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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dic. 2015

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Associação dos Membros Filiados como grupo de trabalho: transitoriedade e permanente construção

 

Affiliated Members Association as a workgroup: transience and permanent construction

 

La Asociación de los Miembros Afiliados como grupo de trabajo: transitoriedad y permanente construcción

 

 

Gustavo Gil Alarcão; Patrícia Nunes; Pedro Colli Badino de Souza Leite; Elisa M. Parahyba Campos

Membros filiados do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. gustavogilalarcao@yahoo.com.br, psinunes@yahoo.com.br, pedrocolli@gmail.com, elisa.ops@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a situação da constituição da Associação de Membros Filiados enquanto um grupo de trabalho, apoiando-se nas ideias de Bion sobre grupos. A transitoriedade e a impermanência são características constitutivas da AMF, que se insere, no cenário institucional da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, como um grupo de trabalho em permanente construção. Retomando parte da história da AMF, os autores propõem que esse grupo possa usar de suas características constitutivas como motor para o debate psicanalítico contemporâneo. Os diversos grupos que se formam dentro do grupo maior - que é a SBPSP - partilham dos mesmos fenômenos de outros grupos humanos, nos quais as questões que envolvem o poder estão sempre em voga. Os autores defendem que as zonas de silêncio formadas entre os grupos que se constituem e se estabilizam possam ser chacoalhadas e repensadas continuamente.

Palavras-chave: grupos, instituição, história da psicanálise, Associação de Membros Filiados


ABSTRACT

This article describes the situation of building up the Affiliated Members Association as a working group, based on Bion's ideas of groups. The transience and impermanence are constitutive features of the AMF, which is a working group under permanent construction in the institutional settings of the Brazilian Psychoanalytic Society of São Paulo. Resuming part of the story of the AMF, the authors propose that this group can use its constitutive features to motivate the contemporary psychoanalytic debate. Several groups are formed inside the larger group, which is the SBPSP. They all share the same phenomena that are seen in other human groups, in which issues involving power are always in vogue. The authors defend the idea that the silent zones that are formed between constituted, stabilized groups can be shaken and continually rethought.

Keywords: groups, institutions, history of psychoanalysis, Affiliated Members Association


RESUMEN

El artículo analiza la constitución de la Asociación de los Miembros Afiliados como grupo de trabajo, basándose en las ideas de Bion sobre grupos. La transitoriedad y la no permanencia son características constitutivas de la AMF que se inserta en el marco institucional de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de San Pablo como un grupo de trabajo en permanente construcción. Retomando parte de la historia de la AMF los autores proponen que este grupo pueda usar sus características constitutivas como motor para el debate psicoanalítico contemporáneo. Los diversos grupos que se forman dentro de la SBPSP, comparten los mismos fenómenos de otros grupos humanos en los que las cuestiones relacionadas con el poder están siempre en boga. Los autores postulan que las zonas de silencio que se forman y cristalizan entre los grupos que se van constituyendo pueden ser agitadas y continuamente repensadas.

Palabras clave: grupos, institución, historia del psicoanálisis, Asociación de los Miembros Afiliados


 

 

Das massas aos grupos

O diálogo entre amigos é fator fundamental para o pensar.
Ney Marinho

"Toda tentativa de explicação deve ser precedida pela descrição da coisa a ser explicada." Partindo da afirmação de Freud, a proposta de explicação do que seria exatamente um grupo passa por algumas dificuldades, a saber: falamos de um grupo espontâneo, de um grupo criado com alguma finalidade, de um grupo terapêutico, de um grupo de autoajuda, isto só para citar alguns dos tipos de grupos que podem ser formados, dependendo de seu objetivo.

Uma simples reunião de pessoas não caracteriza necessariamente um grupo. Para que ele se forme é importante haver um objetivo comum, ou como propõe Kaës (2014), alianças. Esse processo faria com que a simples relação entre pessoas pudesse apresentar finalidades e modos de vinculação que dariam contornos para a formação de um grupo. Certamente que os investimentos libidinais individuais nunca são apagados completamente nesse processo, entretanto, a natureza das alianças e as diversas modalidades de vinculação determinarão as características do grupo (Grinberg, Sor & Bianchedi, 1973). O homem passa a ser pensado como um indivíduo em relação, cuja inserção e também exclusão de grupos é fator fundamental de sua vida.

