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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Trauma e simbolização: diálogo com um jovem colega

 

Trauma and symbolization: a dialogue with a young colleague

 

Trauma y simbolización: diálogo con un joven colega

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. marion.minerbo@terra.com.br

 

 


RESUMO

Em forma de diálogo, a autora apresenta o conceito de trauma como acontecimento que bloqueia, em algum ponto, o processo de simbolização. Este pode ser cumulativo ou consequência do "susto" - condição em que o sujeito não teve como antecipar o perigo para se defender. Diferencia dois níveis qualitativamente distintos nesse processo: a simbolização primária e a secundária. Desenvolve a ideia de que a situação traumática no vínculo primário não gera a libido necessária para promover ligações psíquicas e para o investimento positivo da função simbolizante; ao contrário, obriga o psiquismo em formação a um funcionamento defensivo e evacuatório (antissimbolizante). Finaliza com duas situações clínicas que ilustram dois modos distintos de retorno do traumático em análise, bem como a retomada do processo de simbolização no seio da situação transferencial.

Palavras-chave: trauma, simbolização, retorno do recalcado, retorno do clivado


ABSTRACT

Using a dialogue format, the author presents the concept of trauma as an event that blocks the process of symbolization at some point. This event may be cumulative, or a effect of "scare" - a condition in which the subject could not anticipate danger in order to defend himself. The author distinguishes two qualitatively different levels in this process: the primary and the secondary symbolization. She develops the idea that, in the primary bond, a traumatic situation does not generate the necessary libido to promote psychic connections, or the necessary libido for the positive investment of the symbolizing function; otherwise, the traumatic situation forces the developing psyche to act in a defensive, evacuant mode (a nonsymbolizing mode). In the end of this paper, the author brings two clinical situations that illustrate two different ways of bringing back the traumatic event in analysis, as well as the resumption of the symbolization process in the core of a transference situation.

Keywords: trauma, symbolization, return of the repressed, return of the splitting


RESUMEN

En forma de diálogo, la autora introduce el concepto de trauma como un acontecimiento que bloquea en algún punto el proceso de simbolización. El mismo puede ser acumulativo o consecuencia del "terror" - condición en la que el yo no pudo anticipar el peligro para defenderse. Distingue dos niveles cualitativamente distintos en este proceso, la simbolización primaria y secundaria. Desarrolla la idea de que la situación traumática en el vínculo primario no genera la libido necesaria para promover ligaciones psíquicas y la investidura positiva de la función simbolizante. Al contrario, la psique desarrolla un funcionamiento defensivo y evacuativo, anti-simbolizante. Finaliza con dos situaciones clínicas que ilustran dos modos distintos del retorno de lo traumático en análisis, así como la reanudación del proceso de simbolización en la situación transferencial.

Palabras clave: trauma, simbolización, retorno de lo reprimido, retorno de lo escindido


 

 

Olá, caro colega, sobre o que gostaria de conversar hoje?

Gostaria de conversar sobre o trauma e seus efeitos psíquicos. Sei que o sentido de trauma para a psicanálise não é o mesmo do senso comum.

Tem razão. No senso comum a gente diz "fiquei traumatizado" com muita facilidade. Às vezes tem a ver com a definição psicanalítica de trauma, às vezes não. Na definição oficial, metapsicológica, dada por Freud em 1920, trauma é um afluxo excessivo de energia que rompe o escudo protetor, invade o aparelho psíquico e o desorganiza.

Conheço essa definição. Mas receio que seja um conhecimento dissociado da clínica...

Você quer saber quais são os efeitos clínicos do trauma, isto é, que tipo de sofrimento psíquico ele produz. O aparelho psíquico pode ser pensado como um aparelho de digestão e metabolização de nossas experiências emocionais que funciona 24 horas por dia (ainda que de maneira incompleta). Essa função, chamada simbolizante, se dá em dois tempos:

O primeiro impacto da experiência - a experiência em estado bruto, seus dados sensoriais, perceptivos, afetivos e motores, chamados traços mnésicos ou matéria-prima psíquica - precisa ser transformado em imagens mentais. Essa primeira inscrição psíquica da coisa, na qual a matéria-prima psíquica é transformada em representação-coisa, é a simbolização primária (Roussillon, 1999).

O segundo tempo da simbolização, a simbolização secundária, transforma a representação-coisa em representação-palavra: ela é inscrita no aparelho de linguagem e pode ser comunicada.

Pois bem: o efeito clínico do trauma é interromper esse processo em algum ponto. Roussillon diferencia o trauma primário, que impede a simbolização primária, do trauma secundário, que impede a simbolização secundária.

Enquanto você explicava, veio-me a imagem das duas etapas envolvidas na preparação do pão. A primeira transforma as espigas de trigo em farinha. A segunda, farinha em pão. Seria algo assim?

Sua analogia é ótima, muito didática! Se me permite, gostaria de usá-la nos meus cursos - naturalmente dando os créditos a você (risos). Espigas podem virar comida, mas a gente não pode comer espigas. Não dá para fazer pão com espigas. Da mesma forma, o psiquismo não pode trabalhar com a matéria-prima em estado bruto. É preciso transformar os traços mnésicos da experiência, as espigas, em farinha, que correspondem às representações-coisa. É a simbolização primária.

