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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Literacura da histeria: a questão da forma literária das psicanálises1

 

Literacure of hysteria: the issue of psychoanalytic literary form

 

Literacura de la histeria: la cuestión de la forma literaria de los psicoanálisis

 

Littéracure de l'hystérie: la question de la forme littéraire des psychanalyses

 

 

Fernanda Sofio

Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC). fernanda.sofio@usp.br

 

 


RESUMO

Literacura é outro nome para Psicanálise, mas que chama para si a característica de ser seu fazer literário. Neste artigo, apresento duas vinhetas clínicas de pacientes histéricas clássicas, porém, de formas literárias distintas. Questiono: se um relato não é o caso em si, se os fatos clínicos não são acessíveis, mas constituem sempre uma transformação do caso pela via interpretativa, por que o analista não assume mais espontaneamente essa especificidade de seu fazer, e narra sua clínica de formas diferentes da padrão ou convencionada? Penso que o resultado é uma apresentação das possibilidades para a narrativa da clínica, que pode até mesmo desembocar na literatura de ficção propriamente dita.

Palavras-chave: psicanálises, forma literária, teoria dos campos, literacura


ABSTRACT

Psychoanalysis can be also called Literacure, which evokes a literary feature. In other words, literacure represents the idea of producing psychoanalytic theories in a literary form. In this paper, the author presents two clinical vignettes about classic hysterical patients. However, they are written in different forms of literary narrative. The author questions: if a narrative of a vignette is not the case study in itself; if clinical facts are not accessible, but they always turn into a transformed case by interpretation; why the analyst more spontaneously does not bear this specificity of his work, and narrates his practice in different forms than the standard. The expected result is a presentation of possibilities for the clinical narrative, which even may end in the literary fiction per se.

Keywords: Psychoanalysis, literary form, Multiple Fields Theory, literacure


RESUMEN

Literacura es otro nombre para psicoanálisis, pero que señala su característica de ser una forma literaria. En este trabajo presento dos viñetas clínicas de pacientes histéricas clásicas escritas en formas literarias diferentes. Me pregunto: si un relato no es el caso en sí, si el (los) hecho(s) clínico(s) no son accesibles - sino que constituyen siempre una transformación del caso por la vía interpretativa ¿por qué el analista no asume más espontáneamente esa especificidad de su hacer y narra su clínica de formas diferentes de la establecida o acostumbrada? El resultado esperado es una presentación de las posibilidades para la narrativa clínica que podría, incluso, desembocar en la literatura de ficción propiamente dicha.

Palabras clave: psicoanálisis; forma literaria; teoría de los campos; literacura


RÉSUMÉ

Littéracure est une autre dénomination pour la psychanalyse, mais qui appelle sur soi la caractéristique d'être son faire littéraire. Dans cet article, je présente deux vignettes cliniques de patientes hystériques classiques, cependant de façons littéraires distinctes. Je demande: si un récit, n'est-il pas le cas en soi-même, si le(s) fait(s) clinique(s) n'est-il/ ne sont-ils pas accessible(s), mais constituent toujours une transformation du cas par la voie interprétative, pourquoi l'analyste n'assume-t-il plus spontanément cette spécificité de son faire et ne narre-t-il sa clinique de manières différentes de ce qui est standard ou conventionné ? Le résultat, on l'espère bien, c'est une présentation des possibilités pour la narrative de la clinique, qui peut même aboutir dans la littérature de fiction proprement dite.

Mots-clés: psychanalyse, façon littéraire, théorie des champs, littéracure


 

 

Parto de terreno conhecido quando digo que todo relato clínico apresenta uma perspectiva, um recorte, uma abordagem. Nesse sentido, nunca, e sempre, é o caso em si. Nunca, porque o processo analítico é múltiplo. Sempre, considerando-se cada relato como uma totalidade relativa a si mesma, isto é, construído como relato possível.

