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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dic. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Segunda-feira de manhã

 

Monday morning

 

Lunes por la mañana

 

Lundi matin

 

 

Pedro Colli Badino de Souza Leite

Membro filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPQ-HCFMUSP). Médico Assistente do Serviço de Psicoterapia do IPQ-HCFMUSP. pedrocolli@gmail.com

 

 


RESUMO

O contato com alunos do 5º ano da graduação médica cria grupos de trabalho voltados ao pensamento freudiano.

Palavras-chave: psicanálise itinerante, transmissão, grupo de trabalho, medicina


ABSTRACT

The contact with fifth year medical students creates working groups whose orientation is Freudian thinking.

Keywords: Itinerant Psychoanalysis, transmission, work group, medical education


RESUMEN

El contacto con alumnos de quinto año de la graduación en medicina crea grupos de trabajo orientados al pensamiento freudiano.

Palabras-clave: psicoanálisis itinerante, transmisión, grupo de trabajo, medicina


RÉSUMÉ

Le contact avec des élèves de la 5ème année de la Clinique médicale crée des groupes de travail tournés vers la pensée freudienne.

Mots-clés: psychanalyse itinérante, transmission, groupes de travail, médicine.


 

 

Segunda de manhã. Estou sentando à sala de número 2 do Serviço de Psicoterapia que se localiza no 4º andar do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Trata-se de uma sala cujos limites assemelham-se a um quarto de círculo. Janelas preenchem a parte arredondada com vista para uma árvore frondosa e muito verde lá fora. Encontro-me de costas para uma das paredes retas, da qual pende um quadro-negro pouquíssimo usado. À frente estão dispostas pouco mais de dez cadeiras, que acompanham as janelas e aguardam a chegada dos alunos. Estou em terreno desconhecido, minha alma e a dos internos do 5º ano do curso de Medicina. Levo comigo os recursos que permitem essa itinerância psicanalítica: meu analista, meus supervisores, teorias metapsicológicas e todos os que já colaboraram com minha formação. Tenho a pretensão de injetar a peste e observar as reações imunológicas desencadeadas.

Os alunos estão atrasados. Enquanto espero, penso novamente (já são inúmeras vezes) sobre o que estou fazendo. A técnica que ponho em prática vem sendo fabricada em função do contato com eles ao longo dos últimos anos. Estes me contam sobre suas vivências no caminho da construção de uma identidade como médicos. Conversamos sobre suas expectativas, frustrações, seus sonhos e medos. De especial importância, falam sobre as decepções relacionadas aos cursos que se ocupam em discutir o aspecto humano desse ofício.

São trechos de seus relatos:

Eu não acho que a faculdade consegue aprofundar esse tema da humanização. A gente chega lá, e tem um professor que dá uma aula de uma hora e meia no PowerPoint com a sala toda escura. A gente tem que decorar o que é "empatia", "relação médico-paciente", "ética", pra depois escrever tudo na prova. Me sinto mais um papagaio do que um ser humano.

Eu ficava muito irritada com aquelas aulas. Os professores nos instruíam a dizer "com licença", "obrigado", "por favor" durante o contato com os acientes. Humanizar a relação médico-paciente não significa ser bonzinho com os pacientes ou buscar tratá-los bem. Isso é de muito antes, é educação básica que a gente deveria aprender em casa.

Um dia nossa turma teve uma aula de como dar uma notícia ruim a um paciente. Eles ensinaram pra gente que tem um protocolo já pronto, tem até um mnemônico, que me esqueci. Enfim, é pra você lembrar de manter contato visual, encostar no paciente, ter certeza de que ele ouviu e entendeu a notícia, essas coisas...

