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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

O lugar do analista e do analisando em Ferenczi

 

Psychoanalyst's and analysand's places in Ferenczi's work

 

El lugar del analista y del analisado en Ferenczi

 

La place de l'analyste et de l'analysant chez Ferenczi

 

 

Marcel Henrique BertonzzinI; Thiago AbrantesII

IMestrando do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). mbertonzzin@gmail.com
IIPsicanalista, mestrando do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). thiabrantes@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca, com ajuda do conceito foucaultiano de "jogos de verdade", realizar uma leitura de parte da obra ferencziana (1919-1933), com o objetivo de delimitar, nestes textos, quais os lugares atribuídos ao analisando e ao analista: quais suas funções, potências e fraquezas, delimitando como isto aparece nas teoria e clínica psicanalíticas e embasando-as. Dado este enfoque, não abordaremos a teorização ferencziana em toda a sua amplitude, mas recortaremos apenas os aspectos que servem ao tema o qual nos propusemos analisar. Inicialmente, apresentaremos os conceitos foucaultianos que instrumentalizaram a leitura dos textos do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi para, então, prosseguirmos a análise destes. O trabalho busca exemplificar um modo de ler a produção de verdades na clínica psicanalítica com o intuito de que este possa ser uma outra possibilidade de realizar o estudo das recentes produções acerca do sujeito/paciente contemporâneo.

Palavras-chave: psicanálise, Michel Foucault, clínica, Sándor Ferenczi


ABSTRACT

Taking Foucault's concept of "games of truth" and after a close reading of part of Ferenczi's work (1919-1933), the authors write about it with the specific purpose of defining the patient's and the psychoanalyst's places in those texts. In other words, this paper aims to identify their tasks, powers and weaknesses, delineating how this can be found in psychoanalytic theory and practice, and describing their foundations. Given this focus, the authors are not going to approach all the Ferenczi's theorization, but they are going to select only those aspects that are related to their purpose in this study. They start with Foucault's concepts that were their tools for the close reading of the Hungarian psychoanalyst Sándor Ferenczi's articles. After that, they are going to analyze Ferenczi's writings. This paper aims to exemplify a way of reading the production of truth in the psychoanalytic practice in order to present another possibility of studying recent productions about contemporary subject/ patient.

Keywords: psychoanalysis, Michel Foucault, clinical practice, Sándor Ferencz


RESUMEN

Este artículo utiliza el concepto de juegos de verdad de Foucault para realizar una lectura de la obra de Ferenczi (1919-1933) con el objetivo de definir cuál es el lugar atribuido al paciente y al analista; cuáles son sus funciones, potencialidades y debilidades, exponiendo cómo esto aparece en la teoría y la clínica psicoanalítica, justificándolas. Teniendo en cuenta este enfoque, no será abordada toda la obra de Ferenczi, sino únicamente los aspectos que sirven al propósito que nos propusimos analizar. Inicialmente se introducen los conceptos de Foucault que instrumentalizarán la lectura de los textos de Ferenczi, para luego proceder al análisis en sí. Este trabajo pretende ejemplificar un modo de leer la producción de verdades en el psicoanálisis con la intención de que pueda ser otra manera de estudiar las recientes producciones sobre el tema del sujeto / paciente contemporáneo.

Palabras clave: psicoanálisis, Michel Foucault, práctica clínica, Sándor Ferenczi


RÉSUMÉ

Cet article, par l'intermédiaire du concept de Foucault de "jeux de vérité", cherche à mener une lecture d'une part de l'œuvre ferenczienne (1919-1933), dans le but de délimiter dans ces textes, quelles sont les places attribuées à l'analysant et à l'analyste: quelles sont leurs fonctions, leurs potentialités et faiblesses, en délimitant comment cela se présente dans la théorie et dans la clinique psychanalytiques, en justifiant ses fondements. Etant donné ce point de vue, on n'abordera pas la théorie ferenczienne dans toute son amplitude, mais on découpera seulement les aspects qui s'approchent du sujet sur lequel nous nous sommes proposé de faire l'analyse. D'abord, nous présenterons les concepts de Foucault qui ont instrumentalisé la lecture des textes du psychanalyste hongrois Sándor Ferenczi, pour poursuivre l'analyse de ces textes. Le travail recherche à exemplifier une façon de lire la production de vérités dans la clinique psychanalytique, dans le but de pouvoir être une autre possibilité de mener l'étude des productions récentes concernant le sujet/patient contemporain.

Mots-clés: psychanalyse, Michel Foucault, clinique, Sándor Ferenczi


 

 

Introdução

Vivemos hoje uma proliferação de compreensões acerca de novas subjetividades que emergiriam do contexto sociocultural contemporâneo. Sob diferentes nomes e perspectivas, temos a configuração e descrição de sujeitos que desafiam a técnica e, consequentemente, a teoria psicanalítica, forçando mudanças em ambas. Neste texto, procuraremos delimitar as diferentes compreensões ferenczianas sobre a constituição subjetiva dos assim chamados "pacientes difíceis", apontaremos aí o começo desta reflexão sobre as modificações da teoria e da técnica em busca da adaptação aos novos pacientes. Focaremos nossa análise nas últimas obras ferenczianas (1919-1933) haja vista ser nelas que encontramos a discussão mais profícua sobre o tema.