Se um relato não é, entretanto, o caso em si, se os fatos clínicos não são acessíveis, mas constituem sempre uma transformação do caso pela via interpretativa, por que o analista não assume mais espontaneamente essa especificidade de seu fazer, e narra sua clínica de formas diferentes da padrão2 ou convencionada? Isto é, por que não busca uma estrutura estética que funcione melhor que outras, adequando-a assim ao que seria uma espécie de trama clínica?

É evidente que busco resgatar o caráter lúdico da escrita da clínica psicanalítica. Para esse fim, empreendo o exercício aqui proposto com a escrita da clínica, como que brincando de anotá-la, mas objetivando não perder de vista a reprodução do efeito terapêutico que caracteriza cada atendimento; caberá ao leitor comentar/discutir/criticar se esta maneira mostrou-se adequada para retratar a clínica, contemplando, por um lado, o exercício da função terapêutica do método psicanalítico nos atendimentos delineados e, por outro, sua forma literária.

 

As vinhetas clínicas

Narrarei duas vinhetas clínicas de pacientes diferentes, por formas literárias diversas, com base em uma temática, a histeria clássica. Espero que essas formas, interpretações possíveis de atendimentos psicanalíticos, exemplifiquem minha ideia de literacura como clínica psicanalítica - isto é, desta como narrativa, como fazer literário.

As vinhetas tratam de atendimentos em dois contextos diferentes: a primeira dentro de um projeto de pesquisa de certo Hospital Geral universitário que investigava a ideia de pseudoepilepsia e a segunda numa organização não governamental. Embora o contexto da neurose histérica conversiva aproxime as duas vinhetas teoricamente, concerne-me - mais do que essa discussão, teórico-clínica, ou das prototeorias desenvolvidas ao longo desses atendimentos - a questão da forma da narrativa, da forma literária destas psicanálises.3

Assim, as duas vinhetas foram narradas por formas diferentes: a primeira, mais clássica, quase anamnésica, e a segunda, menos convencional, que se inspira na forma teatral. É em companhia de Leyla Perrone-Moisés (2008) que as proponho. Afinal, para ela, interpretar o objeto "à luz da psicanálise é uma tarefa ... tão fácil, que nem vale a pena empreendê-la." (p. 59) Eu acrescentaria que a referência que ela faz é às teorias psicanalíticas clássicas, não a seu método produtivo. Nossa questão - minha e, portanto, de meu leitor - é, como digo, a forma da narrativa.

Portanto, mais do que explicitar as prototeorias clínicas desenvolvidas nos respectivos atendimentos, minha intenção é provocar uma discussão sobre a questão da forma e sobre a possibilidade de ela produzir, eventualmente, unidade estética. Chegaríamos, em última instância, propriamente ao campo da literatura de ficção. Chegada, a meu ver, que foi definida por Oswald de Andrade, embora provavelmente não fosse essa sua intenção - considerando-se que falava de sua literatura de ficção, não sendo ele um clínico psicanalítico. Oswald nos diz:

Os andaimes da construção psicológica não devem aparecer nas páginas do romance [ou ficções curtas, nesse caso]. Nelas, eles se dissimularão atrás da ação, sob os diálogos e as reações dos personagens. Mas, como vos disse no início, não aceito as improvisações da criação literária. Por isso ousei trazer-vos a análise desses dois personagens de Marco zero. (Andrade, 1938/2007-2008, p. 271)

A pretensão de meus relatos é propor como possibilidade, e potencialidade, que a narrativa clínica atinja o campo da literatura de ficção, misturando-se com ele, e nele se transformando. Vale, entretanto, uma última consideração: toda narrativa clínica é singular, mas ao mesmo tempo retrata algo do dia a dia do homem em seu mundo e, dessa perspectiva, talvez cada atendimento possa ser tomado como "prototípico" (assemelhando-se nesse ponto à literatura de ficção). Isto não do humano em seu todo - que seria o humano em seu todo? -, mas de alguma perspectiva possível. Adentremos pelo âmbito da histeria...

