SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48 issue88A gift for the analyst: clippings of a psychoanalytic group sessionGrupos: uma questão viva em nossa Sociedade author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS: GRUPOS

 

Oficina dos sentimentos: a construção de um espaço terapêutico

 

El taller de los sentimientos: construcción de un espacio terapéutico

 

Feelings workshop: building up a therapeutic space

 

 

Silvia Maia Bracco

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Mestra em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenadora da área de saúde e da Oficina dos Sentimentos no Ateliê Acaia. smb@bracco.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo relatar a história do grupo de atendimento psicológico "Oficina dos Sentimentos", que atende crianças e adolescentes semanalmente no Ateliê Acaia, núcleo do instituto que leva o mesmo nome. A entidade atua, entre outras frentes, junto à comunidade que vive nos arredores do ceagesp, na Zona Oeste da cidade de São Paulo. O ateliê auxilia crianças, jovens, seus familiares e a comunidade na organização individual e coletiva, visando ao estabelecimento de relações mais saudáveis. Neste trabalho, acompanhamos a progressiva construção de um espaço terapêutico em grupo. Partimos da hipótese de que o enquadre cria condições para que a simbolização ocorra. Pretendemos descrever e discutir o processo de estabelecimento, transformação e ampliação de enquadres que permitam criar matrizes de simbolização visando a estabelecer um repertório básico de relação com o campo cultural e a vida em sociedade. O referencial teórico centrou-se, basicamente, nas contribuições de Winnicott, Herrmann e Roussillon.

Palavras-chave: crianças, clínica extensa, enquadre, simbolização


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo hacer un histórico del grupo de atención psicológica Taller de los Sentimientos, que atiende semanalmente niños y adolescentes en el Atelier Acaia, núcleo del Instituto que lleva el mismo nombre. El Instituto actúa entre otros frentes, en las comunidades que viven en los alrededores del ceagesp, que es el mercado central de la ciudad de San Pablo, localizado en la zona oeste de la ciudad. El Atelier Acaia auxilia niños, jóvenes y sus familiares, así como a la comunidad, en su organización individual y colectiva con el objetivo de ayudarlos a establecer relaciones más saludables. Este texto describe la construcción progresiva de un espacio terapéutico en grupo. La autora parte de la hipótesis de que el encuadre crea condiciones para la simbolización y propone discutir el proceso de establecimiento, trasformación y ampliación de encuadres que posibiliten crear matrices de simbolización, con el fin de establecer un repertorio básico en la relación con el campo cultural y la vida en sociedad. Las referencias teóricas provienen básicamente de las contribuciones de Winnicott, Herrmann y Roussillon.

Palabras clave: niños, clínica extensa, encuadre, simbolización


ABSTRACT

This paper aims to describe the story of "Feelings Workshop" - a group that provides a weekly psychological care to children and teenagers in the Acaia Studio, which is the core of the institute with the same name. Among other fronts, the group work with the community that lives in the westside of the city of São Paulo, more precisely, in the area around ceagesp (a public company and the central distributor of food products in the State of São Paulo). The workshop helps children, young people, their families and all the community in the individual and collective organization, in order to build healthier relationships. In this paper, we have followed the progressive development of a group therapy space. Our initial hypothesis is that frame creates conditions for symbolization to occur. We intend to describe and discuss the process of establishing, transforming and expanding frames; frames that creates matrices of symbolization in order to build up a basic repertoire that relates to the cultural field and social life. The theoretical reference is basically focused on Winnicott's, Herrmann's, and Roussillon's contributions.

Keywords: children, extensive clinic, frame, symbolization


 

 

Atualmente, a psicanálise se defronta com questões de grande complexidade, que esbarram no esfacelamento do tecido social. A exclusão social é um tema indispensável de reflexão a qualquer profissional que trabalhe com vítimas do desamparo social. No Brasil contemporâneo, muitas instituições tentam revisar práticas convencionais e se envolvem em projetos que buscam o resgate e a construção de elementos de cidadania.