Iremos propor algumas reflexões valendo-nos do conceito foucaultiano de jogos de verdade (Foucault, 1973/2003) para instrumentar uma leitura das mudanças teórico-clínicas na teoria de Ferenczi, isto no intuito de adicionar outro elemento no estudo da configuração das novas patologias/subjetividades. A hipótese defendida é que, para além das mudanças sócio-históricas ocorridas ou das particularidades biográficas dos pacientes (e sem necessariamente desconsiderá-las), estas novas configurações subjetivas assim o são por efeito da própria maneira de construção da teoria psicanalítica, de seu modo de recortar seu objeto. Para tanto, discorreremos primeiramente a respeito dos conceitos foucaultianos que instrumentalizarão o estudo para depois analisar alguns textos do supracitado psicanalista, os quais tratam da mudança teórico-clínica efetuada por ele na compreensão dos assim chamados "pacientes difíceis".

 

Foucault: jogos de verdade e produção de discursos

Toda a problemática de Foucault, como ele mesmo afirma (Foucault, 1984/2004), foi compreender as relações entre "sujeito e verdade"; para tanto investigou diversas formas de poder e a relação com as subjetividades, buscando mostrar como certas técnicas de poder1 puderam configurar tipos de subjetividades. Primeiramente, caberia explicar de modo sucinto o conceito de poder para Foucault, já que este se presta frequentemente a mal-entendidos, vamos, então, às suas próprias palavras:

Quase não emprego a palavra poder, e se algumas vezes o faço é sempre para resumir a expressão que sempre utilizo: as relações de poder. Mas há esquemas prontos: quando se fala de poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política, em um governo, em uma classe social dominante, no senhor diante do escravo etc. Não é absolutamente o que penso quando falo das relações de poder. Quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam elas - quer se trate de comunicar verbalmente, como o fazemos agora, ou se trate de relações amorosas, institucionais ou econômicas -, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas (Foucault, 1984/2004, p. 277)

Tais relações estão, portanto, presentes em qualquer lugar, existem de diversos modos e não se limitam somente aos efeitos negativos, são sempre instáveis, ou seja, a qualquer momento o vetor de forças em ação pode se inverter mudando os papéis daqueles que ocupam a posição de poder e aqueles que ocupam a de resistência.

Seguindo a problemática foucaultiana sobre a relação entre "sujeito e verdade", passamos pelo conceito de poder para chegar à formulação acerca da noção de verdade para o autor: de modo geral, para este autor, as verdades são produzidas de acordo com certas regras, compreensão explicitada no conceito de jogos de verdade (Foucault, 1973/2003). A noção de jogo aqui está no sentido de que existem certas regras para se produzir conhecimento em determinada área do conhecimento, ou seja, somente ao valer-se de certos procedimentos, conceitos, posturas etc. um conhecimento pode ser visto como "verdadeiro" para certo campo científico.

Os jogos de verdade delimitam como algo pode ser pensado mas também o que pode ser pensado dentro de um certo campo epistemológico. Cabe sempre reforçar que Foucault aborda a questão da verdade não em sua relação com a realidade externa, como se coubesse aos diversos campos de estudo descobrir, progressivamente, qual é a verdade acerca de tal ou qual fenômeno; sendo assim a verdade discutida aqui é sempre de acordo com o que pode ser pensado por uma certa disciplina. Mais uma ressalva acerca do conceito de verdade para Foucault: de fato esta, tal como ele a aborda, tem a marca da construção, um saber é construído por mecanismos e modos de pensar determinada coisa, mas isto não quer dizer que retira dela sua validade.

Estamos, então, explicitando as regras que tornam possível a formulação de um certo conhecimento e não questionando propriamente a validade deste conhecimento. Desta maneira, procuraremos aqui demonstrar como o campo psicanalítico pode formular alguns conhecimentos e não outros enquanto manteve-se uma certa compreensão de sujeito, ou ainda da constituição de sua subjetividade. Percorrendo, breve e comparativamente, o desenvolvimento e funcionamento dos sujeitos para Freud e Ferenczi, procuraremos evidenciar como a mudança de concepção teórica justifica e legitima as mudanças clínicas efetuadas por este, fornecendo breves indícios de como o psicanalista húngaro procurou, num jogo de aproximação e de afastamento da teoria freudiana "clássica", produzir outra forma de conhecimento no interior do corpo teórico da própria psicanálise, haja vista que Ferenczi nunca deixou de ser analista.

 

Análise dos textos ferenczianos

Começaremos nossa análise por um texto de Ferenczi que traz já no título a dificuldade técnica como ocasião de uma mudança teórico-clínica, trata-se de "Dificuldades técnicas de uma análise de histeria" (Ferenczi, 1919/2011). Já no primeiro parágrafo podemos ler a justificativa da mudança da técnica atribuída ao não desenvolvimento do tratamento:

Uma paciente, que punha tanta inteligência quanto zelo em obedecer às regras do tratamento psicanalítico e a quem tampouco faltava uma certa compreensão teórica, não vinha registrando nenhum progresso havia algum tempo, após uma relativa melhora de sua histeria a creditar, sem dúvida, à primeira transferência. Como o trabalho continuava sem avançar, recorri a uma medida extrema e fixei um prazo para o tratamento, esperando fornecer assim à paciente um motivo suficiente de trabalho (Ferenczi, 1919/2011, p. 1)