Essas palavras me fazem lembrar Freud em Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades?:

Nas últimas décadas, essa formação [médica] tem sido justamente criticada pelo modo unilateral como orienta o estudante nos campos de anatomia, da física e da química, enquanto não deixa claro, para ele, o significado dos fatores psíquicos nas diversas funções vitais, assim como nas enfermidades e em seu tratamento. Essa lacuna na educação médica se faz sentir, mais tarde, como flagrante deficiência do profissional médico. A consequência disso é, por um lado, o desinteresse pelos problemas mais interessantes da vida humana, seja sadia ou enferma, e, por outro, a inabilidade de tratar o paciente, de modo que até mesmo charlatães e curandeiros terão mais influência sobre este. (Freud, 1919/2010, pp. 378-379)

O texto me chacoalha pela atualidade das palavras e me ajuda a pensar em um fenômeno que se deixa entrever nas falas dos alunos. A proposta de humanização no curso de medicina vem aumentando o tempo e o espaço dedicado a disciplinas voltadas para os aspectos não-orgânicos da prática clínica. No entanto, tais disciplinas estão sendo aplicadas como se fossem anatomia, física ou química. O PowerPoint, a sala escura, as provas objetivas, as aulas que mais lembram etiqueta e boas maneiras e a criação de protocolos que formatam o contato humano. Penso que esses elementos informam sobre a impessoalidade. Informam sobre uma distância que está sendo criada entre as pessoas, entre professores e alunos e, por reflexo, entre médicos e pacientes. A consequência está explicitada de modo claro no texto de Freud: interesse pelo organismo, desinteresse pela vida humana.

Quero transmitir a impossibilidade de falar de medicina, de psiquiatria, de psicoterapia e de psicanálise a não ser através de uma vivência íntima e pessoal. A alma humana não pode ser posta dentro de um tubo de ensaio para estudos e testes físico-químicos. A alma humana revela sua singularidade na criação de vínculos, na pessoalidade. Tenho a intenção de criar proximidade com eles para que possam criar intimidade com outros. Esse é um caminho de transmissão que inflama ansiedades e defesas. Estou prestes a mexer nessas feridas.

Minha divagação se interrompe com uma aluna que entra pela porta. Diz "oi", e eu respondo. Senta-se ao longo das janelas e me avisa que os outros estão atrasados porque a aula marcada antes de nosso encontro se alongou. Qual aula? "Contenção química e mecânica do paciente em agitação psicomotora", ou então "Transtornos do humor", "Transtornos ansiosos", "Transtornos alimentares", "Transtornos do impulso", "O amor patológico" "Psicofarmacologia", "Como entrevistar o paciente psiquiátrico", "Marcadores neurobiológicos na esquizofrenia", todo o dsm etc. Tenho a sensação de estar nadando contra a corrente. Pergunto a ela se saiu antes do fim da aula, ao que ela responde que acordou tarde e preferiu vir direto. Eu a observo novamente. Já havia percebido algo no primeiro contato, mas agora isso se torna um pouco mais nítido: seu rosto aparenta carregar muito medo. Deixamos a conversa flanar, e logo surge o tema do fim da faculdade. O estágio em psiquiatria estava ocupando o mês final do 5º ano da graduação e, em seguida, sua turma já começaria o 6º e último.

Daqui a um ano vou ter um carimbo. Já pensou, eu atendendo as pessoas sozinha? Tomara que eu não vá matar ninguém.

Essa fala é seguida por um sorriso que quase se transforma em choro. Depois de alguns minutos chegam os demais internos, e o medo em seu rosto arrefece.

Eles chegam animados, falantes e, pouco a pouco, ocupam o semicírculo. Pararam de falar, agora me olham com atenção. Digo "oi", eles repetem. Pergunto se leram o texto que combinamos para conversar. Em geral, algum texto de Freud. Alguns dizem que leram, outros dizem que não leram, e outros não dizem nada. Sugiro ler algum trecho juntos, e eles concordam. Ninguém pega um livro. Suas mochilas fazem o parto de iPhones, iPads, tablets diversos e às vezes eles brincam pelo fato de apenas eu estar com o livro de papel. Antes que eu possa sugerir algum parágrafo para a leitura, ouço uma pergunta:

- Pedro, queria perguntar uma coisa. Queria saber por que você nos dá textos do Freud para ler. Eu não quero ser "crica", mas, por exemplo, hoje em dia uma meta-análise do tratamento de infarto agudo do miocárdio fica ultrapassada depois de um ano. Esses textos têm mais de cem!

