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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS NA FORMAÇÃO DO ANALISTA

 

Supervisão: ato político de amizade1

 

Supervision: a political act of friendship

 

Supervisión: acto político de amistad

 

Supervision: acte politique d'amitié

 

 

Tiago da Silva Porto

Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo, SP). tsp@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, a supervisão é pensada do ponto de vista de seu usuário, o analista em formação. Este trabalho revisita o modelo do tripé da formação estabelecido por Eitingon, distinguindo a finalidade da supervisão em sua origem, da potencialidade desta experiência, tomando como base o pensamento de Fédida. Circunscreve-a enquanto ato analítico, se sustentada de uma posição ativa e crítica de seu proponente, tendo como referencial a expressão freudiana Ausbildung. A supervisão é, então, tomada como espaço de tensão e de amizade - amizade conforme foi analisada na obra de Derrida, em sua dimensão filosófica e política.

Palavras-chave: psicanálise, formação, instituição, supervisão, amizade


ABSTRACT

In this article, the author thinks about (psychoanalysis under) supervision from the user's standpoint: the psychoanalyst in training. This paper reviews the tripartite essentials of psychoanalytic training that were proposed by Eitingon. Based on Fedida's thinking, the author distinguishes between the purposes of supervision in its origins and the potentiality of this experience. He defines supervision as a psychoanalytic act since it is sustained from the proponent's active and critic position, and he mentions the Freudian term Ausbildung as a reference. Therefore, supervision is considered a place of tension and friendship — friendship, according to Derrida's work, in its philosophical and political aspects.

Keywords: psychoanalysis, training, institution, supervision, friendship


RESUMEN

Este artículo piensa la supervisión desde el punto de vista del usuario, el analista en formación. Revisita el modelo del trípode de la formación establecido por Eitingon, diferenciando la finalidad de la supervisión en su origen de la potencialidad de esta experiencia, tomando como base el pensamiento de Fédida. Circunscribe la supervisión como acto analítico si es sustentada a partir de una posición activa y crítica de su proponente, tomando como referencia la expresión freudiana Ausbildung. La supervisión es tomada como espacio de tensión y amistad - amistad conforme fue analizada en la obra de Derrida, en su dimensión filosófica y política.

Palabras clave: psicoanálisis; formación; institución; supervisión; amistad


RÉSUMÉ

Dans cet article, la supervision est pensée à partir du point de vue de l'usager: l'analyste en formation. Ce travail revisite le modèle du tripé de la formation établit par Eitingon, en distinguant le but de la supervision dans son origine, de la potentialité de cette expérience, en prenant comme base les idées de Fédida. Elle est circonscrite en tant qu'un acte analytique, dès qu'elle soit soutenue à partir d'une position active et critique de celui qui la propose, ayant comme référentiel l'expression freudienne Ausbildung. La supervision est, alors, prise comme un espace de tension et d'amitié - de l'amitié dans le sens où elle fut analysée dans l'œuvre de Derrida, dans sa dimension philosophique et politique.

Mots-clés: psychanalyse, formation, institution, supervision, amitié


 

 

Quando recebi o convite para participar de uma das mesas do Eixo Didático do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, soube que seria a primeira vez que um membro filiado participaria deste Eixo reservado tradicionalmente apenas a analistas da ipa com a função didática. A solidão nessa posição particular serviu como um viés oportuno para desenvolver meu pensamento. Um pensamento que vem do olhar de um usuário da supervisão.

Durante o meu percurso na psicanálise, já tive a oportunidade de fazer algumas supervisões, algumas movidas apenas pela minha demanda pessoal, outras motivadas, também, por uma determinação institucional.

Nunca havia me sentido muito instigado em pensar sobre a supervisão como prática em si. O que poderia ainda se falar de uma prática tão consolidada? Achei que trabalharia sobre uma obviedade. Mas não foi bem assim. Bastou que eu começasse a pensar com base em minhas experiências de supervisões, para que essa ideia da obviedade se dissipasse.

Passei a me questionar: será que eu consideraria minhas experiências de supervisão como atos analíticos fundantes para me tornar analista, assim como foram minhas experiências de análise? Consideraria a supervisão como ato tão essencial para me sustentar na prática clínica, quanto considero, por exemplo, a apropriação de um referencial teórico? Para ambas as perguntas minha resposta foi negativa.

