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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista

 

Talking to a young analyst about psychoanalytic listening

 

Conversando sobre la escucha analítica con un(a) joven analista

 

Discussion sur l'écoute analytique avec un(e) jeune analyste

 

 

Luiz Meyer

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. luimeyer@uol.com.br

 

 


RESUMO

O autor imagina uma conversa sobre o conceito da escuta analítica com um(a) analista mais jovem. Outro artigo, que trata do mesmo tema, foi escrito por Marion Minerbo, é frequentemente citado no texto. Tendo como ponto de partida uma citação de Green que alude à necessidade de abandonar-se o pensamento causalista no entendimento da clínica, a escuta analítica é apresentada como voltada para a compreensão da dinâmica inconsciente, e não para a sua explicação. Na conversa, ilustrada por duas vinhetas clínicas, são abordados temas variados, tais como: a atenção equiflutuante, a postura analítica, a diversidade das formas expressivas inconscientes, a estrutura variada do self e sua consequência para as relações de objeto, a atitude empática do analista que se confunde com sua função continente e elaborativa da dor psíquica (expressa basicamente pelo componente infantil da personalidade).

Palavras-chave: escuta analítica, adulto, criança, infantil, dor psíquica, empatia


ABSTRACT

The author imagines a conversation with a younger analyst about the concept of psychoanalytic listening. Another article, which was written by Marion Minerbo, has discussed the same subject and is often mentioned in this paper. Starting from a Green's quote about the need for abandoning the causal thinking in the understanding of psychoanalytic practice, the author presents psychoanalytic listening as devoted to the comprehension of unconscious dynamics, and not to their explanation. In the conversation, which is illustrated by two vignettes, the author approaches several subjects, such as the free-floating attention, the psychoanalytic posture, the variety of unconscious expressive forms, the varied structure of the self and its effects to the object relations, the psychoanalyst's empathetic attitude which is confused with his function of containing and elaborating psychic pain (which is basically expressed by the infantile component of personality).

Keywords: psychoanalytic listening, adult, child, infantile, psychic pain, empathy


RESUMEN

El autor imagina una conversación sobre el concepto de escucha analítica con un(a) analista más joven y también dialoga con otro artículo sobre el mismo tema escrito por Marion Minerbo. Teniendo como punto de partida una cita de A. Green que alude a la necesidad de abandonar el pensamiento causal en el entendimiento de la clínica, la escucha analítica se presenta volcada hacia la comprensión de la dinámica inconsciente y no hacia su explicación. En la conversación -ilustrada por dos viñetas clínicas- son abordados temas variados como ser la atención flotante; la postura analítica; la diversidad de las formas expresivas inconscientes; la estructura variada del self y su consecuencia para las relaciones de objeto; y la actitud empática del analista que se confunde con su función continente y elaborativa del dolor psíquico (expresado básicamente por el componente infantil de la personalidad).

Palabras clave: escucha analítica, adulto, niño, infantil, dolor psíquico, empatía


RÉSUMÉ

L'auteur imagine un entretien concernant le concept d'écoute analytique avec un(e) analyste plus jeune. Un autre article sur le même sujet, écrit par Marion Minerbo et lu déjà par les deux, est cité souvent dans le texte. En prenant comme point de départ un propos d'A. Green qui fait mention au besoin de s'abandonner la pensée causale dans la compréhension de la clinique, l'écoute analytique est présentée en tant que dirigée vers l'entendement de la dynamique inconsciente et non vers son explication. Pendant l'entretien - illustré par deux vignettes cliniques - on aborde des sujets variés, tels que l'attention flottante, la posture analytique, la diversité des formes expressives inconscientes, la structure variée du self et sa conséquence pour les relations de objet, l'attitude empathique de l'analyste qui se confond avec sa fonction continente et elaborativa de la douleur psychique (exprimée fondamentalement par le composant infantile de la personnalité).

Mots-clés: écoute analytique, adulte, enfant, infantile, douleur psychique, empathie


 

 

Legenda:

J - Jovem analista

V - Velho analista (ou analista velho)

J -

V - É aqui mesmo, pode entrar; o portão está destravado: basta empurrar.

J -

V - Eu sei: você já falou com a Marion sobre escuta analítica. E agora quer conversar comigo também.