Valorizo a pergunta, ela revela uma curiosidade que se mostra rara e frágil. Uma planta que ensaia crescer no meio do concreto. Pergunto de volta se alguém sabe o que significa quando uma obra é chamada de "clássico". Ninguém responde. Peço-lhes que associem de suas próprias experiências com a palavra "clássico". Ninguém responde. Nesse ponto tenho a impressão de que a proposta não está sendo bem recebida, o grupo se mostra entre impaciente e irritado, não só comigo, mas também com a pessoa que me fez a pergunta. Tenho a sensação de que estavam esperando que eu abrisse um computador e lhes falasse objetivamente sobre algum tema. Em seguida, percebo que eu mesmo fico tentado com essa ideia, isso certamente aliviaria a ansiedade que estamos todos sentindo ali naquela sala. Em geral estão quietos, alguns estão bufando e olham hipnotizados para as telas dos celulares. Insisto na proposta, e a tensão cresce em um ritmo rápido e seguro. De repente, um deles me mostra que pesquisou na Internet e achou o significado da palavra "clássico". Fico um pouco surpreso: baseado em experiências anteriores, pensei que eles estavam conversando no WhatsApp. Vejo que estavam atentos ao que eu dizia enquanto pesquisavam na rede virtual o tema em questão.

O único porém é que o exercício não consistia em encontrar os significados objetivos da palavra (a linguagem não é objetiva), mas sim os subjetivos por meio da atividade associativa. Penso que a Internet poderia estar sendo utilizada de modo que ficasse bloqueada a capacidade imaginativa/criativa. Tento não desqualificar o internauta pesquisador, sublinho sua curiosidade, mas insisto no exercício associativo. Faz-se um novo silêncio, que é rompido por outro rapaz:

- Quando eu penso em clássico, me vem a ideia de São Paulo e Corinthians.

O tom baixo e envergonhado dele é massacrado por risadas e repreensões faladas em tom de brincadeira por seus colegas. O grupo achou a formulação ridícula e sem valor, justamente por ser subjetiva, e passou a desqualificar o responsável por aquele "absurdo". Digo que ele foi o único que se permitiu usar a imaginação, justamente o que havia sido proposto. Minha fala causa um desconcerto nas pessoas, a não ser naquele rapaz, que agora ergue as sobrancelhas, aperta os olhos e ensaia uma minissoberba. Minha intervenção provocou uma reação similar à enfrentada por alguém que aponta para um louco e afirma que ele não é doente.

A partir desse ponto, há uma lenta mudança no clima emocional da sala. O ar fica menos denso, os semblantes menos irritados, os corpos perdem uma parte da contração muscular. Descubro que há outros que gostam de futebol, até mesmo um deles sabe que o clássico entre São Paulo e Corinthians existe há mais de oitenta anos. Conseguimos fazer deslizar as palavras e criar uma ponte em que o "clássico" é aquele que atravessa o tempo sem perder seu valor, sem perder a capacidade de revigorar o presente. Verdade no futebol, verdade em Freud. Uma moça até então quieta e sem vida reencarna em seu corpo e diz que leu a Odisseia no colégio - um clássico - e que é a primeira obra de literatura que tem o tema de uma viagem ao redor do mundo com o retorno para a casa. Com sua fala, percebo que fiquei emocionado. Agora estamos navegando em uma viagem marítima...

De repente e num rompante, o mesmo rapaz que não queria ser "crica" fala em um tom agressivo suavizado por ironia:

- Olha, até acho essa história de futebol e da Odisseia legal, mas pra que estamos falando disso? Isso não é uma aula de psicoterapia? Cadê a psicoterapia?

Fui arrebatado pela pergunta, viajávamos pelos mares da Odisseia, e o navio afundou. Agora estamos nadamos para evitar o afogamento na concretude e na eficiência. Todos olhavam com atenção para ver como eu trataria aquela pergunta e seu criador. Fico algum momento sem saber o que falar, o que parece provocar um aumento da desconfiança sobre mim. Uma recordação me ocorre, e tomo a decisão de compartilhá-la com eles. Antes de começar, aviso que vou precisar dar uma volta para responder à pergunta. A recordação é um fragmento clínico, eu a intitulei para mim mesmo de "A menina burra". Aqui está.

