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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

A descoberta do mundo e a destrutividade originária

 

The world's discovery and the primitive destructiveness

 

El descubrimiento del mundo y la destructividad originaria

 

La découverte du monde et la destructivité originaire

 

 

Elisa Maria de Ulhôa Cintra

Psicanalista formada pela PUC-SP. elcintra01@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto é uma reflexão sobre a necessidade de sentir-se real e perceber o mundo como algo real e externo ao sujeito e diferente de si mesmo. A tolerância à destrutividade primária e a sobrevivência do mundo, que precisa ser potencialmente destruído para se tornar real e passível de um investimento mais forte de libido, é o que leva à capacidade de cuidar - concern - e à capacidade de estar só na presença de um outro. A autora parte do pensamento winnicottiano presente em "O uso de um objeto" e de algumas ideias sobre reconhecimento e autoafirmação presentes em The Bonds of Love, de Jessica Benjamin.

Palavras-chave: Winnicott, Jessica Benjamin, realidade do mundo, realidade do self, capacidade de cuidar


ABSTRACT

This paper is a thought on the one's need to feel real, and to perceive the world as something real and outside the subject, as well as something different from oneself. Tolerance towards the primitive destructiveness and towards the world's survival is what leads to the ability to take care - to concern - and to the ability to be alone in someone else's presence. The author believes the world must be partially destroyed in order to become real and likely to have the libidinal tendency increased. The author started from Winnicott's thinking, in "The Use of an Object" (1968), and she also based this paper on some recognition and self-affirmation ideas from Jessica Benjamin's work, The Bonds of Love.

Keywords: Winnicott, Jessica Benjamin, world's reality, self's reality, concern


RESUMEN

El presente trabajo es una reflexión sobre la necesidad de sentirse real y percibir el mundo como algo real y externo al sujeto, diferente de sí mismo. La tolerancia a la destructividad primaria y a la sobrevivencia del mundo, que debe ser potencialmente destruido para tornarse real y pasible de ser investido libidinalmente, es lo que lleva a la capacidad de cuidar - concern - y a la capacidad de estar solo en la presencia de un otro. La autora toma como referencia el pensamiento winnicottiano y algunas ideas sobre el reconocimiento y la autoafirmación presentes en The Bonds os Love, de Jessica Benjamin.

Palabras clave: Winnicott, Jessica Benjamim, realidad del mundo, realidad del self, capacidad de cuidar


RÉSUMÉ

Le texte est une réflexion sur le besoin de se ressentir réel et d'apercevoir le monde comme quelque chose de réel, d'extérieur au sujet et de différent de soi-même. La tolérance à la destructivité primaire et à la survie du monde, lequel il faut détruire potentiellement pour qu'il devienne réel et passible d'un investissement plus fort de la libido, c'est ce qui entraîne la capacité de soigner - concern - et à capacité d'être seul dans la présence d'un autre. L'auteur prend comme point de départ la pensée winnicottienne présente dans "L'Usage d'un Objet" et de quelques idées sur la reconnaissance et l'auto-affirmation présente dans The Bonds of Love, de Jessica Benjamin.

Mots-clés: Winnicott, Jessica Benjamin, réalité du monde, réalité du self, capacité de soigner


 

 

Um analista experiente, que conheci quando era recém-formada, fez um dia uma declaração que me chamou muito a atenção. Ao conversarmos sobre a maneira com que organizamos nosso pensar e sentir, em tom de brincadeira, ele perguntou se eu já havia notado que as pessoas em geral passam a maior parte do tempo delirando e alucinando. Ri, concordei com ele e nunca mais esqueci essa observação significativa, que me ensinou muito, principalmente a ter enorme cuidado com as certezas e as idealizações que eu nutria a respeito dos analistas senior e das pessoas que considerava diferenciadas e desenvolvidas em sua visão de mundo e em sua organização afetiva. Ele me ensinou a desconfiar sempre dessas certezas imaginárias e desses pensamentos de desejo a que nos apegamos para não sentir na carne o desamparo e a vulnerabilidade da condição humana.