Farinha já é comida, tanto que a gente pode comer massa de bolo crua. Minha mãe dizia que dava indigestão, mas quando criança eu adorava raspar a tigela. A representação-coisa já é psíquica. Mas, para ser inscrita no aparelho de linguagem, a representação-coisa precisa se ligar a uma representação-palavra. É a simbolização secundária.

Note que do ponto de vista da técnica, há dois processos bem diferentes envolvidos nisso: o primeiro é debulhar e moer os grãos de trigo. O segundo é fazer uma massa e colocá-la no forno.

O analista também trabalha com "técnicas" diferentes para propiciar a simbolização primária e secundária?

Sim, definitivamente. Em seu livro Le jeu et l'entre je(u), Roussillon (2008b) diferencia claramente dois modelos para o trabalho analítico. A simbolização primária exige que o analista trabalhe segundo o modelo do jogo. Ele tem uma postura mais implicada, e participa ativamente do processo por meio do qual a compulsão à repetição vai sendo transformada em repetição simbolizante. Para a simbolização secundária, o analista trabalha segundo o modelo do sonho, em que o paciente produz associações livres interpretadas por um analista cuja postura é mais reservada, mais discreta. Vou lhe trazer dois casos - Rafael e Francine - que ilustram como esses dois modelos se articulam. Por enquanto, vale sublinhar que o trauma primário é o que impede a transformação de espigas em farinha, e o secundário, da farinha em pão.

Quer dizer que o trauma primário bloqueia a simbolização primária e o trauma secundário impede a simbolização secundária. Vou precisar mesmo da ajuda dos dois casos clínicos para entender isso.

O trauma primário leva à constituição de núcleos psicóticos, enquanto o secundário, de núcleos neuróticos. Se eu tivesse que resumir em uma frase o objetivo do trabalho analítico, seria o de oferecer condições para que o paciente possa realizar seu trabalho de simbolização do traumático.

Freud começou falando de trauma em 1895(b), quando relacionou a histeria com o trauma da sedução. Era algo real que tinha acontecido com a criança. Mas, em 1897, acabou se convencendo de que a sedução não tinha acontecido na realidade, mas era uma realidade criada pelo desejo e pela sexua lidade infantil. Em 1920, ele volta a falar de trauma como um acontecimento que rompe o escudo protetor. Afinal, o que é interno e o que é externo nesse acontecimento?

Nos Estudos sobre histeria (1895/1975e), o trauma da sedução é pensado em termos absolutos, independentemente do psiquismo que o sofre. Na parte ii do Projeto, Freud (1895/1975d) traz uma novidade: ele mostra, com o caso Emma - que desde a adolescência apresentava uma fobia ao entrar em lojas -, que o trauma se dá em dois tempos. O tempo i do acontecimento sexual se dá quando ela tem 8 anos, em uma confeitaria, aparentemente sem deixar marcas. Aos 12 anos, quando entra em uma loja, a risada dos vendedores a deixa aterrorizada, e ela sai correndo. A fobia começa aí.

Por que aquela risada a aterroriza?

Porque só agora, no tempo ii, com a puberdade, ela está em condições de atribuir um sentido ao que aconteceu aos 8. O trauma aqui não é apenas o acontecimento externo, e sim uma articulação entre elementos internos e externos. É por isso que o que tem valor traumático para uma pessoa não tem, necessariamente, para outra.

Um terceiro ponto de inflexão se dá em 1920. Ele fala do trauma como aquilo que produz efração psíquica, mas não especifica a natureza do acontecimento. Isso abre espaço para pensarmos que o trauma não precisa ser de natureza sexual para produzir esse efeito.

Nessa linha, Ferenczi (2011b/1932) afirma que o traumático não era apenas o abuso sexual, mas principalmente sua negação por parte dos adultos.

Bem lembrado. No texto que estou citando, Roussillon (2002) assinala dois novos pontos de inflexão que devemos a ele:

Ele inclui na cena traumática um adulto cujo modo de presença é tóxico em si mesmo, pois, quando nega que algo terrível aconteceu, quando proíbe a criança de falar sobre isso, sua possibilidade de elaboração é bloqueada.

Mostra que o trauma sexual produz sofrimento narcísico com efeitos patogênicos na constituição do eu, já que a criança tende a atribuir a culpa do que aconteceu a si mesma. Surge a noção de trauma narcísico.

Ferenczi (2011c/1934) faz várias contribuições importantes à teoria do trauma.

Tem razão. Não entendi por que Roussillon passa batido por elas. Talvez porque ele só queria chegar à noção de trauma narcísico, ponto de partida para sua própria contribuição à teoria do trauma.

Em "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (2011a/1929), Ferenczi mostra que o bebê mal narcisado pelo ambiente desenvolve núcleos melancólicos, e relaciona certos distúrbios na constituição do eu ao trauma precoce. Em "Confusão de línguas" (2011b/1932), afirma que as crianças submetidas a choques emocionais são transformadas em "psiquiatras" e passam a cuidar de "adultos enfurecidos, de certo modo loucos" (p. 105). Isso sem falar na impossibilidade de metabolizarem a linguagem passional - erótica ou violenta - do adulto.

E, se não me engano, foi Klein quem trouxe ideias importantes para a teoria da simbolização em "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego" (1996/1930).

Exatamente. Ela afirma que a angústia moderada gerada nas relações de objeto obriga o ego a procurar substitutos nos objetos do mundo, pondo em marcha o processo de simbolização. Já a angústia excessiva, como no caso Dick, mobiliza defesas que bloqueiam esse processo.