Mais adiante, Ferenczi revela que a própria paciente sentia-se satisfeita com o trabalho realizado até então e, ao término do prazo definido por ele, dispensou-a sem considerá-la curada. Tempos depois, esta retorna uma segunda e uma terceira vez, sendo que nesta última, ele identifica nela "uma forma larvada de masturbação" (Ferenczi, 1919/2011, p. 2), quando ela apertava "as coxas uma nas outras" (idem). Ferenczi ocuparia, segundo sua própria compreensão, um papel mais ativo para com sua paciente: ele a proíbe de continuar estes movimentos, obrigando-a a manter as pernas afastadas. Esta modificação técnica, como o próprio Ferenczi explicita, provém da teoria freudiana,2 acompanhemos sua explicação:

É ao próprio Freud que ficamos devendo o protótipo dessa "técnica ativa". Na análise de histerias de angústia, ele recorreu - em caso de estagnação análoga - ao expediente que consiste em exigir dos pacientes que enfrentem precisamente as situações críticas passíveis de suscitar neles a angústia, não para "habituá-los" a essas coisas angustiantes, mas para desligar de suas cadeias associativas afetos mal ancorados. Espera-se assim que as valências no princípio não saturadas desses afetos que passaram a flutuar livremente atraiam, de forma prioritária, as representações que lhes são qualitativamente adequadas e historicamente correspondentes (Ferenczi, 1919/2011, p. 7)

Como fica claro no trecho, o que baseia a mudança na técnica é uma "estagnação" da análise conjuntamente com uma compreensão teórica e metapsicológica do que se passa com o paciente, de qual é a causa de seu comportamento. Também vemos o cuidado do autor em se inserir junto a Freud quando fala de suas mudanças técnicas: estas ocorrem de uma derivação (podemos dizer de uma radicalização) de um princípio estabelecido pelo próprio criador da psicanálise.

O primeiro parágrafo de "As fantasias provocadas" (1924/2011) possui uma interessante argumentação acerca de princípios técnicos e teorias que os embasam na psicanálise. Ferenczi começa argumentando que, embora a associação livre seja um dos princípios da psicanálise, esta pode estar, em certas ocasiões, a serviço da resistência do paciente, ou seja, o sujeito, ao dizer tudo que lhe ocorria acabava por "desconversar" (Ferenczi, 1924/2011, p. 261) acerca do que realmente importava numa situação analítica. Se a associação livre era uma regra imposta ao analisando, o analista possuía uma outra que, neste caso específico, competia com a primeira: este deveria desmascarar as resistências do paciente, neste caso interrompendo-lhe o fluxo associativo que só fazia mascarar a real problemática do analisando.

Ferenczi afirma que sempre estamos, de alguma maneira, direcionando as associações do paciente, seja por nossas interpretações ou por silêncios, reações etc., mostrando assim um papel bastante ativo do analista mesmo quando este não fornece interjeições ou injunções, tais como Ferenczi preconizou em sua "técnica ativa". Segundo ele, não existiria qualquer problema em proceder desta maneira, seriam as associações do paciente que confirmariam ou refutariam a interpretação fornecida, livrando assim a psicanálise e o psicanalista de qualquer aspecto sugestivo.3

Nesse ponto, cabe destacar que a discussão ferencziana esconde e revela um modo de produzir verdades dentro da própria clínica psicanalítica: estas serão balizadas pelas associações do paciente, embora, mesmo quando ele as aceite, ainda faculta ao psicanalista retificá-las frente a novos campos associativos. Chegamos de fato a um impasse que em nossa opinião é pouco explorado: como validar uma interpretação psicanalítica, já que a aceitação ou rejeição do paciente nada dizem de pronto e o psicanalista pode, mesmo após o paciente ter concordado com a interpretação, anulá-la frente a novos dados apresentados.4

Com essa certeza de que o analista direciona de alguma maneira as associações do paciente, argumenta que, para certos tipos de sujeito - os quais lhe parecem "com certeza ter uma atividade fantasística mas particularmente pobre, aqueles indivíduos sobre os quais as experiências mais marcantes não parecem deixar qualquer vestígio" (Ferenczi, 1924/2011, p. 263) - procura explicitamente provocar fantasias, ou seja, incita-os a criar, artificialmente, uma cena e um modo de reagir a ela. Acaba modificando a técnica sem de fato modificá-la. Sua argumentação é, novamente, a de uma radicalização do que já se passa naturalmente na clínica psicanalítica freudiana. É impossível não destacar, mesmo que brevemente, a concepção de normalidade que ordena este tipo de intervenção: o paciente deveria ter um tipo de atividade fantasística maior, mas, por efeito do recalque, esta não está podendo se manifestar ou, ainda, deveria reagir de tal ou qual maneira que acaba tendo de ser "guiada" pelo analista.

Recapitulemos, de forma rápida, o caminho efetuado até aqui: certos pacientes não podem se beneficiar do modo clássico de análise, baseando-se na hipótese de que a energia que deveria promover o avanço desta estava sendo desperdiçada em atividades masturbatórias larvais, Ferenczi, em nome do princípio de abstinência freudiano, impede que tais comportamentos se repitam. Outro modo de impedir o andamento da análise era a utilização abusiva da associação livre para evitar o trabalho analítico, aqui Ferenczi novamente impede que este movimento ocorra. Se isto altera o curso associativo do paciente, também o faz a interpretação, e, radicalizando seu mecanismo, Ferenczi começa a incentivar um certo tipo de associação em seus pacientes, modificação baseada tanto numa compreensão normativa do sujeito (eles deveriam associar mais ou serem afetados de forma mais intensa) quanto em uma explicação psicanalítica (seria o recalque do material que impede sua manifestação). Acreditamos que até aqui já podemos vislumbrar de que forma a teoria produz e permite um certo número de fenômenos e a compreensão destes, é ela que embasa as alterações e recortes feitos por Ferenczi, que, ainda sem destacar-se de uma concepção estritamente freudiana, modifica a técnica, o que, como não poderia deixar de ser, modifica também seus resultados.