É o caso do Ateliê Acaia - entidade que atua, entre outras frentes, junto à comunidade que vive em duas favelas e um conjunto habitacional nos arredores da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP) -, núcleo do instituto que leva o mesmo nome. O Acaia auxilia crianças, jovens, seus familiares e a comunidade na organização individual e coletiva, com vistas ao estabelecimento de relações mais saudáveis. São famílias pouco estruturadas, sobrecarregadas com questões como desemprego, violência, delinquência e tráfico de drogas.

 

 

Safra (1999) enfatiza que o psiquismo se apoia em diversos níveis que dão sustentação ao homem. Famílias que vivem excluídas socialmente estão muitas vezes deslocadas do próprio sentido de dignidade humana, e isso afeta diretamente a formação do self.

A aproximação com essa problemática gera um tipo de questionamento em face da formação do profissional - seja um psicanalista, seja um educador - que pretende trabalhar com as classes desfavorecidas. É preciso considerar e contornar situações limites a que crianças são submetidas desde muito cedo. A falta de cuidados básicos, um abandono que não está circunscrito apenas à casa, à família, mas que fala de um descaso das autoridades públicas, que não oferecem a essa camada da população condições mínimas para participar da categoria de cidadãos.

Esse panorama gera a necessidade de uma escuta que considere questões como humilhação social, privação e exclusão, elementos sobre os quais discorreremos ao longo deste artigo, escrito com o objetivo de relatar a história do grupo de atendimento psicológico Oficina dos Sentimentos, que semanalmente atende crianças e adolescentes no Ateliê Acaia. Acompanhando a história da oficina e as modificações ocorridas ao longo do trabalho, vou me deter nas questões de manejo e construção de um enquadre que possibilitou a formação de um espaço terapêutico.

 

Oficina dos sentimentos

O trabalho no Acaia nasceu de uma demanda por parte da coordenação do ateliê para que eu atendesse algumas crianças que apresentavam grandes dificuldades emocionais. Para mim, no início, não estava claro como seria o desenvolvimento de um trabalho como esse, porém, era certo que não se tratava de reproduzir um atendimento tradicional como fazemos no consultório. Isso corresponde ao que Herrmann (2001) chamou de Clínica Extensa, ou seja, um movimento em que se estende o método psicanalítico para o mundo, para qualquer produção humana, situações que vão além dos domínios do consultório.

O trabalho foi tomando forma e se transformando até ganhar corpo, horário, espaço, sentido - enfim, um enquadre que sustentasse a escuta e criasse condições para que a simbolização ocorresse.

Segundo Roussillon (2007), o enquadre permite ao sujeito criar e usar certos símbolos para se expressar. Trata-se de uma espécie de repertório de linguagem simbólica, na sua mais ampla e variada forma de expressão. Para esse autor, qualquer análise só pode ocorrer quando se oferece ao sujeito um enquadre que ele possa utilizar; caso contrário, não fará sentido para o outro e não poderá se transformar em um espaço de produção simbólica.

A análise deveria propor um enquadre bom o suficiente para a simbolização do paciente; este, quando o aceita, está dizendo que confia no que o analista está propondo como algo bom para ele, mesmo que ainda não entenda claramente o sentido implícito. O analista sabe que em algum momento o paciente terá condições de simbolizar o enquadre, de modo que deixe de ser algo imposto. Ou seja, se o enquadre gera e sustenta o processo, este deverá sustentar o enquadre e sua pertinência, apoiando-se mutuamente. Para isso, o enquadre tem de supor um repertório existente para sustentar a transferência e dar continuidade/promover o processo de simbolização.

Toda criança vem ao mundo equipada com um aparelho simbolizante que, se for usado, desenvolve a linguagem e produz símbolos. Cria-se um repertório em que o sujeito se torna capaz de comunicar o que sente e pensa; além disso, ele amplia sua condição de se relacionar com o outro e com o mundo que o cerca.