Passei a pensar, então, sobre qual teria sido o papel que a supervisão havia desempenhado na minha formação. O que eu retiro dela? Simplesmente uma autorização de um outro, corporificado pela instituição, para poder ocupar o lugar de analista? Passei a considerar, depois disso, que poderia tratar-se de uma demanda puramente institucional, ainda que muitas vezes transvestida de uma demanda clínica pessoal.

Minha conclusão é que a supervisão não seja essencial para se constituir um analista, enquanto tal. Na história da psicanálise inúmeros analistas não se submeteram à supervisão. Strachey e tantos outros pioneiros de sua geração são exemplos de um período em que a posição de analista podia ser assumida com base na própria análise apenas.

Mas isso não me pareceu encaixar-se muito bem na minha experiência. A questão não poderia ser assim tão óbvia.

Foi aí que me remeti a alguns pensamentos estranhos que já me ocorreram quando me encontrava na posição de supervisionando. Fui relembrando algumas inquietações e loucuras pessoais de diversas ordens que encontraram, no espaço de minha supervisão, um lugar, ao mesmo tempo, de origem e de escoamento.

Divido com vocês duas dessas minhas loucuras.

A primeira delas é que, muitas vezes, durante minha supervisão, me acompanhou o sentimento de que eu estaria traindo meu analista. Acho que isso tenha ocorrido porque naquela situação, durante a supervisão, eu estava direcionando meus afetos e, portanto, minhas transferências, para outro analista.

Muitas vezes, me percebi com uma fala muito mais livre, ou, pelo menos, mais leve do que a que manifestava durante minha própria análise. Após uma fala interessante de meu supervisor, já me ocorreu: por que meu analista não tem essas sacadas? Já fantasiei também sobre como seria fazer análise com meu supervisor.

Não me considerei, porém, satisfeito apenas com uma culpa. E aí é que entra a minha segunda loucura.

Muitas vezes, também, me senti traindo meus pacientes. Senti uma certa culpabilidade ética, que imagino decorrer do fato de eu usar, para fins pessoais meus, do sofrimento deles. Sofrimento descrito em relatórios, relatos marcados pela quebra de uma confidencialidade, sustentada na confiança e na intimidade.

Introduzi um terceiro em sua análise, veiculado pela fala, ideia, lembrança ou mesmo interpretação de um outro sujeito, sem que meu paciente soubesse. E pior, algumas vezes, isso tudo nem sempre nos ajudava. Ao contrário, essas interferências muitas vezes levavam à uma sobre-elaboração de minha escuta analítica.

Se, no entanto, conseguirmos pensar nessa possível dupla traição, tentando deixar em suspenso, por ora, a culpa, esses pensamentos loucos vividos na supervisão podem ter seu papel. Podem funcionar como uma provocação, uma rachadura justamente nesse suposto pacto de fidelidade, que muitas vezes pode ser vivido também como algo aprisionante e empobrecedor.

Penso que o sentimento de traição vivido na supervisão denuncia de forma evidente a imprecisão das fronteiras entre os lugares, teorias e tempos analíticos.

Se abandonarmos certo purismo dos lugares e lançarmos mão da ideia de que o trabalho do inconsciente é constante e atemporal, torna-se evidente que há uma continuidade entre os processos psíquicos vividos dentro ou fora de uma análise, e com os vividos dentro da supervisão.

Minha proposta é pensar sobre como seria possível estar no lugar de supervisionando e, de forma simultânea, conseguir manter-se, antes de tudo, analista de seu paciente - sem que as loucuras despertadas e as evidentes obrigações ocupem maior espaço.

Tomo emprestadas as três dimensões da concepção freudiana de funcionamento do aparelho psíquico para pensar a supervisão. Primeiro, me situo no ponto dinâmico da supervisão, seguindo para seu aspecto tópico. E por último, a meu ver, o ponto mais fundamental, abordo a economia necessária para que a supervisão se realize.

 

1. Supervisão: tensão entre dois

Um dos autores que se debruçaram de forma bastante original sobre esse tema foi Fédida (1991). Em um de seus textos, ele afirma que a supervisão envolve um excesso de complicações, tanto no que se refere às instituições como naquilo que diz respeito à formação propriamente dita. Portanto, vale a pena nos perguntarmos: como uma prática analítica que envolve tantas complicações pode ser vista como uma das pernas de sustentação dessa transmissão?

Já adianto que não se trata aqui de validar ou não a importância da supervisão ou de pensar modelos de formação com ou sem a supervisão, mas de pensar justamente sobre os aspectos da supervisão que já estão bem estabelecidos, na tentativa de saber de que maneira e até onde seria possível atribuir um enfoque diferente, em vez de constantemente se legitimar o que já se sabe.

