudança pode ameaçar a homeostase, produzir ansiedades persecutórias, conferindo, inclusive, certa resistência à mudança. "O processo de grupo é um emaranhado tecido de empurrar e puxar, de ódio e de amor, de agressão e passividade, de frieza e calor" (Foulkes et al., 1976, p. 109).

Podemos então pensar as transferências múltiplas e cruzadas como oferecendo, por suas próprias características, algo determinante no rumo do trabalho grupoterápico por meio da função analítica que os próprios membros podem exercer, ainda que intuitivamente, uns aos outros. Quanto ao grupoterapeuta, muito embora não exista um esquema pronto a ser aplicado para diluir as transferências evocadas num grupo, ele é responsável sobretudo por oferecer uma base segura, um continente por meio do qual o sujeito possa explorar e expressar seus sentimentos, coabitando seu mundo interno.

 

Considerações finais

Percebe-se a importância das estruturas transferenciais não só individualmente, mas do todo grupal, sendo altamente relevante salientar as primeiras impressões tidas no contato com o grupoterapeuta. Qualquer ideia preconcebida deste e do grupo exerce fundamental papel para a estruturação do vínculo transferencial que está ligado às experiências vigentes do mundo interno de cada paciente. Esses elementos, terrenos férteis para a constituição do vínculo transferencial, fornecem ao indivíduo informações daquilo e de quem o está esperando.

Vimos que o processo de transferência grupal envolve justamente ansiedades que remontam a uma estrutura psíquica primitiva protomental. Sabemos que essa estrutura, regida pelo processo primário de pensamento, abarca fantasias que contemplam imagos internas, ocasionando confusão entre a realidade externa e a realidade interna, promovendo distorções relacionais. Esse fenômeno em grupoterapia leva em conta as fantasias envolvendo cada participante, o todo grupal e o grupoterapeuta.

Os sentimentos manifestados no campo da grupoterapia analítica envolvem um todo, um arcabouço em que reside um arranjo de fantasias compostas de imagos internas deslocadas e projetadas em outras pessoas. Constituem campo para a emersão de partes internas, imagos, que pautam a relação que se tem com o grupo como um todo e as demais relações.

Percebemos que os membros exercem influência entre si e desempenham determinados papéis correspondentes às fantasias que vigoram em seus mundos internos. A partir de então, o grupo passa a ter funcionamentos que correspondem às ansiedades frente ao papel do psicoterapeuta, ao de outro membro ou ao do grupo como um todo.

É importante lembrar que a psicoterapia de grupo se beneficia das intervenções não só do grupoterapeuta, fator este que pode ajudar a diluir ansiedades próprias da situação grupal, mas pode representar ainda um valioso instrumento por meio do qual se podem compreender os processos psicodinâmicos que envolvem vários papéis dentro de um mesmo enquadre psicoterápico.

Se compreendermos que fatos novos acontecem na vida cotidiana do indivíduo no decorrer do processo grupoterápico e que tais fatos estimulam elementos de sua psicodinâmica, resultando em sentimentos despertados em si e do outro, podemos pensar num indivíduo influenciando o seu grupo a partir da sua situação interna. Não é difícil notar que estas configurações grupais dependem, ainda, dos elementos transferenciais que o grupo e cada membro delega a ele, transferencialmente. Assim, a enorme influência que o grupo como um todo pode exercer no mundo interno de um indivíduo pode explicar as diferenças de seu comportamento nele, fora dele e o poder de influência grupal.

Miller de Paiva (1991, citado por Bodstein e Arruda, 2006, p. 64), ao discorrer sobre Édipo grupal, refere-se aos sentimentos vividos pelo indivíduo ao entrar no grupo, dizendo que ele o faz "pela porta do complexo de Édipo", resultando daí sua relação com o grupoterapeuta e com o próprio grupo.

Por fim, o psicoterapeuta analítico de grupo deve ver e sentir o mundo aos olhos dos pacientes, tal como uma mãe faz com seus bebês. Ou então algo similar a um professor de dança que proporciona um chão firme aos dançarinos aspirantes, para que se sintam seguros a se lançarem em seus passos primeiros. Da mesma forma é no campo grupal: auxiliar cada indivíduo no reconhecimento de seus primórdios transferenciais em sua vida de relações é um importante passo para a elaboração e para boas transformações.

 

Referências

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Recebido em: 30/5/2015
Aceito em: 9/6/2015

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