 

O primeiro enquadre: eu e a caixa

O trabalho na Oficina dos Sentimentos foi se delineando com base nesses elementos. No início, diferentemente de um enquadre tradicional, não tínhamos sala fixa, e os únicos elementos constantes eram o dia e o horário em que eu estava no Acaia. A minha presença "era" o enquadre, em conjunção com um elemento muito importante: a "caixa" que eu havia montado, basicamente com alguns brinquedos e material gráfico. O ponto de partida nesse processo: eu, a caixa e a minha crença nela como um conjunto de possíveis, que carregava um potencial simbólico capaz de se transformar em significados afetivos e efetivos. No meu entender, a caixa carregava elementos da cultura em estado potencial, e, gradativamente, as crianças puderam se apropriar disso como ferramentas.

 

 

É importante destacar que as crianças e os jovens que frequentavam os grupos apresentavam um repertório básico e comum, impregnado pela erotização e a violência a que estão expostos cotidianamente. Também havia grande dificuldade de lidar com regras e limites. Ampliar esse repertório, criar condições de linguagem para expressar experiências emocionais na maior parte das vezes manifestadas em estado bruto, em ato, foi uma tarefa exaustivamente perseguida.

Houve no decorrer desse trabalho, em andamento há aproximadamente oito anos, uma espécie de "neurotização do enquadre", capaz de sustentar um contrato que rege as relações sociais, a inserção na cultura, diferentemente do contrato que rege as relações na favela, pautadas pelo arbítrio. Essas relações são não raro representadas por um objeto perverso que cria uma lei própria, e que as crianças conhecem precocemente: "A lei sou eu e aquilo que eu decidir". Pode ser um traficante, uma figura parental, a polícia etc., que não são portadores de uma lei comum à qual todos estão submetidos. Isso gera temor ao objeto que pode tudo e não obedece a nenhuma lógica. O repertório é atravessado por esses elementos que não favorecem o estabelecimento de um laço social, tão necessário para regular as relações entre os homens e o campo cultural. O Acaia entra como o representante da lei, da função paterna, da cultura que veicula outra mensagem: "Ninguém pode tudo"; a instituição encarna a lei que está acima dela. Isso agrega novo sentido às experiências e é essencial para o sucesso de qualquer trabalho ali realizado.

Dois exemplos apontam nessa direção. No grupo, as meninas com frequência brincavam de casinha - uma era a mãe e as demais, as filhas. A mãe era sempre representada de forma autoritária e violenta. Em uma situação durante a brincadeira, a mãe puxava "tranquilamente" sua filha pelos cabelos. Eu apontei o movimento, mas rapidamente elas disseram com muita naturalidade: "Mas ela pode, é a mãe!" Esse era o padrão, e era fundamental eu entender os códigos e o repertório das crianças para poder introduzir novas maneiras de se relacionar com o outro.

Em outra ocasião, um menino começa o grupo contando que tem medo de dormir, e todas as noites busca abrigo na cama do irmão mais velho. Quando é questionado sobre a origem de seus medos, ele fala em filmes de terror, assombração, criaturas estranhas. Em um segundo momento, conta sobre o pai, que é violento, bate muito quando está alcoolizado e que seu irmão, o mesmo que lhe dá abrigo nas noites insones, o segura, para que o pai possa agredi-lo. Mostra as marcas deixadas pela violência sofrida no corpo. A conversa segue sobre a confusão, a insegurança, a vulnerabilidade que a relação com o pai provoca. Quem me protege é quem eu mais temo... só tendo pesadelos... Em seguida, ele propõe ao grupo um jogo, com regras claras, rígidas, sem confusões e sem possibilidade de acordos. Ou joga daquele modo ou não participa da brincadeira. Encontra, através do jogo, uma saída para esse universo sem leis e repleto de duplas mensagens em que está inserido.

É muito difícil entender a posição paradoxal dos adultos que ora protegem e cuidam e ora são os principais agressores. Assim, por meio do brincar, fomos construindo espaços de comunicação mais complexos, matrizes de uma simbolização mais ampla.

 

Que lugar é esse?

A oficina acontecia onde houvesse algum lugar livre no dia, o que nos fez frequentar quase todos os espaços do ateliê. Atendi em sala de aula, em sala de música, na oficina de xilogravura.

