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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dic. 2015

 

RESENHAS

 

Psicanálise e transexualismo. Desconstruindo gêneros e patologias com Judith Butler

 

 

Thamy Ayouch

Psicanalista, professor titular na Université Lille III e professor visitante estrangeiro no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, USP

 

 

Autora: Patricia Porchat
Editora: Juruá, 2014
Resenhado por: Thamy Ayouch, Paris

O motivo da surpresa, do inesperado e da constante desconstrução caracteriza este livro, que se abre e se fecha driblando as expectativas dos leitores.

A surpresa inicial é a impertinência do título: de "transexualismo" não se trata. Talvez seja com certa ironia elegantemente discreta que a autora retoma esse termo psiquiátrico para opô-la a uma meticulosa despatologização das identificações de gênero "não-inteligíveis". Se as considerações sobre as transidentidades são raras, é porque o foco principal é, de forma mais global, um dialogo entre psicanálise e estudos de gênero. Trata-se de discutir a obra de Judith Butler como entrada idônea nesse confronto epistemológico. "Transexualismo" é, assim, um pretexto; além desse conceito produzido pelo dispositivo médico-jurídico, o que importa é a questão dos gêneros minoritários e da sua inteligibilidade em relação às categorias majoritárias de homem/mulher. Se o interesse é teórico e filosófico, a preocupação surge da prática clínica: "Quando estou diante de um paciente que se diz homossexual, masculino ou feminino, com que noção de homem e de mulher eu trabalho?" (p. 17), pergunta Patricia Porchat.

Através de uma exploração tão precisa como engenhosa de obras de psicanalistas (Freud, Lacan, Winnicott, Stoller, Chodorow, Benjamin, Bleichmar), filósofos (Merleau-Ponty, Foucault, Derrida, Austin), antropólogos (Lévi-Strauss) e teóricos do gênero (Weeks, Laqueur, Rubin, Scott, Wittig, Harraway, Bento e principalmente Butler) Patricia Porchat desconstrói metodicamente as identidades de gênero e as orientações sexuais. Se existem "homossexualidades", plurais, do mesmo modo que as heterossexualidades, "transexualidades" e transidentidades tão variadas quanto às "cis-identidades", também parece fundamental à autora recusar essas noções enquanto ferramentas na psicanálise. Se são mantidas, é apenas como prospectos políticos, "como termos que provocam, que interrogam, permanentemente, ou seja, como uma forma de quebrar seus próprios significados substantivos e prescritivos, de prover um lugar de abertura para uma permanente re-significação" (p. 161).

Sendo assim, a reflexão sobre a clínica e a teoria psicanalítica realizada por Patricia Porchat se revela política, performativa, e re-significadora. É política ao considerar as consequências sociais da teorização da psicanalise, a sua implicação na polis e frente às transformações dos modos de sexuação e sexualidade. As mudanças nas relações de aliança e de filiação, mas também a maior visibilidade de identidades alternativas de gênero - transgêneros, drag queens, drag kings, queers, gays, butches and femmes -, questionam o aparato teórico tradicional da psicanálise e desafiam a sua escuta clínica. Se essa indagação política se dirige à teoria, na esteira de Judith Butler, ela surge também da prática clínica da autora e articula uma ética da psicanálise. Trata-se, para a autora, de não ceder sobre o seu desejo e de proporcionar a escuta mais adequada dos "gêneros não inteligíveis".

Mas esta obra se ilustra também pela sua performatividade. Do mesmo modo que o gênero se revela performativo na análise butleriana, a teoria psicanalítica é abordada aqui na sua performatividade, quer dizer nas realidades inteligíveis de gênero e sexualidade que ela cria e promove ao teorizá-las. E mais: o livro de Patricia Porchat, ao salientar a performatividade dessas ferramentas psicanalíticas, faz existir a possibilidade de uma psicanálise mais atenta aos gêneros minoritários e menos isolada das contribuições fundamentais da antropologia, da sociologia, da filosofia e da história. É, assim, uma psicanálise definida pela re-significação das suas categorias metapsicológicas: "homem", "mulher", "Édipo", "diferença sexual", "falo" ou "simbólico".

Para realizar esse programa ambicioso, Patricia Porchat organiza a sua reflexão em duas partes. A primeira começa por uma dupla arqueologia da noção de gênero na teoria da construção social e na psicanálise. Foucault, Week e Laqueur contestam toda concepção do corpo como fonte essencializada da sexualidade ou da identidade de gênero e salientam, assim, a historicidade do dimorfismo de gênero. De forma diferente, a introdução da categoria de gênero por Stoller não revela, mas retoma, sem analisá-la, essa binariedade instituída e define a diferença entre normalidade e patologia pela coerência entre sexo, gênero e desejo.