J -

V - Não; não acho que vai ser parecido com os diálogos que você manteve com ela; aliás, deles resultou um belo artigo.

J -

V - Não vai ser parecido porque o texto da Marion é acadêmico - no melhor dos sentidos - fundamentado, rico em articulações e referências.

J -

V - Isso: não pretendo ter uma conversa estruturada; será mais de cunho associativo.

J -

V - Prefiro, se você não se incomodar, sentar ali no pátio, debaixo da árvore. Seguiremos um pouquinho à sombra do que Marion escreveu e muito à sombra desta cerejeira. Está bem acomodada?

J -

V - Por onde começar? Pensei numa citação de André Green, que está no início do relatório da primeira supervisão1 de nossa colega Cinthia Jank. Separei-a e, à guisa de aquecimento, vou ler para você:

Temos de permanecer constantemente em guarda contra a tentação para voltar, mais ou menos sub-repticiamente, a uma noção da direção do tempo em termos de passado/presente/futuro - o fundamento de todas as posições seguras de pensamento que leva apenas a experiência consciente em conta e que continua a ser característica dos organismos vivos. No que diz respeito a seres humanos, é necessário ir além do que é uma fonte de muito orgulho, ou seja, nossa consciência do tempo, o que também significa nossa consciência da morte. A este respeito, somos confrontados com uma aporia: não pode haver consciência do inconsciente. Como, então, devemos conceber as figuras de tempo e chegar à visão global das coisas, já que a inconsciência, em seus vários aspectos, desde a força perene de seus desejos até as repetições estéreis que parecem enrijecê-los, nos proíbe de fazê-lo? Este é talvez um impasse inevitável.

J -

V - Por que acho essa advertência importante? É que todo analista enfrenta esse obstáculo ao procurar escutar psicanaliticamente.

J -

V - Qual é o obstáculo? O encadeamento dado pela "direção do tempo em termos de passado/presente/futuro" induz o analista a uma compreensão causalista da narrativa clínica, pressionando-o para que ele a apreenda sob o viés explicativo.

J -

V - Isto mesmo; não me parece que a função do analista seja a de explicar, mas sim a de entender.

J -

V - Bem, o analista deve voltar sua atenção para a dinâmica inconsciente que organiza o relato e o vínculo que se estabelece entre ele e o paciente, portanto, se incluindo também.

J -

V - Claro!! minha fala contém um contrassenso. Você tem razão: ele deve focar a sua desatenção. Como se estivesse um pouco sonolento e vez ou outra fosse atingido por um sobressalto; aí ele se pergunta por que acordei? Por que naquele ponto fui tocado pela fala do paciente? Aliás, não é só a atenção consciente que é posta entre parênteses: também a intenção. É uma escuta "sem propósito".

J -

V - Certo, é um jeito não ortodoxo de descrever a atenção equiflutuante.

J -

V - É, o paciente, do seu lado, deve fazer algo semelhante; mas é muito difícil, porque ele foi treinado a fazer exatamente o contrário: fixar sua atenção intencionalmente. Dai a validade da citação de Green sobre o discurso racional, a segurança que ele provê e a hesitação em abandoná-lo - tanto pelo analista quanto pelo analisando. Nossa fala habitual serve para o senso comum, para os aspectos funcionais das relações. Estes não são o foco da escuta analítica.

J -

V - Ela visa as relações internas, o significado dos sentimentos e emoções. Estas promovem as relações de objeto e delas resultam. Através da escuta analítica procuramos dar-lhes inteligibilidade.

J -

V - Desenvolvemos a escuta analítica basicamente pela própria análise, mas também, e muito, fazendo supervisões, e vendo os colegas trabalharem. Vamos construindo e desenvolvendo uma postura particular em face da fala do paciente, um jeito peculiar de apreendê-la (que implica "abandonar as posições seguras", de que fala Green). E o paciente vai se dando conta disso, apreendendo conosco a direção e o teor da nossa escuta.

J -

V - Como selecionar o que é relevante?

J -

V - Sim, pode haver várias linhas na fala do paciente, e você vai ter que se arriscar, a partir de algum critério. Mas o importante, na tua questão, é a percepção dessa diversidade. Marion toca nisso ao dizer que a escuta deve ser polifônica, isto é, adequada à musica polifônica.

