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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dic. 2015

 

MANIFESTAÇÕES

 

Desaparecidos: uma história de dor

 

The missing ones: a history of pain

 

Desaparecidos: una historia de dolor

 

Disparus: une histoire de douleur

 

 

Leopold Nosek

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. nosek@terra.com.br

 

 


RESUMO

Assombrado pela extensa lista de desaparecidos que as ditaduras latino-americanas impingiram a pais, mães e companheiros, o autor relê uma das obras fundadoras da civilização ocidental - a Ilíada - e tenta compreender por que os gregos e os troianos lutam furiosamente para reaver o corpo de seus mortos. Desrespeitar um cadáver indigna os próprios deuses. Não poder lhe render as homenagens fúnebres é uma hipótese nem sequer cogitada. O quase impossível trabalho do luto requer o corpo, afirma o autor. Sem ele, não se criam os sonhos nem as narrativas. Nem a melancolia pode se instalar. Cria-se no espírito um buraco negro que, como um parasita, atrai para si o pensamento e os afetos e impede a vida de prosseguir. No plano da cultura e da história ocorrerá a mesma deformação que se abate sobre os destinos individuais.

Palavras-chave: desaparecidos, Ilíada, ausência do corpo, luto, melancolia, memória, herança cultural, possibilidade de narrar


ABSTRACT

Horrified by the extensive list of missing people that the Latin American dictatorships imposed to parents, spouses and domestic partners, the author rereads one of the founding works of Western civilization - The Iliad - and tries to understand why the Greeks and the Trojans fight furiously in order to get back the bodies of their dead ones. Disrespecting a corpse outrages the Gods themselves. Not being able to deliver a proper eulogy and funeral is not even a ventured hypothesis. The almost impossible grief work requires the body, the author writes. Without it, dreams and narratives are not created. Neither melancholy can take place. A black whole is created in the spirit; as a parasite, this black whole attracts thought and affections to itself, and it does not let life go on. In the cultural and historical fields, there will be the same deformation that impacts their individual destinies.

Keywords: missing ones, The Iliad, lack of corpse, grief, melancholy, memory, cultural heritage, possibility of narrating


RESUMEN

Asombrado por la extensa lista de desaparecidos que las dictaduras latinoamericanas endosaron a padres, madres y compañeros, el autor relee una de las obras fundadoras de la civilización occidental - la Ilíada - e intenta comprender por qué griegos y troyanos luchan furiosamente para recuperar el cuerpo de sus muertos. La falta de respeto hacia el cadáver causa indignación a los propios dioses. No rendirle los homenajes fúnebres es una hipótesis fuera de cogitación. El casi imposible trabajo de luto requiere el cuerpo, afirma el autor. Sin él, no se crean sueños ni narrativas. Ni siquiera se puede instalar la melancolía. Se crea un agujero negro en el espíritu que -como un parásito- atrae hacia sí el pensamiento y los afectos impidiendo que la vida prosiga. En los planos de la cultura y de la historia sucederán las mismas deformaciones que se abaten sobre los destinos individuales.

Palabras clave: desaparecidos, Ilíada, ausencia del cuerpo, duelo, melancolía, memoria, herencia cultural, posibilidad de narrar


RÉSUMÉ

Étonné par la longue liste de disparus que les dictatures latino-américaines ont imposé aux pères, mères et compagnons, l'auteur relit une des œuvres fondatrices de la civilisation occidentale - l'Iliade - et essaye de comprendre pourquoi les grecs et les troyens se battent furieusement pour reprendre le corps de leurs morts. Violer un cadavre dégoûte les propres dieux. Ne pas pouvoir lui rendre les hommages funèbres est une hypothèse pas même pensée. Le presque impossible travail du deuil requiert le corps, déclare l'auteur. Sans lui, on ne crée pas les rêves ni les récits. Ni même la mélancolie ne peut s'installer. On crée dans l'esprit un trou noir qui, comme un parasite, lui attire la pensée et les affects et qui empêche la vie de poursuivre. Sur le plan de la culture et de l'histoire aura lieu la même déformation qui s'abat sur les destins individuels.

Mots-clés: disparus, Iliade, absence du corps, deuil, mélancolie, héritage culturel, possibilité de narrer


 

 

I.