 

Ester em 2005 - anamnésico

Atendi Ester na rede pública, em decorrência de um projeto desenvolvido em parceria entre os Departamentos de Psicologia e de Neurologia do hospital geral universitário em que atuava. Nossa ideia era oferecer atendimento psicoterápico psicanalítico breve a pacientes diagnosticados como pseudoepilépticos pela clínica neurológica do hospital.

O diagnóstico era feito por videoeletroencefalograma. Pseudoepilépticos eram os pacientes que aparentavam ser epilépticos, por produzirem um quadro clínico muito semelhante ou clinicamente idêntico ao da convulsão epiléptica, mas que não possuíam foco epiléptico no cérebro, isto é, diagnosticável pelo vídeo-eeg. Outros casos eram os considerados "quadros mistos": pacientes que tinham crises epilépticas, e eram, portanto, epilépticos, mas, adicionalmente, tinham as crises convulsivas pseudoepilépticas, ou seja, também produziam sintomas que imitavam a crise convulsiva.

Os pacientes eram geralmente mulheres, não sempre. Nossa equipe trabalhava com a hipótese de os antigos pacientes histéricos conversivos clássicos - os pacientes freudianos, com os quais a psicanálise desenvolveu-se em seus primórdios - terem migrado dos consultórios psicanalíticos e psiquiátricos para as clínicas neurológicas. O tratamento que oferecíamos estendia-se pelo período máximo, e a meu ver ingrato, de um ano. As integrantes do projeto considerávamos esse prazo limitador, pois inviabilizava um trabalho mais amplo. Pairava a dúvida entre nós: o que fazer depois?

Iniciáramos nossa investigação sem a resposta. Além da hipótese de que esse diagnóstico frequentemente abrigasse casos de histeria clássica - perspectiva também aventada, em alguma medida, entre os atendentes da clínica neurológica -, considerávamos que nossos pacientes eram atravessados, nesse novo setting hospitalar, por um universo primordialmente médico. De fato, no desenrolar do atendimento de Ester, o discurso, linguagem e tempo da medicina permearam nosso trabalho. Por exemplo, eram notáveis os efeitos na paciente da necessidade protocolar de corroborar os resultados de outros exames - clínicos e cirúrgicos, no caso dela - pelo uso da ressonância magnética, e isto apesar de Ester apresentar-se fóbica, no sentido descrito por Freud, e um tanto ou quanto claustrofóbica, no sentido psiquiátrico do termo.

Para discutir um pouco mais essa ideia da linguagem médica, no caso específico dos pacientes do projeto em questão, podemos considerar o próprio diagnóstico de pseudoepilepsia, que nasceu no hospital. Percebi em meus atendimentos, ao longo da participação no projeto - e mesmo depois, com base em experiências no consultório -, que, ao tomar-se o histérico como pseudoepiléptico, ficou misturada à nomenclatura uma questão princeps da histeria, que é a da farsa. Isto é, na proposta de uma epilepsia pseudo, que seria uma epilepsia falsa, entra escancaradamente em questão uma dinâmica que é cerne da histeria: seria o histérico vítima ou farsante? E a proposta do nome toma partido, pois a linguagem veiculada declara o paciente farsante: ele é pseudoepiléptico.

Esse falso problema, tornado problema de fato, tem origem antiga, no abandono por Freud (1897/2003a) da teoria da sedução como fato traumático desencadeador do sintoma histérico. Entendida a causa do sintoma como uma criação da fantasia da paciente - seu desejo de ser seduzida -, vulgariza-se esse pensamento pela explicação corrente entre os públicos leigo e médico de que sintoma conversivo é uma farsa.

É imersa nesse - brevemente delineado - contexto que chega Ester para ser atendida na nossa clínica psicoterápica.

 

Anotando o atendimento

A ficha de Ester traz seu diagnóstico do hospital: "epilepsia parcial complexa, distúrbio comportamental, crises neurovegetativas e de ansiedade com rebaixamento cognitivo". A paciente complementa: "Tenho epilepsia de difícil controle".