J -

V - Isso, o psiquismo na sessão, vai se presentificar polifonicamente, através de várias vozes, saindo de varias bocas.

J -

V - Você gostaria que eu propusesse um modelo desse psiquismo para entendê-lo melhor?

J -

V - Uma estrutura? Bem, vou descrever como a concebo sugerindo um modelo para ajudar a apreender a emissão (e captação) das melodias variadas dessas vozes múltiplas. Comece imaginando que o self é uma fita de dna e, como ela, composta de inúmeros segmentos - os sedimentos identificatórios da personalidade, uma ampla fratria - vizinhos uns dos outros, relacionando-se entre si, influenciando-se, mas conservando sua autonomia.

J -

V - Continue imaginando: pense essa fita como uma arquibancada quase plana.

J -

V - É, de um estádio de futebol por exemplo, "envolvendo" o mundo dos objetos que estão (são) no campo. E, por fim, figure os segmentos que formam essa fita-arquibancada também interagindo com esses objetos, que por sua vez se relacionam entre si, no gramado.

J -

V - Sim, é tudo muito dinâmico: "alguém" da arquibancada pode "se destacar", "descer" e começar a jogar no campo. E vice-versa: um objeto do campo "sobe" e se integra à fita-arquibancada passando a fazer parte dela. Isso é um pouco o que Marion descreve quando diz que "cada um desses corpos tem sua própria voz", tanto os pedaços que formam a fita quanto o pessoal no gramado.

J -

V - O que põe um movimento em todo esse povo? As emoções próprias ao jogo, em que os papéis dos participantes são intercambiáveis. Os torcedores podem se tornar jogadores, estes virarem juízes, ou técnicos, ou novamente torcedores (organizados ou não) ou meros narradores da peleja, tudo impulsionado pela natureza da jogada em curso.

J -

V - Ah, é a natureza da emoção (e o estilo do jogo do time) que decide a escolha do protagonista: a jogada pode atrair o mais apto, o mais afoito, o mais esperto, o mais exibido, o mais truculento...

J -

V - Eventualmente a partida se desorganiza e o resultado é cacofônico. Mas, como o jogo, no seu todo, procura expressar o sentido que as emoções estão adquirindo, o que se escuta, em geral, é uma polifonia.

J -

V - Sim, percebem-se também vozes dissonantes e outras dominantes.

J -

V - A escuta analítica propõe-se a ouvir, captar, o conjunto das vozes, identificá-las, nomeá-las e a partilhar com o paciente a compreensão do que dizem e por que o dizem.

J -

V - As dissonantes são aquelas fora do "tempo", que acabam por ser desarmônicas; a dominante é como um solista descontrolado: em vez de dialogar com a orquestra, quer obrigá-la a seguir a sua melodia. É o que se vê quando uma parte do self se une a um objeto para dominar a consciência, impondo a ela a visão de mundo da dupla. No mundo contratual é o discurso ideológico; na análise é a onisciência, o desejo do infantil dominando a mente do adulto.

J -

V - É que o referente do infantil é o adulto (o casal edípico). Então o infantil está sempre aquém, sempre em sofrimento, sempre reivindicando, sempre tentando cooptar o adulto para o jeito de ser infantil para fazê-lo prevalecer.

J -

V - Ao adulto cabe contê-lo e dar inteligibilidade à sua dor psíquica. Essa compreensão, quando alcançada, já é um alivio e cria a possibilidade de integrar "a voz" fora do tempo, ou isolada, ao convívio desses dois mundos (adulto <->infantil).

J -

V - Bem, um dos critérios de escolha é privilegiar a escuta daquela voz que não se sente escutada: é a que está em sofrimento (que se exprime como dissonante ou dominante). A que não teve (ou não fez uso de) uma voz de adulto que captasse seu sofrimento e desse a ele um certo significado coerente.

J -

V - Claro, a estrutura psíquica do analista é igual à do paciente, só que ele treinou sua mente - seu ouvido - para essa escuta. Então, ele a dirige também para o que ecoa dentro dele, para aquelas vozes internas que passaram a ressoar estimuladas pelo contato com o paciente.

J -

V - Como isso ajuda? O ressoar experimentado pelo analista em face do paciente torna-se precioso quando o analista consegue apreender a relação existente entre o que sentiu - sua reação pessoal - e o que o paciente precisou comunicar.