Há alguns anos, enquanto eu era médico residente em psiquiatria naquele instituto, estava passando pelo estágio da psiquiatria infantil. Naquele dia eu fui encarregado de fazer o primeiro atendimento de uma menina de 8 anos que os pais haviam levado para uma avaliação psiquiátrica. Em um primeiro contato com seus pais, descobri que ambos eram médicos e que traziam sua filha devido a dificuldades no seu rendimento escolar. Eles já haviam pesquisado sobre o tema no Google e pensavam na hipótese diagnóstica de TDAH - transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Em uma entrevista a sós com seu pai, este revelou estar investindo muito na possibilidade daquele diagnóstico, principalmente porque sua explicação alternativa aos acontecimentos seria um "retardo mental" por parte da menina. Aqui, devo acrescentar que durante todo esse primeiro contato, ela, M., se portou de uma maneira delicadamente cordial, simpática e bem-educada comigo. Olhos ávidos, atentos a mim e a como seus pais se relacionavam comigo.

Depois desse primeiro momento, levei-a até a brinquedoteca, conversamos um pouco sobre qualquer assunto, e em seguida pedi que nós brincássemos juntos de alguma coisa que ela escolhesse. Qual não foi minha surpresa quando toda sua cordialidade foi desligada e substituída por uma atitude inquisidora:

- Brincar? Eu não vim até aqui pra brincar com você.

- Não?

- Não. Eu vim aqui para a consulta médica.

- Essa consulta médica é de brincar.

Seu rosto se transforma em uma careta:

- Você é um médico muito estranho.

Nesse momento vejo que o grupo interrompe minha história porque está rindo e se divertindo. Acho que concorda com a opinião de M. sobre mim. Continuo a história e insisto no convite:

- Vamos lá brincar, vai? Eu brinco com você.

Contrariada, M. vai até a estante de brinquedos. Sua vontade de me agradar aparenta superar sua falta de disposição para a atividade. Ela pega duas bonecas e começa a mexer com elas. Algo me parece esquisito. M. está manipulando as duas bonecas como se fossem apenas coisas inanimadas, como se estivesse dando fim a um problema que eu criei. Enquanto faz isso, olha para mim o tempo todo como quem pergunta "É assim que você quer que eu brinque com essas bonecas? Já está satisfeito? Posso parar?" O mesmo elemento artificial se repete na tentativa de outros jogos. Retomo nossa conversa enquanto ela se distrai com um pônei.

- M., por que seus pais te trouxeram até aqui?

- Porque eu sou burra.

- Como assim, ... "burra"?

- Ué! Burra! Burra é burra, não sei explicar melhor. Você não sabe o que é burra?

Ela fala essa parte com impaciência, e fica subentendido que, se eu não souber o que é burra, eu provavelmente sou um burro também, e estamos os dois condenados à burrice.

- Pode ser que "burra" pra mim é uma coisa e pra você, outra coisa.

- Entendi... pra mim, burra é quem não tira dez.

Percebo nesse ponto da história que os alunos não se divertem mais, tenho a impressão de que foram atingidos pela opressão interna que existe dentro da menina. Prossigo:

- E quanto você tira?

Em tom baixo e tímido, confessando seus pecados:

- Eu tiro oito, oito e meio, só às vezes eu tiro nove. Nunca tiro dez. Sabe... no semestre passado eu tirei seis e meio de português. Minha mãe ficou bem brava...

A história não havia terminado, mas tive a sensação de que já não precisava mais falar muita coisa. Minha narrativa sobre essa menina parece ter causado um golpe dentro de nós e entre nós. Isso pode ser constatado na atmosfera da sala. Ninguém mais ri, uma das alunas está emocionada, e sua colega lhe passa um lenço de papel e lhe faz um afago na mão. Há uma certa evitação do contato verbal. O grupo comporta-se como se descobrisse ser portador de uma condição de saúde muito grave. Há tristeza, mas também um certo aprofundamento da experiência de estarmos ali conversando sobre essas coisas, acho que há um desenvolvimento dos sentimentos de intimidade e cumplicidade entre nós. Alguém corta o silêncio:

- Ela não tinha TDAH, ela só não sabia brincar.