Aprendemos da astrofísica que vemos corpos no universo que já morreram, estrelas que já desapareceram. Apesar de já inexistentes, sua luz chega até nós atravessando distâncias abissais. Caminhamos iluminados por mortos. São estrelas que nos guiam como em outros tempos guiaram Melquior, Gaspar e Baltasar. Assim é para nós a figura de Homero: ele nos fala a partir de uma época em que Mnemosine, deusa da memória e mãe das musas, ainda figurava no Panteão. Transmitidas oralmente, as palavras de Homero, preciosamente guardadas na memória dos que lhe sobreviveram, se encarregam de fazer chegar até nós a épica da emancipação humana. Treinados na arte da métrica e na sonoridade musical das palavras, aqueles poetas preservavam o tesouro de narrativas que nos tornaram quem somos.

A capacidade de lembrar vai perdendo importância à medida que se consolida a possibilidade de registrarmos nossa memória por escrito. Mnemosine se torna uma divindade anacrônica, desaparece do Panteão. A Ilíada se preservou como memória escrita. Como será hoje, quando podemos carregar toda uma biblioteca no celular, pesquisar o que for e obter respostas instantâneas ou compartilhar nas redes sociais o pitéu que estamos devorando na sala de jantar? Será o locus da nossa memória o bolso onde descansa o nosso eletrônico? O instante se tornará absoluto?

Os clássicos não são para ficar guardados em arquivos e bibliotecas: necessitam ser revistos a cada momento. É preciso que as memórias possam readquirir vida e ter a cor de quem as retoma. Isso lhes dá não só a possibilidade de existência, mas também uma individualidade que reflete tanto a época em que renascem como a subjetividade de quem dos clássicos pode se apropriar. Quer estejamos atentos ou não, a tradição permanece em nós, de um modo encarnado, e é parte essencial do que acreditamos ser.

Eu sou um nostálgico e insisto num pecado imperdoável em nossos tempos: padeço de traços depressivos. Por isso, teimo em lembrar Homero e em tomar dele uma passagem da Ilíada que já foi mais conhecida e cultuada. Permaneço acreditando na importância das festividades, das comemorações e dos cerimoniais de luto. Habitamos uma civilização que se origina de dois troncos, o greco-romano e o judaico-cristão, ou seja, essas culturas nos fornecem narrativas com as quais desenhamos os trajetos de nossa vida. Os relatos da Ilíada, guardados na memória, dão às cidades gregas primordiais o substrato para que, em seu apogeu, ali se desenvolvam a poesia, o teatro, a filosofia, a ética, enfim, os valores e as práticas que no século IV a.C. culminariam na cultura clássica que ainda hoje alicerça as narrativas que nos guiam.

Marx dizia que as civilizações do passado eram como a infância da humanidade e que elas, a exemplo das crianças, podiam ser mal-educadas, impertinentes, agressivas, tímidas, entre tantas outras características. Nesse espectro, dizia, os gregos foram crianças sadias e representavam um momento precoce do desenvolvimento da humanidade. Nos costumes gregos encontramos a infância do que talvez exista de melhor na cultura ocidental, o que poderíamos chamar, com alguma empáfia, de estágio maduro de desenvolvimento social.

Homero, na Ilíada, narra a vida de personagens que ansiavam a morte heroica que os faria sobreviver "na boca dos homens". Dessa história recortarei a morte de Pátroclo pela espada de Heitor e a morte deste pela vingança perpetrada por Aquiles. Lembremos que a epopeia de Homero nos situa na passagem do arcaico para a civilização clássica da pólis grega; desse acervo surgirão na ágora os valores da cidadania, da honra, da ética, da política, enfim, todo o modo grego de viver. Essa narrativa estruturará um fazer que nos ilumina como tradição. Na época de Freud a literatura clássica era considerada instrumento imprescindível a qualquer pensamento digno de consideração, e até outro dia o grego e o latim eram a regra nos currículos escolares.

As narrativas que possuímos nos constituem e, mais ainda, constituem o humano. A memória estruturada como poesia revela o passado e como tal desvela as raízes do presente, ajudando-nos a tentar compreender o devir em seu conjunto. A rememoração permite reencontrar essas existências que nos precederam e nos forjaram. Não se trata de uma recuperação do passado - é a sua recriação. Nesse processo, vivenciamos a passagem do tempo e formamos a intuição da temporalidade.

