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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Escuta analítica: diálogo com uma jovem colega

 

Psychonalytic listening: dialogue with a Young Colleague

 

Escucha analítica: diálogo con una joven colega

 

L'écoute analytique: dialogue avec une jeune collègue

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. marion.minerbo@terra.com.br

 

 


RESUMO

Na forma de perguntas e respostas e amplamente apoiada em exemplos clínicos, a autora procura mostrar como a dimensão do campo da psicopatologia psicanalítica - da neurose para o funcionamento psicótico, e deste para as várias formas de sofrimento narcísico-identitário - foi exigindo do psicanalista a extensão dos modos de sua escuta. A autora insiste na diferença entre escutar o adulto e escutar a criança-no-adulto e exemplifica as diversas formas de associatividade e de expressão do inconsciente.

Palavras-chave: escuta analítica, conteúdo latente, associatividade, inconsciente, criança-no-adulto


ABSTRACT

In the form of questions and answers, and widely supported in clinical examples, the author aims to show how the dimension of the psychoanalytic psychopathologic field - from neurosis to psychosis, and from then to the several forms of narcissistic suffering-identitary - has demanded from the psychoanalyst the extension of their ways of listening. The author insists on the difference between listening to the adult and listening to the child in the adult, and exemplifies the different forms of associativity and expression of the unconscious.

Keywords: psychoanalytic listening, latent content, associativity, unconscious, child in the adult


RESUMEN

En forma de preguntas y respuestas, y ampliamente apoyada en ejemplos clínicos, la autora pretende mostrar cómo la extensión del campo de la psicopatología psicoanalítica - desde la neurosis al funcionamiento psicótico y hacia las diversas formas de sufrimiento narcisista - requiere del psicoanalista la ampliación de sus modos de escucha. La autora hace hincapié en la diferencia entre escuchar al adulto y escuchar al niño-en-el-adulto y ejemplifica las diferentes formas de asociatividad y de expresión del inconsciente.

Palabras clave: escucha analítica, contenido latente, asociatividad, inconsciente, lo infantil


RÉSUMÉ

Sous la forme de questions et de réponses et largement soutenue par des exemples cliniques, l'auteur cherche à démontrer comment la dimension du domaine de la psychopathologie psychanalytique - de la névrose au fonctionnement psychotique, et de celui-ci aux diverses façons de souffrance narcissique-identitaire - a peu à peu exigé du psychanalyste l'élargissement des façons de son écoute. L'auteur insiste sur la différence entre écouter l'adulte et écouter l'enfant-dans-l'adulte et exemplifie les différentes façons d'associativité et d'expression de l'inconscient.

Mots-clés: écoute analytique, contenu latent, associativité, inconscient, enfant-dans-l'adulte


 

 

Olá, caro colega, sobre o que gostaria de conversar hoje?

Gostaria de conversar sobre escuta analítica. Sei que a clínica depende inteiramente de um tipo de escuta que é diferente da escuta do senso comum, e que a formação psicanalítica é essencialmente a construção dessa escuta. Para falar francamente, acho que é a parte mais difícil da formação. Muito mais do que estudar a teoria. Queria saber se você ainda pensa a escuta analítica em termos de conteúdo manifesto e conteúdo latente, tal como Freud propunha em "A interpretação dos sonhos".

A pergunta é importante, porque nos obriga a retornar às origens da psicanálise. E você tem toda a razão: tudo começa quando Freud escuta suas pacientes histéricas de um jeito diferente; o que diferencia o psicanalista de outros psicoterapeutas é a especificidade de sua escuta; e a formação em psicanálise é a formação de uma escuta peculiar, vivida e transmitida na própria análise, nos seminários clínicos e nas supervisões.

Dois autores contemporâneos vão nos acompanhar mais de perto na conversa de hoje. René Roussillon, com "As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-identitárias" (2012b), e Luís Claudio Figueiredo, com "Escutas em análise/ Escutas poéticas" (2014).

Ambos afirmam que a extensão do campo da psicopatologia psicanalítica - da neurose para o funcionamento psicótico, e deste para as várias formas de sofrimento narcísico-identitário - foi exigindo do psicanalista a extensão dos modos de sua escuta. E ambos, por caminhos diferentes, propõem que a escuta analítica contemporânea - a escuta necessária para apreender modos de funcionamento e de sofrimento mental distintos - é uma escuta polifônica.