Mas nenhum deles falou de um elemento essencial ao processo de simbolização que não está presente na situação traumática: o prazer no vínculo primário. Junto ao conceito de simbolização primária, essa é, em minha opinião, a grande contribuição de Roussillon à teoria do trauma. Vou falar disso daqui a pouco.

Por enquanto, ainda segundo Ferenczi, o traumático tem a ver com as várias formas de inadequação e toxicidade da figura parental, e elas são agravadas quando o adulto não as reconhece ou quando as desmente.

Por que isso acontece?

Eu acho que o desmentido se deve ao fato de que o adulto está atuando questões que são inconscientes para ele. É importante lembrar disso para não ficarmos com raiva dos pais (risos).

Seja como for, depois de Ferenczi o trauma não pode ser reduzido a um acontecimento único, com dia e hora. Ele é cumulativo. Nesse sentido, a expressão "situação traumática", ou simplesmente "o traumático", soa mais precisa que "trauma", que parece algo mais pontual. Winnicott (citado por Roussillon, 1999), que também toma em consideração o papel facilitador ou patogênico do ambiente, contribui para aprofundar a ideia de trauma narcísico com a noção de agonia psíquica.

Como ele define agonia?

Quando o estado de sofrimento se prolonga por um tempo além do suportável, e o sujeito já não tem esperança de ser salvo pelo objeto, entra em um estado de agonia. A raiva impotente cede lugar a um estado de desespero existencial, em que o sujeito sente uma vergonha imensa de ser/existir, sente-se culpado e responsável por não ter conseguido resolver a situação traumática.

Se é que entendi, há dois elementos que compõem a situação traumática: o que aconteceu, e a impossibilidade de dar sentido ao que aconteceu.

Além disso, Freud (1920/1975a) já havia percebido a importância do susto ou terror na situação vivida como traumática. O fato é que a angústia sinal (Freud, 1926/1975c) prepara a pessoa para o perigo, ela tem mais condições de reagir ao que ameaça sua integridade física ou psíquica. Mas, quando a situação parecia familiar, tranquila, ele baixa a guarda e relaxa. Fica vulnerável, pode ser pego de surpresa. Quando isso acontece, o eu é invadido pela angústia automática. É ela que bloqueia - pelo menos temporariamente - o trabalho de simbolização, e por isso desorganiza o psiquismo.

Lembro-me de uma vez em que fui assaltado. Estava voltando de um restaurante próximo à minha casa, ao qual vou sempre jantar com minha filha. Do nada apareceu um motoqueiro que apontou uma arma enorme na cabeça dela, exigindo dinheiro e celulares. Na hora fiquei aterrorizado, senti um nó nas tripas, para usar um termo popular que descreve bem essa invasão pela angústia automática. Mas depois, durante uns dois meses, o mundo parecia outro, diferente, ameaçador, nada estava direito no seu lugar. É difícil descrever a sensação de absoluta estranheza do mundo, é como caminhar sobre um chão que mais parece um colchão de água, vendo as coisas de sempre como se estivessem turvas, fora de foco, inquietantes.

É exatamente a experiência subjetiva que se tem com a ruptura do paraexcitação, o escudo protetor do aparelho psíquico descrito por Freud. A sensação que você descreve é o estado de sideração pós-traumática. No seu caso, a angústia psicótica durou uns dois meses, tempo necessário para a reconstituição da pele psíquica.

E imagine agora o que acontece com o tenro escudo protetor de uma criança pequena cujos pais amorosos se transformam, de repente, em gigantes furiosos porque ela fez alguma coisa que não devia. Fica aterrorizada! E quando cenas desse tipo se repetem diariamente...

Bion (1959) fala em terror sem nome. Deve ser bem mais aterrorizante que um assalto, que pelo menos tem nome. Lembro que passei vários dias contando do assalto às pessoas próximas . Acho que fazia parte do meu trabalho de elaboração. O ambiente ajudou, já que, felizmente, ou infelizmente, várias pessoas tinham passado por isso e podiam empatizar comigo.

O ambiente favorece a simbolização primária oferecendo "objetos" que interpretam para a criança o que ela está vivendo. Primeiro é o psiquismo da mãe que faz isso. Depois, o brincar criativo e as histórias infantis. A história da Chapeuzinho Vermelho interpreta para a criança os desejos e conflitos da criança edipiana. Ela se vê ali, e com isso pode elaborar e integrar o que sente. Os adultos também precisam de objetos transformacionais (Bollas, 1987), de objetos culturais que ajudem a transformar sua experiência psíquica cotidiana. Quando a função simbolizante exercida pelo ambiente é internalizada, o sujeito pode sonhar, atividade em que a simbolização primária passa a ser realizada de forma autônoma por seu próprio aparelho psíquico.

O bloqueio mais ou menos extenso do processo de simbolização primária tem muito a ver com a miséria simbólica do ambiente. Note que uma família pode ser rica e viver em estado de miséria simbólica! Como eu disse, o primeiro ambiente simbolizante é o psiquismo materno. É ele que permite à criança fazer as primeiras ligações da pulsionalidade em estado bruto. Quando isso não acontece, a pulsão pressiona em direção à descarga. Há uma tentativa de ligá-las "fora" do psiquismo, por meio do recurso a drogas, compulsões, fanatismos de todos os tipos ou, quando nada disso funciona, por meio de atuações violentas. Eu acho que o mundo está cada vez mais violento por causa da miséria simbólica que caracteriza essa nossa civilização (Minerbo, 2013).

