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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015

 

ENTREVISTA

 

Entrevista: Meg Harris Williams1

 

 

Jornal de Psicanálise - É curioso como você se apresenta como alguém com "uma educação psicanalítica ao longo da vida": o que isso significa exatamente?

Meg Harris - Fiz análise com Donald Meltzer de 7 até 18 anos. Aos 18, minha análise terminou, e, ao mesmo tempo, meu pai morreu. Ele morreu muito jovem, tinha apenas 50 anos, era professor. Foi uma morte completamente inesperada. Minha mãe, Don e meu pai eram amigos. Como eu estava em análise, não fazia parte daquela amizade social, mas meu pai trabalhava com Don sobre psicologia da linguagem, e só depois percebi que eles pretendiam escrever algo sobre isso. Aquele foi o final desse aspecto da minha educação psicológica. Pouco tempo depois, minha mãe e Don se reuniram e, mais tarde, se casaram. Além de trabalharem juntos, na clínica e no instituto, eram sempre muito próximos, Don ensinava psicanálise infantil na Clínica Tavistock. Quando minha análise terminou, fui para a universidade, estudei Literatura inglesa, mas sempre discuti meu trabalho, o tempo todo, com minha mãe e Don. Tivemos uma colaboração de trabalho muito estreita, e, depois, Don passou a se interessar por poesia e literatura. Antes ele não era exatamente uma pessoa de gosto literário; interessava-se por linguagem e filosofia, e, especialmente, por arte, mas não por literatura e poesia, até tornar-se parte de nossa família, que valoriza muito a literatura: tanto minha mãe como minha irmã sempre gostaram muito de ler poesia, romances e contos. Acabamos por desenvolver a ideia de uma colaboração entre literatura e psicanálise, bem como o interesse pela arte. E, assim, fiquei empolgada pelo trabalho com meu ex-analista nesse contexto diferente, o contexto familiar. De certa forma, continuei trabalhando na psicanálise. Minha educação psicológica continuou em ambiente diferente, mas nunca realmente parou, apenas mudou. A nova colaboração juntou literatura e psicanálise. Em 1984, minha mãe sofreu um acidente de carro, muito grave, que a deixou completamente debilitada até que, anos mais tarde, ela morreu.

E, assim, Don produziu o livro A apreensão do belo, ele escreveu na capa do livro: "Este livro foi lançado com a colaboração de toda a família". Não me lembro exatamente, mas ele disse algo como "as raízes estavam na literatura e na arte, e os galhos acenavam freneticamente em torno da psicanálise, principalmente, pela colaboração da família".

Só depois que minha mãe morreu ele quis produzir o livro e foi, realmente, uma espécie de homenagem àquela colaboração. Foi assim que surgiu A apreensão do belo.

Jornal de Psicanálise - Você disse uma vez que nasceu num gueto kleiniano.

Meg Harris - É verdade.

Jornal de Psicanálise - Era diferente de outros guetos?

Meg Harris - Não sei, era uma comunidade muito próxima do distrito W3 em Londres, em Hampstead, e, de certa forma, era muito incestuosa. Era uma comunidade bem pequena, todos faziam análise, os filhos também faziam análise, todos se conheciam muito bem, mas, ao mesmo tempo, tentava-se manter sempre a confidencialidade. Era no final dos anos 1950 e início dos 1960, foi um período muito fértil. As pessoas discutiam muito as ideias, naquele tempo eram melhores em compartilhar suas ideias. Quando tornaram-se mais políticas, havia brigas o tempo todo. Por exemplo, quando minha mãe se casou com Don, houve grande desaprovação no gueto kleiniano. Não pelo fato de os dois ficarem juntos, mas pela família. Eles disseram: "Isso foi longe demais!".

Jornal de Psicanálise - Às vezes, as pessoas pensam que você é analista. Ontem, você foi apresentada como analista, e disse: "Mas sou apenas uma analisanda"...

Meg Harris - Sim.

Jornal de Psicanálise - Você acha que há grande diferença entre um analista e um analisando?

Meg Harris - Eu falava sobre isso com a Miriam,2 que dizia como é importante declarar exatamente o que você faz: se você disser exatamente o que faz, fica mais fácil para as outras pessoas fazerem suas próprias conexões. Quando digo exatamente o que faço, parece existir um tipo de limite, o limite do meu trabalho, então, é possível fazerem essa ligação, mas, se você tentar confundir a questão, as pessoas vão pensar que sou uma analista, quando eu não sou. Nesse caso, elas não podem fazer suas próprias conexões tão bem: então, é muito importante dizer exatamente o que faço, mas também dizer que o meu conhecimento na psicanálise vem de dentro, não de fora. Especialmente quando se escreve sobre literatura, e a maioria dos psicanalistas escreve sobre literatura... Não gosto muito, porque é um tipo de colonização puramente teórica, na qual se tenta explicar a literatura. É necessário vir de dentro com a literatura, apenas absorvendo a literatura, e, depois de fazer as conexões, não chegar por cima e fazer sua explanação. O mesmo se dá com a psicanálise. Na literatura escreve-se sobre ideias psicanalíticas, mas a maioria das pessoas realmente não têm experiência em psicanálise, e, portanto, também fazem, apenas, colonização... Por isso é importante saber qual é o seu campo, ter suas próprias experiências, e saber exatamente o que são.