Eu concordo plenamente. Acrescento apenas que o esforço de "tirar dez" pode ser bastante obstrutivo para a brincadeira e a imaginação. Digo ainda que todos esses elementos não estão localizados organicamente, não são visíveis em tomografias computadorizadas e não são audíveis com o estetoscópio. Só podem ser vistos nas sutilezas dos vínculos humanos. O grupo torna-se pensativo e passa a demonstrar curiosidade sobre o que aconteceu com M.: se ela ficou no ambulatório, se precisou tomar alguma medicação, se seus pais também receberam algum tipo de acompanhamento, quantos anos ela tem agora, se ainda a vejo. Respondo a algumas perguntas.

Nesse momento, a secretária de nosso serviço entra na sala e me avisa que o paciente que estamos esperando para a entrevista acabou de chegar, ele nos deixou esperando por uns 15 minutos. Ficamos animados pela atividade clínica que se anuncia.

Reforço algumas orientações que se mostraram úteis nos encontros anteriores. Essa não será uma consulta médica e não usará a técnica de anamnese à qual estão acostumados; peço que fiquem atentos às suas próprias reações ao contato com o paciente - informação pouco relevante à investigação do organismo, mas muito importante para o que estamos desenvolvendo. Pergunto se alguém quer falar antes de chamarmos o paciente. Vejo que a maioria deles está começando a vestir o jaleco branco que se encontrava guardado na mochila. Trata-se de um hábito adquirido ao longo do curso, no qual todo atendimento de pacientes deve se dar através desse uniforme. Um deles me pergunta se devem colocar o jaleco, o que provoca um efeito de congelamento na ação dos demais. Respondo que talvez não precisem dele. Ouço a seguinte resposta:

- Mas, se eu tirar o jaleco, o paciente não vai conseguir acreditar que eu sou um aluno de medicina.

Seu colega lhe responde:

- Desencana, bota o jaleco e vai. Os pacientes nem olham pra nossa cara mesmo.

Eu me pego comovido pelas duas frases. Sinto que elas estendem a cumplicidade que estamos criando e que me convidam a vislumbrar um pouco melhor a intimidade do grupo. Fico com a impressão de que tentam lidar com a ansiedade despertada pela atividade clínica que se aproxima. Estão pensando sobre sua fragilidade e sua insuficiência na clínica e na construção de sua identidade como médicos. Eles parecem divididos em dois subgrupos que se diferenciam pela estratégia a ser adotada diante dessa ansiedade em erupção. Um subgrupo quer aplacar esse medo pelo uso dos jalecos brancos, como se fosse um amuleto para quem vai rumo ao desconhecido. O outro fabrica uma ideia benzodiazepínica para que essa angústia não os ocupe mais: a de que os pacientes não prestam atenção a eles. Observações anteriores informam que esta suposição está muito errada. O grupo conversa por alguns instantes e chega a uma solução, a saber, que cada um faça como achar melhor para si. Olham para mim em busca de aprovação, e eu lhes ofereço autonomia.

Antes de o paciente entrar em nossa sala, acho oportuno anotar aqui algumas considerações sobre o momento da formação médica na qual essa atividade está inserida. Como já introduzido pela conversa que estava tendo com aquela moça no início da manhã, o 5º e o 6º ano da graduação são os últimos, e são chamados de "internato". Esse nome é significativo e sugere a imersão que os graduandos terão no hospital e nas atividades clínicas das diversas especialidades ao longo desses dois anos. Trata-se de um momento fundamental para a internalização do método anatomoclínico, método pautado pela objetividade e que busca traçar uma relação de causa e efeito entre aspectos da clínica e o organismo de cada paciente. Esse processo de internalização se dá desde o começo do curso, mas poderíamos pensar que o internato é sua apoteose. Essa construção, apesar de estar centrada nas capacidades intelectuais, demonstra um aspecto afetivo que penso ser fundamental. A internalização desse jaleco tem a capacidade de diminuir o sentimento de angústia e ansiedade da prática médica em geral. Isso acontece à medida que o método anatomoclínico propõe uma rotina de comportamento e pensamento no contato com um paciente. "Identificação", "Queixa e duração", "História pregressa da moléstia atual", "Antecedentes pessoais", "Antecedentes familiares", "Interrogatório sobre os diversos aparelhos", "Exame físico", "Exames complementares", "Hipótese diagnóstica sindrômica", "Hipótese diagnóstica etiológica" etc. O fluxo organizado e ritmado dessas ações tem um efeito tranquilizador diante das doenças, das dores do médico e de seu paciente, e da morte - elemento que estrutura esse ofício. Em uma expressão radical desse fenômeno, o que era apenas um ritual tranquilizador transforma-se, e confere ao médico poder sobre a vida e a morte. Com seu método, ele não precisará mais sentir medo ou insegurança, e tampouco seus pacientes. Eles serão salvos de toda dor e todo sofrimento. Aliás, nesse estado não estamos mais falando de um médico propriamente, mas sim de um feiticeiro que tudo pode tratar ou curar com seu pensamento ou, por vezes, apenas com sua presença. Aqui está o furor curandis. Lembro apenas de passagem que esses fenômenos não são prerrogativas da atividade médica, mas podem travestir-se com o jargão psicanalítico, religioso, místico etc. Além disso, a fantasia pode estar sendo compartilhada também pelos pacientes, e aqui está o germe do efeito hipnótico-sugestivo.