Como é possível chegar a se sentir real e perceber os outros em sua realidade? Embora ambas as expressões sejam filosoficamente discutíveis até a exaustão, pensar nisto de modo não filosófico foi um dos objetivos que levaram Winnicott, ao final de sua vida, a escrever o texto "O uso de um objeto" (1968). Abandonar a onipotência do desejo foi uma preocupação que o pediatra e psicanalista levou consigo durante todos os anos de trabalho. Como constituímos a realidade dos outros, como podemos nos aproximar da realidade deles, reduzindo o volume de projeções? De que modo podemos ter algum acesso à externalidade do mundo? Por meio deste texto, busco então contribuir de alguma forma para esclarecer o pensamento de Winnicott a respeito de um tema tão controverso.

Durante o seu trabalho, Winnicott encontrou pacientes que sentiam uma angústia muito desesperadora, esvaziados de si mesmos e amortecidos em seu mundo interno, sem conseguir ligar-se a nenhuma pessoa e incapazes de conectar-se a si mesmos. Foram essas questões clínicas que o levaram a pensar qual seria o tipo de relacionamento que teria levado essas pessoas a perturbações tão fortes do sentimento de si e a sentimentos de solidão e esvaziamento tão agudos.

Desde os anos 1960, esses casos foram aparecendo em um número maior nos consultórios de psicanalistas. Para além da questão da gratificação ou da repressão dos desejos, foi-se percebendo que tanto uma quanto a outra produziam efeitos na autoestima dos pacientes, em sua atitude para consigo mesmos, e os problemas narcísicos começaram a ganhar maior evidência.

Embora Winnicott aborde com menor frequência o complexo de Édipo, ele não discordaria de que, desde o nascimento, os bebês chegam a um universo de adultos que, de algum modo, viveram seus complexos de Édipo e que são, portanto, responsáveis pela criação de um campo de atrações e rejeições, de diferenças e semelhanças que obrigam os bebês a mergulhar em relações edípicas duais e triangulares.

Sigo aqui a intuição de Melanie Klein (1928, 1945), ao falar dos estágios precoces do complexo de Édipo, e as ideias de outros psicanalistas que acreditam que há sempre uma situação edípica, mesmo que esta não tenha sido elaborada e não seja consciente (Britton, 1989; Caper, 2002; e outros). Penso que tais convicções não são incompatíveis com uma leitura rigorosa de Winnicott, embora ele tenha falado menos do complexo nuclear das neuroses, por ter se debruçado fundamentalmente sobre os primeiros anos de constituição psíquica. Considero-me uma leitora da escola inglesa, e de um Winnicott profundamente enraizado em Freud, e me faço acompanhar neste trajeto, entre outros, de autores como André Green (1993), Roussillon (2012), Bollas (1987), Ogden (1994) e Figueiredo (2007).

Neste sentido, o Complexo de Édipo, tal como o estou delineando aqui, seria, entre outros processos, a passagem das etapas primárias e indiferenciadas para etapas secundárias, quando já foram construídos níveis de separação entre o eu e o outro. Considero que um estágio de dependência absoluta e de fusão com a mãe vai cedendo lugar a um tipo de relação de objeto, na qual é possível discernir alguns níveis de diferenciação, mas que ainda coexistem com a indiferenciação entre eu e outro. Além da relação de objeto, o uso dos objetos transicionais e os fenômenos transicionais são considerados por Winnicott (1951) como etapas mais avançadas, no caminho que transforma as primeiras relações de objeto. Através deles, tornam-se possíveis crescentes níveis de diferenciação entre eu e o outro. Na transicionalidade, a fantasia cria e destrói com liberdade seus objetos de amor e de ódio, usa os objetos concretos e os brinquedos e faz uma coisa virar outra sem a menor cerimônia. O brincar de faz-de-conta exige uma capacidade metafórica elevada, uma capacidade de combinar mundo interno e externo, ilusão e realidade de muitas novas maneiras. Quanto mais evolui a transicionalidade, tanto mais ela irá proporcionar a formação de combinações e discriminações entre aspectos de si e do outro, capazes de favorecer a elaboração edípica e de desenvolver a capacidade de estar só e a capacidade de cuidar do outro (concernimento).

Ogden (1994) se refere a isso quando fala de uma liga de "metais" combinados entre si, para se referir à inevitável amálgama que une as subjetividades da mãe e da criança, do analista e do paciente, das pessoas que estabelecem um relacionamento significativo. Nas relações de objeto, há níveis de indiferenciação que vão sempre coexistir com os movimentos de separação - uma subjetividade nunca poderá ser completamente isolada das outras subjetividades com as quais se relaciona, como se algum contágio intersubjetivo fosse sempre inevitável.