Ela chega falando confusamente, dizendo haver sido abusada sexualmente, queixosa. Esforço-me para seguir o raciocínio: sua vizinha a deseja homossexualmente, e ela fala da perda irrecuperável da mãe, que morreu há quase dez anos e que é "tudo" - "tudo" morreu, penso comigo.

Sua fala causa-me perplexidade e desconforto - o que também se deve, sei agora, à minha inexperiência àquela época, pois Ester foi de minhas primeiras pacientes. A tentativa de seguir o raciocínio da paciente falha uma e outra vez. Embarcada na confusão de Ester, eu me aflijo; é a marca do início do percurso do analista.

Em certa sessão desse início do atendimento, lembro que tentei "organizar" o que ela me dizia; certamente para apaziguar minha própria angústia, noto agora. A tentativa revelou-se paradoxal, como não poderia deixar de ser, afastando-me do campo emocional que a paciente propunha. Já disseram, entretanto, os mais experientes, que é errando que se aprende, e acabei por fazer uma descoberta: havia uma clara contradição no discurso de Ester, que pôde tornar-se tema de nossa discussão.

Ester considerava que seu primeiro episódio convulsivo havia ocorrido quando ela contava 7 anos. Considerava, também, que teria sido causado pelo abuso sexual cometido pelo tio, aos seus 11 ou 12 anos. Perguntei-lhe: "Como poderiam decorrer do abuso, se começaram antes?" A pergunta surtiu efeito, pois ela já depositara alguma confiança em mim, e investigávamos juntas os sentidos produzidos por ela, oriundos de nossas conversas sobre seus sentimentos. Ester não se mostrou perseguida, nem descartou a pergunta. Por um lado, é certo que agiu conforme a descrição de Freud, com belle indifférence, consoante seu quadro de histérica clássica, tal como vinha se mostrando. Por outro, a partir da pergunta, percebi em seu olhar que Ester detinha-se para pensar.

No decorrer de nosso trabalho, Ester não deitou no divã. De fato, como boa histérica, ela nem sequer suportava que eu andasse atrás dela quando a chamava para entrar na sala de atendimento. A ameaça que ela vivia era sempre a do ataque sexual. Queria olhar para mim para assegurar-se do que eu estava fazendo. Fora de seu campo de visão, eu me tornava uma ameaça. (Imagine-se a fantasia produzida pela experiência da ressonância magnética...)

Pude perceber que minha intervenção fez Ester reconsiderar sua história em silêncio, sem que para isso se sentisse muito ameaçada por mim. Iniciamos um período de considerações conjuntas, que durou o tempo de nosso percurso naquele contexto, às vezes em favor de uma crise das representações, que descongelava sua histeria, outras vezes de maneira mais resistente.

Ao longo do ano de atendimento, Ester foi se mostrando cada vez menos ansiosa. Eu passara a representar um ponto de apoio. Aliás, era, isto sim, com anseio que ela vinha ao consultório; às vezes chegando horas mais cedo, o que implicava ficar me esperando. Desgrudar-se de mim, da nossa sala, era difícil.

Passado o ano contratual deste trabalho, no âmbito do projeto de pesquisa, propus prosseguirmos em outro consultório, o que se mostrou ainda mais difícil. Assinou a documentação concluindo sua participação no projeto e continuou falando comigo. Tinha medo de, a caminho de um novo endereço, "ter crise", como ela chamava seus episódios convulsivos. Após alguns meses de tentativas, voltou simultaneamente a procurar atendimento no hospital, depois no posto de saúde e novamente no hospital. Ia dando notícias desencontradas de suas andanças. Conseguia meu e-mail, meu telefone, com base em fontes variadas. Eu combinava de conversarmos, mas inicialmente ela não apareceu nas entrevistas que fui tentando marcar.