Repetimos, sem parar, que a formação analítica sustenta-se em um tripé. Repetimos essa afirmação como dogma central da transmissão da psicanálise, uma doutrina investida de sacralidade. É a nossa santíssima trindade inquestionável.

Foucault (1969/1992), em seu ensaio O que é um autor?, afirma que, em certas circunstâncias, repetimos perpetuamente afirmações vazias, nas quais o autor simplesmente está desaparecido. Sustenta, ainda, que este desaparecimento não é um esquecimento, e que tem, sim, uma função: a função de criar uma ideologia de naturalidade na afirmação, uma produção discursiva mistificadora, que retira as dimensões históricas de poder de onde essas ideias afirmadas foram criadas.

Talvez pudéssemos agora repensar sobre quão distante estamos da origem, de fato, do relatado por Max Eitingon (1923), aqui, nosso autor desaparecido. Foi ele o postulante do famigerado tripé da formação, com base no que se estabeleceu na Policlínica Psicanalítica de Berlim em 1922. Cito o seu relatório, em quase todos os seus aspectos relevantes no que tange à supervisão. Relatou Eitingon:

Exercemos uma supervisão vigilante, ... seguindo bem de perto as análises a partir de notas detalhadas que os analistas inexperientes devem fazer, detectando assim facilmente uma multidão de erros que estes cometem. ... Protegemos assim os pacientes confiados a eles, pela supervisão, e estamos prontos para retirar os pacientes destes, caso necessário. (1923)

Como se pode perceber, a ideia que dava suporte à prática de supervisão para Eitingon parece clara: seria uma prática psicanalítica educativa de cuidado e de controle. Será que o discurso no qual se sustenta nossa prática, como usuários de supervisão, como supervisores, e nossas regras institucionais estão, de fato, distantes daquela ideologia?

Como analistas, sabemos que nosso instrumental essencial são as palavras; sabemos que por elas é que deslizam os significantes e, por via delas, são exercidas transformações reais. Portanto, para nós, analistas, as palavras têm força.

Pensar nas múltiplas direções a que a palavra "supervisão" pode nos induzir em nossa língua já é em si um problema. Supervisão nos remete a monitoração, vigilância, controle, fiscalização, homologação e validação - poder, domínio ou autoridade de alguém sobre outrem. O problema poderia ser meramente semântico, já que estas conotações, levemente pejorativas, nem sempre ocupam a nossa efetiva prática de supervisão, mas isso não quer dizer que não ocupem alguns de nossos fantasmas.

Agora, proponho inverter a equação: o que é, de fato, essa prática, que recebeu nomes diferentes - supervisão, controle, análise controle, análise de supervisão, análise quarta, escuta assistida - sem que nenhum destes indicasse com precisão o que de fato se passa. O que se passa seria algo assim tão inominável?

Inúmeras outras imprecisões, além de sua nomenclatura, denunciam a tensão que existe na prática da supervisão. A supervisão é um fazer analítico que não responde exatamente a um lugar preciso. Não é um tratamento, mas, como ato analítico, pode provocar transformações. Tampouco podemos afirmar que é apenas psicanálise aplicada. Não se está dentro da esfera de um ato público, mas sua prática inclui explicitamente um terceiro, impedindo a privacidade absoluta.

E quanto à transferência? Ela ficaria em um estágio intermediário, entre a aproximação incestuosa de uma análise e o distanciamento sublimado dos seminários?

Quando se supervisiona, a supervisão é do analista ou a supervisão é do caso?

A supervisão é uma atividade de ensino ou um ato analítico? Ou será, como já foi dito, parapsicanalítico?

Se, de fato, a supervisão é um dos pilares de nosso famoso tripé da transmissão analítica, devemos reconhecer que se trata de um pé desalinhado, instável, com uma demanda constante de cuidado para equalizar sua estabilidade.

No entanto, talvez esse seja o ponto dinâmico próprio da supervisão, que, em sua imprecisão, provoca a formação analítica justamente pela instabilidade. Se tomarmos esses excessos de complicações não como uma problemática a ser resolvida, mas como a própria essência da supervisão, podemos considerar a supervisão um ato analítico realizado dentro desses espaços de tensão, marcado por essas inúmeras forças de diferentes polaridades. A supervisão, como ato, pelo menos se inscreve de uma forma sintônica com o pensamento freudiano, pensamento dualista por excelência, pensamento do conflito e do par de opostos, que não se deixa restringir a um "ou isso ou aquilo". Como já nos disse Pontalis (1977/2005), "nosso reino é o do 'entre dois'".