J -

V - O que é uma voz traumatizada? Penso que é uma voz encalacrada no infantil, no jeito infantil de sentir e operar, numa relação que não muda, sem saída, que repete sempre a mesma resposta diante da relação. Você já viu isto descrito sob o nome de compulsão à repetição.

J -

V - Isso mesmo: o analista não reclama, não "contesta" o infantil, não o "acusa". Ele procura conversar com a voz mostrando seu ponto de partida, a lógica que a orienta, sua coerência interna.

J -

V - Por que ela é coerente? Porque é fruto da forma de como a experiência foi compreendida. Imagine: você é um bebê e aquela mulher linda, gostosa, te põe num banhozinho quente, te acaricia as partes, te deixa arrepiado. Você pensa: eita nóis! Depois ela se recompõe, te dá comidinha, um leitinho caramelado e fala no teu ouvido com voz doce: é o paraíso. E de repente, desaparece. Você fica atônito! E mais chocado ainda quando a vê voltar, toda chameguenta, atracada com aquele sujeito! Dá pra entender? Mas ela não disse que ia ficar comigo para sempre? Ah, então só queria seduzir? Mulher de duas caras? Traidora. A conclusão pode ser falsa, mas é coerente.

J -

V - Exagero? É possível; mas se você aguçar o ouvido vai escutar ecos dessa experiência nos mais variados registros. Por exemplo, no samba de Lupicínio Rodrigues:

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor,
Ao lado de um tipo qualquer?

J -

V - Pois é; o narrador, que já passou pela experiência, pergunta ao interlocutor se ele sabe o que é quase morrer por um amor.

J -

V - O samba chama-se "Nervos de aço"; é o que a pessoa precisaria ter para aguentar esse tipo de desfeita:

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e no coração.

Não é, isso evidentemente, o caso de nossos pacientes, que costumam nos procurar sangrando e com os nervos em frangalhos.

J -

V - É também a tua experiência então? A de que muitos chegam perplexos, pedindo ajuda:

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror.
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor.

J -

V - Sim, o paciente precisa se defender dessa dor e vai fazê-lo de modo variado; um deles é mantendo idealizado o objeto perdido. Aí não há luto possível; você só escuta lamentações e o eterno-impossível desejo de retorno.

J -

V - São as saudades da Amélia.

J -

V - O objeto real, o que está disponível, é degradado por comparação, com o ideal, e passa a ser visto como voraz e egoísta:

você só pensa em luxo e riqueza,
tudo que você vê, você quer.

J -

V - Já, em paralelo o objeto perdido, inalcançável, vai ser exaltado por desprendido: ela "até achava bonito não ter o que comer" e, ao não ter a menor vaidade, torna-se a mulher de verdade. Assim, dedicação e conformismo se equiparam.

E quando me via contrariado dizia
Meu filho o que se há de fazer.

J -

V - Isto mesmo: procuramos escutar as entrelinhas, continuadamente, segundo a peculiar desatenção já descrita, tanto ouvindo sambas, quanto o paciente que, deitado no divã, nos fala da bateria do automóvel que pifou, dos negócios em crise, da festa de aniversario do filho da vizinha que tem medo do escuro, da injustiça de que foi vitima etc. Dos poros do relato filtra-se a voz da criança: abandonada, enganada, frustrada, ressentida, sedutora, reivindicativa, enciumada, traída, esquecida, enraivecida, vitoriosa. O repertório dos sentimentos da humanidade.

J -

V - Claro; posso dar uma vinheta. Um paciente em certo momento recordou um episódio vivido quando era criança; teria uns 12 anos provavelmente. A família - ele, a irmã três anos mais nova e os pais - viajaram para Nova York. De noite os pais foram a um show e deixaram as crianças no quarto do hotel. O paciente entrou em pânico: foi tomado por uma angústia intensa, um medo persecutório, chorou sem parar. Já a irmã, permaneceu tranquila, tentando acalmá-lo. Em outro momento, ao se comparar com a irmã, sublinha que, diferentemente dele, ela é destemida. Recorda, então, vários episódios, que se prolongaram até além da adolescência (na escola, no clube, no acampamento), aos quais ele reagiu com medo e inibição, enquanto ela os enfrentava com segurança e tranquilidade. Fiz então uma alusão, algo teórica e banal, sobre a possibilidade de o nascimento da irmã tê-lo afetado. Na sessão seguinte, para minha surpresa, ele se mostrou muito interessada por essa hipótese - um pouco para contestá-la - e muito para falar da reação do filho mais velho à chegada da irmãzinha (a diferença de idade entre seus filhos espelha aquela existente entre ele e sua irmã).