É assustador! Voltando à ideia de trauma em dois tempos, você estenderia essa noção também para o trauma narcísico?

Sim. Vamos primeiro entender direito a ideia de trauma em dois tempos (Freud, 1895/1975d). Como já disse, Emma conta a Freud dois acontecimentos: um aos 8 anos, em que ela é bolinada pelo vendedor da confeitaria. E aos 12, em que um vendedor ri e ela foge aterrorizada. Depois disso desenvolve a fobia a lojas. À primeira vista não conseguimos perceber o que há de tão aterrorizante em uma simples risada. A equação não fecha. A genialidade de Freud foi perceber que aos 8 anos ela sentiu prazer - tanto que ela voltou à loja depois disso - e que esse prazer foi recalcado.

A equação só fecha quando incluímos o retorno do recalcado desencadeado pela risada dos vendedores - e esse é o segundo tempo do trauma. Emma a interpreta inconscientemente como se eles soubessem do seu "segredo vergonhoso". Qual? Que ela sentiu prazer ao ser bolinada aos 8. Nesse sentido, a risada é a situação atual que "acorda" o que foi recalcado no primeiro tempo e que "retorna" para assombrá-la. É a análise que vai colocar em conexão o prazer que sentiu aos 8 anos, quando o vendedor da confeitaria tocou em seus genitais, e a risada do vendedor da loja. Para usar aquele seu modelo das espigas, farinha e pão, aqui o analista usa uma "técnica" que propicia a transformação da farinha em pão.

É o trabalho de simbolização secundária do que estava recalcado.

Isso mesmo. Agora vou te dar um exemplo de como um acontecimento tardio, atual, "acorda" o trauma narcísico, que também retorna para assombrar o paciente. Só que, em vez de falar em retorno do recalcado, vamos falar em retorno do clivado (Roussillon, 1999). A defesa primária que o psiquismo mobiliza para sobreviver diante do traumático é a clivagem. O sujeito se retira da experiência. Faz como se ela não tivesse acontecido. Ela deixa de estar disponível psiquicamente para ele. Na sua analogia, as espigas são colocadas em um canto e não são levadas para o moinho para serem transformadas em farinha. Parte do processo de simbolização primária é bloqueada.

Imagino que o retorno do clivado se dá, clinicamente, de uma maneira diferente do retorno do recalcado.

Exatamente. Se você se lembra de nossos diálogos anteriores, tenho me referido com frequência a uma paciente, Marcia, que é tomada de um ódio quase assassino quando o marido deixa sua calça sobre a cama em vez de pendurá-la no armário.

Lembro, sim. Mas que exagero!

De fato, essa equação não fecha, a menos que a gente suponha que a visão da calça sobre a cama a retraumatiza, assim como a risada dos vendedores retraumatiza Emma. Precisamos saber o que ela vê quando a calça está sobre a cama. Sem essa informação não vamos entender nada. Pois bem: ela vê um marido que empurra para ela uma tarefa que caberia a ele.

E daí? Precisa ficar com tanto ódio por causa disso?

No caso dela, sim. Porque a leitura que ela faz da calça sobre a cama toca em um nervo exposto, consequência do trauma precoce: ela se sente abusada pelo marido da mesma forma que se sentia abusada pelo objeto primário, que lhe empurrava a conta do trabalho psíquico que cabia a ele.

Naturalmente, guardei essa construção para mim mesma. Mas ela foi necessária para que eu pudesse sintonizar com seu sofrimento psíquico, em vez de achar que é um exagero. Enfim, acabei entendendo que a calça na cama é vivida como abuso porque atualiza alucinatoriamente uma situação de abuso anterior que está clivada! Isso acontece porque ambas têm o mesmo jeitão: algo como "alguém forte abusa do fraco". O alucinatório é uma das formas do retorno das espigas, isto é, do clivado.

Há outras?

Sim. A outra forma de retorno do clivado é a atuação das identificações com o objeto agressor.

Ah, esse conceito é de Ferenczi!

Ele era um excelente clínico. Percebeu que, inconscientemente, o sujeito trata o outro - inclusive o analista - como foi tratado.

Sabe, entendi bem que o trauma precoce bloqueia o processo de simbolização primária. Mas não entendi como, ou por que, isso acontece.

A dúvida é mais que pertinente. Na verdade, é a ideia mais importante desta conversa.

Como você sabe, ao mamar, o bebê tem um prazer ligado à autoconservação: enche a barriga e mata a fome. E um "a mais de prazer" ligado à estimulação de uma zona erógena, a boca. A novidade introduzida por Roussillon (2008a; 2008b) é que, além desses prazeres experimentados unicamente pelo bebê, há um prazer, ou melhor, uma satisfação - o termo prazer tem a ver com descarga - ligada à comunicação corporal e emocional entre a mãe e o bebê. Essa satisfação é compartilhada por ambos.

Pouco se fala de como, ao amamentar, a mãe tem prazer, não apenas erótico, mas também narcísico - basta ver como o ganho de peso do bebê amamentado ao peito é importante para sua autoestima. Fala-se menos ainda no prazer envolvido na troca de olhares, no ritmo compartilhado, no fato de que há uma profunda conexão emocional entre eles, enfim, no fato de que eles estão se entendendo.