A exigência de separação entre eu e outro, entre ego e realidade, que, entre outros processos, é central para a dissolução do complexo de Édipo, não deve levar ao isolamento do sujeito, e sim a novas possibilidades de se relacionar com os outros. A direção da saúde leva o eu a criar novas interfaces com o mundo e com as pessoas, que se fazem acompanhar de novas experiências de solidão e recolhimento. Ou seja, simultaneamente a uma crescente capacidade de estar só e tornar-se um sujeito único, singular, criam-se novas interfaces de contato, empatia e cuidado em relação aos outros. É preciso pensar o paradoxo de que o sujeito psíquico deve obedecer a duas exigências contraditórias: tornar-se cada vez mais singular e cada vez mais universal e aberto à alteridade do mundo e dos outros.

Simone Weil, filósofa francesa que morreu durante a Segunda Guerra, em um momento de grande sofrimento pessoal e também de perplexidade diante da dor humana em geral, disse o seguinte: "Que o sofrimento faça entrar o universo em meu corpo" (Que la douleur fasse rentrer l'univers dans mon corps). É um pedido de que a dor individual seja iluminada e expandida pela dor humana em escala universal, uma nítida referência à necessidade de que nosso narcisismo seja transformado em contato com a alteridade, que nossas pequenas dores individuais possam ser vividas em sintonia com os outros. É a exigência de que a experiência mais singular possa se universalizar, possa adquirir algo da envergadura que só a dor alheia acolhida em si pode oferecer. Trata-se de um projeto de não se fechar em sua dor, mas de usar a própria dor como via de maior acesso ao outro, diferente de mim.

A preocupação de Simone Weil se parece com aquela de Winnicott; ambos parecem ter sede de ter acesso à externalidade do mundo; no caso da filósofa, é a dor compartilhada que se torna a via de acesso, que abre a barreira do isolamento e coloca o indivíduo no mundo, trazendo o mundo para dentro de si, abrindo, ampliando a sua pequena escala individual, fazendo-a respirar outros ares. Como Winnicott pensa essa questão?

Tendo em mente esses aspectos, façamos então uma leitura do texto "O uso de um objeto" (1968) para refletir sobre a criação da externalidade do mundo: Winnicott propõe que é a nossa destrutividade que nos dá acesso à alteridade do mundo. Não se trata de atos destrutivos, mas de algo diferente, de uma destrutividade potencial que permanece em nós, inconsciente, ao longo de toda a vida. Ele considera que precisamos destruir e ser destruídos pelo outro, ainda que, ao mesmo tempo, tenhamos que preservar e ser preservados por ele. E ainda, para nosso espanto, vai dizer que é esta a condição de amar o outro, de modo verdadeiro, de amar mesmo, de torná-lo real. Winnicott foi sempre sensível a uma dimensão crua, impiedosa que nossa sexualidade impõe ao existir. Destruir e preservar: é preciso permanecer na tensão desse paradoxo. Em vez de usar a palavra destruir, poderíamos, hoje, falar em termos de um trabalho do negativo, como nos sugere André Green (1993). Mas fiquemos por ora com esta linguagem mais crua e mais violenta.

 

O uso de um objeto

Winnicott considera que, nos primeiros tempos de vida, há uma alternância entre objetos quase inteiramente criados pelo bebê - os objetos subjetivos - e momentos de relação de objeto, quando diferenciações graduais entre sujeito e objeto começam a existir, mas os objetos são ainda feixes de projeções do sujeito, que mal se diferenciam do eu onipotente. Ele fala da relação de objeto como uma experiência intrapsiquica, só de um sujeito, no sentido de que se trata, ainda, de um fenômeno que se passa, predominantemente, na realidade psíquica, ou seja, seus objetos estão sendo, antes de mais nada, criados pelo sujeito.

"Relacionar-se com objetos é uma experiência do sujeito que pode ser descrita em termos do sujeito como algo isolado ... O relacionar-se é um fenômeno do sujeito..." (Winnicott, 1971, p. 123). Ele se refere aos relacionamentos em que estamos continuamente inventando, em nosso imaginário, as pessoas com quem nos relacionamos.

Por outro lado, ele considera que a experiência humana acontece em um campo intersubjetivo, ela vai se constituir, sempre, na interface entre a criação e a descoberta dos objetos. O que se passa é que, no primeiro tempo de vida, predomina a ilusão de que o mundo e os objetos foram criados completamente pelo bebê, e não descobertos. Nesta primeira época, a descoberta está sempre sendo convertida em invenção, pois o bebê vive dentro da ilusão de que ele, magicamente, cria o mundo.