J -

V - No dia seguinte ao nascimento de sua filha levou o menino à maternidade. No quarto, onde estavam apenas os avós, ele se comportou de forma apática. Em seguida o levaram para o berçário onde a mãe se encontrava com o bebê.

J -

V - O que ele viu? Separado por uma porta de vidro, sentada a certa distância, viu sua mãe debruçada sobre o bebê, amamentando-o. Aí, segundo o pai, o menininho pirou.

J -

V - Sim, o protagonista do episódio (traumático) foi o filho do paciente. Mas você se lembra do que dissemos a respeito da polifonia?. Das diferentes vozes das várias partes do psiquismo procurando se expressar?. E da escuta analítica que procura captá-las e identificá-las? Pois é, essa historinha de meu paciente, a respeito de seu filho, é a forma que ele encontrou para dar voz à criança-pirada-dentro-dele, que habitualmente se exprime produzindo comportamentos sintomáticos.

J -

V - Qual a relação com o episódio em Nova Iorque? Voltemos, sem temor à repetição, ao modelo que propus: eu tenho a mãe, seu seio, sua beleza, sua atenção "só para mim". E um dia (o relato do paciente, acentuando a inalcançabilidade da mãe, tem um certo teor onírico, de pesadelo) a vejo voltada para um bebê dando a ele o seu (meu) seio, juntamente com o sorriso com que me encantava. Ela está ali, alheia, não me percebe mais. Sequer posso chamá-la porque uma parede de vidro impede que ela, perdidamente entretida, me perceba ou me escute. Foi-se para sempre. Como sobreviverei?

J -

V - Sim, é verdade: em Nova Iorque, a mãe saiu com o pai e foram simplesmente a um show. Mas o desespero do paciente no quarto de hotel, ansiando sem esperança por sua salvação, conduz a escuta analítica a conjugar os dois episódios: pai e mãe, entretidos um com outro, se oferecendo mutuamente como show, o seio se exibindo para o pênis, que retribui com seu show de malabarismos. O menino se sente transparente e esquecido.

J -

V - Se eu diria isso ao paciente? Bem, não é sequer uma questão de dizer: é mais de ver, de descrever ao paciente o que estava sendo visto por mim. É uma oportunidade para ele entender algo da natureza de sua dor: se aquilo que eu estou vendo - escutando - corresponde a o que está vivo e ativo no seu mundo interno, então, o desespero, que parecia sem sentido, ganha congruência: ele é uma criança abandonada que sente não ter representação no mundo interno de pais entretidos com seu prazer.

J -

V - Não, hoje ele não chora abertamente como no hotel: ele costuma reagir "chutando" aquela porta de vidro da maternidade: reclama, acusa, pressiona. Em seu trabalho é considerado um chato-irascível-obsessivo-pentelho, eterno querelante. É sua maneira de protestar.

J -

V - A bem da verdade, mesmo julgando que é necessário e protetor, ele não está nada contente com esse seu comportamento. Por outro lado, parte da análise é dedicada a entender o seu temor de que, se relaxar - se abandonar essa postura -, vão fazê-lo de bobo (isto é, esquecê-lo no hotel).

J -

V - Veja: eu não estou sugerindo que ocorreu uma trajetória, ponto a ponto, do nascimento da irmã à atual postura vigilante-desconfiada. Estou expondo minha compreensão de um padrão emocional que se atualiza, como um campo, toda vez que o paciente, seguindo sua percepção peculiar, sente-se infantilizado e impotente.

J -

V - Sim, embora procure racionalmente me poupar - é algo cerimonioso comigo -, vez ou outra há um escape, e eu me torno seu alvo. Em uma ocasião tive que cancelar uma sessão, ao voltar de uma viagem do exterior. Eu apanhara uma gripe muito forte, meu celular fora roubado e a comunicação com ele tornara-se precária; só pude avisá-lo de meu impedimento poucas horas antes da sessão.