Na primeira ciência empírica - para os gregos, a medicina -, a anamnese, isto é, a rememoração, é o ato inicial da intervenção médica e o ato inicial de toda possibilidade de cura. Assim é até os dias de hoje. De outro lado, entre os gregos a ideia de morte associa-se à travessia das almas pelo rio Lete, o rio do esquecimento ou da ocultação (é o que significa o vocábulo lethe). Também a psicanálise tem em sua origem a prática da recordação, e, nos primórdios, acolheu a ideia de que a doença seria a submissão a memórias recusadas, as quais, na impossibilidade de serem convocadas, presidiriam o aparecimento de monstros.

Quero propor que comecemos a olhar os nossos desaparecidos à luz de outras "estrelas mortas". É preciso ir atrás de respostas, mesmo que insuficientes e provisórias, pois, afinal, somos feitos da mesmíssima matéria humana dos nossos antepassados remotos. Minha esperança é apenas colaborar para que eles não se percam nos descaminhos da nossa memória.

 

II.

Heitor, príncipe de Troia, mata em batalha Pátroclo, companheiro do herói dos gregos, Aquiles. Na narrativa, ouvem-se os lamentos dos gregos e de Aquiles, e ao longo de todo o canto XXIII ("Prêmios em honra de Pátroclo") são relatadas as cerimônias de luto e as homenagens ao morto. São relatos - os primeiros que se conhecem - acerca de jogos e competições esportivas, atividades importantes na cultura grega. Integram as homenagens a corrida de carros, o pugilato, a luta livre, a luta com armas, o lançamento de peso, o tiro com arco, o lançamento de dardos e a corrida a pé, esta, aliás, vencida por Ulisses, que supera Aquiles, "o de pés ligeiros".

Percebe-se bem, aí, tanto a valorização dos nascentes jogos esportivos como o caráter essencial atribuído às cerimônias fúnebres. Já houvera um banquete em honra ao morto. Uma grande pira fora preparada e no fogo arderam animais sacrificiais. Doze troianos foram também imolados. O fogo queimou durante toda a noite com a ajuda dos Ventos. As cinzas foram postas numa urna de ouro e se construiu um túmulo para Pátroclo. Só então tiveram início os jogos, com grandes prêmios oferecidos por Aquiles. Por todo o canto XXIII ecoam a dor da perda, a amizade e a reverência ao morto.

No canto anterior Homero havia narrado a luta que se travou entre gregos e troianos pela posse do cadáver de Pátroclo. Suprema desonra seria abandoná-lo à sanha dos inimigos; jamais poderiam permitir que servisse de alimento aos "cachorros e abutres de Troia". Os guerreiros gregos se lançam com fúria na longa batalha narrada no canto XVII ("Os feitos heroicos de Menelau"), visto que

Pós ter despido o cadáver de Pátroclo, Heitor o arrastava
para poder decepar-lhe a cabeça com o bronze afiado,
e o corpo, assim mutilado, jogar para os cães da cidade.
(canto XVII, 125-127)

A batalha é feroz e se estende por todo o canto XVII:

Como edaz fogo a batalha fervia; teríeis pensado
que tanto o Sol como a Lua não mais no éter puro brilhavam;
densa neblina envolvia, realmente, os preclaros guerreiros
que sem cessar combatiam à volta do corpo de Pátroclo.
(canto XVII, 366-369)

A lista de mortos é grande, seja entre os gregos, seja entre os guerreiros de Troia. Algo torna imperativo lutar com todas as forças pelo corpo e pelo cerimonial do luto. Os muitos mortos de parte a parte valem a troca pelos despojos de Pátroclo. É enorme o espaço que a história de Aquiles, Pátroclo e Heitor ocupa neste poema épico essencial e fundador, englobando uma sequência de nove cantos, do XVI ao XXIV, o final da Ilíada: canto XVI - "Os feitos de Pátroclo"; canto XVII - "Os feitos heroicos de Menelau"; canto XVIII - "A feitura das armas"; canto XIX - "A renúncia à ira"; canto XX - "A luta dos deuses"; canto XXI - "A luta junto ao rio"; canto XXII - "A retirada de Heitor"; canto XXIII - "Prêmios em honra de Pátroclo"; canto XXIV - "O resgate de Heitor". O que faz valer a pena a morte de tantos heróis em troca de um morto?