De fato, a experiência é muito mais complexa do que parece. Mesmo para nós, adultos, encher a barriga é bem diferente de um jantar especial com amigos queridos. Aliás, a comida nem precisa ser especial: o jantar se torna especial por causa do clima afetivo e da conversa significativa.

Com relação à amamentação, o seio pode ser substituído pela mamadeira ou pela chupeta - nesse sentido, o objeto é contingente, qualquer um serve. Mas a comunicação primitiva não acontece com qualquer um. Tem que ser a mãe, porque é ela que está profundamente conectada com as necessidades físicas e emocionais do bebê.

Em geral, a dupla acaba criando uma linguagem própria, na qual mãe e bebê se entendem. É isso que você está chamando de comunicação primitiva?

Exatamente! Quando os corpos se comunicam bem, há uma coreografia primitiva que flui! O termo é de Roussillon, que, segundo consta, foi um grande dançarino. Mas há situações em que, principalmente por questões inconscientes da mãe, há um desencaixe e um estranhamento no corpo a corpo inicial: cada um pisa nos calos do outro! Enfim, é muito chato dançar assim, não acha? No lugar do prazer necessário, eles ficam enganchados em uma relação que é fonte de sofrimento para ambos. A ausência de prazer vai prejudicar o processo de simbolização, que começa justamente no seio da comunicação primitiva! (Roussillon, 1999; 2001; 2008a; 2008b).

Quer dizer que o sofrimento dos calos pisados, dia após dia, acaba funcionando como trauma cumulativo?

Sim. O traumático põe Tânatos em movimento porque o aparelho psíquico terá como tarefa primordial defender o sujeito da experiência dolorosa em que se transformou a coreografia primitiva. A clivagem e a evacuação das experiências dolorosas vão na contramão do processo de simbolização. Percebe a relação entre trauma e bloqueio da simbolização?

Mais ou menos. Gostaria que você fosse mais clara.

Tem razão. Faltou dizer que o processo de simbolização depende de um funcionamento mental pautado por Eros. É a energia erótica, ou libido, que permite ao sujeito fazer as ligações psíquicas de modo a reter as experiências emocionais no interior do psiquismo. Reter para ligar, ligar para reter: é nesse nível microscópico da fisiologia do aparelho psíquico que se estabelecem as condições fundamentais para transformar, digerir e integrar.

A libido é a energia necessária para que o psiquismo tolere a complexificação da vida psíquica, no lugar da simplificação; para que ele consiga digerir em vez de evacuar; para estabelecer novas relações internas e externas, no lugar da tendência ao Zero, ao Nirvana, à desobjetalização, como propôs Green (1986). Esse é o regime psíquico pautado por Eros, que precisa predominar sobre Tânatos. A simbolização tem que produzir algum prazer, caso contrário, será odiada e atacada. Você já deve ter lido Bion, para quem o funcionamento psicótico se caracteriza por um vínculo - K, contrário ao conhecimento da experiência emocional dolorosa. É um funcionamento tanático!

Como você vê, é a libido produzida no vínculo primário - no nível da autoconservação, do prazer erógeno e da satisfação ligada à comunicação corporal/emocional bem-sucedida - que se "instala" a função simbolizante no psiquismo, para usar uma terminologia bem atual.

Agora entendi. Quer dizer que, sem libido, nada de trabalho psíquico!

Sem libido, nada de trabalho psíquico.

Acho que agora podemos passar aos exemplos que você me prometeu.

Primeiro vou resumir para você um trabalho maravilhoso de uma psicanalista belga, Marie-France Dispaux (2002), que ilustra, com o caso de Rafael, o retorno do clivado por meio do alucinatório, bem como o processo de simbolização primária. Depois, vou mencionar mais rapidamente o trabalho de um casal de analistas belgas, Jaqueline e Maurice Haber (2002), que traz Francine para ilustrar o retorno do clivado na forma de uma atuação, bem como a simbolização primária que foi possível naquela situação.

Sou todo ouvidos!

Rafael chega atrasado na primeira entrevista porque "se perdeu". Tinha mostrado esse receio já ao telefone. Marie-France percebera a insegurança em sua voz. Veio por indicação do psiquiatra. Tem vontade de morrer. O tom de voz é frio, cindido da máscara de sofrimento que se vê em seu rosto. Sua linguagem é barroca, articulada, autossuficiente, fria. Mas, curiosamente, ele não desgruda os olhos dela enquanto fala.

Conta que foi mandado a trabalho para outro país há seis anos, onde teve de lidar com um chefe exigente que só o criticava. Foi se encolhendo até não conseguir fazer mais nada. Travou. Voltou à sua cidade, onde não consegue fazer nada, apesar da medicação que está tomando. No final da entrevista, a analista percebe que ele está esgotado, tal foi o esforço emocional que fez. Na hora de ir embora, ele leva muito tempo para conseguir sair do consultório da analista.

A analista escuta o "tenho medo de me perder a caminho do consultório", assim como se perdeu no país estrangeiro, como expressão de um eu à deriva - o sofrimento narcísico-identitário. Percebe a arrogância defensiva que se expressa por meio de sua linguagem preciosa e fria. Percebe também que Rafael não pode perdê-la de vista, nem antes, nem durante a entrevista, mostrando a necessidade que o eu tem de um apoio sensorial para se manter minimamente organizado.