Os objetos transicionais são os que fazem a transição entre a criação e a descoberta, eles são ao mesmo tempo criação e descoberta. Há um momento, entretanto, em que a descoberta do outro se aprofunda. Winnicott fala disso na citação abaixo, que surgiu da observação de pacientes adultos e foi transposta imaginariamente para a primeira infância:

Em termos clínicos: dois bebês estão sendo amamentados ao seio. Um deles se alimenta do eu (self), visto que o seio e o bebê ainda não se tornaram (para o bebê) fenômenos separados. O outro se alimenta de uma fonte diferente-de-mim, ou de um objeto que pode receber um tratamento impiedoso (despreocupado), sem efeito para o bebê, a menos que ocorra retaliação. As mães, como os analistas, podem ser boas, ou não suficientemente boas; algumas podem fazer o bebê passar do relacionamento ao uso, ao passo que outras não o conseguem. (Winnicott, 1968, p. 124)

Receber um tratamento impiedoso (descuidado ou despreocupado) é poder exercer sobre a mãe a sua voracidade oral, e não ficar preocupado se isto a estaria machucando. Esta sensação de que o objeto pode ser imaginariamente destruído, que ele não vai dar o troco e tentar destruir o bebê, tudo isto tem a ver com a possibilidade de alimentar-se de uma fonte diferente-de-mim. O uso de um objeto envolve uma consideração mais nítida da natureza do objeto, de sua externalidade e de sua capacidade de suportar o amor impiedoso. Isto exige descobrir o objeto, de maneira mais radical; considerá-lo suficientemente forte para resistir ao amor impiedoso, vê-lo com um grau maior de despojamento das projeções do bebê. O despojamento das projeções é o que Winnicott vai chamar da necessária destruição do objeto. É preciso destruir parte das projeções e expectativas para que se passe do modo relacionar-se com objetos para o modo usar o objeto. O objeto que tem de ser destruído é o que antes tinha sido inventado e criado, aquele que era depositário de nossas projeções.

A descoberta do mundo: é para isto que o objeto precisará ser destruído, sua destruição leva à própria descoberta do mundo. Descobrir, retirar o véu das projeções: desenvolver a capacidade de usar um objeto.

a capacidade de usar um objeto é mais apurada que a capacidade de relacionar-se a objetos; o relacionamento pode dar-se com um objeto subjetivo, mas o uso implica que o objeto faça parte da realidade externa. (Winnicott, 1968, p. 131)

Para entender tudo isso, é preciso lembrar-se do jogo da espátula (1968), quando a criança se apropria da espátula, faz dela um uso oral impiedoso e depois, a atira longe, sentindo imenso júbilo quando a espátula lhe é devolvida, intacta. Winnicott acredita que o bebê precisa poder tratar a sua mãe da mesma forma que a espátula, isto é de modo impiedoso, até mesmo "jogando-a longe" quando quer brincar sozinho (!) e tendo a certeza de que ela sobreviverá a seus ataques e de que voltará, com o mesmo sorriso de antes, com a mesma provisão de afeto. Lembro, de passagem, o quanto tudo isto é necessário nos relacionamentos adultos.

A proposta de Winnicott é que haja uma sequência de etapas, na direção da descoberta do mundo, na direção do acesso ao outro, embora estas etapas nunca se disponham em uma linha cronológica direta, mas coexistam entre si, uma se tornando condição de possibilidade da outra. Primeiro o sujeito cria objetos, de forma alucinatória (aliás, uma etapa que nunca abandonamos completamente). Depois, relaciona-se com o objeto que é ainda um feixe de suas projeções, e apesar disto está em processo de ser encontrado lá fora. Então o sujeito destrói o objeto, e este sobrevive à destruição. Quando isto acontece, então o sujeito pode usar o objeto. Essa destruição torna-se o pano de fundo inconsciente para o investimento de amor em um objeto real, isto é, um objeto situado fora da área de controle onipotente do sujeito. A área de controle onipotente do sujeito é o campo de seu imaginário onde ele inventa os objetos, de acordo com suas necessidades e desejos. Que destruição é esta? Vejamos melhor.