Em seguida à morte de Pátroclo, Aquiles, tomado de ira, mata Heitor. Cego de dor pela perda do amigo, Aquiles leva o cadáver de Heitor ao acampamento grego e por nove dias, sempre pela manhã, exercita-se em humilhar os despojos mortais: arrasta o corpo três vezes a cada dia em volta do túmulo de Pátroclo. Os deuses a tudo observam e se mostram desgostosos com o desrespeito ao morto. É graças à intervenção deles que o corpo arrastado pelo acampamento, embora violentamente ultrajado, permanece incólume. Apolo invoca os deuses e estes abandonam a ideia de mandar Hermes resgatar o cadáver. Apolo intervém, aborrecido com Aquiles:

Toda a piedade falece ao Pelida, falece-lhe o senso
da reverência, que é fonte de males e bens para os homens.
(canto XXIV, 44-45)

Hermes então vai a Príamo, pai enlutado de Heitor, e o orienta e guia para que faça a impraticável travessia das linhas gregas para falar a Aquiles.

Teremos aqui uma das mais belas passagens da Ilíada, merecedora de ser revisitada sempre. Seguindo neste impossível resumo, alcançamos Príamo diante de Aquiles, que se assombra com essa aparição. Estamos no verso 476 do canto XXIV, e especifico isso para estimular o leitor a percorrer por conta própria essas passagens, livre da violência ao texto exigida pelos propósitos de minha argumentação e entregue ao infinito prazer estético da leitura do original. De qualquer modo,

Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles
aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis
mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado
.
(canto XXIV, 476-478; grifo meu)

Homero, magnífico, relata o pedido de Príamo, que lembra Aquiles a possível falta e preocupação que seu próprio pai poderia estar sentindo diante de seu afastamento para a guerra. Ambos choram as perdas, e Aquiles se impressiona com a força do velho. Aliás, ambos sentem no encontro a força quase divina de suas figuras e se respeitam... Aquiles aquiesce em devolver o corpo de Heitor, curvando-se ao peso da vontade dos deuses, que assim o queriam. Príamo, em demonstração de respeito, cumula Aquiles de ricos presentes.

Aquiles então convida Príamo para uma refeição noturna e o abriga por uma noite, para que possa partir em paz no dia seguinte com o corpo do filho. Além disso, oferece doze dias de trégua na guerra, de modo que as exéquias de Heitor ocorram conforme o cerimonial devido. Troia pode então chorar seu filho e herói e lhe render homenagem, costume assentado desde os primitivos gregos e que se torna sintoma de civilização, não importa o grau de violência que se pratique na guerra:

Logo que o túmulo pronto ficou, para o burgo retornam,
onde, reunidos, celebram solene banquete funéreo
dentro da régia de Príamo, o rei pelos numes nutrido.
Os funerais estes foram de Heitor, domador de cavalos.
(canto XXIV, 800-803)

Assim termina a Ilíada, não no triunfo de seu célebre e inexistente cavalo de Troia (essa passagem não consta de nenhuma narrativa homérica, como se descobriu tardiamente), mas no êxito do cerimonial que acompanha um luto exercido. E aqui, mais uma vez, não posso deixar de notar que caminhamos por raízes fundamentais da civilização ocidental. Como poderíamos esquecer?

 

III.

Retomando a referência a Marx que fiz no início, gostaria de lembrar também a linda passagem final de "Para a crítica da economia política", texto de 1857 que integra um esboço nunca concluído. Encontrado em 1902 entre os manuscritos de Marx, ele propõe temas que seu autor pretendia desenvolver posteriormente.