Junto a tudo isso, a analista se percebe tendo que se implicar de forma diferente com esse paciente. Logo de cara a contratransferência havia sido mobilizada pela insegurança brutal de Rafael. Normalmente ela conduz o paciente à sua frente até a sala de análise. Mas Rafael pede para ir atrás dela. Ela hesita um pouco, mas pressente que é importante e faz o que ele pede. Ela aceita ser um pouco desalojada de sua zona de conforto, e com isso faz contato com o paciente, que está totalmente desalojado da sua zona de conforto.

A história que Rafael lhe conta é pobre e tende a ser factual. Pouquíssimas lembranças. O estilo muito formal, muito composto, deixa a analista perdida. Tem 38 anos, nasceu em um país em regime ditatorial, e o pai era alto funcionário desse regime. Quando tem 6 anos, a família se muda para a Bélgica, e lá o paciente é alfabetizado em um francês empolado. Quando o regime muda, o pai perde o cargo oficial e não pode voltar para seu país. Tornam-se imigrantes comuns, sem dinheiro. Ele é bem-sucedido nos estudos, se casa, tem um bom emprego. É enviado ao exterior a trabalho, quando descompensa. O tom do relato é frio, desencarnado.

Na terceira entrevista, ele fala com a mesma frieza do seu ódio aos militares. O clima é pesado, opaco. Acompanhando-o à saída, a analista o "vê" vestido com um paletó tipo militar, verde, com botões dourados. Ele parece "habitado por um outro" quando se despede parecendo um militar. No entender da analista, esse momento alucinatório (o paletó não tinha botões dourados) indica uma clivagem no eu: uma parte do eu está invadida, habitada e colonizada pelo objeto traumatizante (o militar). Da mesma forma, a angústia do paciente está clivada, não combina com seu discurso tão articulado, mas é captada pela contratransferência da analista.

A análise começa no início de janeiro. A analista propõe um enquadre de uma vez por semana, face a face.

Ué? Por que tão pouco para um paciente que está tão fragilizado?

Era um enquadre mínimo para uma situação tão grave, mas era o único que ele conseguiria utilizar e do qual poderia se apropriar. O face a face é porque ela tinha percebido que ele precisava poder olhar para ela. Uma sessão apenas porque, como naquele momento ele estava muito desorganizado, sem noção de tempo e espaço, mais sessões por semana seriam mais uma fonte de tensão que de ajuda. Mas ela deixou aberta a possibilidade de aumentar o número de sessões quando ele pudesse fazer uso delas. A alteração no enquadre viria de dentro para fora.

Rafael passa a descrever naquela linguagem preciosista o vazio de seus dias, a dificuldade em se levantar da cama, sua errância pelos corredores do lugar em que trabalha. Ele não consegue nem ficar sozinho na sua sala, nem estar com as pessoas. Mesmo na sua casa não consegue ficar na sala, no escritório; fica entre o quarto e a cozinha. Evita o quarto dos filhos.

Conforme ele vai falando, a analista tem a impressão de ver um fantasma errante em um mundo afetivamente desértico. Na sessão, a atmosfera é parecida: ele não desgruda o olhar, mas quase não aguenta as manifestações da presença e da escuta da analista. Apesar disso, nunca falta. Às vezes a analista tem a impressão de ver um fio associativo naquilo que ele diz. Se ela faz uma ligação entre uma coisa e outra, ele imediatamente a destrói com um "e daí?" que gela o sangue da analista. Do que ele se protege, ou nos protege, com a violência terrível desse "e daí?", ela se pergunta.

Um mês e meio depois, no meio de fevereiro, Rafael diz que teve um sonho bizarro antes de adormecer. "Estou em um mundo de fogo e sangue." Ele descreve a guerra, o barulho, o furor, o sangue e os gritos com grande precisão, mas com sua linguagem afetada. O abismo que há entre o que ele conta e como o faz lança a analista em um mal-estar quase intolerável. E, então, para a surpresa da analista, ele diz: "Depois de ter imaginado tudo isso, por incrível que pareça, consegui dormir bem".

Aquilo era um sonho?

Não exatamente. Era uma das formas de retorno do clivado: o alucinatório, que é uma forma de apresentação do traumático. É um material pré-psíquico, ainda em estado bruto, espigas que ele precisará transformar em farinha.

E como a analista o ajudou nesse processo?

Ela nos conta que durante muitas sessões entraram juntos nesse mundo de fogo e de sangue. Nota que Rafael está mais animado. Ela sente que há mais vida no meio do barulho, da fúria, do fogo e do sangue do que no deserto afetivo anterior. Inicialmente o paciente fala desse horror como se estivesse dentro de uma bolha sozinho. Depois, a mulher e os filhos estão junto com ele.

Surge, então, a imagem da arca de Noé. Dispaux já não sabe dizer quem - ela ou ele - foi o "autor" dessa associação, o que mostra que o trabalho vai sendo feito em coautoria. A imagem que surgiu falava ao mesmo tempo do desamparo em meio à tempestade e de um lugar protegido em que é possível sobreviver. Um tecido associativo, que não era nem aquela frieza do discurso altamente organizado, mas defensivo, nem a violência bruta do mundo de fogo e sangue, vai sendo criado em torno dessa imagem. É uma primeira forma de interpretação.

Mas essa conversa em torno da arca de Noé é uma interpretação?