Vejamos a seguinte vinheta:

O analista vai até a sala de espera e chama o grupo para começar o trabalho. Todos se levantam e se dirigem para um segundo ambiente preenchido por diversas cadeiras. Pouco a pouco tomam seus lugares e se acomodam para a atividade que já está em curso e que irá se estender pela próxima hora. As pessoas estão em silêncio e, até aqui, parecem sofrer caladas. Estão assombradas por sintomas, medos e inibições que lhes roubam a capacidade de amar, pensar, trabalhar e desenvolver uma existência mais satisfatória. O silêncio se alonga e agora os olhares estão voltados para o analista. Eles esperam que ele comece a transbordar seu conhecimento e seu poder de cura. Esperam que lhes dê diagnóstico e tratamento para os defeitos que imaginam carregar e que são responsáveis pelas feridas que doem na alma. Esperam por uma atividade pastoral que os conduza ao bom caminho. O analista não o faz, e a frustração começa a crescer em um ritmo descontrolado.

A situação descrita não é rara no atendimento psicoterápico a pacientes em grupo, e o analista pode escolher responder ou com base nesse lugar, o que transformará completamente a identidade do trabalho a ser realizado. A essência do fenômeno descrito acima transpõe os limites daquela sala de atendimento e revela algo sobre o ser humano que pode ser observado em outros contextos. Um sacerdote que orienta seu rebanho a seguir os ensinamentos deixados pela escritura sagrada; um astro do rock que leva milhares de pessoas a um estado de êxtase, cantando em uníssono alguma de suas músicas; um regime político totalitário que não permite a liberdade de expressão e o desenvolvimento da subjetividade de seus indivíduos; o hipnotizador que sugestiona seu paciente a suprimir os sintomas histéricos; as crianças que elegem um líder e passam a brincar de "siga o mestre". As situações são muito diferentes, mas estão costuradas pela tendência humana a repetir a vivência de desamparo e dependência que marcam o período da infância e a assimetria que existe entre elas e os adultos. O desejo por cuidados e segurança é atualizado transferencialmente por meio da nomeação de líderes, ecos das figuras que nos prestaram preciosa ajuda (ou não) ao longo de nosso crescimento.

Essa tendência repetitiva acontece desde o início da vida a partir do inúmero escoamento pulsional em representações inconscientes que agora se encontram facilitadas. Ela vai nos acompanhar por toda a vida e sempre exercerá uma força magnética de atração sobre nossa vida mental. O que se busca é o prazer, o descarregamento de tensão psíquica com base em um objeto que nos cuide e nos ampare por meio de suas ações específicas.

Contra essa tendência regressiva, alucinatória, está o contato com a realidade interna e externa, e o desenvolvimento de nosso aparelho de percepção. Esse processo é cronologicamente secundário, é conquistado através de muita frustração, esforço e trabalho para reter a tensão psíquica, para construir representações que estejam mais próximas à realidade do indivíduo e do grupo. Assim, a criança passa a pensar e a agir como um cientista quando deixa de acreditar nos contos da cegonha e passa a conduzir suas investigações sobre a vida sexual dos pais e sobre o nascimento dos bebês. Da mesma forma age o cientista que deixa de se satisfazer com teorias pré-fabricadas para fazer observações e formular hipóteses incompletas sobre o mundo que o cerca. Aqui também se posiciona o psicanalista quando busca pensar sobre as marcas deixadas pelo trabalho pulsional sobre o campo das representações inconscientes. O trabalho de Freud e de Bion nos mostra como ambas as tendências coexistem de forma dinâmica e conflituosa, seja dentro de um mesmo indivíduo, seja nas suposições básicas formuladas com base na observação de grupos. Bion conceitua a tentativa de contato com a realidade, a tendência a construir e sustentar a percepção como o cerne do que chamou de "grupo de trabalho".

O início do trabalho de Bion com grupos, tendo por foco o grupo como objeto de estudo, ocorreu quando este trabalhava em um Hospital Psiquiátrico Militar, no setor de reabilitação, durante a Segunda Guerra Mundial. Ele considerou a reabilitação como um problema grupal. As observações extraídas desse trabalho, que durou seis semanas, resultaram numa reflexão profunda sobre dinâmica e estrutura no interior dos grupos.