J -

V - É; na primeira sessão, quando retomamos o trabalho, criticou com veemência o acordo que leva o paciente a pagar a sessão quando falta, mas que exime o analista de "indenizar" o paciente quando ele não comparece. Sentiu-se claramente manipulado.

J -

V - Isso, a última coisa a fazer com o paciente, em face de um acontecimento desse tipo, é usar um argumento doutrinário. A escuta analítica deve ajudá-lo a perceber a sua lógica, aquela que faz com que ele considere natural e necessário chutar a porta do berçário. Nessa lógica estão embutidos seus sentimentos, por exemplo, o medo de abandono.

J -

V - Ao falar desse modo, quem o analista está sendo?

J -

V - Não estou sendo uma mãe evasiva que diz "quando casar, sara", ou um pai autoritário que imita e ridiculariza seu jeito infantil, ou uma mãe operacional que prescreve exercícios respiratórios para aliviar a tensão. Eu me torno empático não só ao escutá-lo (eu não lhe disse, por exemplo, as razões de minha ausência, pois isso poderia calá-lo), mas também quando mostro que, a partir do momento em que ele sentiu que tinha sido esquecido e se tornado transparente para um pai propositadamente discricionário, sua reação torna-se compreensível. As teorias psicanalíticas têm nome para isto: holding,rêverie, disponibilidade de bom objeto.

J -

V - Isto mesmo, ao "chutar a porta" indignado, ao reclamar de minha "negligência", a voz da criança em sofrimento transforma-se em solista. É uma dominância que, por interromper o diálogo com a orquestra, a torna dissonante. Mas eu preciso escutar também, no interior dessa indignação, o desespero. Como lembra Marion, a postura analítica diante do paciente (ela a chama de "disposição de espírito") implica uma escuta que não toma de modo ingênuo as coisas ditas, como se fossem a realidade.

J -

V - O que ele pode fazer para parar de chutar a porta? Bem, primeiro, ele precisa estar insatisfeito com esse comportamento. E, segundo, precisa se dar conta, ou melhor, precisa se interessar pela ideia de que seu modo de ser tem um sentido segundo, este que a escuta analítica vai desvelando e comunicando. Que esse seu jeito de ser comporta um sofrimento mudo (expressão da Marion) embutido no chute barulhento.

J -

V - Sim, como escreve Marion, o sofrimento inconsciente tem que ver com a experiência de não poder contar com absolutamente ninguém que importa.

J -

V - Como saber se ele está falando a verdade?

J -

V - Nós procuramos escutar a verdade do sujeito, isto é, como a criança - nele - interpreta a atitude do objeto.

J -

V - Por que é eficaz? A compreensão contida na voz da escuta analítica termina por colocar uma questão para o paciente - a modo de uma nova versão que pode ser contraposta à dele. Essa questão é vivida como um impacto emocional.

J -

V - Justamente: a escuta analítica vai procurar mostrar ao sujeito, a esse paciente, o caminho interpretativo que ele fez, a simbolização alcançada ou abortada, a lógica que o norteou, e a sua necessidade. Como já disse, ela não justifica a "conclusão" do paciente, mas lhe confere inteligibilidade.

J -

V - Sim, todo esse tipo de abordagem acaba tendo, de per si, uma função empática.

J -

V - Quando o paciente não aceita o que a escuta analítica captou? Aquilo que o objeto lhe oferece?

J -

V - Bem, não muda muito; sempre temos que ir atrás das razões que o levaram a recusá-la. Escutar os seus argumentos.

J -

V - Claro, nem sempre isto é explícito. Olhe, tenho uma vinheta clínica para mostrar a relutância do sujeito em aceitar a oferta do objeto.

J -

V - É, uma paciente que acompanho há algum tempo. Quando criança seus pais se separaram de uma forma dramática e traumática. A mãe logo se uniu a outra pessoa (que foi o móvel da separação). Nos meses que se seguiram ela foi mandada para outra cidade, morou com parentes próximos, numa espécie de exílio. Embora tenha me procurado por conflitos com o atual companheiro (ela também é separada), é a vivência primária de abandono (que também se revelou presente na relação com o companheiro) que acabou ganhando corpo e se tornando o foco do trabalho analítico.