Hoje em dia, há grande interesse na dupla analista/analisando, assim como numa colaboração, na qual ambos estão crescendo, suas mentes estão crescendo, o analisando não pode ser ajudado se a mente do analista não estiver crescendo também. Com base nesse ponto de vista, é muito importante ser um analisando, assim como, por exemplo, fazer análise didática. Existe o conceito de que o mais importante é fazer análise, pois é onde realmente se aprende. Assim, mesmo não sendo analista, e se você fizer uma análise, genuína, que parte do interior, saberá que o analista também está aprendendo, porque esse é o modelo: professor-aluno. Como Bion disse, ambas as mentes precisam estar em evolução.

Jornal de Psicanálise - Em seu livro O desenvolvimento estético: o espírito poético da psicanálise. Ensaios sobre Bion, Meltzer, Keats muitas vezes você citou seus pais. Nós gostaríamos de ouvi-la falar sobre a natureza da relação de seu self com seus objetos inspiradores.

Meg Harris - Vejo a função da psicanálise quando restabelece ou ajuda a educar essa relação dentro da pessoa. É o que se entende por autoanálise: não há uma relação de aprendizagem interna, segura, estabelecida pela psicanálise. Não se deve depender do analista para sempre, a função do analista é ajudar o paciente a ter o relacionamento interno, para, então, poder continuar, mas esse relacionamento não é algo que em algum momento estará concluído. Na verdade, ele sempre continua.

O self, e refiro-me ao self infantil, ou certo tipo de self do analisando, aquele que sempre está lá, que existe dentro de você, e para manter esse diálogo com os objetos internos, aqueles a que me refiro, é claro, a parte da mente mais avançada são os objetos internos, pois sempre aprendem antes que o resto da personalidade. Há uma outra parte de você, a dos objetos internos, que sabe mais do que você faz, é como uma espécie de mediador entre o que está em curso e o conhecimento final. Os objetos internos aprendem um pouco disso, eles em parte se cruzam e alimentam o resto da mente, em três níveis: o self ou o self infantil, os objetos internos, que fazem parte da mente, e algo que é muito mais abstrato, o reino da verdade ou do conhecimento. Aí você precisa, para ganhar um pouco mais, de um pouco do que vem de baixo, por meio dos objetos internos, e então eles transferem isso para o self infantil.

Esse é o tipo de relacionamento que você vê nos poetas - é por isso que eu escrevo sobre o poeta e a musa. A musa é, realmente, o objeto interno, faço um paralelo com o processo analítico, o self infantil e os objetos internos. Quero falar de algo que aconteceu ontem ao mencionar a palavra "inspiração", porque meu primeiro estudo foi acerca de Milton, Keats e a ideia de inspiração, que leva a pensar que alguns tipos de influência são inspiradoras e outros criam problema. Keats tinha uma relação muito interessante com Milton, que, para ele, era uma espécie de figura paterna. Quando estava aprendendo com base em Milton, a relação era ambivalente, Keats sentia que ele era uma influência inspiradora, então Milton era um objeto interno para ele. Outras vezes Milton agia como um superego e criava uma espécie de bloqueio, acarretando para Keats uma grande luta com Milton. Isso pode ser visto no relacionamento entre os dois poetas. Então pensei em exemplificar esses dois aspectos do relacionamento: inspiração ou superego insalubre.

Jornal de Psicanálise - Intromissão.

Meg Harris - Sim, intromissão, bloqueio, e assim por diante.

Jornal de Psicanálise - Uma espécie de superego realmente forte.

Meg Harris - Insalubre, do tipo moralista ou doutrinário, o que Freud disse que o superego poderia se transformar... A consciência pode ser uma coisa boa, mas também pode ser muito moralista.

Jornal de Psicanálise - No livro que você editou para sua irmã Morag, Transformações linguísticas na estética romântica, de Coleridge a Emily Dickinson, você menciona Emily Dickinson falando sobre a pesquisa de palavras "certeiras".3 Você entende que é algo próximo da language of achievement de Bion?

Meg Harris - Sim, foi uma citação de Emily Dickinson que dizia que ao escrever poesia, sempre procurava palavras "certeiras". Era estranho, mas era a sua forma de expressão. Penso que era o que Bion queria dizer quando afirmava que, na psicanálise, estamos sempre procurando essa linguagem "certeira", ele toma essa ideia de Keats. Não que o pensamento de Bion queira dizer realmente que os psicanalistas devam ser poetas. Ele afirma que a psicanálise é um trabalho diferente e que precisa ter seu próprio tipo de poesia, pode evoluir durante a sessão ou os seminários, discussões com colegas, mas não é o que chamaríamos de poesia. Não é ser um poeta, mas um psicanalista poético. Por linguagem "certeira", ele está falando sobre a expressão verdadeira, que ele diz ser tão difícil. Tenho certeza de que ele diria: não são apenas palavras, mas toda a comunicação e transferência, quaisquer que sejam as formas, todas as emoções que acontecem na sala de análise são parte da poesia na psicanálise, isso é o que o psicanalista deve procurar, a poesia ou a linguagem "certeira".

Jornal de Psicanálise - É um conceito muito complexo, temos grande dificuldade em traduzi-lo para o português, podemos usar linguagem "certeira". Há muitas traduções, mas não há nenhuma compreensão.

Meg Harris - Sim.

Jornal de Psicanálise - Talvez seja o lado da busca da verdade.