Em seus escritos sobre o assunto, conta-nos que um grupo pode funcionar de modo maduro a cumprir uma tarefa que se propôs, sendo nomeado grupo de trabalho, bem como se propor a uma tarefa, mas não a cumprir, visto estar funcionando em pressuposto básico, ou seja, de modo que as ansiedades psicóticas, objetos parciais e mecanismos de defesa primitivos predominem. O autor propõe assim três supostos básicos: dependência, luta-fuga e acasalamento (Bion citado por Silva, 1986, p. 59). Por meio deste trabalho, pensamos que as alternâncias e os movimentos entre esses pressupostos básicos de funcionamento ocorrerão em qualquer grupo que se forme, embora possa haver predomínio de uma forma de funcionar em relação a outra. Um membro dentro do grupo demonstrará algo que Bion chamou de valência, isto é, maior ou menor condição para funcionar nas suposições básicas grupais.

Como em nossa vinheta, tais considerações nos alertam para o fenômeno de que ao nos reunirmos em grupo ocorrerá uma mentalidade grupal, significando que usualmente o grupo funcionará como uma unidade, algo já destacado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011). Também haverá a presença da cultura grupal que é a resultante do inter-relacionamento entre os desejos de um membro e a mentalidade grupal.

As contribuições científicas de Bion nos possibilitam compreender essa microssociedade que é o grupo, expandindo o nosso conhecimento para o macrossocial que tem como exemplos as classes sociais, os movimentos religiosos, o exército, as guerras, a política e tudo aquilo que pode gravitar na órbita dos fenômenos grupais.

A formação psicanalítica que realizamos para nos tornarmos analistas ocorre em grupo, com exceção da análise pessoal e supervisão oficial. Durante a formação vamos adquirindo autoconhecimento e aprendizagem. A capacidade de pensar compõe o alicerce do desenvolvimento enquanto pessoa e analista. No decorrer do caminho fazemos movimentos de irreflexão para a reflexão, deixando de ser animal gregário para rumar às vias do humano relacional-grupal. Permeados por vivências originárias das interações grupais e institucionais e permeando em nossa clínica as ressonâncias dessas intersecções emocionais, somos impulsionados numa crescente à ampliação do aparelho psíquico num contínuo. Bion (1988), em seu livro Second Thoughts irá dizer que "o processo de pensar passa a existir para lidar com os pensamentos"(p. 102). Assim, entre agruras e conquistas vai nascendo o analista, resultado de vivências analíticas pessoal e grupal, tangido pelas vicissitudes do percurso.

 

AMF como grupo de trabalho: em permanente construção

Há dois anos a atual equipe editorial do Jornal criou uma sessão permanente para a Associação de Membros Filiados (AMF), uma vez que o Jornal é ligado ao Instituto Durval Marcondes, que está diretamente relacionado aos membros filiados e sua associação.

Nos últimos dois anos os artigos publicados pela AMF buscaram representar o espírito crítico e reflexivo, próprio desse grupo, desde sua criação há 45 anos. Até o momento os artigos publicados foram os seguintes:

• Para que AMF?

• Das vozes difusas dos corredores à potência de um discurso: AMF como espaço intersticial.

• Entre o instituto e as cidades: percorrendo quilômetros em direção à formação psicanalítica.

• Da horda à comunidade psicanalítica: a função da fratria na transmissão da psicanálise.

A AMF é um grupo que está constantemente falando, revisitando, relendo, caracterizando sua história. Como diz o primeiro artigo citado, parece haver uma necessidade de que a AMF reconte sua própria história. E, curiosamente, deparamos com situação semelhante, a vontade de reapresentar a história. Não conseguimos escapar desse modus operandi, entretanto, pensamos que escrever a história é ato criativo.

Não observamos nenhum fator depreciativo em girar a história para que novos olhares surjam. A História não é processo acabado, cuja linearidade dos fatos revela etapas inquestionáveis e irrefutáveis. Pensamos que o fôlego da AMF permite e impulsiona esse processo interminável de investigação. Talvez não nos contentemos com a história contada por outros, e desejemos produzir nossa própria história, interpretando os fatos à luz de nossas ideias, rejeitando a simples recepção dos discursos.