Assim, tento pensar na dificuldade da tarefa que estou lhes propondo. Ali comigo estão pessoas que desejam ser profissionais competentes e que buscam apreender um método objetivo do modo mais integrado possível. Ao chegarem na segunda-feira de manhã, o trem no qual eles estavam viajando é vítima de um descarrilhamento, a viagem sofreu uma mudança radical em seu itinerário. Estou aqui lhes pedindo que abandonem esse objetivo por algumas horas para o desenvolvimento de outras habilidades. A insegurança despertada é clara. É possível observar as consequências do abandono do jaleco: o crescimento da insegurança (e vez ou outra o da curiosidade também) diante de uma nova situação.

Voltando à sala número 2, eles estão a me perguntar o que sei sobre aquele paciente. Digo que muito pouco: seu nome, sua idade e que fora encaminhado para nossa entrevista pelo psiquiatra que o atende em um dos ambulatórios daquele instituto. Em seguida, pergunto se algum deles quer conduzir a entrevista. Os que me olham o fazem com horror. Outros agarram o celular em busca de invisibilidade. Uma das alunas me olha e balança com força a cabeça. Diante das negativas, vou até a sala de espera para buscar o paciente.

F. é um homem de quase 50 anos, alto, obeso, de cabelos grisalhos, com a pele branca e muito delicada. Usa óculos de armação espessa, e atrás das lentes estão os olhos pequenos e distantes. Minha voz fala o seu nome, e ele se assusta, estava dormindo acordado. Ele parece anestesiado. Com a minha indicação, dirige-se de modo lento e descompassado até a sala. Ele entra, acorda mais um pouco ao ver sua plateia e emite um "bom dia" envergonhado. O grupo responde. Ele senta-se, eu também e tento fazer uma introdução:

- Olá, F., essa entrevista é uma triagem...

Ele me interrompe, mostra-se um pouco menos sonolento e passa a falar como se estivesse lendo um texto pronto. Algo semelhante a um robô:

- Bom dia eu sou bipolar e vim aqui porque meu psiquiatra me disse para vir para ver se consigo melhorar eu não estou nada bem na minha família não tem outros casos só minha mãe que é depressiva e toma remédios também eu faço acompanhamento com clínico geral pela obesidade e tomo sinvastatina meu primeiro surto aconteceu quando eu tinha 27 anos eu entrei em mania psicótica tive um quadro clínico muito típico fiquei com o humor elado meu pensamento era arborizado e tinha sintomas psicóticos de grandeza fiquei internado por dois meses na clínica x e lá me diagnosticaram e me deram lítio eu melhorei até consegui voltar a viver normal mas daí quando eu tinha 40 anos eu parei de tomar as medicações e voltei a ter outro surto eu fui internado aqui no ipequê eu tenho uns sintomas muito fortes os alunos gostam de me ver porque aprendem bastante daí me derammuito remédio olanzapina depakote e abilify eu saí da crise e esse ano comecei a ficar muito triste muito triste voltei no médico e ele aumentou as doses não deu certo agora estão tentando efexor eu só tinha pensamentos ruins ficava pensando em besteira pensava em me machucar em me matar mas era só um pensamento de morte não se preocupe doutor não vou tirar minha vida não tenho coragem como vocês dizem é só uma ideação suicida pouco estruturada sem planejamento concreto acho que os remédios ajudaram mas agora só durmo não consigo fazer mais nada...