Firmado esse ponto dinâmico da supervisão como um espaço de tensão, e não propriamente de definição, passo agora a analisar a sua possível dimenção tópica.

 

2. A supervisão como topos

Em uma entrevista ao Jornal de Psicanálise, Fédida (2001) lançou uma ideia interessante. A supervisão, como um encontro entre dois analistas, geraria a possibilidade de ser ela um topos.

A expressão topos é curiosa, porque nos remete obviamente ao pensamento de um lugar. Mas um lugar não delimitado, tampouco estático ou mesmo cristalizado. Topos também nos remete à ideia de uma narrativa habitual, de um lugar-comum retórico, enfim, um lugar de prática discursiva. Pensar a supervisão como topos é reconhecer inicialmente as fronteiras não delimitadas dessa experiência, e em seguida assumir que se trata de uma prática discursiva entre dois analistas, com sua maior potência como ato analítico. Se nela há aprendizado, e nos parece evidente que há, este não vem de uma prática educadora, mas sim dessa prática efetivamente analítica.

Se a experiência de supervisão é um ato analítico, ela dispensaria, então, uma teorização à parte. Com base na metapsicologia freudiana, podemos pensar então que a supervisão é um lugar que não garante nada em princípio. É um lugar em que a potência analítica poderá ser exercida, ou não, a depender do jogo das resistências.

O topos, na supervisão, diferencia-se do setting da análise. Este busca proteger seu interior como se fosse uma membrana trabalhando fortemente na seletividade. O topos da supervisão poderia ser visto, ao contrário, como uma membrana altamente permeável aos fluxos. Nele, um analista fala para outro analista no exercício pleno de suas funções e de sua liberdade.

A supervisão como espaço de trabalho permite que se vá além dos lugares conhecidos. Além da compreensão do material clínico, além da aquisição de uma maior familiaridade com a teoria, além da compreensão da transferência do paciente e de nossa contratransferência, de nossos movimentos defensivos e de nossos pontos cegos.

A supervisão apresenta-se como topos para poder falar daquilo que ocorreu em outro espaço, em outro tempo, para imaginar possibilidades, hipóteses e rumos de nosso trabalho e de nossa vida. Lugar que permite que haja um desprendimento progressivo de nosso analista e de nossa própria análise, desfazendo identificações e contraidentificações. Oferecendo outras múltiplas possibilidades de identificação, talvez menos conflitantes, menos incestuosas e mais inscritas no real, a supervisão dá força à elaboração de uma identidade analítica com a construção de uma técnica e teorias verdadeiramente pessoais.

Retorno ao meu sentimento de traição. Longe de ser um afeto deslocado pela culpabilidade, a traição na supervisão me parece bastante real. Uma traição que se fez, e ainda se faz, importante e necessária. Fez-se necessária para que eu pudesse cometer a transgressão que foi a passagem de posição do divã para a poltrona. A supervisão apresentou-se como um lugar possível para a negociação de minha culpabilidade por essa transgressão.

Faz-se necessária para aplacar a solidão. Na supervisão, sempre há um terceiro, simbólico ou não, o que nos obriga a sair de um pensamento solipsista para uma comunicação com um outro, para fora. Este terceiro é um destinatário para uma narrativa nova, daquilo que vai poder ser lembrado e daquilo que vai poder ser finalmente esquecido.

Enfim, a supervisão se oferece como lugar de provocação e continuidade em nossa autoanálise. Se "a guerra é a continuação da política por outros meios", "a supervisão é a análise continuada por outros meios", na proposição feliz e divertida de Fabio Herrmann (2001).

Cabe agora analisar os caminhos do investimento trilhado por quem se propõe a esse topos, sua economia, que vai permitir à supervisão cumprir seu papel, além daquele da formalidade institucional.

 

3. Políticas da amizade

Quando olho para minhas experiências, percebo que algumas supervisões minhas contemplaram esse topos e outras não. E me parece, hoje, que o decisivo para que isto acontecesse não era a capacidade dos analistas escolhidos para essa função, mas algo que estava em mim, que buscava o supervisor, algo que não consegui realizar.

Penso que a escolha de meus supervisores sempre foi apoiada, naturalmente, em alguma idealização. E claro que as exigências da instituição de formação também inauguram uma negociação pessoal impossível de se findar. Demandam um exercício pessoal constante de dissociação, forçadamente artificial, entre a liberdade do trabalho em supervisão e as regulamentações institucionais. Mas não creio serem esses os maiores problemas.