Uns anos atrás, pediu que eu voltasse a atendê-la, ao que concedi. Ela veio. Foi com o e-mail cujos excertos reproduzo abaixo, que fez seu pedido:

estou com muita saudade de vc, qdo passo no **** até me lembro, de qdo ia lá ... Quero só uma coisa sua, que possa comunicar com uma outra amiga que adorei, adoro e adorarei sempre (você) ... Só lhe digo uma coisa: acabarei voltando a me tratar com vc. Senão estiver te perturbando, logo entro em contato com vc novamente. Um abração.

O e-mail retrata bem o campo transferencial:4 impulsivo, apaixonado, assustado, resistente, inatingível. Este e-mail chega depois de muitos anos, quando a paciente, até mesmo, já foi operada para tentar retirar o núcleo epiléptico do cérebro. (O leitor poderá questionar: mas não haviam os mesmos médicos declarado a paciente pseudoepiléptica? Sim, pseudoepiléptica e epiléptica, haviam diagnosticado. A questão da epilepsia/pseudoepilepsia complexifica-se porque o cérebro "aprende" a produzir crises não-epilépticas e/ou desenvolve a estrutura epiléptica. Seja como for, a marca histérica nas crises narradas por Ester, no campo transferencial que desenvolve comigo, é evidente.)

Não há como recusar atendimento a um histérico: ele não permite, nem é ético. Nesse sentido, alio-me à equipe médica do hospital. Nosso novo acordo teve a intermediação de seu convênio médico.

 

Histeria em três cenas - 2006

Dramatis Personæ (por ordem de aparição)

Técnica (histérica)

Subchefe ("mãe" superegoica)

Chefe

("mãe" acolhedora, eventualmente transformada em objeto persecutório)

Clodomiro (representante do universo masculino)

Analista (condensação de projeções e aspirante a destradutora)5

Cena I

(na sala da chefe, em um abrigo para crianças abandonadas)

Técnica (chorando) - Ele me pegou à força. Eu não podia gritar. Tive que beijá-lo!

Subchefe (gritando) - A culpa é sua! Foi você quem permitiu! A culpa é sua!

Técnica (prestes a desvanecer, murmurando) - Ele me pegou à força, eu não tive como resistir, ele me pegou à força...

Chefe (à subchefe, firme e interrompendo-a, o dedo indicador erguido) - Você está passando dos limites.

Subchefe (diminui o tom de voz, desarmada) - Ela não poderia...

Chefe (para subchefe) - Vamos, me ajude.

(Chefe e Subchefe tomam Técnica pelos braços, ela desmaia contorcendo um pouco o corpo, mas não exageradamente. Depois, preocupadas, sentam-na e lhe oferecem um copo d'água.)

Técnica (ainda zonza, mas um pouco recuperada) - Obrigada. (baixinho) - Não estou sentindo meu braço direito...

Cena II

(no abrigo para crianças abandonadas)

Clodomiro (para Técnica) - Bom dia.

Técnica (assusta-se, vomita, sai de cena muito vulnerável) - Ai, ai, ai. É a voz grossa do meu padrasto... Ai, ai! (ouve-se da coxia)

Encenação III

(no consultório psicanalítico, passados quase 2 anos. O clima é onírico e colaborativo.)

Técnica (deitada) - Faz tanto tempo que aconteceu o episódio com Clodomiro. Ele já foi até mandado embora da instituição, e mesmo assim é tão sofrido... É tão difícil olhar para o local de trabalho que era meu e dele e não lembrar o que fez comigo... (silêncio) Demorou tanto para minha chefe me dar razão. Ela não podia ter demorado tanto, ela tinha que ter percebido desde o começo que o culpado era ele.

Analista - O episódio em si aconteceu há quase dois anos, mas ele continua tocando você, e nesse sentido é bem presente. Você lembra e se transporta para o que aconteceu há dois anos. (silêncio) Além disso, pelo que andamos conversando, remete a episódios muito antigos, como quando sua mãe não acreditou que seu padrasto falava que queria "brincar" com você, na ausência dela...

Técnica (com os olhos cheios de lágrimas) - É mesmo! Foram tantos eventos... Meu pai que falava que queria "brincar" comigo quando eu era pequeníssima, meu padrasto que queria que eu fosse empregada dele, em todos os sentidos. O homem com o facão que me agarrou à força na adolescência...