Algumas ideias de Pontalis (1977) ajudam a entender a destrutividade necessária para chegar ao uso de um objeto. Baseado em Winnicott, Pontalis fala de quatro tempos de constituição dos objetos: de certa forma, esses tempos estão em uma linha cronológica, embora os quatro tempos formem, na verdade, uma ganga impura, um feixe de temporalidades heterogêneas que participa de toda da vida psíquica, constituindo-a, sem que os tempos mais primitivos cheguem a desaparecer completamente. Essas ideias se encontram em um texto de Pontalis (1977), no livro Entre o sonho e a dor.

No primeiro tempo, "o objeto, se é que se pode falar de objeto nesse estágio, é primeiro 'criado' pela criança (criatividade primária, segundo Winnicott). Não tem existência independente. É objeto subjetivo" (Pontalis, 1977, p. 193). O seio é constantemente recriado pela criança em função de sua necessidade. Ao mesmo tempo, a mãe coloca o seio no lugar e na hora certos em que a criança está pronta para criá-lo. É o tempo que Freud designou como "vivência de satisfação", e pertence à época que Winnicott chama a dependência absoluta do bebê. Vê-se, nesse tempo, a formação de um núcleo da onipotência, que é uma etapa necessária.

Segundo tempo: a integração progressiva do eu da criança é correlativa da constituição de um objeto exterior. O bebê está se constituindo e constituindo o objeto lá fora, este é o tempo da relação de objeto. Este tempo conserva sempre a marca do primeiro tempo: ou seja, no nível das relações de objeto, o objeto é essencialmente definido como feixe de projeções e como polo de identificações: o sujeito investe o objeto que sempre pode voltar a ser parte do eu; é a época de uma relação de objeto narcísica.

Terceiro tempo: o objeto se torna transicional; ele é ao mesmo tempo eu e não-eu, a mãe e um objeto bem real, diferente da mãe.

Quarto tempo: seria o da conquista da possibilidade de usar um objeto Neste quarto tempo, o objeto guarda algo do paradoxo inaugurado pelo objeto transicional. Trata-se da descoberta de que a mãe não deve ser apenas um espelho que reflete o bebê. Ela precisa ter uma existência própria, embora ao mesmo tempo precise refletir o bebê para que ele se reconheça. Mas junto a este olhar que se torna todo voltado para ele, ela precisa refletir também algo de sua própria subjetividade, separada. É isto que o bebê destrói, sem, no entanto, conseguir aniquilar. Somente ao sobreviver às tentativas de ser destruída pelo bebê, ela pode se tornar um sujeito com seus próprios direitos, e dar então um reconhecimento a ele que terá muito maior valor, pois virá de alguém real, que resistiu a sua destruição, e não de uma superfície de vidro que reflete sempre a mesma coisa.

Voltemos a considerar alguns paradoxos que esses quatro tempos fazem surgir.

Para Winnicott, o bebê cria o objeto, mas o objeto estava lá para ser criado. Desde o início há um paradoxo, ou seja, só é possível descobrir criando, e para criar é preciso algum nível de descoberta do outro, uma presença que fora percebida consciente ou alucinatoriamente. Ou que fora percebida, ainda que de modo quase invisível, isto é, uma presença vislumbrada, como o objeto transformacional do qual nos falava Bollas (1987): algo conhecido embora não-pensado, presente, embora de forma velada, escondido em sua própria sombra. Nesse caso, a mãe tem uma existência independente que se encontra velada para o bebê: ela é apenas um vulto, "alguém" que, passando por ali, deixa transformações - onde havia fome, a fome desaparece, onde havia frio, o frio sumiu; e o vulto aparece e desaparece, misteriosamente.

Pensemos agora nos rastros que cada etapa de construção do objeto deixa na próxima etapa. Assim como a época de relação de objeto guarda traços da época anterior, do objeto subjetivo, o quarto tempo, do uso de um objeto, está próximo do objeto transicional e de sua especificidade, pois o objeto transicional surge da capacidade do bebê de modificar o "dado" e transformá-lo em "criado".

No quarto tempo, ao destruir o objeto em fantasia, buscando testar a sua realidade, e encontrando o objeto externo que sobreviveu e possui autonomia em relação à voracidade do bebê, o sujeito encontra-se agora com um seio diferente-dele e pode receber uma contribuição que só pode vir dessa preciosa alteridade, algo que vem de outro lugar, que é portador de uma novidade. Para se ter acesso ao quarto tempo, é preciso abrir mão do objeto plenamente satisfatório, e isto faz parte do processo de descoberta do outro em sua diferença, ainda que a descoberta nunca deixe de acontecer acompanhada de algum nível de criação subjetiva. O mesmo se pode dizer quanto ao primeiro momento: pensamos a criatividade primária como o campo de uma onipotência ilimitada, mas até mesmo esta criatividade, para exercitar-se, precisa estar sustentada (holding) pela invisível mão da alteridade.