Recentemente ao assistir à apresentação "oficial", em uma instituição "oficial", do relatório de uma supervisão igualmente "oficial", uma amiga analista agradeceu ao seu supervisor e ao seu analista por terem possibilitado que sua análise didática tenha sido apenas uma análise e sua supervisão oficial tenha sido apenas uma supervisão.

A ideia central do que estava em jogo no agradecimento me pareceu interessante. O trabalho analítico, qualquer que seja, só se torna possível quando exercido sem amarras. Mas, refletindo um pouco mais, fiquei em dúvida sobre quem eram os protagonistas da referida liberdade. Seria essa tal liberdade, de fato, decorrência apenas da generosidade do analista e do supervisor para com ela? Eles teriam, de fato, uma tamanha percepção de si mesmos, que seriam capazes de descontar de suas próprias identidades o nome e o lugar que a instituição lhes atribui? É possível. É evidente que existem analistas dispostos a análises e supervisões menos instituídos de seus títulos. Mas, ouvindo o mesmo relatório dessa analista reportando seu trabalho, percebi que grande parte da disposição de criação de um espaço de liberdade partiu dela. E acredito não poder ser diferente.

Chego ao meu último ponto.

Quando Freud (1926/2014) introduz a noção de formação em psicanálise, ele emprega a palavra Ausbildung, constituída pelo prefixo aus, que designa o "movimento de dentro para fora", e da raiz bild, uma de cujas significações é a de construir, tanto no sentido material como mental. O termo Ausbildung deve ser tomado, portanto, como um movimento que, partindo de uma construção ocorrida no interior do sujeito, direciona-se para fora. Palavra que, para Freud, estaria muito mais próxima da ideia de uma interrogação, de um questionamento, de uma crítica de si, do que da noção de um modelo pré-dado.

O termo "formação" deveria evocar, portanto, o sentido de "se tomar forma", e não de "se formatar", implicando, evidentemente, para Freud uma posição ativa, e não passiva. Um movimento de emancipação de seu proponente, e não uma adaptação. Creio que a Ausbildung freudiana implica, para quem se propõe a uma formação psicanalítica, a exigência de uma passagem para um investimento crítico, requerendo a construção de espaços que não são previamente dados por ninguém. Penso ter sido isso que minha amiga conseguiu construir em sua análise e supervisão.

E também reconheço que talvez tenha sido isso o que me faltou, nas situações nas quais não fui capaz de construir esse topos em uma das minhas supervisões passadas, talvez porque eu tenha me mantido paralisado em minhas próprias idealizações e regressões.

Retomemos, então, a supervisão dentro dessa ótica de formação, da interrogação, da Ausbildung freudiana. A supervisão historicamente nasceu antes de seu nome ter sido dado e de seu ato, institucionalizado, muito distante em forma e finalidade do modelo proposto por Eitingon.

A supervisão nasceu espontaneamente de uma amizade. Da amizade entre Freud e Fliess. Freud buscou alguém que tivesse a possibilidade de escutá-lo falar sobre seus pacientes. Não buscou em qualquer lugar, mas sim alguém que se encontrava nesse lugar, o lugar do amigo. A amizade estava aí não como pano de fundo, mas como substrato fundamental para criação desse topos sobre o qual me referi.

Penso que a supervisão só se torna possível nesses moldes, se nós, usuários dela, conseguirmos criar nesta relação as condições dadas para a amizade. A amizade aqui tem que ser compreendida em seu sentido filosófico e em sua qualidade política, ou seja, enquanto embate entre dois indivíduos que permite transformações no registro da subjetividade. Amizade entendida naquilo que diz respeito à potência do encontro e às forças mobilizadas por este. Amizade como um vínculo privilegiado de abertura à alteridade, permitindo a um amigo afetar o outro e por este ser afetado. A amizade estabelece, nesse sentido, uma real igualdade política, que possibilita uma abertura ao outro, favorecendo a livre circulação e a expressão das mais diferentes opiniões.

Tomo dois aspectos fundamentais da relação de amizade que estão implicados na construção do espaço de supervisão como topos. O primeiro aspecto é a posição ativa de amor e de crítica na escolha por parte do supervisionando. Esclareço com a seguinte frase:

À amizade convém amar mais do que ser amado.

A afirmação é de Aristóteles, e o que ele tinha como horizonte não era a bondade, mas a dimensão política do ato de amizade. Toma o modelo em que o amigo morto vive na lembrança do amigo sobrevivente. E é a manutenção de sua memória nesse tempo de sobrevivência, simultaneamente, a essência e a maior dimensão da amizade.