Analista - Com tanto sofrimento embutido que você carrega, não é de estranhar que esteja magoada com sua chefe, assim como com seu marido. Você se queixa de eles custarem demais a acreditar em você. Se eles acreditassem prontamente, talvez isso ficasse um pouquinho mais suportável. Está me pedindo para acreditar no seu sofrimento e te acompanhar na sua angústia. Assim, você também poderá começar a aceitar seu próprio sofrimento, e considerá-lo como legítimo.

(silêncio de alguns momentos)

Técnica - Passa tão rápido o tempo aqui...

(blecaute)

 

Anotando a clínica e a histeria

As duas vinhetas tratam de processos analíticos de pacientes histéricas, ficando evidente seu parentesco com a velha histeria descrita por Freud (1893-1895/2003b). No entanto, a forma dos relatos diverge amplamente, sendo o primeiro um relato mais clássico, no âmbito da narrativa clínica psicanalítica. A primeira vinheta é um excerto muito curto que conta, em tempo longo,6 algo sobre o atendimento de Ester. Inclui considerações feitas pelo grupo de pesquisa de que participei, à época, assim como comentários breves sobre o atendimento e seu desenrolar. O segundo é uma curtíssima peça teatral, em tempos curto (do diálogo) e longo, ou quase longo, pois são representados diversos momentos do campo transferencial, particularmente entre as primeiras cenas e a terceira, formando uma espécie de narrativa teatral, constituída com base no trabalho clínico que aconteceu ao longo de anos, embora não citados explicitamente. É uma condensação, particularmente a terceira cena, considerando-se que este diálogo não aconteceu literalmente desta maneira. Ele junta diversos diálogos de sessões diferentes, no intuito de "resumir" em que consistiu o trabalho analítico com essa paciente. Toda narrativa da clínica é construção, e esta é um esforço deliberado de condensação do trabalho analítico.

Se bem que a "peça" contemple a história - o tempo longo - desse atendimento, a forma de narrá-lo está muito próxima do discurso dialógico, das palavras trocadas por Técnica e Analista, o tempo curto. Como grande parte dos relatos clínicos narrados mais classicamente, a "peça" adota a configuração eu disse, ela disse. Adicionalmente, toma uma liberdade maior ao compor a conversa, misturando sessões e sentidos de diferentes momentos analíticos e, assim, compondo uma nova história. Se são palavras reproduzidas ipsis litteris de sessões - que imaginamos terem ocorrido, mas não sabemos -, paira a dúvida. Entretanto, pergunto ao leitor: esta questão é diferente quando dirigida ao "caso clínico clássico"?

Mais ou menos fiel ao "original", o exercício expõe falas específicas, reorganizadas, acopladas. A ideia é que a Psicanálise, entendida como forma literária, implica narrativas construídas por interpretação. Narrativas orais e escritas, que estão sujeitas ao estilo, preferências, escolhas literárias do analista, não prescritiva- mente, mas de dentro do reino análogo.7

O conto, a fábula, a poesia... Os gêneros literários abrem-se para a possibilidade de serem escolhidos pelo analista que busca ser fiel as sentidos veiculados no caso clínico, afirmando eminentemente, sem lugar a dúvida, o lugar da ficção na narrativa clínica. Dessa perspectiva, quanto mais hábil o escritor, melhor a estética da narrativa, e melhor também a composição do que estou chamando literacura, o caso clínico por escrito de cada psicanalista-escritor. Neste sentido, faço minhas as palavras de Fabio:

A ficção, apreendendo o estofo psíquico da vida de relações, isola o campo a ser investigado, purifica-o da complexidade infinita de outras intromissões do real e, por fim, recria as condições para nova teorização. Pela ficção, talvez possamos voltar à teoria produtivamente - entendendo por produtivo o pensamento que gera saber sobre novo campo da vida anímica. (Herrmann, 2002/2007-2008, p. 287)

É a intenção do relato clínico: eleger e apresentar uma perspectiva. Ester, Técnica, os outros e mesmo a Analista são personagens de historiais clínicos, de encenações psicanalíticas. São criações, construções clínico-literárias, em que pairam encontros e desencontros, no rastro da histeria, de Freud aos nossos dias.