Seguindo bem de perto o pensamento de Winnicott, eu acrescentaria alguns pontos, tiraria outros, contaria quais foram meus insights: puro prazer de destruí-lo, vendo-o sobreviver:

Para usar um objeto, o sujeito precisa ter desenvolvido capacidade de usar objetos. Isso faz parte da mudança para o princípio de realidade. Essa capacidade não é inata, mas depende de um meio ambiente propício.

Ao se tornar capaz de considerar o objeto fora da sua área de onipotência, há um reconhecimento do objeto como uma entidade em seu próprio direito. É por sobreviver à destruição potencial que o objeto recebe um acréscimo de valor para o sujeito. Acompanhada da sobrevivência, essa destrutividade potencial inconsciente aumenta a força do amor ao objeto.

O sujeito pode agora usar o objeto que sobreviveu. É importante notar que não se trata apenas de o sujeito destruir o objeto porque este está situado fora da área de controle onipotente. É igualmente importante enunciar isto ao contrário e dizer que é a destruição do objeto que o situa fora da área de controle onipotente do sujeito. (Winnicott, 1968)

Se em um primeiro momento, perder controle sobre o objeto suscita o desejo de destruí-lo, quando ele sobrevive à destruição, ganha autonomia e torna-se real - e "o sujeito pode começar a viver uma vida no mundo dos objetos e tem assim a ganhar de maneira imensurável, mas o preço tem de ser pago pela aceitação da destruição continuada na fantasia inconsciente relativa ao relacionamento com objetos" (Winnicott, 1968). Essa destruição que precisa ser aceita nada mais é que uma aceitação de que o objeto nunca vai ser exatamente aquilo que desejamos que ele seja. Ouvindo Winnicott dizer "o sujeito pode começar a viver uma vida em um mundo de objetos e tem assim a ganhar de maneira imensurável", fico tentada a sugerir que se diga "O sujeito começa a viver uma vida em um mundo de sujeitos como ele e tem assim a ganhar de maneira imensurável, pois conquista um insight novo com respeito à sua condição de ser um sujeito entre outros". Esta correção nos daria ainda dois novos insights: de que para passar da condição de objeto a sujeito é preciso entrar no dinamismo potencial do destruir e ser destruído, e que isto exige pelo menos duas pessoas, ou seja, só um sujeito destruidor/destruído é capaz de criar outro sujeito, justamente porque foi livre para destruí-lo.

Além disso, Winnicott pensa que é a própria destrutividade primária que cria a realidade, colocando o objeto fora do eu, o que requer condições favoráveis.

Se esses acontecimentos estiverem se dando em uma análise, o analista, a técnica analítica e o enquadre analítico, todos precisam manter-se constantes e sobreviver aos ataques destrutivos do paciente. Esta atividade destrutiva corresponde ao movimento de colocar o analista fora de área de controle onipotente do paciente, no mundo exterior. Isto vai permitir que o analisando faça uma experiência diferente do que seria uma autoanálise, pois vai estar com alguém que não é uma parte de si. Se o paciente sente que só pode se alimentar de si mesmo, não vão acontecer mudanças significativas.

Se o analista puder aguentar a destruição, terá a compensação de ver surgir a capacidade de amar do paciente, que se fortalece por um pano de fundo de destruição inconsciente. A destruição permanece como um potencial e não passa a ser movimento real de destruição do outro ou da relação.

Quando a destrutividade potencial e inconsciente do paciente não é acompanhada de uma resposta de sobrevivência do analista, que pode sustentá-la e não se vingar, aí a destruição pode se tornar real.