Hum, interessante a ideia de escuta polifônica! Nunca tinha pensado que a escuta analítica foi sendo ampliada para dar conta da extensão da psicopatologia psicanalítica. Aliás, não estou acostumado a pensar em termos de psicopatologia psicanalítica.

Então dedicaremos nossa próxima conversa a esse tema. Você vai ver que não é um bicho de sete cabeças. Em relação à escuta, acho que você já pratica, ou tenta praticar, uma escuta ampliada. Talvez falte, simplesmente, você se apropriar daquilo que vem fazendo. Então vamos lá!

Roussillon (2012a; 2012b) está interessado em dar um estatuto metapsicológico às diferentes formas de manifestação clínica - que ele chama de polimorfismo da associatividade - do sofrimento narcísico-identitário. Lendo esses textos dá para perceber que seu interlocutor é um psicanalista francês "médio", ainda aderido ao Lacan de 1953 (apud Roussillon), isto é, formado quase que exclusivamente na escuta dos significantes e da associatividade verbal. Essa escuta funciona muito bem para a neurose, mas nem tanto para as formas de sofrimento psíquico determinadas por um distúrbio na constituição do eu, nas quais a diferença eu/não eu é problemática.

O autor se esforça para mostrar que nestas o psiquismo inconsciente encontra formas de expressão daquilo que está em "sofrimento de integração" que vão além das palavras. Ou que estão aquém delas, já que estamos falando de um sofrimento que foi experimentado pelo sujeito antes da aquisição da linguagem. O psiquismo primitivo se expressa por meio de mensagens polimorfas, demandando, por isso, uma escuta polifônica.

Já Luís Claudio Figueiredo (2014) faz uma apresentação histórico-clínica das várias modalidades de escuta em psicanálise. Ele reconta a história da psicanálise, de Freud até hoje, pelo viés das estratégias de escuta das várias dimensões do inconsciente que encontrou em sua revisão da literatura psicanalítica. Identifica ao longo dessa história cinco momentos, cinco estratégias de escuta, e afirma que a atenção flutuante que praticamos hoje flutua na escuta de vozes psíquicas pertencentes a estratos psíquicos muito diferentes entre si - até mesmo vozes silenciadas por condições traumáticas importantes. Vou dar a você um exemplo de cada uma delas, embora seja difícil, e certamente artificial, tentar separá-las na prática.

Ou seja, um pela via da associatividade e outro pela questão das escutas em análise - sendo que associatividade e escuta são solidárias - querem mostrar que não dá para escutar tudo e todos do mesmo jeito. E que isso é importante porque o fazer do analista depende inteiramente daquilo que ele escuta.

Isso mesmo!

Começamos com Roussillon?

Ele retoma a história do nascimento da associação livre na obra de Freud e distingue duas noções que, no começo, tendem a se superpor e se confundir: 1) a associação livre, que a partir de 1907, segundo as atas da sociedade psicanalítica de Viena, ganha o estatuto de regra fundamental para a prática clínica; e 2) a associatividade, que corresponde ao próprio modo de funcionamento de nosso psiquismo. Essa distinção é importante justamente porque a associação livre é sempre verbal, e ele está interessado em dar um estatuto metapsicológico a formas de associatividade que são pré e/ou não verbais. Define, com Freud, associatividade como sendo inerente ao funcionamento psíquico, tanto normal quanto patológico, que tem uma coerência interna própria, determinada pelas vicissitudes da história emocional de cada um.

Como assim, a associatividade é determinada pela história emocional?

Assim como o aparelho digestivo tem uma "compulsão a digerir", transformando tudo o que entra nele, o aparelho psíquico tem uma espécie de "compulsão a simbolizar": ele tenta transformar em representação partes ainda cruas e não elaboradas da história e das experiências emocionais. É a compulsão a simbolizar a história emocional que organiza a associatividade, a qual se manifesta, eventualmente, mas não necessariamente, como associação livre verbal.