No texto "O problema do fim da análise" (Ferenczi, 1927/2011) podemos identificar o início de uma compreensão propriamente ferencziana no que concerne à compreensão do paciente e da técnica psicanalítica e isto, principalmente, pela retomada da importância da realidade objetiva e da análise do analista para o trabalho na clínica, esta última ganhando o status de "segunda regra fundamental da psicanálise". Ferenczi retoma a realidade objetiva como ponto fundamental de uma análise levada a termo:

A nossa principal tarefa no tratamento de um caso de histeria é essencialmente a exploração da estrutura fantasística, automática e inconscientemente produzida ... Isso nos levou a pensar que o desvendamento da fantasia - que podia ser considerada uma realidade de espécie particular (Freud chamava-a uma realidade psíquica) - era suficiente para produzir a cura; ora, saber em que medida esse conteúdo fantasístico também representa uma realidade efetiva, quer dizer, física, ou a lembrança de tal realidade, era considerado de importância secundária para o tratamento e seu êxito. Minha experiência ensinou-me, porém, outra coisa. Adquiri a convicção de que nenhum caso de histeria pode ser considerado definitivamente solucionado enquanto a reconstrução, no sentido de uma separação rigorosa do real e da pura fantasia, não estiver consumada. (Ferenczi, 1927/2011, p. 19, grifos nossos)

Apreende-se deste trecho que existiriam, portanto, meios de separar a chamada "realidade psíquica" da "realidade objetiva" e esta manobra tornar-se-ia condição primordial para uma análise ser reconhecida como bem-sucedida. Temos aqui, também, uma diferenciação clara dos pensamentos de Ferenczi em relação aos de Freud: este não dá a devida importância à realidade objetiva, a qual se mostrou fundamental para a cura na prática clínica daquele.5 Deste momento em diante, os textos de Ferenczi procuram cada vez menos aproximar suas ideias daquelas de Freud, sua argumentação no sentido de aproximar-se da psicanálise basear-se-á muito mais em sua posição histórica e política dentro da instituição psicanalítica do que na releitura das compreensões freudianas a respeito da clínica e mesmo da etiologia das neuroses: sem sair do campo psicanalítico, ele constitui uma outra leitura dos fenômenos que se passam em sua prática clínica.

Outro ponto fundamental da mudança ferencziana no que chamamos de "jogos de verdade psicanalíticos" está na releitura da chamada transferência negativa, nela Ferenczi vê um movimento do paciente de testar a confiabilidade, paciência e sinceridade do analista, o qual deve suportar tudo isto compreendendo que o comportamento atual do paciente, ao que parece, procura repetir "situações na infância em que educadores e pais incompreensivos reagiram às chamadas 'maldades' da criança por meio de manifestações afetivas intensas, levando assim a criança a adotar uma atitude de recusa" (Ferenczi, 1927/2011, p. 24). Neste ponto acreditamos estar um movimento que merece nossa atenção na obra ferencziana: embora traga uma certa positividade para os comportamentos desafiadores do paciente, livra do psicanalista toda a responsabilidade por ele, são apenas encenações originárias e legitimamente direcionadas a outras pessoas. Se ao analista cabe suportar todas essas ofensivas, ao menos ele pode descansar sabendo que estão deslocadas, ou seja, não lhe são direcionadas na realidade. Para Ferenczi, isto só é possível - suportar esta carga - se o analista realizar sua análise até o fim. Encontramos duas imposições, portanto, ao analista: realizar a termo sua análise e/para suportar todos os ataques de seus pacientes.

Em seu outro texto intitulado "Elasticidade da técnica psicanalítica" (Ferenczi, 1928/2011), o autor colocará o paciente como ator fundamentalmente responsável pelo sucesso ou fracasso do trabalho analítico, embora reconhecendo este estado de coisas:

Mas não podemos deixar passar sem resposta a objeção habitualmente levantada pelos pacientes, a saber, que não acreditam no nosso método ou na nossa teoria. Explicamos desde o início que a nossa técnica renuncia por completo ao presente imerecido de tal confiança antecipada; o paciente só tem que acreditar em nós se as experiências do tratamento o justificarem. Mas não podemos anular uma outra objeção, que consiste em dizer que remetemos assim a priori a responsabilidade de um eventual fracasso de tratamento à impaciência do doente e devemos deixar que ele decida se quer ou não, nessas condições difíceis, assumir o risco do tratamento. (Ferenczi, 1928/2011, p. 33)

Nenhuma questão aqui sobre os papéis desempenhados por cada um: ao analista cabe apenas explicitar as dificuldades que advirão no tratamento empreendido, o paciente deve aceitá-los completamente, pois disto depende o sucesso deste. No plano da percepção e intervenção clínica, encontraremos aprofundamentos e algumas modificações em relação ao seu texto citado anteriormente, acompanhemos um longo trecho deste último:

Nada de mais nocivo em análise do que uma atitude de professor ou mesmo de médico autoritário. Todas as nossas interpretações devem ter mais o caráter de uma proposição do que de uma asserção indiscutível, e isso não só para não irritar o paciente, mas também porque podemos efetivamente estar enganados ... É evidente que não penso que o analista deva ser mais do que modesto; ele tem todo o direito de esperar que a interpretação apoiada na experiência se confirme mais cedo ou mais tarde, na grande maioria dos casos, e que o paciente ceda à acumulação de provas. Mas, em todo caso, é preciso aguardar pacientemente que o doente tome a decisão; toda impaciência por parte do médico custa ao doente tempo e dinheiro, e ao médico uma quantidade de trabalho que teria perfeitamente podido evitar ... Aceito fazer minha a expressão "elasticidade da técnica analítica" forjada por um paciente. É necessário, como uma tira elástica, ceder às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões, enquanto a falta de consistência de uma ou de outra dessas posições não estiver plenamente provada. A única pretensão alimentada pela análise é a da confiança na franqueza e na sinceridade do médico, não lhe fazendo mal algum o franco reconhecimento de um erro. (Ferenczi, 1928/2011, pp. 36-37)

O analista deve abandonar seu saber e "sentir com" o paciente, mas na realidade tudo isto diz mais do modo como transmitir o saber adquirido, "adivinhado", do que sobre seu conteúdo: trata-se, enfim, de não enfrentar o paciente, de aliar-se a ele em vez de combatê-lo. Podemos ver uma nova relação de poder aqui, não mais aquela de ensino ou de confrontação, mas uma visão de aliança formada pelo par analista-analisando, na direção das opiniões do analista até que estas se provem erradas: o principal é manter a confiança do paciente de que seu analista é alguém sincero e modesto, uma pessoa a quem só interessa a verdade a respeito de seu paciente, alguém "acima de qualquer suspeita", que possa cativar e inspirar confiança.

Este mesmo espírito continuará a ser explicitado no texto "Princípio de relaxamento e neocatarse" (Ferenczi, 1930), no qual, com a justificativa de conseguir tratar pacientes até então muito difíceis e também de não repetir o trauma infligido na criança pela frieza do adulto/analista, temos:

Em toda uma série de casos, em que a análise fracassou diante de resistências aparentemente insolúveis dos pacientes, uma modificação da tática de frustração, antes rigorosa demais, acarretou, quando de uma nova tentativa de análise, resultados que são muito mais profundos. ... numa nova tentativa em que permitia maior relaxamento, tive que lutar por muito menos tempo contra as manifestações de resistências pessoais, até então intermináveis, o que permitia ao paciente e ao médico unirem suas forças de trabalho para elaborar, com menos choques, o que eu chamaria "resistências objetivas" produzidas pelo material recalcado. Ao comparar a atitude inicialmente obstinada e fixa do paciente com a flexibilidade que resultava do relaxamento, pode-se constatar nesses casos que o paciente vê a reserva severa e fria do analista como a continuação da luta infantil contra a autoridade dos adultos, e que repete agora as reações caracteriais e sintomáticas que estiveram na base de sua neurose propriamente dita. (Ferenczi, 1930/2011, p. 70)

Aqui encontramos uma certa mudança de compreensão do trabalho do psicanalista para com seu paciente: não mais com as analogias de luta utilizadas anteriormente por Freud, nas quais o primeiro deveria prevalecer sobre as resistências do segundo, desmascarando-as, mas sim numa proposta de aliança com o paciente, proveniente da compreensão de que, o que se passa no tratamento destes casos está relacionado com uma reedição de experiências negativas da criança com adultos autoritários. Dois movimentos, portanto: o paciente comporta-se como uma criança que se revolta contra a autoridade paterna (baseado no conceito de transferência) e o analista comporta-se como alguém que tudo permite, que convida esta criança a relaxar e exercer sua atividade (mesmo a agressiva) sem recriminações.

Ferenczi continua, neste mesmo artigo, a enumerar os efeitos que esta mudança teve para a experiência clínica: os pacientes manifestavam sintomas histéricos até o momento inexistentes, ocorriam alterações de consciência com amnésia retroativa, com "proporções de um verdadeiro estado de transe, no qual fragmentos do passado eram revividos, e a pessoa do médico era então a única ponte entre o paciente e a realidade" (Ferenczi, 1930/2011, p. 72). Estes fenômenos levaram Ferenczi a modificar sua compreensão da própria neurose e, consequentemente, dos pacientes que a ele recorriam, finalmente conferindo maior peso na incidência do trauma na origem da neurose.

Após ter dado toda a atenção devida à atividade fantasística como fator patogênico, fui levado, nesses últimos tempos, a ocupar-me cada vez com maior frequência do próprio traumatismo patogênico. Verificou-se que o traumatismo é muito menos frequentemente a consequência de uma hipersensibilidade constitucional das crianças, que podem reagir de um modo neurótico até mesmo a doses de desprazer banais e inevitáveis, do que de um tratamento verdadeiramente inadequado, até cruel. As fantasias histéricas não mentem, elas nos contam como pais e adultos podem, de fato, ir muito longe em sua paixão erótica pelas crianças; e, por outro lado, são propensos, se a criança se presta a esse jogo semi-inconsciente, a infligir à criança totalmente inocente punições e ameaças graves, que a abalam e a perturbam, causam nela o efeito de um choque violento e são para ela inteiramente incompreensíveis. (Ferenczi, 1930/2011, p. 73)

É a retomada da realidade objetiva que embasa a compreensão ferencziana a respeito de seus pacientes, seu caminho em direção à maior permissividade acabou desembocando na ideia de que estes realmente merecem esta permissividade, eles foram traumatizados de fato e somente agora, crescidos e nas mãos de um psicanalista com suficiente tato, podem trabalhar o que lhes aconteceu quando eram apenas crianças. Ferenczi retoma, como ele próprio afirma (Ferenczi, 1930/2011, p. 62), o abandono freudiano da realidade objetiva na etiologia da neurose. Fazendo-o assim, autoriza certos comportamentos do paciente (especialmente aqueles manifestos na transferência negativa) e defende outros por parte do analista (paciência virtualmente sem limites e suas consequências).