Isso me leva a pensar que há, em todo sujeito humano, uma tendência a autoafirmar-se, que comporta a ameaça de destruir o outro, como se, em um nível primitivo, defender a própria vida fosse aniquilar a vida do outro. Seria aquela dinâmica de "ou ele ou eu". Quando esta tendência primária do paciente pode ser reconhecida pelo analista como potencialidade, e ele (analista) se afirma frente a ela, não se deixando destruir, acontece, para os dois, o júbilo de poder encontrar no outro a mesma potencialidade a destruir que permanece em ambos apenas como potencial: duelo entre iguais. Aí ambos podem se encontrar de modo mais real, com a destrutividade primária de ambos se equilibrando, e prevalecendo um certo júbilo de encontrar um semelhante seu, que não é apenas um produto da própria mente de um e do outro. Pois são as diferenças que nos tornam reais uns aos outros.

O ponto importante dessa ideia de Winnicott é que é a pulsão destrutiva que cria a qualidade de exterioridade. Ele afirma ainda que nesta forma de destrutividade primária não há raiva, o que o bebê sente é alegria, quando há sobrevivência do objeto. Se em uma análise o paciente precisou regredir a estados fusionais para depois colocar o analista fora de seu controle onipotente, agora o sujeito pode usar as interpretações do analista como algo diferente dele, que pode alimentá-lo, e, ao chegar a este ponto de sua análise, ela está próxima de seu fim. Pois ele aprendeu a se beneficiar criativamente de outra pessoa, e isto é usar um objeto.

Na luta para sobreviver psiquicamente, cada sujeito quer ser plenamente reconhecido pelo outro; ora o pleno reconhecimento passa pelo desejo de negar a existência separada do outro. É de novo a velha lógica de "ou ele ou eu". Entretanto, se ele negar completamente o outro, isto é, se a destruição se tornar real, amanhã não haverá mais alguém ali, para dar o reconhecimento que ele busca. Se eu brinco de fechar meus olhos e imaginariamente aniquilo a existência do outro, faço uma experiência momentânea de aniquilá-lo, de ser absoluta, solitária e única. Uma majestade, mas sem súditos para reconhecer-me. Logo depois, ao abrir os olhos, sinto grande júbilo e descubro que eles, os outros que podem me reconhecer, ainda estão lá! É isto que dá tanto prazer ao jogo de esconde-esconde.

Essa destruição potencial de que fala Winnicott é um modo de experimentar a consistência do outro, a sua independência, e é um esforço de diferenciação. Eu preciso experimentar a ideia de que "você não existe para mim", para em seguida perceber que continuo querendo que "você exista para mim", que "preciso do seu reconhecimento", mas que não "quero ficar totalmente submetida à minha necessidade de ser reconhecida por você e depender disto". Isto me faria virar um falso self.

É muito comum que as crianças tenham prazer, a todo momento, em olhar os adultos e exclamar "oi!", como se precisassem confirmar sempre que eles continuam por perto.

Louis Sander (1983) afirma que os momentos tranquilos que os bebês e suas mães experimentam no início da vida podem ser chamados de espaços abertos - são aqueles em que a criança pode explorar o seu próprio corpo, olhar as suas mãos longamente, movimentá-las diante de si como se estivesse fazendo um exercício de tai chi chuan.

Neste vai e vem entre eu e outro, o desembaraçar-se (desprendimento, desapego) - espaço aberto - é tão importante quanto o aninhar-se. No jogo antagonístico entre a mãe e o bebê, desembaraçar-se e aninhar-se (engage and disengagement) formam um balanço crucial: a oportunidade para desembaraçar-se é a condição para o livre aninhar-se, como contraponto. (Benjamin, 1988)

Para encerrar esta reflexão, e pensando nos primeiros tempos de ligação íntima entre mãe e bebê, lembrei-me de uma frase de Hölderlin, que é muito expressiva e que pode nos servir de base para pensar que longos momentos de fusão e de tranquila solidão são necessários no início da vida, para, um dia, tornar possível o quarto tempo, a destruição do objeto e a descoberta do mundo.

Deixem o homem imperturbado, desde o berço. Não o expulsem do bulbo, estreitamente unido do seu ser, não o expulsem da casa protetora de sua infância. Não façam de menos, para que ele não sinta vossa falta e, assim, vos separe de si mesmo; não façam demais, para que ele não sinta a vossa violência ou a sua própria e, assim, vos separe de si mesmo. Em suma, deixem o homem saber só tardiamente que há seres humanos, que há alguma coisa, fora dele, pois só assim ele se tornará homem. O homem é um deus assim que se torna homem. E, sendo um deus, ele é bonito. (Hölderlin, 2012, p. 113)

 

Referências

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Recebido em: 9/11/2014
Aceito em: 11/11/2014

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