Olho com o canto dos olhos para a turma. Vários deles estão com um caderno aberto à sua frente escrevendo de modo convulsivo para acompanhar a torrente de informações despejadas por F. Em sua maioria são os que estão de jaleco. Os outros parecem mesmerizados pelo mantra de sua fala. Sinto um desconforto enquanto escuto seu relato. O comportamento de F. parece ter sido recortado e colado com base em algum atendimento psiquiátrico bastante sucinto e didático. Tive a sensação de que talvez ele mesmo fosse um colega da área psi. Não valorizei tal imagem como metapsicológica e perguntei:

- Você trabalha com o quê?

- Sou engenheiro de produção, mas não consigo trabalhar faz muito tempo por causa dos meus sintomas... [e retoma o excelente relato que vinha fazendo sobre si mesmo].

Interrompo seu relatório e pergunto:

- F., você preparou isso que está falando antes de entrar aqui na sala?

F. pareceu despertar e passou a falar de modo menos automático:

- Olha, preparar eu não preparei, mas acho que já contei essa história tantas vezes e pra tantos psiquiatras, que já está no meu repertório principal.

- Sei... eu queria saber do resto do repertório.

- Do resto? Eu já nem sei se tem resto. Pra ser sincero, minha vida toda é isso de remédios e consultas. A gente vem aqui pra falar disso, eu nem sei o que te falar se não for essas coisas...

F. se cala e se emociona. Uma lágrima mal começa a sair de baixo das lentes, e ele a seca com rapidez. Os alunos já não escrevem nada. Voltaram a olhar para ele. A mesma moça dos lenços de papel passa um através dos seus colegas até chegar a F. Ele agradece e se emociona novamente. Nós fomos transportados para um momento considerável de silêncio e introspecção. F. volta a falar, agora como uma pessoa mais à vontade em seu corpo. Minha impressão principal é que se trata de uma outra pessoa, que estava em coma e que agora acordou. Durante essa nova etapa da entrevista, um dos alunos levanta a mão indicando sua vontade de falar, e eu lhe dou a palavra.

- O senhor poderia falar mais sobre aquilo de suicídio? Você já tentou se matar? Alguém da sua família já se matou? Você não tem nenhum plano mesmo de se machucar? Poderia responder?

De modo surpreendente, F. vai respondendo e desliza de volta para o modo robótico de falar, como se estivesse lendo um capítulo do livro Autoagressões no Transtorno Afetivo Bipolar. O autor da pergunta perde o contato visual e volta a escrever de modo rápido. Outros o seguem. Acho a transição impressionante, voltamos ao script inicial. A partir desse ponto a entrevista prossegue com os alunos metralhando o paciente com perguntas pragmáticas. Ele as responde com precisão e satisfação a respeito do grau de detalhe que consegue nos fornecer. Depois de uma hora de conversa, agradeço sua presença e encerramos a triagem. Ele agradece efusivamente e pergunta quando poderá voltar para conversar de novo com a gente - diz que gostou da experiência -, e depois nos despedimos.

Fecho a porta, retorno para minha cadeira enquanto penso sobre nosso grupo. Estamos nitidamente cansados. Digo isso, e eles respondem que não estão acostumados a ficar tanto tempo assim conversando com alguém. Alguns iniciam um alongamento adaptado àquela posição. De todas as mochilas começam a sair alimentos matutinos: iogurtes, frutas, barrinhas de cereais, chocolates, sucos etc. Comem com o orgulho de quem conseguiu atravessar uma tarefa muito penosa, como se tivessem corrido uma maratona. Em um clima de refeição em conjunto, voltamos a conversar. Uma deles toma a palavra e me pergunta:

- Você acha que ele é bipolar mesmo?

- Não sei, acho que não estava prestando atenção nisso.

- Como não? No que você estava prestando atenção?

- No resto.

- Qual resto?

- Ele já tem um psiquiatra pra ficar prestando atenção aos diagnósticos, às medicações e a essas coisas da psiquiatria. Eu fiquei prestando atenção em como ele tratava com a gente e em como a gente tratava com ele.

- E o que você viu?

- Vi que vocês se animaram em fazer muitas perguntas a ele.