Não é uma interpretação clássica, daquelas que propicia a simbolização secundária. Mas é uma interpretação se você ampliar o sentido do termo para qualquer intervenção do analista que gere novas associações, promovendo o processo de simbolização primária. Pois a imagem da arca já é uma primeira transformação do material alucinatório que se apresentava em estado bruto.

Veja, uma interpretação que fizesse a conexão entre a arca de Noé e a análise poderia levar o paciente a dizer "é mesmo". Mas o processo associativo que estava apenas começando seria interrompido quando ele concordasse com a analista. Em vez disso, eles usam o mito da arca de Noé de forma insaturada para ir criando um tecido psíquico onde havia um buraco de simbolização primária. Eles falaram da devastação do dilúvio, do espaço protegido da arca, e foram se lembrando juntos das variações desse mito nas várias civilizações. Esse trabalho mediatizado por um elemento da cultura não era ameaçador para ele. Era algo que ele podia usar.

No fim de março, Rafael traz uma primeira figura positiva: a avó. Forte e viva, espaço de paz e liberdade; uma democrata. Enquanto ele fala da avó, a analista "se vê" avançando na direção dele devagarzinho, com pequenos passos. Na semana seguinte, ele faz um sonho de verdade: sonha com sua avó. Ela se aproxima dele devagarzinho, com pequenos passos. Ele se emociona quando diz que ela morreu há seis anos. Há uma experiência emocional verdadeira, vivida em análise, resultado do trabalho analítico.

É a coreografia primitiva!

A avó-analista dá pequenos passos com cuidado, Rafael é sensível a essa sintonia profunda e responde com outros passos. No meio de junho, ele volta a falar da avó. Traz uma lembrança de infância muito prazerosa. Lembra que lhe falei que a energia psíquica necessária para a simbolização primária vem de Eros? É isso que está acontecendo na coreografia transferencial. A lembrança de infância apenas confirma isso. Ele se lembra que ia com ela de trem para a praia. Que gostava de viajar na parte aberta do trem, do vento na cara, da sensação de liberdade. Que queria ser motorista de trem. Surge uma primeira figura masculina admirada. Fala também de sua família, da mulher, dos filhos. A esposa está sendo ótima, cuida de tudo sem sobrecarregá-lo. No trabalho, começa a se sentir melhor, dando conta de algumas tarefas. Chega agosto, mês das longas férias de verão. Rafael se angustia. Diz que na volta, em setembro, gostaria de ter duas sessões por semana.

Até aqui Marie-France diz que não fez nenhuma interpretação clássica. Não faria sentido tentar desvelar conteúdos latentes. Era preciso construir um continente psíquico, efetuar ligações primárias por meio de uma trama narrativa tecida com palavras do paciente e da analista. Essa narrativa permite conter a pulsionalidade bruta e violenta - típica de um regime de funcionamento mental tanático - que aparecia tanto nas imagens do mundo de fogo e sangue como na maneira gelada com que ele destruía a fala da analista com seu terrível "e daí?". A reconstrução do continente psíquico lhe permite reencontrar um sentimento de continuidade de ser, sentir-se contido por um envelope psíquico. Só então ele consegue fazer seu primeiro sonho por conta própria, quer dizer, a partir de seus próprios recursos psíquicos. O sonho da arca de Noé ainda era um sonho a dois.

Em setembro, Rafael mostra prazer em retomar tanto o trabalho analítico como seu trabalho. Estrutura sua semana em torno das duas sessões, que funcionam como referências. Na contratransferência a angústia diminui. A analista sente que Rafael vai ganhando espessura psíquica. O clima na sessão está diferente. A analista já pode até "errar": faz uma interpretação prematura, mas apesar da raiva dele, a situação é reversível.

Nesse período, ele começa a trazer conteúdos mais clássicos, representações de seus conflitos internos. Para usar a sua analogia, já há farinha disponível para um trabalho de simbolização secundária. Fala do conflito do pai, que era democrata, mas serviu a ditadura de seu país. Fala da sensação de estar entre um pai excessivamente crítico e uma mãe deprimida, que se apoiava sobre seus filhos "perfeitos" para se sentir mais viva. Fala também da angústia que sente em certos ambientes de sua casa, de onde se vê o muro rachado do jardim, e que tem medo de que a casa inteira desmorone.

A imagem do muro rachado, ao contrário do mundo de fogo e sangue, já é uma imagem onírica, símbolo primário. Só agora a interpretação clássica pode funcionar, fazendo a conexão entre o muro rachado, o medo do colapso e a catástrofe primitiva, abrindo caminho para a simbolização secundária. Agora ele tem palavras para falar do que lhe aconteceu. Afinal, ele desmorona quando vai trabalhar em outro país, quando ele perde suas raízes, repetindo a imigração forçada da infância e o desmoronamento do pai que se vê obrigado a trair seus ideais para depois perder tudo e ficar na miséria. Com a ajuda da analista, ele pode usar a farinha para fazer seu pão.

Belíssimo trabalho! A ideia de que a simbolização primária transforma o alucinatório - que é uma das formas do retorno do traumático que foi clivado - em sonho fica muito clara com esse seu relato.