Meg Harris - Sim, se for o objetivo, a busca da verdade da relação particular analista/analisando na sessão, tudo tem relação com a busca da verdade. Você, da mesma forma, pode trazer o conceito da função-alfa e a formação de símbolos como busca, porque a linguagem "certeira" também é a função-alfa operando, e a rêverie está trabalhando entre o analista e o analisando. Provavelmente ajudando a criar uma linguagem "certeira" e criar símbolos sobre o conflito emocional, e essa é a linguagem "certeira", a verdade da experiência.

Jornal de Psicanálise - Você concorda com o ponto de vista de Max Ernst de que o trabalho de um artista é o principal dispositivo para compreender o artista como pessoa?

Meg Harris - Creio que há uma diferença entre o artista como pessoa, na vida comum, e o artista quando trabalha. Esta provavelmente equivale à existente entre o analista como pessoa e o analista na sala de análise; como a ideia religiosa antiga de que, quando o sacerdote coloca suas vestes, ele é uma pessoa diferente do que quando está em sua vida cotidiana. O mesmo se dá com o artista, embora cada artista tenha seu próprio estilo individual e modo de expressar, mas o artista como pessoa não é o mesmo em sua vida cotidiana. Por exemplo, Picasso, provavelmente, devia ser muito chato no seu dia a dia, o que não impede que ele seja muito apreciado.

Jornal de Psicanálise - Você diria que o Minotauro seria sua autobiografia?

Meg Harris - Eu diria que sim. Há diversas autobiografias na arte, mas, quando se toma a forma da arte, ela tem uma aplicação mais universal, de modo que não queremos encontrar Picasso fingindo ser o toureiro, não queremos conhecê-lo, mas ver como sua obra de arte se expressa e tudo o que podemos aprender e identificar com a arte. É como um serviço para as pessoas, sempre há autobiografia na arte, porque o artista, da mesma forma que o analista, só pode conhecer as outras pessoas por meio de si. Então, eles têm que ser introspectivos para produzir qualquer coisa, mesmo se não for consciente. E geralmente não é consciente, esperamos que seja inconsciente.

Jornal de Psicanálise - Você menciona o fato de que Meltzer costumava dizer que ele apreendeu o significado da psicanálise a partir de formulações de Money-Kyrle. Como você, hoje, compreende esse significado da psicanálise?

Meg Harris - Boa pergunta! Como poderíamos salvar o mundo? Não sei a resposta. Acho que o que Meltzer pensava, considerando que ele admirava Money-Kyrle, porque ele tinha uma grande variedade de interesses, de filosofia, ética, política etc. Ele não queria que a psicanálise fosse algo completamente diferente, pensava que a psicanálise fizesse parte dessa completa rede de cultura, e que foi formulada de maneira que víssemos o mundo, na qual deveríamos nos concentrar. E como os homens enxergam seu trabalho e qual a imagem que eles têm de seu trabalho, era a chave para todo o resto, a política, a ética, os problemas sociais.

Jornal de Psicanálise - ... que é o título de seu livro.4

Meg Harris - Sim, é sobre todos esses assuntos, tentando dizer qual é o ponto dessa nova disciplina, chamada psicanálise, e por que usá-la. E ele pensou que só poderia dizer que é útil se virmos sua relação com todas as outras formas de operar no mundo. Ele tenta olhar para outros campos através dos olhos do psicanalista, com a seguinte observação: "A psicanálise nos mostra que todos esses outros campos são de fato dependentes de nossa imagem do mundo, que é o que a psicanálise pode nos mostrar". Assim, a psicanálise pode ajudar a compreender a forma pela qual olhamos para outras coisas, a forma que olhamos para o mundo, e ajudaria a mudar o mundo nessas outras esferas. Ele disse que o mais importante é a saber para onde estamos olhando: "A maioria das chamadas discordâncias entre as pessoas não são realmente discordâncias, acontecem por elas não olharem para a mesma coisa, não entenderem a maneira na qual fazem sua procura". Para ele, a psicanálise pode ajudar a entender essa maneira, como um par de óculos, por exemplo, que pode proporcionar um novo modo de visão. Se pudéssemos entender isso, muitos problemas seriam resolvidos, porque perceberíamos que a batalha particular, essa discussão, se dá porque uma pessoa está falando sobre um objeto e a outra fala sobre outro, não estão convergindo para o mesmo objeto. E conclui: "Se entendermos a forma com que olhamos, então poderemos realmente olhar para o problema". Poderemos dizer: "Este é o objeto que estamos de fato olhando, vamos tentar resolver o problema deste objeto". Acho que ele está certo, Don quis dizer que essa é a forma de a psicanálise ajudar. Não creio que tenha mudado, precisamos olhar novamente para Money-Kyrle.

Jornal de Psicanálise - Você também contou sobre os settings projetivos de seus três "pais" no mundo natural, quanto ao conflito estético. Qual seria sua definição pessoal?

Meg Harris - Assim como o jardim que está diante de nós. Um pouco de natureza, um pouco de conforto, meio dentro, meio fora. Gosto disso.

Jornal de Psicanálise - Sabemos que você está editando livros sobre o ensino de Bion e Meltzer. Que outros projetos você tem no The Harris Meltzer Trust hoje em dia?