 

Referências

Andrade, O. (2007-2008). Análise de dois tipos de ficção. Literatura e Sociedade: psicanálise, 10,266-271, São Paulo. (Trabalho original publicado em 1938).         [ Links ]

Freud, S. (2003a). Carta 69 (21 de Setiembre de 1897). In Sigmund Freud: Obras Completas. Ordenamiento (Comentarios y Notas de J. Strachey, con la colaboración de Anna Freud, Vol. 1, pp. 301-302). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (2003b). Señorita Elisabeth Von R. (Freud). Estudios Sobre la Histeria (Breuer y Freud). In S. Freud, Obras Completas. Ordenamiento (Comentarios y Notas de J. Strachey, con la colaboración de Anna Freud, Vol. 2, pp. 151-194). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1893-1895)        [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2007-2008). A ficção freudiana. Nota introdutória. Literatura e Sociedade: psicanálise, 10, 278-285, São Paulo. (Trabalho original publicado em 2002)        [ Links ]

Herrmann, L. Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. (Trabalho original publicado em 2004)        [ Links ]

Perrone-Moisés, L. (2007-2008). A fala esvaziada em Nelson Rodrigues. Literatura e Sociedade: psicanálise, 10,58-69, São Paulo.         [ Links ]

Sofio, F. (2015). Literacura: Psicanálise como forma literária. São Paulo: FAPUNIFESP/FAPESP.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 25/2/2015
Aceito em: 10/3/2015

 

 

1 Uma versão do texto foi publicada como subcapítulo do livro Literacura: Psicanálise como forma literária, da mesma autora.
2 Aqui refiro a denúncia de Herrmann de que, no que ele chama clínica padrão, ocorre um deslocamento da atribuição do efeito terapêutico da Psicanálise para as regras do setting, por se haver deixado de lado a consideração da clínica e a forma da interpretação. Prevalece, nesse sentido, uma preocupação sobre "o que interpretar", em vez de "o que é interpretar" (Herrmann, 1991b, pp. 9-11).
3 A Teoria dos Campos considera Psicanálise com p maiúsculo a ciência ou disciplina da Psicanálise e, com p minúsculo, os exemplos de clínica psicanalítica (psicanálise da vida contemporânea, por exemplo), ou seja, suas formas adjetivadas. Em minha pesquisa, aproprio-me desta diferenciação.
4 Constitui-se sempre que interagem duas ou mais pessoas. É definido por Leda Herrmann (2004/2007), como: "o estranho que habita o consultório, a situação analítica. Por quê? É onde o mundo do paciente é seu e é desconhecido (é o mundo dos sentidos possíveis): a identidade do paciente esfumaça-se para se condensar como chuva e logo se solidificar em formas imprevistas, mas possíveis" (p. 147).
5 A partir da ficção freudiana Bashô (Herrmann, 2002), comecei a pensar no psicanalista como destradutor de sentidos: não se trata de traduzir o inconsciente revelando sentidos ocultos, tarefa impossível, mas de acompanhar ativamente o paciente em sua empreitada psicanalítica de recriar sentidos possíveis para sua experiência.
6 Estou usando a concepção de Herrmann (2001, pp. 173-174) de tempos na análise - longo, médio e curto - tomados à maneira de tempos do andamento musical.
7 Propondo sua teoria do análogo, Herrmann (2002/2007-2008) lança a hipótese da literatura de ficção ser o que ele chama de reino análogo da Psicanálise e de toda ciência humana e social, pois é a ela que o psicanalista se reporta para produzir clínica e, subsequentemente, teoria. É com a teoria do análogo que se torna possível, a meu ver, pensar a literatura de ficção como "matéria-prima" da Psicanálise.

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