A Associação nasce num contexto histórico peculiar. No Brasil, o regime político era totalitário, uma ditadura militar, desdobramento do mesmo tipo de ansiedade grupal descrita em germe no exemplo do grupo que busca um líder que o salvaguarde. Se não bastasse tal tendência opressiva, filha e algoz da massa popular, apenas dois anos antes da fundação da AMF houve a aprovação do Ato Institucional Número Cinco. Trata-se de uma inflamação daquela mesma ansiedade que, na prática, sufocava drasticamente a liberdade individual e a possibilidade de uma existência subjetiva que pudesse se manifestar através da liberdade de expressão ou de representação política.

Do plano nacional para o societário, podemos descobrir certos paralelos. Citando a introdução do livro AMF - 45 anos, Releituras (2015), organizado por Alexandre Socha, Berta Hoffmann Azevedo, Rodrigo Lage Leite e Sílvia T. Pupo Neto:

Também no Instituto de Psicanálise os candidatos passaram a sentir falta de uma voz coletiva e de um espaço de convivência no qual pudessem exercer uma atitude reflexiva e participativa em relação à sua própria formação. A SBPSP, que desde seu início havia sido pautada por uma posição de abertura e vanguarda, tendo sido inclusive formada com a presença de analistas leigos em um momento em que estes ainda eram vistos com reservas, atravessa nos anos 1960 e 1970 uma fase de intenso fechamento ideológico e científico. A quantidade diminuta de analistas didatas impedia o ingresso do contingente de candidatos que buscava a formação, levando também à alta concentração de poder (tanto na seleção, quanto no funcionamento interno do Instituto) e ao monopólio econômico dos didatas. Frente a tal enclausuramento, que de certo modo mimetizava intramuros o clima proibitivo do país e da sociedade civil, as oportunidades para discussões dos candidatos a respeito do que se passava no Instituto ficavam restritas às conversas informais na calçada da Rua Itacolomy, onde ocorriam os seminários, simbolicamente fora dos muros da SBPSP. (pp. 16-17)

É nesse clima de fechamento e concentração de poder que começam a borbulhar iniciativas voltadas ao pensamento científico, à liberdade de expressão e à valorização da subjetividade:

É também por volta do mesmo período que nasce o Jornal de Psicanálise, em 1966, fundado pela então Diretora do Instituto Virgínia Leone Bicudo, mas com a participação de candidatos no corpo editorial e entre os autores publicados. No editorial do primeiro número a publicação é apresentada como um canal comunicativo entre candidatos e analistas da Sociedade, voltada ao ensino, pesquisa e divulgação da Psicanálise. Entretanto, enfatiza-se sua abertura "principalmente à colaboração dos candidatos do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise, como estímulo à sua produção científica e contribuição à sociedade". (pp. 19-20)

Dois anos após essa fundação, em 1968, houve a tentativa de se formar o "Centro Acadêmico Sigmund Freud" (CASF), que carregava em essência as ideias que seriam centrais para a formação da AMF. No mesmo período houve um ensaio de abertura por parte do Instituto, em que a Comissão de Ensino escolheria um candidato para frequentar suas reuniões como representante dos demais colegas. Com o tempo, esse representante passaria a ser escolhido pelos próprios candidatos, e não mais pelo Instituto. Dessa forma, o conjunto ritmado desses movimentos apontou para a fundação da AMF como citado anteriormente. Assim como na clínica observamos resistência ao pensamento científico, a história nos conta a reação de parte do Instituto diante desse ato originário:

Havia a suspeita de que tal organização [AMF] estaria se reunindo para fazer "crítica pela crítica", atribuindo-lhes a interpretação de um acting-out destrutivo no plano institucional, posição que denota certa infantilização do lugar ocupado pelo candidato, já observada nessa época, e cujos resquícios estendem-se até os tempos atuais. (p. 27)

Em outras palavras, parte dos analistas da SBPSP encarava esse movimento estritamente como um problema analítico, de mundo interno, e negava à questão a importância da representação dos membros filiados dentro de nossa sociedade. As manifestações seriam atuações, e o conteúdo das falas, associação-livre deslocada do setting analítico. A resistência ao pensamento livre se revela como um elemento constante do inconsciente humano.