Meg Harris - Na verdade, estou sempre perguntando: se você tiver qualquer projeto, por favor, diga-me. Porque quero publicar livros bons e úteis, estou sempre perguntando para Miriam encontrar alguns, ela é muito boa em ter ideias, quero ideias e, especialmente, ideias úteis. Na Inglaterra é particularmente difícil publicar qualquer material clínico, porque as pessoas ficam muito assustadas pelo aspecto da confidencialidade. Estou certa de que ocorre o mesmo em todos os lugares, mas talvez, se for entre diferentes países, não exista muito problema. Mas, pensando melhor, não tenho tanta certeza, talvez exista, porque todo o mundo conhece todo o mundo agora. Mas, se há alguma forma de poder relatar o material clínico, quer para a teoria ou para o que estamos dizendo sobre a psicanálise no mundo, a sua função no mundo, este é o tipo de projeto que estamos interessados em publicar, então realmente, preciso de ideias vindas de pessoas que estão trabalhando, ideias que saem do trabalho, ideias que vêm de experiência real, descrições e problemas de trabalho, e também porque temos uma responsabilidade educacional, é a nossa função, na Inglaterra. Nossa responsabilidade é muito importante, até mesmo na caridade. Nosso objetivo é fornecer material educativo, para treinar os psicanalistas como mediadores ou para conectar a psicanálise com a educação, seja em escolas ou em universidades, em qualquer nível de ensino. É tudo sobre como a psicanálise pode ser útil na educação e fertilização cruzada de ideias.

 

 

Jornal de Psicanálise - Vamos dar um exemplo concreto: o livro que você editou de Nicky Glover,6 sobre a estética psicanalítica da escola inglesa. Como você chegou a ele?

Meg Harris - Na verdade, eu já a conhecia. O livro surgiu após uma pesquisa de fôlego, a autora trabalhava em sua dissertação.

Jornal de Psicanálise - Mas ela não é analista.

Meg Harris - Agora ela é terapeuta, fez a formação após a publicação do livro que foi um projeto universitário. Hoje exerce a profissão na Austrália. Mas suas raízes foram acadêmicas, na faculdade ela ficou muito interessada nas ideias kleinianas, e até, podemos dizer, obcecada por elas. Foi assim que a conheci, e ela era, também, muito interessada em arte.

Jornal de Psicanálise -Você mencionou como os poetas românticos estavam preocupados com a mudança catastrófica dentro do self como um modelo para a regeneração da sociedade. Como você e Meltzer consideraram essa mudança catastrófica em Bion, do ponto de vista estético?

Meg Harris - O primeiro livro que li de Bion foi Umamemória do futuro. Antes, não conhecia nenhum de seus livros teóricos, não era realmente muito ligada às teorias psicanalíticas. O livro apareceu, um dia, em cima da mesa, na cozinha da família. Minha mãe disse: "Leia e veja o que você pensa a respeito". Quando li, achei muito bom.

Ao mesmo tempo, Don também lia Bion, pois minha mãe pediu que ele fizesse algumas palestras sobre o desenvolvimento da teoria kleiniana para seus alunos na Clínica Tavistock. Ele falou sobre Freud, Klein e Bion, e foi assim que apresentou o desenvolvimento kleiniano, que era basicamente o conteúdo de suas palestras. Don ficava muito irritado quando lia Bion, dava voltas ao redor da casa, fumando um monte de cigarros, e voltava para aquela pequena máquina de escrever, com muito mau humor. Ler Bion e fazer aquelas palestras era uma luta! Até aquele momento, ele não gostava de Bion, era minha mãe que gostava. Ela amava Bion e suas supervisões, particularmente, não gostava tanto das suas obras escritas, sua ideia de psicanálise era falar com ele e ter casos supervisionados por ele. Então, disse para Don: "Você deve lê-lo corretamente, e deve fazer essas palestras para os meus alunos".

Jornal de Psicanálise - Ela estava mandando nele.

Meg Harris - Sim, quando tinha uma ideia, ela era muito mandona.

Jornal de Psicanálise - Então, a resposta é que, provavelmente, ele apreendeu a mudança catastrófica por um aprendizado catastrófico.

Meg Harris - Exatamente, foi um aprendizado catastrófico. Um dos capítulos sobre o desenvolvimento kleiniano foi dedicado à ideia de mudança catastrófica. Depois que eu li as palestras, pensei "essa é a única mudança catastrófica que eu gosto", pois tem a mesma linha de pensamento de Uma memória do futuro. Gostei do conceito, porque é o mesmo de Aristóteles, o mesmo que há no drama grego clássico,7 e tenho certeza de que é o que Bion pensava, o momento de conhecimento, o momento em que, de repente, tudo parece diferente, porque o significado do conflito foi entendido, é a mudança catastrófica. É típico de Bion escolher uma palavra que tem uma história e um duplo significado, ele diz em Uma memória do futuro: "Existem dois tipos de catástrofes, você pode escolher entre o tipo estético, como o antigo drama grego, ou o tipo desastroso, como a guerra nuclear". É um conceito importante, pois ele diz que a escolha, entre os dois tipos de catástrofe, é sua.8

Jornal de Psicanálise - Também achamos muito interessante que Bion tenha tentado explicar ou entender a mudança catastrófica por meio de várias palavras, como break-up, break-down, break-through, break-in etc. Pensamos que isso é fantástico.

Meg Harris - Sim, ele gostava de expressar-se por trocadilhos, com base no modelo de soldados que passaram por shell-shock9 na Primeira Guerra Mundial, Bion disse: "Na verdade, o problema não era que eles estavam enlouquecendo, o problema era que eles continuavam sãos". A sociedade entendeu essa percepção, como avaria, mas Bion disse: "Talvez seja descoberta".10 Um de seus amigos comentou: "Ele tornou-se são antes de acabar a guerra".