O dialogo entre psicanálise e antropologia social é mantido no capítulo 2. Através da confrontação de psicanalistas (Chodorow, Benjamin, Bleichmar) com a antropóloga queer Rubin, Patricia Porchat ressalta os limites da psicanálise feminista no que tange aos gêneros não inteligíveis, embora a antropóloga critique a subordinação social, psíquica e teórica das mulheres na teoria psicanalítica clássica. Caberia perguntar aqui se é possível dissociar a denúncia da sujeição das mulheres daquela dos gêneros minoritários. Observemos que se trata da mesma opressão, se consideramos, como Butler, que o feminismo não implica um sujeito ontológico feminino. Essa contextualização do próprio feminismo revela que o gênero não é só uma relação histórica de dominação das mulheres pelos homens: ele é também uma ordem normativa que erige uma fronteira entre duas categorias de sexo - feminino e masculino - e perpetra uma opressão precisamente pela prescrição dessa dualização.

Essa dupla genealogia da categoria de gênero e do seu envolvimento com a psicanálise serve como propedêutica ao diálogo entre a obra de Judith Butler e a psicanálise, este orquestrado na segunda parte do livro. O terceiro capítulo centra a definição do gênero na performatividade. Esta, para Butler, aparece numa lente de aumento através das paródias da binariedade de gênero e dos gêneros não inteligíveis, abjetos. Se os sujeitos são instituídos por oposição aos abjetos, uma perspectiva desessencializadora procura trocar a ontologia do sujeito por uma política do humano e do seu reconhecimento. É dentro dessa questão do reconhecimento do humano, fora de categorias pré-estabelecidas de inteligibilidade, que Patricia Porchat dedica algumas páginas às transidentidades, e, na esteira de Judith Butler ou de Berenice Bento, questiona o maltrato das pessoas trans pelos dispositivos médico-jurídicos.

O quarto capítulo introduz uma instigante discussão filosófica e metapsicológica sobre o simbólico, a diferença sexual e a historicização da teoria. A concepção butleriana do simbólico como sedimentação de atos sociais, além de qualquer determinismo cultural ou transcendental, é confrontada às críticas de psicanalistas (Shepherdson, Copjec) e do filósofo Zizek. O alvo é a teoria lacaniana e a sua pertinência no que tange as transformações sociais. Mais globalmente, o debate diz respeito ao dizível nas teorizações, sempre construído, e àquilo que, escapando de toda simbolização, é definido como "não construído". O lugar desse indizível é ocupado, para Lacan, pelo real e, para Butler, pela pulsão. Se esta existe enquanto componente "não construído" que nos determina e desconhecemos, por outro lado, o discurso da psicanálise sobre ela não deixa de ser construído. O paradoxo do "não construído construído" leva à desontologização da teoria psicanalítica, para considerá-la apenas como modelo de inteligibilidade. Como toda teorização, a psicanalise é simbólica-tautológica: cria os objetos que ela tematiza, o que implica não confundir a ordem das coisas (fenômenos que, por serem relacionados com o inconsciente, sempre escaparão à representação) e a ordem das razões, simbolização pontual, provisória e historicamente definida. Como esquecer, portanto, que aquilo que nomeamos simbólico, por mais transcendentalmente que seja definido, não existe em si fora dessa designação teórica?

Mas, além do simbólico, é ao real lacaniano que Patricia Porchat chega, encerrando a sua reflexão por uma surpresa final. Após essa cuidadosa desconstrução das refutações de Butler por autores lacanianos, Patricia Porchat lhe nega a ultima palavra. A tensão entre psicanálise e estudos de gênero é assim mantida, pois a autora não pretende corrigir um campo pelo outro. Ela convoca um Lacan menos estruturalista e que concede mais importância ao real. Fica aberta, porém, a meu ver, a questão de saber se esse programa é desejável, na intocabilidade dos conceitos analíticos que implica, e se é realizável, depois da historicização de todo discurso. Efetivamente, se o real lacaniano designa a falha na simbolização, ressaltando a diferença sexual não como construção discursiva, mas como impasse fundamental do discurso, cabe observar que a designação do real em termos de diferença sexual, de sexuações do lado homem e do lado mulher, está já operando uma pré-simbolização. Em outras palavras, por mais insimbolizável que seja o real, a sua teorização, ainda que se limite a indicar como não é teorizável, sempre o apreende a partir de formações discursivas particulares.

A psicanálise se define pela sua ruptura epistemológica inédita: aponta os limites de toda visão positiva do saber e evidencia, assim, a dimensão metafórica, provisória, da sua própria teorização. Cabe perguntar, portanto, se, para abordar as questões de gênero e sexualidade além da binariedade, não é necessário renovar essa ruptura epistemológica, abandonar a linguagem da diferença e das identidades sexuais e radicalizar a historicização das próprias ferramentas. Do mesmo modo que a performatividade revelada pelas paródias vem contestar a "ficção reguladora da coerência heterossexual", os Gender and Queer Studies ressaltariam a "ficção reguladora da teoria psicanalítica". Ou seja, perpetrariam, além da repetição subversiva ou da improvisação dentro de um campo de constrições, uma desconstrução fundamentalmente psicanalítica da própria psicanálise.

 

 

Recebido em: 24/11/2014
Aceito em: 25/11/2014

 

 

Thamy Ayouch thamy.ayouch@gmail.com

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