Seguiremos então para o penúltimo texto a ser analisado aqui, trata-se de "Análises de crianças com adultos" (Ferenczi, 1931) no qual encontraremos a formulação condensada dos efeitos destas mudanças. Logo no início do texto, vemos uma mudança bastante interessante sobre um aspecto da clínica: a responsabilidade por seu sucesso desloca-se do paciente para o analista. Se em "Elasticidade da técnica psicanalítica" (Ferenczi, 1928) temos o paciente como aquele que deve suportar o longo e árduo trabalho da análise para obter seus benefícios, aqui é papel do analista adaptar-se às necessidades de seu paciente:

Fórmulas tais como "a resistência do paciente é insuperável" ou "o narcisismo não permite aprofundar mais este caso", ou mesmo a resignação fatalista em face do chamado estancamento de um caso, eram e continuam sendo para mim inadmissíveis. Pensava que, enquanto o paciente continua comparecendo, o fio de esperança não se rompeu. Portanto, eu tinha que fazer-me de forma incessante a mesma indagação: a causa do fracasso será sempre a resistência do paciente, não será antes o nosso próprio conforto que desdenha adaptar-se às particularidades da pessoa, no plano do método? (Ferenczi, 1931/2011, p. 81)

Deslocando, então, a responsabilidade do tratamento para o analista, deixa-se o paciente livre para comportar-se da maneira que julgar mais apropriada, levando assim ao relaxamento prenunciado por Ferenczi. O analista deve adaptar-se e suportar todas as investidas do paciente, muito embora neste escrito, Ferenczi já aponta para uma certa mudança em sua prática a este respeito: se antes, na "Elasticidade da técnica psicanalítica" (1928) devia ocorrer um sentir com o paciente, agora enfatiza novamente que não pode haver qualquer dissimulação nesta empatia (Einfühlung), os sentimentos do analista devem ser sinceros também quanto ao seu desagrado:

É uma vantagem para a análise quando o analista consegue, graças a uma paciência, uma compreensão, uma benevolência e uma amabilidade quase ilimitadas, ir o quanto possível ao encontro do paciente ... O paciente ficará então impressionado com o nosso comportamento, contrastante com os eventos vividos em sua própria família, e, como se sabe agora protegido da repetição, atrever-se-á a mergulhar na reprodução do passado desagradável. ... É frequente os pacientes procurarem provocar a nossa suposta perversidade escondida, recorrendo a maldades, sarcasmos, cinismos, diversas indelicadezas e até mesmo a caretas. Não há nenhuma vantagem em bancar nessas condições o homem sempre bom e indulgente; é mais aconselhável confessar honestamente que o comportamento do paciente nos desagrada, mas que devemos nos controlar, sabendo que, se ele se dá ao trabalho de ser malévolo, será por alguma razão. (Ferenczi, 1931/2011, pp. 85-86)

Neste texto, então, Ferenczi segue em sua compreensão de que o paciente, cedo ou tarde, comportar-se-á como uma criança e, embasado pela compreensão de que a experiência de uma análise deve contrastar com a realidade vivida na infância pelo paciente, esta criança-paciente será ouvida, legitimada em suas atitudes malévolas e acompanhada na procura das causas de seu sofrimento. Ferenczi, entretanto, percebe que as coisas não podem continuar indefinidamente nestes termos, seus pacientes tornaram-se excessivamente exigentes. O analista, portanto, deve levar ao limite sua compreensão e paciência, mas esta não pode ser infinita, em algum momento algum limite será definido, e o paciente viverá um trauma. Seu entendimento da técnica mais adiante será expandido em sua comparação do analista a uma "mãe carinhosa":

Pode-se afirmar, com razão, que o método que emprego com os meus analisandos consiste em "mimá-los". Sacrificando toda e qualquer consideração quanto ao nosso próprio conforto, cede-se tanto quanto possível aos desejos e impulsos afetivos. Prolonga-se a sessão de análise o tempo necessário para poder aplanar as emoções suscitadas pelo material; não se solta o paciente antes de ter resolvido, no sentido de uma conciliação, os conflitos inevitáveis na situação analítica, esclarecendo os mal-entendidos e remontando à vivência infantil. Procede-se assim um pouco à maneira de uma mãe carinhosa, que não irá deitar-se à noite antes de ter discutido a fundo, com seu filho, e solucionado, num sentido de apaziguamento, todas as preocupações grandes e pequenas, medos, intenções hostis e problemas de consciência que estavam em suspenso. (Ferenczi, 1931/2011, pp. 89-90)