J -

V - Um sonho mostra com clareza como essa experiência se cristalizou e e passou a operar sob a forma de uma estrutura.

Ela está numa casa de praia, com o (um) namorado. Ele a convida a entrar no mar. Na varanda dessa casa, sentada em uma cadeira, encontra-se a mãe do namorado. Quando, de mãos dadas, se dirigem para o mar, a paciente acena para esta mãe, que lhe responde sorrindo. O mar é muito revolto, tem ondas enormes, quase como um tsunami. Mas, quanto entram no mar ela encontra Antonio, que está com seu jet-sky e a convida para passear. Antonio (que é primo de seu ex-marido) é um personagem engraçado, divertido, inconsequente.

J -

V - Além de se estender um pouco sobre Antonio - cujo humor evoca o de seu ex-marido - ela disse que a praia do sonho lembrava uma em Portugal, cujas ondas são enormes e perigosas, e que é muito procurada por surfistas.

J -

V - Eu fiz uma interpretação ligada à situação que estava emergindo na análise. Disse-lhe que, no início do sonho, ela me dava a mão, confiante, para enfrentarmos juntos a intensa turbulência das emoções que a análise estava tanto revelando quanto provocando. A mãe, no terraço, era minha mulher - que ela já conhecia socialmente, antes de iniciar a análise. O cumprimento amável que ambas trocam indica que nosso "namoro" não afetará a relação do casal (eu e minha mulher); e que eu serei capaz de conduzi-la ao mar, conservando internamente a relação amorosa com minha mulher (diferentemente do que ocorreu com seus pais). Até aí, todos os laços parecem sólidos, consistentes e continentes, incluindo o que eu mantenho internamente com minha mãe, que observa afetuosamente a cena do "terraço" da casa.

J -

V - Mas, após entrar no mar, a paciente escolhe, entretanto, outro tipo de vinculo. Ela como que me vira as costas e, em vez de enfrentar junto comigo o perigo (as emoções-tsunami), desliza para um objeto que lhe propõe regressão, diversão e conversa superficial.

J -

V - É que eu não sou para ela - pelo menos ainda - um objeto confiável. De sua experiência primária resultou um imprinting: se, por um lado, ela tem necessidade de um objeto que a acompanhe, cuide dela e a proteja em meio à tormenta (tal como Virgílio foi servindo de guia para Dante, ao longo do Inferno), por outro, ela descrê da sinceridade e autenticidade da ajuda. E o sofrimento torna-se cíclico.

J -

V - É verdade; chegamos a escutar os argumentos de cada uma dessas vozes, em conflito, contraditórias.

J -

V - Isso mesmo! A escuta analítica captou o funcionamento de um sistema afetivo organizado (chamei-o de imprinting) que ela procura entender, mas se guarda - como recomenda Green - de explicar. E captou também, surpreendentemente, na sequência, uma voz complementar ressoando em mim.

J -

V - Assim que a paciente saiu, me lembrei de uma cena, que havia visto meses atrás nos noticiários de tv. Na praia que ela mencionara, uma surfista brasileira - acho que era a filha do Gabeira - estava treinando quando foi "atropelada" por uma onda enorme, que a feriu com alguma gravidade. Por sorte um amigo, também surfista, a acompanhava, em paralelo, com seu jet-sky, e a resgatou da água.

J -

V - Isso. Parece que a escuta analítica (a minha e a dela) captou a existência de dois gêneros de jet-sky: um leva à frivolidade (no sentido defensivo, de evitar o encontro com uma realidade psíquica que poderia atropelá-la); e outro auxilia a navegar na turbulência (no sentido de enfrentar as angústias da posição depressiva).

J -

V - Provavelmente me lembrei da cena em que a surfista é salva porque o sonho me emocionou bastante. Senti que ela conseguiu pôr em cena, simbolizar, a questão colocada pelos inúmeros componentes de sua ambivalência.

J -

V - De um lado a vontade de enfrentar o mar perigoso, confiante, dando a mão ao analista, figurando-o como possuidor de um objeto materno interno tolerante e amoroso (tão diferente do que ela alberga), procurando se aproximar edipicamente desse objeto protetor. E de outro a desconfiança, a negação da tormenta, a escolha de um objeto maníaco à guisa de proteção.