Jornal de Psicanálise - Não deixa de ser irônico.

Meg Harris - Exatamente.

Jornal de Psicanálise - Como você considera a relação entre romantismo e psicanálise?

Meg Harris - De certa forma, pode-se dizer que a psicanálise começou até antes das imagens pré-históricas. Num sentido mais preciso, Bion disse que os românticos foram os primeiros psicanalistas, por isso, você pode olhar para ambos os sentidos, a psicanálise vai voltar para o início da humanidade, mas a psicanálise como a conhecemos, hoje, começou com os românticos, foram eles que formularam essas perguntas, falaram sobre a mente e os tipos de consciência. Se bem me lembro, Coleridge inventou a palavra "psicanálise". Ele inventou todo tipo de palavras modernas, um monte delas. A linguagem que usamos começou com os poetas românticos, e sua espécie deliberada de análise. Eles eram muito conscientes do que faziam, foi esse nível de consciência que tornou a psicanálise uma disciplina. Eles não só lidaram com os mesmos problemas emocionais, mas tinham uma maneira muito autoconsciente de olhar para esses problemas: foi uma base muito boa para a psicanálise. Não sei se Freud sabia muito sobre os poetas românticos, os poetas antigos, mas era muito interessado nas palestras, é claro. Penso que ele conhecia os filósofos românticos, eram estreitamente ligados, porque Coleridge foi para a Alemanha, e aprofundou-se na filosofia romântica alemã, e trouxe isso de volta para a Inglaterra. Esse conteúdo entrou na poesia, de modo que acabou havendo uma ligação muito forte. Freud, provavelmente, sabia muito sobre os filósofos alemães, talvez se possa dizer que haja uma relação direta. Por outro lado, Freud estava muito mais preocupado em fundar a psicanálise como ciência, sua preocupação era sair da fisiologia. Provavelmente por isso, inconscientemente, ele teve influência dos românticos alemães. Como seu objetivo era fazer da psicanálise uma ciência propriamente dita, ele evitou salientar as outras coisas, mas ele estava muito interessado na filosofia.

Jornal de Psicanálise - Como você avalia a contribuição da poesia romântica, o romantismo inglês, especialmente, para as artes, a vida social e política?

Meg Harris - Creio que é o fundamento da visão moderna do mundo, que as pessoas nem sempre reconhecem, e, estranhamente, foi só quando Bion tomou aquela frase de Keats sobre a capacidade negativa que esta parece ter se tornado mais aceita. Os poetas românticos foram os primeiros filósofos psicológicos, portanto, quando alguma coisa, uma influência, é tão fundamental, as pessoas não percebem de onde ela vem. Um pouco como quando as pessoas não percebem que uma determinada frase, na verdade, vem de Shakespeare, porque é comum e todos a conhecem. É o que acontece com os poetas românticos, eles são apenas a forma com que olhamos as coisas agora, e não percebemos que elas vêm dos poetas românticos. Alguém disse: "Onde Shakespeare falou em capacidade negativa?", "Não foi Shakespeare, foi Keats". Porque a frase é de uma forma que não poderíamos ver de modo diferente e nem sempre reconhecemos a origem.

Jornal de Psicanálise - Talvez porque Keats citou Shakespeare como uma dessas pessoas que tinham capacidade negativa.

Meg Harris - É verdade, é provável que tenha sido isso.

Jornal de Psicanálise - Suas diferentes atividades como artista plástica aficionada por literatura, observadora privilegiada da psicanálise kleiniana e pós-kleiniana, trabalhando no campo da editoria, e, mesmo tentando escrever a trama para um filme sobre Uma memória do futuro, de Bion, como você entende seu compromisso com essas atividades multimídia?

Meg Harris - Acho que por isso estou ficando louca (risos). Até me sinto culpada.

Jornal de Psicanálise - Mas você gosta dessas coisas.

Meg Harris - Sou quase uma adicta. Não que eu goste exatamente, mas não posso viver sem isso. Gostaria de ir viver em uma ilha com os poetas.

Jornal de Psicanálise - O que você acha da arte contemporânea, e que dispositivo a psicanálise pode oferecer a esses relacionamentos?

Meg Harris - O que sempre se falou sobre arte contemporânea, em todos os gêneros, e também na música e outras manifestações, é que apenas a próxima geração poderá, realmente, apreciar, e a psicanálise pode nos ajudar a saber do que gostamos, em vez de vermos apenas o que está na moda, porque, caso contrário, todos só vão ler os jornais de domingo, e irão para as exposições anunciadas, sem sequer saber se gostam ou não. E a psicanálise pode ajudar as pessoas a olhar para algo que é, talvez, estranho, e dizer "este tipo de estranheza, realmente fala comigo" ou "não fala comigo". Eles nem podem dizer que seja lixo, eles podem dizer "eu acho que isso é uma fraude". É uma reação comum, e, às vezes, é de fato uma fraude, não sabemos com certeza. Mas seria bom se as pessoas pudessem dizer "estou interessado", não necessariamente dizer "eu gosto". Isso as ajudaria a ter uma reação autêntica, mesmo que esta seja "eu não sei, mas talvez eu esteja interessado". E, quem sabe, cinco anos depois, olhassem novamente e diriam "agora, na verdade, acho que é lixo" ou "na verdade, agora estou mais interessado". Muito melhor do que alguém dizendo "conheço ideias psicanalíticas e posso lhe dizer se esta exposição, ou filme, ou algo assim, é boa ou não". Em vez de julgar moralmente, a psicanálise pode ajudar as pessoas a compreender suas próprias reações autênticas, e gerenciá-las, expressando-se com frases como "eu não gosto", "eu gosto" ou "possivelmente, estou interessado". Só para entender suas próprias reações, evitando o perigo de a psicanálise ser usada para fazer julgamentos culturais, como "isto é o que é importante". A psicanálise deve apenas ajudar o indivíduo a pensar sobre o que é uma reação autêntica.