A situação de membro filiado é uma situação de passagem. Ela marca um período de transição entre um antes e um depois, e nesse intermédio, justamente, a formação. Embora digamos e escutemos que a formação é um ato contínuo, não se encerra com a entrega do segundo relatório clínico, pensamos que há pontos muito particulares que estão diretamente relacionados com esse período de nossas trajetórias pessoais e psicanalíticas. Estamos submetidos de forma mais contundente às regras da Instituição, àquelas mesmas que buscam organizar e oferecer limites à formação.

 

Das microssociedades das sociedades

A história do movimento psicanalítico é marcada tanto pela formação de grupos, desde as primeiras reuniões de quarta-feira na casa de Freud, quanto por cisões e rompimentos. De maneira geral, por meio das afinidades e também da falta delas vai se delineando a complexa trama que nos chega às mãos no momento presente e que nos implica como responsáveis pela continuidade do processo. Sabemos que as contendas são de várias ordens, teóricas, profissionais, políticas e pessoais. Tão logo se organizavam os primeiros grupos, que, podemos supor, congregavam pessoas com maiores graus de afinidade, surgiam também grupos que se separavam e seguiam caminhos próprios, Jung, Adler, Binswanger, Reich etc.

Podemos dizer que algum traço comum nos liga por pertencermos à mesma instituição, àquela que representa um grupo de psicanalistas e de psicanalistas em formação ligados à International Psychoanalytical Association? Curiosamente, é cada vez mais difícil dizer que traço é esse, o que nos faz pertencer ao mesmo grupo, dada a diversidade de pensamentos, orientações e atuações no cenário psicanalítico. Compartilhamos de uma mesma língua com suas variações, compartilhamos de alguns códigos que reconhecemos, partilhamos o mesmo capital simbólico, na linguagem de Pierre Bourdieu, e ao mesmo tempo temos o horizonte como limite para nosso desenvolvimento pessoal. As alianças apresentam-se de maneira cada vez mais complexa à medida que as dimensões do grupo se alargam.

O campo psicanalítico é marcado pelas diferenças, somos convidados a perceber aquilo que nos torna quem somos. Estimulamos essa curiosidade em cada um de nossos pacientes: Conheça-te a ti mesmo! As amarras se afrouxam e nos damos conta de que, na maior parte das vezes, nossos interesses são muito particulares, esbarrando de raspão no interesse do outro, mesmo que esse outro seja colega de profissão. O desafio da flexibilidade, da criação de espaços de diálogo se torna uma imposição. Nas dificuldades de comportar as diferenças, surgirão aqui e ali movimentos de constrição, aqueles que por meio das normas, regras e diretrizes buscarão dizer sobre o que se pode ou não fazer, fixando, a partir do outro, os problemáticos limites.

Se, por um lado, buscamos construir fronteiras por mínimas que sejam, aquelas que nos ajudam a dizer "esse é um grupo psicanalítico", por outro, é cada vez mais nítido que tais fronteiras estão borradas, rarefeitas e questionadas. Trata-se de um movimento contemporâneo que extrapola os muros de qualquer sociedade de psicanálise e que ocorre no mundo, algo que o sociólogo Bruno Latour (2013) denominou o processo de hibridização:

Multiplicam-se os artigos híbridos que delineiam tramas de ciência, política, economia, direito, religião, técnica e ficção. Se a leitura do jornal diário é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos. Toda a cultura e toda a natureza são diariamente reviradas aí. (p. 8)

Em nossa Sociedade existem vários grupos. Muitas vezes designam-se por suas filiações teóricas, outros, por suas posições com relação à contemporaneidade da psicanálise, outros, por seu apreço a determinadas técnicas e métodos, outras vezes, por sua abertura ou fechamento para temas culturais etc. Como parte de nosso movimento natural de alianças e vínculos os grupos vão se formando: kleinianos, bionianos, freudianos, franceses, winnicottianos, analistas de criança, grupo de reflexão etc.

As pessoas aproximam-se, com maior ou menor adesão, por maior ou menor tempo. Processo complexo, com situações benignas, mas também com situações problemáticas. Não será tarefa analítica evitar zonas de silêncio, fazendo falar as diferenças em clima de tentativa de compreensão? O problema dos subgrupos nos remete diretamente a um de nossos mais difíceis dilemas: como conviver com o poder? Como distribuí-lo? Como se organizar como grupo de trabalho?