No início, invariavelmente, nossos encontros eram muito desorganizados. Algumas vezes, como observado no exemplo citado acima, as conversas avançavam e havia sinais claros de elaboração, de trabalho psíquico. Em outras ocasiões, isso não era possível, e o que se observava era uma descarga de emoções incômodas, angustiantes, que não alcançavam articulação simbólica. Eram encontros evacuativos, com a descarga imediata dos afetos penosos, sob a forma de ato. Sentiam-se humilhados, angustiados, frustrados, desamparados - muitos eram os aspectos observados que se transmitiam nessa enxurrada de emoções descontroladas.

Tive uma experiência anterior, no Instituto PROF1, que foi fundamental para me instrumentalizar e permitir a compreensão de determinados elementos que precisam compor a escuta de quem pretende trabalhar com essa população.

Crianças que precocemente lidam com a questão da desigualdade social trazem marcas profundas na forma como se apresentam no mundo. Há um verdadeiro condicionamento que se perpetua e reflete no ambiente em que crescem e vivem as crianças e os jovens da favela. São alimentados com ingredientes indigestos que carregam humilhação, exclusão e privação. Não são questões de fácil articulação e, em geral, se expressam por meio de uma desorganização profunda na forma de se apresentarem ao outro, que possivelmente remete a mensagens enigmáticas que não encontram expressão simbólica. Por essa razão, é importante ter clareza do que está em jogo quando falo de humilhação. O humilhado é bloqueado por muitos lados, mas sobretudo por dentro, como um afeto pungente e desorganizador gerando uma angústia que não pode ser nomeada (Bracco, 2001).

 

 

Segundo Gonçalves Filho, a humilhação pode ser entendida como uma modalidade de angústia relacionada ao impacto traumático da desigualdade de classes:

A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes. Angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão. Os pobres sofrem frequentemente o impacto dos maus-tratos. Psicologicamente, sofrem continuamente o impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: "Vocês são inferiores". E, o que é profundamente grave: a mensagem passa a ser esperada, mesmo nas circunstâncias em que, para nós outros, observadores externos, não pareceria razoável esperá-las. Para os pobres, a humilhação ou é uma realidade em ato, ou é frequentemente sentida como uma realidade iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. O sentimento de não possuírem direitos, de parecerem desprezíveis e repugnantes, torna-se-lhes compulsivo: movem-se e falam, quando falam, como seres que ninguém vê. (1995, p. 167)

Essa experiência ofereceu um repertório que foi importante para sustentar o processo e reforçar minha crença no potencial de transformação que um trabalho psicanalítico como esse pode promover. Essa compreensão é essencial na organização de uma proposta de trabalho, pois, quando se oferece um enquadre que não faz sentido para o sujeito, ele não pode utilizá-lo como um espaço para que a simbolização ocorra. No trabalho do Instituto prof e, atualmente, no Acaia, vivo experiências em que posso compreender o que vem a ser a falta de matrizes simbólicas, que os lançam em um mundo sem referências e em que medida isso impede a utilização do material oferecido como veículo de comunicação. Por exemplo, para sentar-se em volta de uma mesa e desenhar, inúmeros elos precisam ser construídos anteriormente. Só se pode oferecer um enquadre necessário e suficiente para um determinado elo e, a partir disso, ampliá-lo passo a passo. Afinal, um lápis não serve necessariamente para desenhar: ele pode ser usado como munição para agredir o outro, como muitas vezes acontecia nos encontros do prof. Ali, quem tentasse se destacar no grupo, produzir algo que gerasse satisfação, imediatamente era transformado em alvo dos demais integrantes, que atacavam e destruíam aquilo que dava certo. Enfrentar a fúria do grupo não era possível, ninguém podia se diferenciar. Essa era uma regra implícita no funcionamento grupal, que não podia ser nomeada, mas que estava permanentemente presente. Em muitas ocasiões foram situações que denotavam algum tipo de "privilégio" os desencadeadores das reações mais violentas, que no nosso entendimento remetiam a essas mensagens enigmáticas que não podiam ser nomeadas: identificados com o lugar da falta e da miséria, o que restava era a explosão agressiva e desorganizada.