Jornal de Psicanálise - Você disse algo interessante, que as instalações introduzem a ideia de ter experiências. E talvez elas tenham algum tipo de ligação com a experiência de análise, um processo pelo qual você precisa para poder passar, mas você está fora, e não pode ver. É uma posição diferente, como você disse, a função da psicanálise poderia ser a maneira pela qual vemos, e talvez a arte contemporânea inclua algo que vem desse tipo de experiência.

Meg Harris - Sim, é verdade, não é um tipo diferente, há diversos modelos de instalações, como o cruzamento entre teatro e arte, como o teatro ao vivo, de que o público faz parte, interage diretamente com os atores. Muito diferente de assistir a um filme, a arte da instalação é mais como teatro, e nela não se está apenas assistindo. Lembro que escrevi diversos trabalhos sobre a artista plástica Louise Bourgeois, quando ela fez uma exposição com várias instalações artísticas. Ela também é muito bem informada a respeito das ideias psicanalíticas, fez análise por muitos anos em Nova York. Ela conhecia bem as ideias kleinianas, que ocorrem dentro e fora da mãe. Muitas de suas instalações são baseadas na ideia de o corpo da mãe ser o mundo. Às vezes uma instalação tem, por exemplo, uma cadeira no meio, que a artista chama de "célula". Considerando o conjunto do teatro, há uma cadeira que representa a criança ou, talvez, algumas mãos unidas. Nessa instalação, Bourgeois espera que o espectador, ao andar pela exposição, em certos lugares, possa olhar para dentro. Tentou criar aí uma identificação entre o espectador e a mente do artista, em uma espécie de forma tridimensional. Mas ela está sempre dizendo: "Esta é a minha mente, uma descrição da minha mente. Você tem a escolha, você pode se identificar, ou não, com a minha mente". Ela não está dizendo o que é sua mente, ela está dizendo "esta é a minha mente", convidando o espectador a ter um relacionamento dessa forma.

Jornal de Psicanálise - Como você entende, hoje, a expressão, "uma estranha forma de matar", que selecionou no romance Wuthering Heights (O morro dos ventos uivantes), para nomear o seu estudo sobre o livro de Emily Brontë?

Meg Harris - Essa expressão é de Emily Brontë. Para mim, equivale à "mudança catastrófica", que é exatamente o que ela quer dizer, uma estranha forma de matar. É o que Bion chama de "morte do estado existente da mente", sair de um estado de espírito e passar para um diferente nível de desenvolvimento, uma visão diferente do mundo, um avanço ético, passar de uma visão para a próxima. Depois da "mudança catastrófica" ou da "estranha forma de matar", a pessoa torna-se diferente, com uma visão ética mais sofisticada do mundo. É por isso que eu escolhi essa frase brilhante.

Jornal de Psicanálise - Você diria que "a estranha forma de matar" tinha relação com Heathcliff ou aos outros personagens?11

Meg Harris - É um pouco como uma instalação, todos estão conectados, porque, apesar de serem personagens, eles são representações de pessoas, e são, também, representações de diferentes de partes da mente, como em Umamemória do futuro, de Bion, quando as diferentes partes da mente falam umas com as outras. Isso só ocorre quando todos têm uma ligação conjunta, não apenas juntos em um quarto, mas em toda a história, e essa é uma história da segunda geração. Assim, uma geração está no pensamento com outro tipo de aprendizagem em relação à geração anterior. E, quando todas essas coisas se juntam, começa "a estranha forma de matar", não é só para Heathcliff, apesar de ele ser a pessoa que diz isso, mas acontece para todos os personagens. De repente, há um novo mundo no final do romance, tudo tem uma função, nada está em direção errada, tudo é útil, todas as diferentes interações entre os personagens são úteis e necessárias para criar esse novo estado de espírito. É o símbolo completo, o que Suzanne Langer chama "o símbolo da arte", que significa o símbolo completo. No interior do símbolo completo há pequenos símbolos, mas o símbolo da arte se dá quando se experimenta a unidade do todo, porque é só assim que tudo é falado para o outro.

Jornal de Psicanálise - Como você explica o profundo interesse das pessoas do campo literário, como, por exemplo, Mary Jacobus, ou você mesma, a respeito da tradição psicanalítica britânica sobre as relações de objeto?

Meg Harris - É um pouco do que Money-Kyrle dizia: quando não se está olhando para o mesmo objeto, surgem muitas discordâncias. Na verdade, existem vários tipos de artifícios, as pessoas não são conscientes de sua própria maneira de olhar, e não podem concordar em olhar para a mesma coisa. Don costumava dizer que qualquer um que está trabalhando com a transferência está fazendo psicanálise. Embora também costumasse dizer: "É preciso se ater a uma tradição, porque ao tentar basear-se em muitas tradições teóricas, as coisas só se misturam". É uma linguagem teórica, mas o essencial na psicanálise é lidar com a transferência, se alguém está trabalhando assim, então, está realmente fazendo psicanálise, independentemente de qual seja sua orientação, o que é o mais importante. Don ficava muito feliz quando fazia supervisões de diferentes tradições, certa vez um analista sueco disse em seu primeiro encontro: "É maravilhoso conhecer alguém que conhece o sistema da análise". Don respondeu: "O que é isso?". O sueco respondeu: "É o que você faz". E Don disse: "Não, não, eu não posso fazer por Bion". As pessoas têm línguas diferentes, e elas não podem ver o que estão fazendo. Essa não foi a pergunta, o que era a pergunta?