A amizade, portanto, é ato, é experiência vívida. A amizade é um existencial, e não um categorial. Agambem (2007), em seu texto O amigo, aproxima em uma comparação curiosa, a amizade ao insulto, para esclarecer exatamente esse ponto. Aquilo que ofende no insulto é a pura experiência da linguagem, e não o referimento ancorado no mundo real. Nesse sentido, como o insulto, a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito. A amizade é a vivência de proximidade.

O outro aspecto da amizade, implicado na supervisão para que ela seja ato analítico, é o lugar que ocupam esses dois amigos e analistas. Na supervisão temos a particularidade de um analista falando para outro analista, e ambos juntos sustentando falar desta posição. O amigo aqui não é um outro eu, mas uma alteridade imanente do mesmo, um tornar-se outro do mesmo.

Assim como as posições de analista e de analisando, as posições de supervisor e de supervisionando são marcadas por uma necessária assimetria. Mas esta assimetria não quer significar que essas relações mantenham-se verticais. Elas se iniciam marcadas por uma verticalidade, mas é necessário que se caminhe em direção a uma horizontalidade.

Derrida, em seu livro Políticas da amizade, deixa claro que há uma assimetria na amizade, e no que ela consiste:

A "boa amizade" supõe a desproporção. Exige uma certa ruptura de reciprocidade ou de igualdade, e também a interrupção de toda a fusão e confusão entre tu e eu. E significa ao mesmo tempo um divórcio com o amor. ... A "boa amizade" nasce da desproporção: quando se estima ou se respeita o outro mais que a si mesmo. O que não quer dizer que se o ame mais que a si mesmo - e eis aqui uma segunda partilha na Amância, entre a amizade e o amor. A "boa amizade" supõe, claro, um certo toque de intimidade, mas uma intimidade sem intimidade propriamente dita. (Derrida, 2003, p. 74)

Percebo a supervisão como um trabalho constante para quem se submete a esta experiência. No sentido da Ausbildung freudiana, ela sempre será "um vir a ser" trilhado individualmente pela busca de parceria por quem se propõe a ser analista.

Como encontro humano que é, a supervisão marcada pela amizade deve ser um instrumento sobretudo de solidariedade, e menos de educação. Logo, mais afeita às artes da existência, a um cuidado de si, do que ao exercício de um poder pastoral ou uma prática educativa.

Assim, ela distancia-se bastante, portanto, do modelo de supervisão narrado por Eitingon. Sendo uma amizade, nela não se visa à plenitude ou à verdade. Embora se espere muito do amigo, dele não se espera tudo. A amizade aguenta o equívoco e o distanciamento. Na amizade, são exercidas com liberdade as imperfeições, não no sentido de que estas imperfeições serão arrumadas, mas se reconhecendo que serão provocadas por outras tantas vindas do outro.

Portanto, deve ser um espaço dominado pelo desejo, e não pela necessidade. A supervisão, como viva amizade, torna-se um lugar possível para construção e eventualmente desconstrução. Um lugar de criatividade, de delírio e de renovação.

 

Referências

Agamben, G. (2007). O amigo e O que é um dispositivo? Chapecó: Argos.         [ Links ]

Derrida, J. (2003). Políticas da amizade. Porto: Campo das Letras.         [ Links ]

Eitingon, M. (1923). Report of the Berlin Psychoanalytical Policlinic. International Journal of Psycho-Analysis, t. 1-2,254-269.         [ Links ]

Fédida, P. (1991). A construção. Introdução a uma questão da memória na supervisão. In P. Fédida, Nome, figura e memória. A linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Fédida, P. (2001). Entrevista. Jornal de Psicanálise, 34,27-37.         [ Links ]

Foucault, M. (1992). O que é um autor? Lisboa: Vega. (Trabalho original publicado em 1969)        [ Links ]

Freud, S. (2014). A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial. In S. Freud, Obras completas (P. C. L. de Souza, trad., Vol. 17, pp. 124-217). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926)        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). A supervisão vista de baixo. Jornal de Psicanálise, 34,111-138.         [ Links ]

Pontalis, J.-B. (2005). Entre o sonho e a dor. (C. Berliner, trad.). São Paulo: Ideias e Letras. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 4/11/2015
Aceito em: 7/11/2015

 

 

1 Trabalho apresentado no Eixo Didático do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado em São Paulo, de 29 a 31 de outubro de 2015.

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