Se a teorização nos ajuda a pensar, a prática nos mostra quão difícil é essa tarefa. Além disso, nossas próprias questões institucionais nos ajudam de forma contundente a desmistificar qualquer idealização possível que façamos sobre nós mesmos: as questões aparecem e somos pegos como qualquer grupo humano, com questões inconscientes que são reprimidas e que aqui e acolá geram seus sintomas. Ninguém habita o Olimpo!

Os percursos analíticos são vividos na intimidade e no segredo de cada um, de cada pessoa. Talvez muitas coisas sejam compartilhadas em dupla, com o analista, mas é cada pessoa que leva consigo os efeitos desse processo. A situação analítica põe ênfase no recolhimento, no movimento regressivo do indivíduo, no não-grupal. Vivemos a força de nossas transferências e, analistas que somos, não podemos negar as vicissitudes dessa experiência. As identificações surgem, as paixões e loucuras identificatórias também. Como integrantes do grupo que escolhemos para pertencer, não escaparemos dos mesmos problemas vivenciados por qualquer ser humano. Aprenderemos a qual grupo pertence nosso analista. Amaremos e brigaremos com nossos colegas. As questões serão postas e torna-se fundamental que possamos reconhecê-las humanas demasiado humanas e não nos cansarmos de pensá-las, debatê-las: não há outra saída. A formação de um grupo de trabalho é processo laborioso de exigência e esforços consideráveis.

Sabemos, pela história que nos é pouco contada, do período problemático que viveu nossa Sociedade, sofrendo até mesmo um considerável momento de intervenção da ipa. O movimento resultante do enfrentamento daquele dilema é visível: aumento do número de analistas didatas com as consequentes modificações que resultaram em significativa abertura da SBPSP. As relações com o exterior se ampliaram. Basta citar as bienais, a criação da Diretoria de Atendimento à Comunidade, as modificações no currículo com a ampliação de cursos eletivos.

A AMF, como grupo de trabalho que busca ser, deseja partilhar desse importante lugar de pensar e fazer que vem a ser, o Movimento Psicanalítico. Como grupo que representa um momento de passagem de todos psicanalistas de nossa instituição, a AMF adquire a forma e o conteúdo de cada uma de suas atualizações. Ainda por ser um grupo de pessoas em passagem, é beneficiada pela falta de permanência, pela impossibilidade de que as mesmas pessoas se cristalizem em suas funções: os poderes realmente fluem. Como vimos, as questões são postas e repostas. Estamos aprendendo com isto? Estamos escutando atentamente as idas e vindas? Estão se efetuando acréscimos, como resultado dos trabalhos desempenhados, ou retornam como sonhos traumáticos, repetindo-se como pesadelos?

Esse lugar peculiar e transitório ocupado pela AMF e o saldo que recebemos da história nos fazem pensar que esse grupo está constantemente buscando se constituir como grupo de trabalho. Pensamos que tem sido observável o trabalho de diversas questões e a transmissão da inquietação, como mola propulsora de muitos debates. A maior parte dos membros filiados não está ligada somente ao grupo de psicanalistas, pertence a outros, e desses outros traz muitas de suas preocupações e desejos.

Como parte do percurso que provavelmente não tem ponto de chegada, a passagem pela formação nitidamente aviva questões. É responsabilidade do grupo que desejou se formar como "diretoria" manter essa vivacidade, não se deixando vencer pelo cansaço, pela tradição, pelas filiações e preferências. Se os processos de formação de grupos ocorrerão aqui e ali, é necessário que estejamos atentos para pulverizar quaisquer ensejos de encistamento do pensamento e de nossas ações. Que os grupos se formem e se dissolvam e que os saldos de cada movimento continuem estimulando novas ideias e novas configurações. Que talvez possamos encontrar como traço comum entre nós, analistas, a alteridade e vontade de trabalhar em parceria, mesmo que o outro seja (é, e sempre será!) aquele tão estranho à nossa imagem e semelhança.

 

Referências

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Recebido em: 18/6/2015
Aceito em: 23/6/2015

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