Todos esses elementos presentes em minha escuta e as grandes dificuldades enfrentadas nesse trabalho anterior me ofereceram melhores condições para desenvolver o trabalho no Acaia. Posso dizer que já não me assustava e tampouco me desorganizava junto ao grupo, como ocorrera em muitas ocasiões anteriores. O fato de ter uma compreensão mais ampla do que estava presente na desorganização grupal me colocava em outro lugar, capaz de conter e dar sentido a muitas manifestações dessa natureza, sem abafá-las. Buscar outro entendimento na forma violenta e desorganizada com que se apresentavam, não me restringindo a nomear como sintomas da privação a que são submetidos ou associar a aspectos destrutivos da personalidade de cada um, mas contrapor a essa ideia uma busca de comunicação humana.

Winnicott (1950/1993) vai afirmar que é do manejo da agressão que se deriva, em certa medida, a capacidade criativa e construtiva do sujeito. Essas considerações se prestaram a encontrar outros sentidos para as situações vividas nos grupos.

Gonçalves Filho2 tece considerações importantes sobre o trabalho no Ateliê Acaia, no que tange ao aspecto da violência comunicada. A violência que é vivida cotidianamente no Acaia, despejada em educadores, nos encontros das oficinas e, principalmente, entre as crianças e os jovens, passa a ter um caráter de violência que se comunica. Quando isso é apoiado, suportado pelo outro, a pessoa violenta deve responder ao impulso, e a violência entra em comunicação, já é uma resistência contra a violência, uma oposição, que não é repressiva nem policial; trata-se de uma oposição humana, cultural, simbólica.

 

A ampliação do enquadre

Nossos encontros ocorriam semanalmente. O grupo era aberto, só havia o limite de dez participantes, que variavam a cada semana. As crianças faziam usos distintos do espaço. Algumas vinham toda semana, outras frequentavam o grupo durante alguns encontros, ficavam um tempo sem vir e retornavam depois de um período. Acontecia um ir e vir natural, contudo o que era claro para mim é que eu acolhia no grupo quem estivesse ali no dia do atendimento. Isso exigia que eu desenvolvesse recursos técnicos para lidar com a heterogeneidade das situações. Aquele encontro não se repetiria, pelo menos não na mesma configuração, e era necessário pôr em palavras aquilo que era observado enquanto movimento individual e/ou grupal.

Aos poucos, fui criando um conjunto de "regras" de funcionamento. Tudo foi apresentado gradativamente e, com o tempo, na forma como o trabalho ocorria, eu sempre oferecia um pouco mais de estrutura. Como uma criança que experimenta novos alimentos e aos poucos põe seu aparelho digestivo para funcionar, o que a leva a cada vez experimentar alimentos mais complexos.

Nos encontros da oficina, era preciso tolerar um grau de desorganização variável sempre presente. Eu estava ali para oferecer material de expressão e escuta que, aos poucos, se transformou em conversa, em palavras, ganhou sentido. Eles também não sabiam direito o que era aquele encontro, no entanto, a cada semana, sempre havia um grupo a minha espera para viver uma experiência em que não se "aprendia" nada concretamente. Um grupo diferente das demais oficinas a que estavam habituados. O fato de me esperarem já era um primeiro movimento de que estavam internalizando o enquadre. Esse encontro que não era "aula" já fazia sentido para eles, a matriz já estava criada.