J -

V - Sim, também podemos "escutar" o sonho segundo o viés bioniano da teoria de grupos. Ao entrar no mar, a paciente se dispôs a formar comigo um grupo de trabalho (working group). Mas a dúvida sobre minha confiabilidade torna incerta a consecução da tarefa, criando uma angústia persecutória que a leva a juntar-se a Antonio, formando com ele um grupo de pressuposto básico de dependência: Antonio proveria, sem trabalho, esforço, dúvida, magicamente, a solução procurada.

J -

V - Exatamente! Não cabe induzi-la a nenhuma escolha; apenas descrever o movimento que está fazendo. O analista precisa tolerar a ambivalência da paciente, deixá-la livre. Ele não tem o Saber. Deve se comportar como o companheiro da surfista ferida, fazendo-se disponível, ou como Virgílio, que vai descrevendo para Dante os personagens com os quais vão se deparando.

J -

V - Uma das maneiras de saber se estamos no caminho certo é ir acompanhando o retorno que o paciente dá à nossa escuta (e às interpretações dela resultantes).

J -

V - Essa paciente, pouco tempo depois, começa a sessão, para a qual chegou atrasada, contando que teve um sonho: quis retê-lo, mas - se lamenta - ele escapou. Após um silêncio, diz que as pessoas precisam de companhia, não podem ficar sós: ninguém se basta. E fala da relação com a mãe, que a trata com desdém e descaso: eu a procuro sempre, até oferecendo algo, e ela só me retorque: veio me ver para filar um cigarro, ou só entrou porque estava aqui perto. Faço, então, uma relação entre o atraso, o sonho esquecido e sua queixa.

J -

V - Como ela pode saber se vou acolhê-la diferentemente de sua mãe? Ela me entrega sua intimidade, sua dor, sua angústia, me procura, mas que garantia ela pode ter que vou me interessar, conter ou mesmo entender o que ela me oferece? Lembro-lhe o sonho anterior e faço uma ligação entre "o sonho que não pode entregar hoje" com o fato de não ter conseguido se entregar naquele sonho, ter-se "desviado" para Antonio, com seu lado divertido e inconsequente.

J -

V - Já na sessão seguinte ela entra na sala em plena jubilação. Naquele dia, a vaga para automóvel reservada para os pacientes, em frente ao portão de entrada desta casa - por onde você entrou - fora espremida pelos dois carros contíguos e o espaço para estacionar ficara muito exíguo.

J -

V - Ela manobrou com muito cuidado e empenho, fez a baliza dificultosa e encaixou seu carro na vaga muito estreita.

J -

V - Bem, eu lhe disse que, apesar de pequeno e trabalhoso, havia aqui (diferentemente do que acontecia quando chegava à casa da mãe) um lugar esperando por ela (e que ela necessitava). E que ela lutara por ele, reconhecendo, pois, que "ninguém se basta".

J -

V - O modo de a paciente descrever o que acabara de acontecer se assemelhava ao encontro de um ninho ao qual se aconchegara. Sentia-se mais confiante, dai a jubilação. Também digo isso a ela.

J -

V - É uma paciente que tem dificuldade de se impor, falar em público, cobrar honorários. De se expor.

J -

V - É como se ela sentisse que não há um objeto que vai estar lá para segurá-la. Daí a importância da "luta" para estacionar o carro e da alegria da conquista.

J -

V - É o suficiente então?

J -

V - O que conversamos já permite a você perceber como penso a escuta analítica e meu jeito de trabalhar com ela?

J -

V - Ah, gostou mais da conversa com a Marion?!

J -

V - Entendo: você sente que ao dialogar com ela aprendeu mais, saiu mais informada; certamente as questões que vocês abordaram eram mais sofisticadas.

J -

V - Não é só uma questão de erudição, é também de estilo. Eu procurei falar de psicanálise com você de um jeito tão informal quanto o que adoto quando falo com meus pacientes. Aliás, se você prestar atenção verá que Marion fala com eles de um modo semelhante.

J -

V - Puxe o portão; eu já o destravei por dentro.

J -

V - Até a próxima; volte quando quiser.

 

 

Recebido em: 6/12/2015
Aceito em: 6/12/2015

 

 

1 "Desafiar para sentir - fragmentos de uma experiência analítica".

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