Não poderia ser mais clara a estruturação de Ferenczi acerca de sua técnica analítica. Ao lermos atentamente o trecho acima, compreendemos que o analista coloca-se como uma nova mãe para a criança-paciente que vem ao seu consultório; esta, entretanto, é mais apropriada que a da realidade, tem a paciência, a abnegação, o tato que a mãe real não possuía de modo suficiente. Fica evidente que estamos ainda, no campo da psicanálise, tratando da análise da transferência, mas num registro diferente: em vez de interpretá-la, de mostrar ao paciente que os comportamentos que apresenta são na realidade direcionados às figuras importantes de seu passado,6 o analista, num primeiro momento, aceita o papel que lhe é transferido e procura fazer melhor do que havia sido feito por estas figuras. Será a diferença entre a experiência atual e a anterior que permitirá à criança-paciente desenvolver-se agora de maneira apropriada. Em artigo posterior intitulado "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933), o último a ser analisado aqui, Ferenczi esboçará como se dá o desenvolvimento dos adultos que foram traumatizados na infância, novamente decepcionado com a evolução do tratamento e sendo alvo de críticas por parte de seus pacientes (que o acusavam de ser cruel, egoísta, presunçoso), refaz uma autoavaliação para entender se aquilo de que era acusado por estes possuía alguma realidade apesar de sua boa vontade consciente. A conclusão a que chegou o analista é que estas críticas são acertadas:

Cheguei pouco à convicção de que os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendências, os humores, as simpatias e antipatias do analista, mesmo quando este está inteiramente inconsciente disso. Em vez de contradizer o analista, de acusá-lo de fracasso ou de cometer erros, os pacientes identificam-se com ele. Somente em momentos excepcionais de excitação histeroide - ou seja, num estado quase inconsciente - é que os doentes podem reunir suficiente coragem para protestar. De hábito, eles não se permitem nenhuma crítica a nosso respeito; tal crítica não lhes acode sequer ao espírito, a menos que tenham recebido de nós permissão expressa ou encorajamento direto. Portanto, devemos não só aprender a adivinhar, a partir das associações dos doentes, as coisas desagradáveis do passado, mas também obriga-nos muito mais a adivinhar as críticas recalcadas ou reprimidas que nos são endereçadas. (Ferenczi, 1933/2011, p. 113)

Aqui, encontramos diversos elementos condensados em um único parágrafo: os pacientes são bastante sensíveis e perspicazes no que diz respeito a seu analista, eles de fato superam o próprio analista quando se trata de conhecer os impulsos inconscientes deste, entretanto, os pacientes, por algum motivo, não transparecem esta crítica a não ser em momentos quase alucinatórios, lhes falta coragem para tanto em condições normais. Mais ao final, Ferenczi apresenta outro dever do psicanalista: estar atento às críticas do paciente. Acredito que aqui devemos fazer um pequeno desvio para compreender o que estas palavras supõem.

De certo modo temos aqui um novo deslocamento sobre a concepção de transferência negativa, não se trata mais de aceitar a crítica endereçada a um outro com a justificativa de que isto é terapêutico ao permitir uma ressignificação da experiência anterior, mas deve-se aceitar a crítica por ela ser acertada: o analista é insensível em certos momentos e merece tais repreensões, elas lhe são corretamente direcionadas. O analista deve admitir tais impulsos agressivos para seu paciente "não só como possibilidade, mas também como fato real" (Ferenczi, 1933/2011, p. 114).

Outro ponto interessante é o reconhecimento de que os pacientes fazem aquilo que os analistas deveriam fazer, ou seja, eles "adivinham, de um modo quase extralúcido, os pensamentos e as emoções do analista" (Ferenczi, 1933/2011, p. 115). Temos aqui um momento de tensão a respeito dos papéis de cada um na clínica, ao compreender que o analisando torna-se, de alguma forma, responsável pelo andamento do trabalho.

Ao estranhar o comportamento destes seus pacientes, Ferenczi teoriza a respeito do que os fez assim, seja do ponto da história de vida, seja em sua constituição metapsicológica:

O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo loucos, transforma por assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do perigo que representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro lugar, saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que podemos realmente aprender com as nossas "crianças sábias", os neuróticos. (Ferenczi, 1933/2011, p. 120)

E também:

Chega-se assim a uma forma de personalidade feita unicamente de id e superego, e que, por conseguinte, é incapaz de afirmar-se em caso de desprazer; do mesmo modo que uma criança, que não chegou ainda ao seu pleno desenvolvimento, é incapaz de suportar a solidão, se lhe falta a proteção materna e considerável ternura. (Ferenczi, 1933/2011, p. 118)

Duas explicações, então, sobre o comportamento de seus pacientes: eles foram vítimas de "adultos loucos" que obrigaram as crianças a, visando manter sua integridade, identificarem-se com estes adultos, compreenderem tudo o que eles faziam, mesmo que os próprios adultos não o compreendessem. Estas crianças, segundo o raciocínio ferencziano, cresceram sem ego, sem a capacidade de se afirmarem em caso de desprazer: e é exatamente por isto que seus pacientes não dizem nada quando seu analista os trata com agressividade, por um lado estão dependentes dele (como eram dependentes de seus pais loucos) e também se tornaram incapazes de afirmarem-se quando estão sofrendo.

Subjacente a esta teorização, temos, novamente, a transferência, mas levemente modificada: os pacientes transferem as situações vividas anteriormente para sua relação com o analista, mas esta transferência não é mais deslocada, como o era em Freud, ela possui um elemento de realidade que a evoca. A diferença é sutil, mas muito importante, pois em Freud o elemento que desencadeava a transferência era algo mais ou menos insignificante no campo da técnica: a barba, a idade, o sexo do analista. Aqui estamos falando de um tipo/qualidade de relação que se repete na realidade da clínica e que implica uma mudança na técnica:

Os pais e os adultos deveriam aprender a reconhecer, como nós, analistas, por trás do amor de transferência, submissão ou adoração de nossos filhos, pacientes, alunos, o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo. Se ajudarmos a criança, o paciente ou o aluno a abandonar essa identificação e a defender-se dessa transferência, pode-se dizer que fomos bem-sucedidos em promover o acesso da personalidade a um nível mais elevado. (Ferenczi, 1933/2011, p. 119)

