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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dic. 2015

 

MANIFESTAÇÕES

 

Entrevista com os analistas em formação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo1

 

 

Jean-Claude Rolland

 

 

Jornal - No livro Um homem torturado, nos passos de Frei Tito de Alencar, lançado recentemente no Brasil, duas jornalistas, Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, entrevistaram mais de trinta pessoas que conviveram com Frei Tito, entre elas o senhor, que o atendeu no Hospital Édouard Herriot, em Lyon [França], em 1973. Por um lado, esse atendimento nos toca particularmente por se tratar de um personagem emblemático da luta contra a ditadura no Brasil e, por outro lado, porque a experiência rendeu vários artigos, entre eles, a reflexão do que o senhor apresentou no artigo "Tratar, testemunhar", além do próprio depoimento contido neste livro. No artigo e também no depoimento, o senhor comenta que na época muitos dos seus colegas viam o "caso Tito" como um caso psiquiátrico comum, mas o senhor não. O senhor poderia falar um pouco sobre isso?

JCR - Quem quer que estivesse em meu lugar, quando recebi Tito de Alencar no hospital, teria pensado como eu: que esse paciente estava preso em uma tragédia que ultrapassava e esclarecia seu destino individual. Não tenho nada contra uma ação diagnóstica médica que me levou de imediato a pensar que esse paciente sofria de um estado melancólico (complicado, sem dúvida, por uma síndrome de perseguição), depois a hospitalizá-lo com urgência e lhe prescrever um tratamento com tranquilizantes. Mas por ter me sentido na hora tão próximo dele, de sua dor infinita, do que seu sofrimento continha de mensagens, de apelos, pareceu-me impossível reduzir essa situação a um simples estado psicopatológico. Pensei que devia reconstruir a história desse homem que tinha sido esmagado pelos acontecimentos políticos.

Mas não ocorre a mesma coisa com qualquer doente que encontramos em nosso trabalho psiquiátrico ou psicanalítico? Nunca entramos em contato com um doente, mas com um homem cuja doença modifica negativamente seu destino, um homem para quem a exposição da doença é o último meio de expressão quando todos os meios de comunicação com o outro lhe foram cortados. Em sua casula surrada de dominicano, o rosto lívido, o olhar apagado, Tito exibia o aniquilamento ao qual ele tinha sido reduzido. Se ele não pronunciou uma palavra, seus gestos e sua postura - como as pedras - falavam. Conduziram-no a um quarto, ele se colou à parede, como um eventual condenado ao fuzilamento. A enfermeira preparou a injeção, ele lhe abandonou o braço, como para uma tortura.

Certamente, os irmãos dominicanos que o acompanhavam naquele dia, aqueles que o haviam recolhido desde seu exílio na França, que tinham assistido impotentes a seu isolamento, a seu mutismo, a suas ruminações sem dúvida delirantes, esses dominicanos que se aproximaram tanto de sua dor sabiam - vagamente - que Tito tinha sido torturado. A cena que se passou no quarto do hospital e à qual eles assistiram, com a enfermeira e comigo, acabou com todas as dúvidas: Tito revelava o que ele havia vivido. Ele não era um doente que era preciso tratar e que íamos tratar, era uma vítima da tirania cuja insondável barbárie era preciso decodificar. Por isso, decidimos reconstituir, junto e paralelamente aos cuidados médicos e psicoterapêuticos, a história do homem e dos eventos de seu país que o haviam conduzido até o ponto onde o encontramos.

Jornal - A partir do atendimento de Frei Tito, o senhor faz reflexões importantes sobre o sofrimento incomunicável, o sintoma-testemunho, o exílio da linguagem. Entretanto, essas reflexões foram feitas com base no trabalho com um paciente que não era exatamente um paciente clássico de psicanálise. O senhor teria alguma coisa a dizer sobre a psicanálise fora da clínica, da psicanálise extramuros?

JCR - Agora eu respondo à sua segunda questão. Enquanto viveu, Tito foi um herói da revolução brasileira. Após sua morte - precoce, pois os efeitos das agressões sofridas foram incuráveis -, ele se tornou uma testemunha imortal. Ele permanece em todos os casos um modelo; e eu espero, ao dizer isso, escapar a qualquer idolatria. Ele foi, no Brasil, um modelo no plano político e, sem dúvida, também religioso. Na França, através de sua própria descompensação, ele abriu àqueles que se aproximaram dele inúmeras e novas perspectivas. Em seu delírio, Tito reproduzia as agressões que ele havia sofrido e a relação que, em razão desse traumatismo, ele havia estabelecido com seu torturador. Esse delírio não era sem razão - nunca é; também não era sem um objetivo, sem intenção. Através dele, havia em Tito como que uma vontade de permitir a seus contemporâneos saberem a respeito da brutalidade dos homens, bem como dos sistemas políticos e ideológicos. A atenção aos seus próprios silêncios, a leitura de suas cadernetas, minhas conversas com aqueles que tinham conhecido Tito no Brasil - e tinham compartilhado suas provações - me ensinaram muito sobre as condições das relações que terminam, em alguns casos, na destruição de um homem.

Você me questiona, com razão, sobre o papel que representa a língua nos efeitos psíquicos da tortura. Como eu explico no artigo que entrego a vocês, a manipulação da língua, sob a forma do insulto, da busca da confissão, é uma das ferramentas essenciais do torturador. Era a voz e as palavras de Fleury que retornavam nas alucinações de Tito. Embora a atividade psíquica seja, no essencial, apoiada, associada ao material da língua, conhece-se cientificamente pouca coisa sobre esta última. O que Tito nos mostrou, e disse, pode nos abrir caminhos. A língua é, como a pele para o corpo, um envelope para a alma que ela contém, cujas diferentes instâncias, geralmente em conflito entre si, ela une. Ela é a garantia última da intimidade do sujeito, ela não sofre, sob pena de morte, nenhuma ruptura em sua continuidade.

Ora, o objetivo do torturador parece justamente ser o de fraturar essa clausura do ser, cuja consequência é uma verdadeira hemorragia da alma. Fleury procurava convencer Tito de que, "porque ele era padre, só podia ser hostil aos comunistas e que era por isso que ele havia traído Marighella". Ou ainda que, "sendo revolucionário e cúmplice dos comunistas, ele havia traído o Evangelho e seus irmãos cristãos". Não se sabe se Tito algum dia confessou tais traições, e, no fundo, pouco importa, levando-se em conta que, em razão da mecânica da violência infligida, ninguém poderia resistir à "pergunta". Mas ele se autoconvenceu, e todo seu comportamento no convento da Tourette, onde ele viveu vários meses antes de morrer, o confirma: ele não entrava mais na igreja, não aceitava os sacramentos porque ele se considera o traidor ao qual Fleury o havia identificado. O domínio de um indivíduo por outro, por intermédio da palavra, está na origem do banimento; é uma forma de assassinato espiritual.

Mas se a palavra pode matar, pode também salvar. Nós, analistas, o sabemos bem. O que Tito me ensinou é que, se eu quero compreender em que consiste essa função psicoterapêutica da fala, não devo negligenciar a abordagem de sua outra face maléfica: a que é posta em funcionamento na tortura.

 

 

1 Entrevista realizada pela amf: Berta Hoffmann Azevedo, Cláudia Suannes, Cynthia Peiter e Maria do Carmo Amaral, com a participação de Rejane Camara Cutrim.

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