Jornal de Psicanálise - Os britânicos, por exemplo, Mary Jacobus que escreveu The Poetics of Psychoanalysis, esse maravilhoso livro sobre o espírito poético da psicanálise, é da área da literatura.

Meg Harris - Sim, mas também da psicanálise. Ela fez alguns anos de análise kleiniana, eu não sei com quem, mas ela teve alguma experiência. Mas a disputa entre Klein e Winnicott, as discussões que tiveram sobre a transferência, e se havia uma causa da transferência, era sobre palavras e definições. Às vezes é preciso olhar para o contexto para saber qual o sentido que a palavra realmente faz, em vez de dizer: "Essa palavra significa isso". Especialmente em psicanálise, e Bion é bem culpado, pois muitas vezes ele sabia que essas palavras e expressões poderiam ser usadas de formas diferentes: "elementos amargos" é uma delas. Elemento ou algo amargo pode ter um significado completamente diferente, Bion dizia: "Eu nunca vi um". Às vezes há diferentes pontos de vista do mundo, mas o importante é que as pessoas devem ser autoconscientes de sua própria visão, mesmo que seja diferente de outra pessoa, pelo menos elas sabem como estão olhando para as coisas. Minha mãe sempre utilizava, para salientar, "autoescrutínio". Você não pode fazer psicanálise, se não tiver capacidade de autocontrole. Ser capaz de estar ciente da maneira como você olha para as coisas, além do problema com a linguagem e as palavras, o que é um objeto e as diferentes maneiras que este "objeto" é usado, de qualquer maneira isso é secundário.

Jornal de Psicanálise - No seu livro, quando você fala sobre a definição de arte, diz que a maneira tradicional de formular a definição da arte é como conhecer, fazer e expressar. Fazendo uma relação com este estudo que vemos agora, mais e mais pessoas falando sobre figurabilidade, às vezes podemos ver alguns paralelos que a arte oferece, e ver, também, uma forma teórica em psicanálise, algum ponto em que se correspondem. Como é o futuro nessas cenas? As linhas que se veem agora, porque podemos ver muitas pessoas falando sobre isso... popularizando uma maneira não mais representativa de expor essas coisas. Já conversamos muito sobre o passado, os clássicos e outros, mas o que dizer sobre o agora? Sobre o futuro? Isso talvez possa iluminar o trabalho na clínica, com vários autores escrevendo sobre o que acontece agora, a forma como as pessoas vivem, a experiência do mundo, a mídia e a mobilidade. Richard Serra pode ser um corte, uma divisão, ou um labirinto. Podemos ver alguns autores na literatura que tentam fazer livros sem o autor, o que isso significa? Poderia ser um teatro de objetos internos? Às vezes, fazem as relações com o aqui e agora, como os pacientes.

Meg Harris - Um preconceito, você quer dizer. Eu não sei, é muito difícil responder a algo "como se vê o futuro". Porque eu não tenho ideia.

Jornal de Psicanálise - Pode ser o presente.

Meg Harris - Como pode ser feita a relação da arte com a psicanálise? Don sempre nos lembrou que a psicanálise é muito nova, enquanto a arte é muito antiga. Mesmo as novas formas de arte são uma espécie de novo, mas ainda são uma tradição, na verdade, tão antiga quanto a humanidade. Então, é muito estranho se um artista não for, na parte de trás de sua mente, consciente dessa tradição. É apenas quando ele está consciente de uma tradição que existe em qualquer significado e experimentar que a produção artística pode ocorrer de modo interessante. Faz parte da natureza da arte sempre experimentar e descobrir formas novas... mas ainda assim esse processo é uma tradição em si, assim como um artista deve saber qual é o tipo de coisa que está fazendo, ele tem uma longa tradição e tenta adaptar essa tradição à cultura moderna e à sociedade, estabelecendo relações, e assim por diante, esforçando-se para encontrar maneiras relevantes para a vida moderna, ou atual, seja qual for o tempo em que vivem. Eles fazem hoje o que os homens das cavernas fizeram, muito tempo atrás. O que eles produzem é muito diferente, mas sua atividade é realmente a mesma, e eles sabem o que é essa posição, eles estão lá para falar das atuais formas de vida, para encontrar maneiras de expressar a forma com que as pessoas olham para as coisas, a visão moderna das pessoas. Já para a psicanálise, como uma disciplina formal, com apenas pouco mais de cem anos, que é realmente muito nova, arte ou ciência, ou seja o que for, e os psicanalistas têm mais de um problema para preencher o que é uma tradição. Por isso Bion diz que podemos ser um tipo de artistas, e ainda estamos tentando encontrar uma maneira, tentando encaixar-nos na tradição, mas acho que, com o passar tempo, as ideias psicanalíticas estarão mais presentes na sociedade, e não apenas mais pessoas terão acesso à psicanálise. Aliás, esse é um outro problema, muitas pessoas não podem fazer psicanálise, ou porque é muito demorado, ou muito caro, e todas estas coisas, mas não significa que ela não possa produzir efeitos. Algumas pessoas puderam usá-la em outros campos. Eu falava sobre isso com Miriam, ela dizia que tem encontrado, cada vez mais, nas supervisões, as pessoas mais rápidas para entender a ideia, o processo, e, de alguma estranha forma, as ideias psicanalíticas começaram a penetrar na cultura. Hoje as pessoas estão muito mais prontas.