O amor de transferência tão benquisto em Freud aqui é visto como um comportamento decorrente de uma fixação do neurótico: este não conseguiu libertar-se de um estágio de identificação ao "adulto enfurecido" e agora, novamente dependente, repete esta submissão e identifica-se com seu analista mesmo quando este comete violências contra ele. Daí a modificação técnica proposta por Ferenczi: o analista deve identificar as críticas escondidas do paciente, deve encorajá-lo a falar abertamente delas, não somente em relação às figuras parentais, mas também em relação ao seu analista, pois a afirmação do sujeito em seu desprazer é índice de um ego bem desenvolvido e, assim como em Freud, este é o objetivo da análise.

 

Conclusão

Antes de retomar os pontos delimitados na análise dos textos, gostaríamos de destacar novamente que, seguindo as próprias formulações de Foucault acerca dos jogos de verdade (Foucault, 1984/2004), aqui não cabe questionar o que se passava na clínica ferencziana, questionar seus métodos ou compreensões de seus pacientes. Procuramos apenas mostrar alguns elementos que permitiram a formulação do conhecimento que ele produziu, ou seja, como ocorreu a alimentação mútua entre teoria e prática que, conjuntamente, compreendia o paciente de certa forma, modificava a técnica, e permitia o surgimento de outros efeitos, retomando o movimento clínico, tão característico em Ferenczi.

É inegável que, nas teorizações ferenczianas, houve uma crescente responsabilização do analista no sucesso da análise, este deveria ter levado ao fim a sua própria; também é de sua responsabilidade adivinhar as intenções agressivas de seus pacientes, assim como era sua função encorajá-los a prosseguir mais adiante em suas associações e, por último, deveria dedicar maior tempo para aqueles que necessitavam, isto apenas para citar alguns aspectos. O outro lado destas exigências revela-se na visão de que os pacientes são frágeis de mais, tímidos de mais, desenvolvidos de menos para fazerem isto sozinhos: é fato que não encontramos a responsabilização dos pacientes por isto. Foi seu meio que, por carência de tato, causou-lhe traumas, forçando-os a desenvolverem-se desta maneira, entretanto, a fragilização destes é contundente no trabalho ferencziano.

A obra do citado psicanalista se presta particularmente bem a esta análise dos jogos de força presentes na clínica: de uma concepção puramente freudiana do que deveria ser a análise, numa possibilidade comparativamente baixa de resistência por parte do analisando, seguimos a uma liberdade progressiva até o ponto em que o próprio analista deve resistir aos investimentos agressivos do paciente. É somente quando seu "princípio de neocatarse" torna-se abusivo, que o analista deve recuperar parte da postura que abandonou no início das mudanças técnicas.

Ao longo deste texto, vemos a teoria acompanhando, justificando e possibilitando aquilo que se passava na clínica, e cremos que neste percurso, o conceito de transferência é central: desde sua nova compreensão terapêutica até seu valor de realidade. A transferência negativa não só é positivada como é trazida novamente para a realidade da clínica, ela deve ocorrer para que o paciente possa se libertar da submissão às figuras parentais "loucas" e ela ocorre como reação à falta de tato real do analista, e não como reação deslocada.

As mudanças clínicas e as concepções teóricas não deixaram de proliferar e, particularmente nos tempos atuais, vemos uma multiplicação de concepções acerca do que seria o sujeito/paciente contemporâneo. O presente trabalho busca ser um modo de pesquisa possível para a análise destas teorizações, um modo privilegiado, acreditamos, pois mostra tanto a dinâmica do pensamento quanto seus pressupostos e justificativas de trabalho.

As relações entre poder e saber são complexas e foram objeto de estudo por muitos anos na obra de Foucault, não pretenderíamos aqui explicitar a problemática em todos seus aspectos, esperamos, entretanto, ter evidenciado um certo modo de ler a produção de verdades na clínica psicanalítica que lhes retira seu caráter de "descoberta". Embasada por uma nova conceituação de como o conhecimento é produzido, este pensamento retira tal caráter (seja do paciente, da clínica) e traz para os jogos de verdade a ocasião de aparecimento deste saber acerca do sujeito, além disso pudemos olhar mais atentamente para as relações de força presentes na clínica psicanalítica e seus efeitos no andamento do trabalho clínico, os modos de acolhimento das resistências do paciente e suas consequências.

 

Referências

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Recebido em: 29/9/2014
Aceito em: 11/11/2014

 

 

Agradecemos ao professor Nelson Coelho Júnior pela leitura atenciosa e encorajamento para a publicação do presente texto.
1 Entendido não como poder absoluto, mas como ação sobre a ação do outro.
2 Encontramos isto de maneira clara em Freud (1918 [1914]/2010a; 1919/2010b).
3 O que está de acordo com o pensamento freudiano (Cf. Freud 1904[1903]/2006e) e 1915-1916/2006c, Conf. XXVII e XXVIII).
4 Infelizmente não será possível estender aqui esta discussão, uma vez que o espaço necessário demandaria a escrita de outro artigo.
5 Como pode ser visto em toda discussão que o campo psicanalítico produziu acerca do caso "O homem dos lobos".
6 Conforme explicitado por Freud nos artigos técnicos (1911-1915), retomado em "Construções em análise" (1937) e ratificado no "Compêndio de psicanálise" (1939).

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