Um homem não pode voltar a ser criança sem cair na puerilidade. Mas não acha prazer na inocência da criança e, tendo alcançado um nível superior, não deve aspirar ele próprio a reproduzir sua verdade? Em todas as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade natural da natureza infantil? Por que então a infância histórica da humanidade, precisamente naquilo em que atingiu seu mais belo florescimento, por que esta etapa para sempre perdida não há de exercer um eterno encanto? Há crianças mal-educadas e crianças precoces. Muitos dos povos da Antiguidade pertencem a esta categoria. Crianças normais foram os gregos. O encanto que sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais insuficientemente maduras em que esta arte nasceu, e somente sob as quais poderia nascer, não poderão retornar jamais. (p. 15)

A questão que precede o parágrafo acima não deixará nunca de ser intrigante: por que essa arte ancestral continua a nos proporcionar deleite estético e educação ética? Por que o que nos apresenta é de uma realidade assombrosa?

O que é Aquiles diante da força que a tecnologia proporciona? O que é Hermes diante do deus Comércio dos nossos dias? A que entidade ou nação corresponderia o Olimpo hoje? Que velocidade atribuiríamos a Apolo? A sabedoria de Hera pertenceria a qual universidade? Ou ainda: quem é Zeus comparado ao Google? Na infância da humanidade nasceu a epopeia, a grandeza épica. No romance moderno, temos o desamparo humano, o sofrimento num mundo de forças que o indivíduo não domina e que o verga diante de seus mistérios. É um drama subjetivo em que não se tem o socorro de uma mitologia como a que permitia ao herói grego compreender e aceitar o deu destino.

Por outro lado, para nós não faz mais sentido pensar o tempo como linear e, menos ainda, como realizando um percurso ascendente - esse não passa de um tempo antropomórfico, no qual temos nascimentos, maturações, declínios e morte. Estaremos mais afinados se pensarmos em tempos que se interpenetram, tempos em cuja diversidade coexistem diferentes momentos de maturação. É mais adequado pensar em relógios que se movem em tempos e velocidades distintos, em tempos harmônicos e contraditórios, sincrônicos e diacrônicos, arcaicos e contemporâneos. Seria útil pensar nesses múltiplos ponteiros movendo-se numa espécie de vazio, sem visualizarmos os números que definem as horas. Tempos movidos também por desejos e utopias e que, apontando para uma dimensão futura, possam nos trazer, como numa centelha, algum vislumbre do presente.

Se leio a Ilíada hoje, é evidentemente impossível que eu a visualize como o faria um grego ou um homem do Renascimento. Cada momento histórico imprime à leitura os sinais de sua existência. Além disso, nela também estarão presentes os meus tempos pessoais de desenvolvimento. Há autores que pensam o Renascimento como o auge da Idade Média. Já outros o veem como ressurgimento do apogeu clássico. Outros ainda o verão como tempo de ruptura, como o aparecimento do homem moderno em sua infância. Talvez todos esses tempos coexistam e, por que não?, simultâneos a tempos que fogem à nossa percepção. As idades e as culturas se interpenetram.

Assim, para nós, psicanalistas, a infância não pertence a um passado a ser desvelado. Não vemos as memórias do passado como parasitas que tentam se fazer presentes obscurecendo a percepção da atualidade. Pensamos, sim, a infância como o alicerce sobre o qual se ergue o edifício da nossa cultura pessoal; nessa ecologia interior se passa a nossa existência. Os gregos, entre outras "crianças sadias", assentaram os fundamentos do nosso modo de ser. Sobre essa base, novas construções podem surgir e se desenvolver. Posso pensar que eu mesmo, nesta reflexão, encontro-me em determinado ponto de desenvolvimento - num ponto em que o meu fim me é mais visível, o que de algum modo renova em mim o assombro com os tempos da presença e da ausência do corpo, com as construções da poesia sobre o amor, o desamparo, a alegria da criação e o infinito mistério da morte, com a construção poética do luto.

Devo dizer que hoje, assombrado pelo tema dos desaparecidos, descubro uma nova Ilíada que é de uma beleza peculiar, na qual a busca inevitável de um corpo se apresenta a mim como um enigma. Dessa enorme estrela que herdamos de Homero, uma luz desperta agora a minha consideração: o respeito pela morte e a necessidade da presença concreta do corpo do morto.