O texto da Marie-France continua, mas esse trecho é suficiente para ilustrar nosso tema de hoje. Agora vou te contar um pouco do segundo caso, que ilustra o retorno do traumático clivado por meio de uma atuação da paciente na situação transferencial (Haber & Haber, 2002). Esse tipo de atuação é perigoso porque a atualização do trauma retraumatiza o paciente e pode levá-lo a interromper a análise. A atuação é sempre não subjetivada, quer dizer, não é o próprio sujeito, mas alguém-no-paciente quem está falando ou agindo. Isso acontece quando, além da clivagem, a criança usou outra defesa contra o traumático: ela se identificou com o agressor. Ao atuar essa identificação, temos a sensação de que é o próprio "agressor" que fala por sua boca. Por isso é a outra forma de retorno do traumático.

A análise de Francine ia bem, sem incidentes de percurso, até que ela começa a se queixar de que não tem com quem deixar os filhos, está com dores nas costas, está difícil de vir e passa a pedir com insistência para passar de quatro para três sessões por semana. A analista tenta interpretar isso e aquilo, mas dessa vez as interpretações rodam em falso. A paciente, que costumava estar aberta a associar com base no que lhe diz a analista, se aferra ao nível concreto do número de sessões. Por outro lado, ela não tem a sensação de que a paciente vai chegar e dizer que, em vista das dificuldades atuais, virá apenas três vezes. Portanto, a questão não é realmente o número de sessões. Ao contrário, lá pelas tantas, a analista percebe que a forma chata, insistente e tirânica com que ela se queixa sessão após sessão é o material clínico em si mesmo. É uma forma de agir sobre a analista, e por isso deve ser entendida como material clínico ainda em estado bruto: espigas.

Não é de admirar que as interpretações rodem em falso: não dá para transformar espigas diretamente em pão!

Pois é! E ela não vai parar de se queixar enquanto não houver simbolização primária, porque esse material está, de alguma forma ainda desconhecida, ligado ao trauma narcísico.

Imagino o sofrimento da analista na contratransferência! Já me vi em situações parecidas.

Conhecemos bem esse tipo de situação! Mas note que em algum momento vai ser preciso pensar que essa é a maneira que a paciente tem de contar para a analista o sofrimento que a criança nela viveu no vínculo primário. Enquanto esse momento não chega, a contratransferência entra em cena de maneira muito aguda. A analista começa a se sentir atormentada pela paciente, que a acusa de ser fria, insensível, rígida e tirânica. Fica em dúvida: estará mesmo sendo rígida? Ou é melhor não mexer no enquadre enquanto não entender o que está em jogo na transferência? O fato é que há uma grande pressão sobre ela. A transferência psicótica está se atualizando não apenas sobre o enquadre, mas sobre a análise como um todo. Não é à toa que a analista sente que a continuidade da análise está ameaçada!

É a pressão da identificação projetiva?

Exatamente! Para não ser tão hostilizada, a analista se vê tentando ser gentil com a paciente. Essa contra-atuação, ou contraidentificação projetiva, mostra que por enquanto está totalmente identificada com aquilo que a paciente está projetando nela. E está tentando se defender dessa violência como pode. Mas que violência é essa? De onde vem? Com "quem" - que aspecto do objeto interno da paciente - a analista está identificada? "Quem" está falando com a analista pela boca da paciente? A única coisa que dá para afirmar é que essa situação tem a ver com o clivado.

Por quê ?

Porque, como disse antes, a comunicação por identificação projetiva, que é uma comunicação psicótica, indica que estamos lidando com espigas, e não com farinha. A pressão que a paciente faz sobre a analista é, de algum modo, a mesma pressão que ela sofreu quando criança. Os traços de um modo de ser na relação com o outro que estão clivados estão sendo atualizados na transferência.

Quer dizer que quando algo está sendo atuado é porque algo da ordem do traumático não pôde ser transformado e integrado?

Sim, e vice-versa: o que não pôde ser transformado pela simbolização primária será atuado. Enquanto elas continuavam enroscadas nisso, aconteceu de a analista precisar de uma tarde livre naquela semana para ir ao médico. E escolhe desmarcar uma tarde em que Francine tinha uma das suas quatro sessões! Esse incidente - que os autores entenderam como uma interpretação selvagem - interrompe a rede de comunicação agida subterraneamente, ativa o potencial de simbolização contido na atuação e possibilita a transformação do agir em palavras.

Primeiro, Francine reclamou muito de ter sido privada de uma de suas quatro sessões. E, depois, o que acabou aparecendo foi que a paciente estava atuando um aspecto traumático da figura materna. Surgiram lembranças de uma mãe que passava o dia atormentando os filhos, queixando-se de que não aguenta mais, que as crianças são um fardo, que não tem tempo para nada, as costas doem, o marido não ajuda em nada etc. A analista descobre, então, que havia sido posta, pela identificação projetiva, no lugar dessa criança traumatizada! Veja, a lembrança já indica a retomada da simbolização secundária.

Espero que tenha ficado claro que uma análise serve, essencialmente, para criar as condições de retomada do trabalho de simbolização bloqueado. Aos trancos e barrancos, a analista deu um jeito de repor o traumático em jogo. A atuação da analista abriu caminho para transformar a atuação da paciente em sentido.

Muito bons esses dois trabalhos! Entendi a diferença entre o retorno alucinatório e o retorno agido do traumático. Ambos mostram também como é preciso criar condições para que o trabalho de simbolização secundária seja possível e faça sentido para o paciente. Obrigado e até a próxima!

 

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Recebido em: 10/5/2015
Aceito em: 12/5/2015

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