- Fizemos errado?

- Não sei se isto aqui tem certo e errado.

Eles me olham com desconfiança, como se essa proposta de pensar fora do registro certo/errado fosse um artifício de minha parte para tentar enganá-los. O pensamento deles talvez pudesse ser traduzido assim: "nem vem com essa de não ter certo e errado. A gente sabe que no fundo tem sim. Pare de nos enganar". Digo que a ideia agora é pensarmos em como se deu nosso encontro e não se fizemos certo ou errado. A proposta é difícil de digerir. Eu prossigo dizendo:

- Eu estava pensando que a maioria das perguntas foi sobre o histórico médico, e não sobre outras partes da vida dele. Por que vocês acham que fizeram essas perguntas?

O rapaz que havia se inquietado com a questão do suicídio:

- Ué, para não comer bola.

- Comer qual bola?

- Não deixar de perguntar aquilo que a gente precisa perguntar. Senão vai ser um daqueles crimes que a gente aprende em medicina legal: imperícia, imprudência, negligência. Na semana passada a gente viu isso em uma aula: se o paciente fala sobre ideias de suicídio, nós precisamos esmiuçar esse sintoma. Não é assim?

- Sim, na psiquiatria é assim mesmo. Mas ele já tem um psiquiatra, e esse nosso encontro é sobre psicoterapia. A ideia é exercitar um jeito diferente de pensar.

- Mas é que daí nós não sabemos o que fazer, nem o que perguntar.

Ele fala com sinceridade. Fico pensando em como promover uma ruptura de campo. Recebo a ajuda preciosa de uma moça:

- Fiquei pensando naquilo que você disse sobre ele ter preparado o que estava falando. Pra mim, ele sentou aí e nem te ouviu, já entrou num modo de piloto automático.

Os demais concordam com sua formulação. Valorizo essa apreensão por ser um deslize do método médico e, principalmente, por revelar uma escuta diferente de sua parte. Estimulo:

- Por que vocês acham que ele estava em "piloto automático"?

Agora eles parecem mais intrigados com essas ideias. Um rapaz:

- Pode ser que ele nem te ouviu direito. Sentou e já engatou o que estava acostumado a falar quando vai para uma entrevista aqui no hospital.

Seu colega:

- Acho que ele falou o que ele achava que a gente ia querer que ele falasse. Ele falou tudo certinho, foi por isso que você disse aquilo de estar preparado, não foi?

- Eu acho que sim.

Ele continua em um tom prazeroso de triunfo:

- Pra poder pegar ele!

- Não é bem "pegar ele"... não é exatamente uma atividade policial, não vamos prender ninguém...

Eles riem. Todos parecem envolvidos com a atividade, quando um deles me avisa que estão atrasados para a aula de Medicina Legal, ou de Bioética, ou alguma outra aula sobre psiquiatria. O grupo rapidamente se apruma para sair, barulhos de zíper fechando com força por todos os lados. Combinamos de continuar com o mesmo texto para a próxima semana. Antes de saírem, eles me entregam uma folha onde há um espaço para o meu visto, comprovando que participaram daquela atividade. Depois eles saem pela porta, tchau, tchau, tchau, até a semana, tchau...

Ao final, duas pessoas vêm em minha direção. O primeiro é um rapaz que revela em voz baixa seu interesse pela área, pede indicação de outros textos que poderia ler além desses que estamos lendo juntos. Reviro minha mochila e lá dentro encontro "A interpretação dos sonhos". Por acaso estava comigo naquele momento, e eu lhe entrego. Aviso que é longo, mas que vale a pena. Sugiro que tenha paciência com a introdução. Ele fica um pouco espantado pelo tamanho do livro, mas agradece e sai animado. A segunda pessoa é a moça que havia chegado antes de todos, ela me diz que gostaria de conversar, pede por indicação de um analista. A peste! Termino a manhã também cansado, mas satisfeito. Segunda que vem tem mais.

 

Referências

Freud, S. (2010). Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? In S. Freud, Obras completas (P. C. L. Souza, trad., Vol. 14, pp. 377-381). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Bion, W. R. (1961). Experiences in Groups. Nova York: Basic Books, Inc.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 25/5/2015
Aceito em: 2/6/2015

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