Dados os recursos técnicos de que dispomos, hoje a ausência do morto pode ser situada no cenário de um vasto processo de luto fraudado. Fomos compelidos a conviver com a ausência de milhões de mortos num holocausto industrializado. Mortos que se tornaram fumaça e poeira a vagar pelo mundo. Na América Latina, hoje continuamos a conviver com a interrogação sobre os milhares de desaparecidos políticos que diferentes ditaduras nos impingiram. Mães, pais e irmãos dedicam a vida à busca dos restos de uma presença cuja existência é recusada no mesmo momento em que se recusa sua morte. Nessa busca, tornam-se testemunhas não só da verdade daquela presença individual, mas também de um momento trágico da história.

Contudo, mais uma vez: o que origina esses andarilhos que perambulam à procura de sinais que nada acrescentarão ao conhecimento já estabelecido sobre sua morte? Que necessidade faz com que essa busca se eternize? Quais as marcas do luto que se abate sobre aqueles aos quais não é dado o benefício concedido a Aquiles e a Príamo, isto é, a possibilidade de prantear sobre o corpo de Pátroclo e Heitor? Por que os deuses se indignam com o suplício infligido ao corpo de Heitor por um Aquiles enlouquecido pelo desejo de vingança? São esses mesmos deuses que armam os gregos para derrotar Troia, mas há algo que extrapola a lei que os rege: a profanação e o desrespeito ao corpo, ou - o que um grego antigo nem sequer cogitava - o desaparecimento do morto. Por que razão se lançam em batalhas os melhores guerreiros e heróis, dispostos a morrer pela matéria apodrecida de uma anatomia?

Este luto necessário nos faz ser quem somos. A alternativa seria nos tornarmos algo de alguma outra matéria, talvez daquela de que são feitos os mortos. Há uma passagem da matéria do corpo para a matéria da memória, para a matéria de que se constitui o nosso espírito ou, mais amplamente, a matéria de que são feitas a nossa cultura, a nossa arte, o nosso saber e a nossa ética, a mesma que entranha todo o nosso fazer pessoal e social. Voltando no tempo, recorro a Píndaro, poeta lírico grego do século V a.C., de quem tomo uma direção:

Efêmeros! que somos?
Que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sobre ele a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.

Dou um salto de quase dois milênios e leio em Shakespeare o que nos ensina Próspero na Tempestade: "Nós somos esta matéria de que se fabricam os sonhos". Partindo dessas raízes, não tenho alternativa senão procurar em Freud: afinal, do que somos feitos? Como se constrói o nosso espírito? Como se constroem os sonhos? Por que nos importam as estrelas mortas, as memórias? Poesia e sonho, enfim, não têm suas equivalências?

Walter Benjamin retoma as reflexões de "Além do princípio do prazer" e cita o ensaio freudiano: "O consciente não registra qualquer traço de memória", "o consciente surge no lugar de uma impressão mnêmica", "o consciente se caracteriza portanto por uma particularidade: o processo estimulador não deixa nele qualquer modificação duradoura de seus elementos, como acontece em todos os outros sistemas psíquicos, porém como que se esfumaça no fenômeno da conscientização". Resíduos mnemônicos são, por sua vez, "mais intensos e duradouros, se no processo que os imprime jamais chegam ao consciente". Traduzindo Freud para termos proustianos, Benjamin escreve: "Só pode se tornar componente da memória involuntária ... aquilo que não sucedeu ao sujeito como vivência".

Significa dizer que somente se torna patrimônio do inconsciente, ou do saber inconsciente, aquilo que atravessa a barreira protetora do traumático fornecida pelo consciente - e no doloroso processo de ruptura dessa membrana cria-se uma marca de experiência. Estabelece-se aqui uma diferença nítida entre experiência e vivência. A partir dessa experiência, o psiquismo continuará seu processo, na tentativa de obter um equilíbrio interno, uma quietude, um repouso homeostático. Tentará aplacar a dor criando trajetos para essa ruptura, dando início aos processos de sonho. Haverá agora, simultaneamente, um acesso da parte da "rasura" ao consciente e, portanto, a criação da possibilidade de controle do traumático. Nesse processo de criação onírica ocorre um aumento dos territórios do inconsciente e do consciente, pois o sonho tem uma face voltada para cada uma dessas regiões do espírito; a construção desses territórios se fará por justaposição de elementos oníricos e seu povoamento, por figurações. A construção e o povoamento do espírito partirão inevitavelmente de uma experiência excessiva e dolorosa que se organizará da matéria de que são feitos os sonhos, a matéria da nossa existência.