Nosso enquadre foi se modificando e, no decorrer do processo, se ampliou e incorporou novos conceitos/símbolos. No início, as brincadeiras eram muito agitadas, envolviam descarga motora e pouca utilização da linguagem. Eles não sabiam que podiam contar histórias e que isso os ajudava a se sentirem melhor, menos tumultuados internamente. Começamos por experimentar o que significava a permanência do material utilizado. Naquele grupo, ninguém podia levar nada para casa, eles não entendiam o porquê, mas conseguiram incorporar a regra desse enquadre. Não foi fácil: alguns não aceitavam e, sobretudo, não entendiam o motivo. Havia roubo de material e brigas ao final dos encontros, mas, surpreendentemente, as coisas foram ganhando sentido e muitos já entendiam e defendiam a permanência dos objetos na caixa. A cada semana eles se surpreendiam em rever suas produções, ou mesmo a manutenção do material, que era guardado e cuidado por mim e que aos poucos passou também a ser cuidado por eles. Experimentamos uma relação de continuidade, a sobrevivência dos objetos que é essencial para o estabelecimento de um vínculo transferencial. Esses conceitos "estavam" potencialmente na caixa e foram sendo criados e posteriormente usados por eles. Eu tinha que estar muito atenta e, sempre que percebia a chance de introduzir algo novo nas regras, lançava mais um desafio.

Tudo era novo - a conversa com a psicanalista, contar histórias pessoais, fantasiar, desenhar, brincar -, mas a organização alcançada era frágil, e a qualquer momento eles se atracavam, se agrediam fisicamente, se ofendiam verbalmente. Eu não impedia que a criança falasse o que tinha a dizer - ao contrário, reafirmava que aquilo era muito importante, mas era preciso comunicá-lo de outra forma. Tentávamos retomar a conversa, entender o que os deixava tão agressivos. O que a princípio parecia estranho, por fim também ganhou sentido. Todo início dos trabalhos em grupo retomávamos as regras do enquadre - e aqueles que já as haviam incorporado transmitiam aos novatos. E, assim, a oficina caminhava semanalmente. As crianças começaram a utilizar outra linguagem para falar de si. Na arte, no brincar, no comportamento antissocial apoiado, que não é abafado pelo outro, esses elementos funcionavam como um mediador de comutação da violência muda, para a violência que se comunica, como citado anteriormente. E, quando comunicada, passa a ser um ingrediente da biografia, da história de vida.

Nitidamente havia uma relação de confiança sendo construída, e a transferência, essencial para qualquer trabalho analítico, era cada vez mais perceptível. Onde a transferência é encontrada, abre-se espaço para a narrativa e a possibilidade de o sujeito se reencontrar com a própria história.

As crianças desenvolveram brincadeiras que, quando ganhavam sentido, eram transmitidas aos outros integrantes do grupo. Daremos um exemplo de uma espécie de "jogo do carretel"3 inventado por eles. As crianças queriam fazer bolas para jogar ou arremessar no outro, e eu não via a menor possibilidade de essa brincadeira acontecer sem terminar em caos e agressão. Propus que amarrassem um barbante às bolinhas que faziam com papel amassado e fita-crepe enrolada. Eles criaram bolas cada vez melhores e inventaram jogos em que a bola tinha de voltar para si e não ir em direção ao outro. Havia sessões em que cada integrante pegava a própria bolinha guardada na caixa e saía pela sala repetindo o movimento de ir e vir do objeto. Repetiam isso por várias sessões, até passarem para um novo jogo, invariavelmente mais complexo.

Roussillon mostra que há um jogo típico para cada nível de simbolização, e a cada avanço é possível oferecer um novo enquadre para relançar o jogo de simbolização a um patamar mais complexo. Pensar em termos de qual jogo está sendo jogado ajuda o analista a ter uma ideia de quais são seu lugar, sua posição e sua função, já que cada jogo requer coisas diferentes do analista.

Era exatamente esse processo que estávamos experimentando no grupo, cada passo era um degrau a mais de simbolização.

 

Um lugar próprio

Depois de um bom tempo, ganhamos uma sala - e isso foi um marco de passagem no trabalho. É interessante destacar que a sala surgiu quando já havia sido construído um "lugar psíquico" para ela. A oficina já estava instituída. Era claro que tipo de encontro podia ocorrer ali, e o enquadre já era internalizado e sustentado facilmente pelas crianças. Podíamos, até mesmo, lidar com as atuações que surgiam em relação ao contrato de trabalho. Cada vez mais o grupo da Silvia, como a oficina é chamada por eles, fazia sentido e ganhava mais participantes: "Hoje eu vou fazer Silvia", "Vai ter sentimentos hoje?" eram algumas frases que eu ouvia das crianças quando chegava ao ateliê.