Jornal de Psicanálise - Como com relação a Shakespeare?

Meg Harris - Sim, são muito mais preparadas, mais rápidas, entendem rapidamente, o trabalho é mais eficiente e ficará melhor quando as ideias psicanalíticas estiverem mais na cultura.

Jornal de Psicanálise - O que você está tentando nos dizer é que, como uma espécie de expressão na arte está constantemente tendo um ponto no passado, a psicanálise tem uma visão no futuro e dentro de cada um? É muito difícil falar disso.

Meg Harris - Sim, exatamente, basta ler que as formas de psicanálise podem se desenvolver de maneiras mais completas, as quais não sei bem ainda como serão, mas que podem ser muito mais eficientes. O espírito da psicanálise pode encontrar diferentes maneiras de operar na sociedade, que ainda não tenham sido trabalhadas, mas o fato é que as pessoas estão mais prontas, intuitivamente, para entendê-las. A psicanálise pode ir para a educação e outros campos sociais, é preciso encontrar formas de trabalhar nesses outros campos, a fim de continuar a viver, realmente. Vamos encontrar as formas, porque, se as pessoas continuam interessadas, e a prática não for muito rígida... Na Inglaterra, por exemplo, se não for cinco vezes por semana, não é análise. E isso está se tornando uma regra. As pessoas se esquecem de que, na verdade, talvez fosse necessário quando a psicanálise estava começando, mas agora, porque já há esse tipo de compreensão implícita da psicanálise, talvez se possa ter a psicanálise de acordo com regras diferentes, mesmo se as sessões não acontecerem cinco vezes por semana, ainda será a psicanálise, ainda trabalharemos com a transferência. E pode até ser mais eficiente, porque, como Bion disse: "Ideias são herdadas, [mas] não entendemos muito bem como são herdadas". O fato é que, se elas progridem, a próxima geração realmente entenderá mais do que a anterior, e por que não acontecer o mesmo com a psicanálise? A psicanálise pode funcionar de forma mais eficiente. Senão, ela vai morrer, se essas regras se tornarem muito restritivas, como Bion dizia: "Um exoesqueleto". Precisamos nos adaptar à realidade. E, como a arte, sempre encontrar formas relevantes para os modos modernos de existência, a psicanálise precisa ser flexível o suficiente para adaptar-se à consciência moderna. E o conhecimento que as pessoas têm herdado sobre a psicanálise continuar a se desenvolver, a encontrar formas, lugares na sociedade em que possa trabalhar, é difícil imaginar quais formas serão, mas ela precisa evoluir, deve ser autorizada a evoluir.

Jornal de Psicanálise - Gostaríamos de agradecer sua presença e disponibilidade para esta entrevista.

Meg Harris - Muito obrigada por me convidar. Foi bom revê-los.

 

 

Tradução de Mireille Bellelis
Revisão e edição de Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
1 Entrevista realizada em 26/10/2014, na residência do entrevistador Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, presentes Marina Massi e Any Trajber Waisbich.
2 Miriam Botbol Acreche, analista argentina amiga de Meg, que acompanhou a entrevista como ouvinte. (Nota do entrevistador)
3 Não há consenso sobre a melhor tradução para a language of achievement de Bion, mas uma tradução coloquial interessante seria "linguagem certeira", algo próximo da mot juste de Flaubert. (Nota do entrevistador)
4 Man Picture of his World (A visão do mundo do homem). (Nota do entrevistador)
5 Meg mencionara que seu pai adorava barcos, sua mãe flores e Meltzer, cavalos. Ao responder, abriu os braços na direção do jardim que se divisava do escritório onde se realizava a entrevista. Posteriormente, nos mandou uma foto de um quadro pintado por ela décadas atrás em Florença, com a seguinte mensagem: "Algo me ocorreu após a entrevista em sua casa quando você perguntou sobre qual setting eu preferia para o meu trabalho, e eu disse: 'como este, de dentro para fora'. Depois me lembrei que fiz este pequeno quadro quando eu era estudante na Itália, do meu quarto (em 1974). É o tipo de configuração que eu gosto - escrivaninha na frente de uma janela, de preferência aberta ou, pelo menos, com uma vista!". (Nota do entrevistador)
6 Glover, N. (2009). Psychoanalytic Aesthetics: An introduction to the British School. London: Karnac. (Nota do entrevistador)         [ Links ]
7 Meg refere-se à peripateia nas tragédias gregas. (Nota do entrevistador)
8 Alusão às últimas linhas do livro: "Não há substituto para o crescimento da sabedoria. Sabedoria ou o esquecimento: faça sua escolha. Desta luta não conseguimos escapar". (Nota do entrevistador)
9 (N. T.) Distúrbios de comportamento causado por um trauma de guerra.
10 Bion sugeriu que escapar da estupidez da guerra através de um colapso nervoso talvez fosse uma marca de sanidade. (Nota do entrevistador)
11 Heathcliff, o personagem central do romance, surge como um garoto adotado e recalcado, que, posteriormente, torna-se vingativo e prepotente. (Nota do entrevistador)

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