Abre-se diante de nós um vasto território de reflexão sobre a importância e o caráter da experiência estética, da criação artística na construção do aprendizado e da elaboração do humano na cultura e no viver cotidiano. Lembro a afirmação de Raymond Williams de que culture is ordinary - cultura é o prosaico, o cotidiano, é o sapato que usamos, como nos locomovemos pelo mundo etc. A arte não é deleite; é excesso que nos convoca a sobreviver ao estímulo estético, a ter a arte como experiência.

Observo aqui o contraste entre a informação jornalística, que justapõe dados que se não se diferenciam em sua intensidade emocional, e a narrativa, que nos impõe o esforço de seguir na experiência que ela traz. A informação tem início e fim, é completa, e, ao contrário da narrativa, não nos faz buscar sua continuidade. Também o sonho não encerra um sentido em si, não veicula uma informação em seu interior - é muito mais um sentido provisório que parte em busca do próximo sentido. Não nos indignamos quando vemos notícias de extrema gravidade justapostas a um gol no futebol. Aliás, esse é o esquema típico em que ser informado coincide com ser alienado.

De outro modo se constrói uma narrativa, uma estrutura poética ou estética. Lembremos que uma fonte fundamental da nossa ética está em Sófocles: é a tragédia dos filhos de Édipo. É o dilema de Antígona, que encontra a morte ao não hesitar em dar sepultura a seu irmão Polinices. Seu dilema se dá entre a lealdade à lei da cidade e à lei de sua própria consciência.

 

IV.

Não é outro o espaço desta reflexão, que, devo dizer, iniciou-se em conversas informais com entrevistadores da Comissão da Verdade, responsável por investigar experiências e vivências de vítimas da ditadura militar no Brasil. Uma das perguntas que afloraram foi esta: por que não se produziram no país (até agora, pelo menos) obras literárias ou cinematográficas relevantes sobre esse período? A nosso juízo, a maioria das obras que já vieram a público são de caráter jornalístico ou catártico. Uma das hipóteses que levantamos foi a ausência de ruptura real com a ditadura; teria havido um acomodamento que ignorou os elementos potencialmente traumáticos daquela transição.

Prossigo o argumento com Freud, recorrendo agora ao ensaio "Luto e melancolia". Partimos da ideia de que não existe representação da morte no inconsciente. Assim sendo, nosso medo da morte se desloca para outros territórios. Pensemos, por exemplo, no antigo costume de erguer túmulos familiares e de continuarmos agrupados como família nos cemitérios. Queremos ficar próximos dos que amamos - o medo da morte se expressa na esfera do desamparo, da solidão e do abandono. Pensemos na identidade entre a ideia de ter o corpo cremado e a fantasia claustrofóbica, e tantas outras fantasias inconscientes tecidas com esse grande desconhecido que é a morte. Isso para não falar nas concepções religiosas de vida eterna, reencarnação e outras, tão variadas quanto são as culturas e as religiões. No mundo grego, os mortos iam para um território específico depois de atravessar o Lete, o rio do esquecimento. Quantas cerimônias não inventamos justamente para evitar esquecer os nossos mortos?

Assim, se a concepção de morte nos é insuportável, de que se trata o luto? Freud relacionou o processo de luto ao fenômeno da melancolia. Nesta, ocorreria uma recusa do abandono do objeto amado perdido. Esse objeto manteria sua presença por intermédio da rememoração melancólica. A melancolia torna o objeto eternamente presente e seria uma disfunção do processo de luto. Sucintamente, no processo de luto o objeto perdido no mundo exterior se torna uma presença no espaço interno, no espírito de quem sofre a perda. Já não temos quem amamos; agora nós somos quem amamos. O ódio iniciado com a perda se acomoda. Desenvolvemos uma identificação com o que perdemos. Nessa elaboração, um paradoxo se instala: o espírito se enriquece, e o faz por via de trajetos trágicos. Como sempre em Freud, o que principia por uma análise psicopatológica se torna um processo universal de construção e povoamento do espírito. A patologia migra para uma teoria do espírito, para uma psicologia em si.