Outro elemento importante que a sala propiciou foi com relação à produção gráfica das crianças. Como a caixa era coletiva, era difícil ter um lugar próprio para guardar os desenhos, então propus que quem quisesse poderia colar suas produções na parede da sala. Aos poucos, as paredes ficaram repletas de desenhos, e as crianças sempre se referiam ao que já tinham realizado, procuravam suas criações; era uma marca singular, um universo particular que, em um atendimento tradicional, é representado pela caixa.

O trabalho nas oficinas seguiu uma dinâmica semelhante ao estabelecimento e à ampliação do enquadre. A partir da formação de um espaço terapêutico, houve a possibilidade de formular demandas por espaços específicos. A ampliação do enquadre e de um lugar próprio refletiu-se diretamente na ampliação do trabalho das oficinas dentro do ateliê.

Hoje os grupos já possuem uma dinâmica mais estabelecida, apesar de estarem em permanente movimento para acolher a demanda que surge. Temos grupos de crianças, meninos e meninas pré-adolescentes, assim como de adolescentes. Também há o atendimento a pais, quando necessário.

Vale dizer que não foi o fato de dispor de uma sala que ofereceu maior estrutura para desenvolver o trabalho. A sala foi um facilitador, mas a função terapêutica pode acontecer independentemente do espaço, em qualquer situação. Para Herrmann (2001), o fundamental é trabalhar com o método psicanalítico, com a eventual adaptação da técnica. Reencontramos aqui o conceito de clínica extensa no sentido de exercer a psicanálise onde ela se faz necessária.

Winnicott (1975) diz que a análise é uma forma sofisticada de brincar e ensinar a brincar. Talvez seja essa a definição que mais se aproxima do trabalho que é realizado nas oficinas. Tomando aqui, de forma mais ampla, o significado que o brincar tem no processo de estabelecer pontes entre o mundo interno e a realidade compartilhada, cada conquista, cada palavra dita, foi um passo a mais nesse processo que implica aprender a manejar o repertório básico da cultura.

 

Referências

Bracco, S. M. (2001). Entre os muros da favela: considerações sobre a escuta de um psicólogo clínico. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.         [ Links ]

Bracco, S. M. (2006). Exclusão e humilhação social: algumas considerações acerca do trabalho com crianças e adolescentes. In Amaral, M. (Org.), Educação, psicanálise e direito (pp. 59-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Camargo, A. C. C. (2004). Clínica extensa. A psicanálise onde ela se faz necessária. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Além do princípio do prazer. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Gonçalves Filho, J. M. (1995). Passagem para a Vila Joaniza - Uma introdução ao problema da humilhação social. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). Da clínica extensa à alta teoria: a história da psicanálise como resistência à psicanálise. Revista Percurso, 29, 2º semestre.         [ Links ]

Roussillon, R. (2007). Logiques et archéologiques du cadre psychanalytique. Paris: PUF.         [ Links ]

Safra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1993). Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional. In Textos selecionados. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1950)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/5/2015
Aceito em: 9/6/2015

 

 

1 OSCIP que contribui para o desenvolvimento de habilidades e competências das crianças, adolescentes e jovens da comunidade de Paraisópolis, por meio de programas socioeducativos que promovem a inclusão social.
2 Arguição realizada na defesa de doutorado de Camargo, A. C. C., Ateliê Acaia e Clínica Extensa: uma perspectiva psicanalítica na construção de um projeto institucional, ipusp, 2015, São Paulo.
3 Freud (1920/1996) descreve uma observação que fez de seu neto de 18 meses, na tentativa de entender como a criança experimentava a presença e a ausência do objeto (mãe) e, para lidar com a angústia de separação, criou um jogo em que ela mesma controlava o ir e vir do objeto. A criança simboliza a ausência do objeto, que não é sentido como perdido, pois pode recuperá-lo no jogo.

Creative Commons License