Penso que necessitamos do corpo para apoiar essa quase impossível tarefa do luto. Para que, libertos da sombra daquele que se foi, a vida possa prosseguir seu trajeto. Numa cerimônia de velório, os momentos trágicos são entremeados de calma. Quando o corpo é trazido ao recinto, há uma comoção; segue-se uma quietude e, depois, outro momento agudo, quando se fecha o caixão. Na procissão, novamente, a calma dá lugar à exibição da dor quando o corpo desce à terra. A isso se seguem dias de cerimônias de elaboração, em ritos que variam de uma cultura a outra. Como que damos vida ao corpo presente para poder ter a experiência repetida de perdas que se renovam.

Quando o que temos não é o morto, mas, sim, o desaparecido, nem sequer a melancolia pode se instaurar. O que existirá será um vazio, um oco, um buraco no espírito, um espaço morto que como um buraco negro atrairá para si tudo o que é vivo. Funciona como uma estrutura parasitária que corrói, que bloqueia o pensamento, os afetos, introduzindo deformações nos caminhos da alma, impedindo a vida de continuar.

No plano da cultura e da história ocorrerá essa mesma deformação que se abate sobre os destinos individuais. A cultura fica impedida de prosseguir seu trajeto, empobrece-se, pode gerar monstruosidades. Gosto sempre de lembrar que Antonio Candido, citando Otto Rank, dizia que a literatura é o sonho da humanidade. Ela não tem nada a ver com a platitude jornalística. A literatura, como os sonhos, lida com a memória que esgarçou a consciência e se plantou em nós com uma face consciente e uma face inconsciente, com infinitas rotas associativas em seu território. A narrativa também esgarça a consciência e sempre poderá acolher novos lampejos da "memória involuntária". O que temos na construção da cultura, temos também nos trajetos individuais. Temos todas as idades do nosso desenvolvimento pessoal, com fases precoces permanecendo como nossos alicerces e sempre num duplo movimento de alterar e ser alterado por tudo o que se segue.

Tentei mostrar como o arcaico herói Aquiles e entourage nos constituem e constituem a atualidade, como constituem nossa cultura, nosso modo de viver, nossas relações e nossos anseios. Não podemos mais buscar a morte heroica dos personagens épicos, não temos as suas certezas. Buscamos muito mais agudamente o que seria o nosso sentido. Buscamos um sentido que (supostamente) se perdeu.

Quem a ditadura representou recusou a dor e a perda. Não quis a ruptura e conseguiu escamoteá-la aos que necessitavam dela. Os que se opunham não tiveram força para se fazer valer ou preferiram uma acomodação, e os nossos desaparecidos ficaram impossibilitados de existir até como desaparecidos. Tornaram-se sintoma exemplar de um acordo político que se fez impedindo qualquer luto ou mesmo uma possível melancolia. Não se registraram perdas. A história teve de continuar a se manter calada. A própria Comissão da Verdade se viu limitada no seu trabalho, devidamente retocado. Como não pensar que esses restos autoritários, retrógrados, tingiram os acordos políticos que se seguiram e estão na raiz de deformidades que hoje explodem como distopias em nossa sociedade?

Esses buracos de pensamento, essas maquiagens da verdade, essas recusas à verdade afetam a todos, ao conjunto da sociedade. Na ruptura com a democracia, nos anos de obscuridade e de perda realmente experimentada, as artes sobreviveram. Sem a ausência da verdade, os sonhos puderam existir. Pode bem ser que essa crise se encaminhe para outras figuras e setores sociais. Pode ser que surjam outros protagonistas globalizados, à espera apenas de uma falência para entrar em cena. Teremos outros movimentos históricos, é certo, mas nossos desaparecidos continuarão a nos assombrar. De modo semelhante, nosso passado escravagista é um fantasma cotidiano que nos assola no mais íntimo dos nossos lares. Recusar a narrativa do trágico da história alimenta inevitavelmente os fantasmas. Aproveitando-se das nossas obscuridades, eles não perderão a oportunidade de reaparecer.

 

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Recebido em: 7/12/2015
Aceito em: 7/12/2015

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