Por isso, a associatividade como fundamento, ao contrário da regra da associação, não é livre, porque os aspectos traumáticos, não integrados, da história emocional, que formam "núcleos" inconscientes (neuróticos e não neuróticos), forçam o caminho para sua elaboração e integração. O fato é que, conforme o extrato psíquico a que pertence aquele núcleo - isto é, conforme a psicopatologia do paciente -, a associatividade terá "caras" diferentes. "A associatividade é polimórfica à medida que mistura, às mensagens verbais, mensagens não apenas afetivas, mas também tiradas do registro mimogestopostural, bem como à linguagem do ato ou do comportamento" (Roussillon, 2012a, p. 52).

E o que diz Figueiredo no texto "Escutas em análise/Escutas poéticas"?

Assim como há uma sobreposição inicial entre associatividade/fundamento e associação livre/regra, Luís Claudio Figueiredo mostra que algo análogo acontece do ponto de vista da escuta. Ele também retorna às origens da psicanálise e descobre que, no momento fundador, o termo "atenção flutuante" designava tanto um procedimento, uma forma de fazer, isto é, uma técnica, quanto uma disposição de mente, isto é, uma ética. Nas palavras dele:

O procedimento era o acompanhamento paciente e meticuloso (mas não obsessivo) das trilhas associativas da fala em associação livre, o que devia ser feito com o mínimo de interferências, interrupções e/ou induções, e com uma sensibilidade aguda às irregularidades, aos detalhes, às lacunas e aos fragmentos. A posição do analista (sua ética) para propiciar tal procedimento implicava o chamado "encontro entre inconscientes": manter-se em reserva e deixar-se entregue ao próprio trabalho inconsciente para sustentar esta sensibilidade especial aos efeitos do inconsciente recalcado na fala do paciente em associação livre. (2014, p. 124)

Argumenta, ainda, que a posição do analista, sua ética e a disposição de mente peculiar com que escuta seu paciente continuam orientando nossa prática, enquanto o procedimento padrão de escuta foi sendo ampliado e começou a abrir espaço também para outros procedimentos. Exatamente como a associatividade, que deixou de ser apenas verbal, para incluir outras formas de expressão do inconsciente.

Aliás, Roussillon também usa a expressão "disposição de mente", aquela na qual a escuta privilegia a "realidade psíquica e os processos de sua transformação simbolizante a partir de um método centrado na atenção à associatividade dos processos psíquicos e a seus diversos modos de expressão" (2012a, p. 11).

Estou começando a perceber que a noção de conteúdo manifesto/conteúdo latente, com a qual eu pensava abordar a questão da escuta, precisa ser reinterpretada.

Também acho. Se essa noção for interpretada de modo que se refira à criação de sentido, ela mantém seu valor clínico, pois ajuda a descolar da literalidade do conteúdo manifesto. E isso é fundamental para a escuta analítica. Veja, mesmo as atuações e os comportamentos mais bizarros são formas de expressão do inconsciente - não esqueça que o inconsciente se expressa como pode, e não como ele quer! - em busca de sentido; se lhes atribuímos valor de mensagens em potencial, ou seja, de mensagens latentes, essas vozes precisarão ser "escutadas".

Veja o polimorfismo da associatividade. Uma paciente relata um comportamento compulsivo: passa dias deitada em sua cama cheia de edredons e travesseiros fofos, comendo coisas gostosas, assistindo aos programas de tv prediletos até adormecer. Deixa de comparecer a compromissos importantes, até mesmo à análise, o que a prejudica. Na impossibilidade de atribuir um sentido a isso, ela se vê como "autodestrutiva", o que é desesperador. Como você verá, acabamos dando um sentido a esse comportamento: a criança-nela, obcecada com a cena primária, realizava, a sua maneira, uma transa mítica na "linguagem" possível para uma criança. Como uma criança pode imaginar o prazer do sexo entre dois adultos? Essa criança imaginou que deveria ser algo como a soma de todas as coisas que são as mais gostosas para ela!

Ou seja, o "conteúdo latente" não estava lá, pronto para ser descoberto.

Concordo. O sentido foi criado/achado com base no impacto afetivo e estético que o conjunto de mensagens verbais e não verbais produziu sobre mim. Afinal, não "escutamos" apenas com nossas orelhas, mas com o corpo todo - com nosso inconsciente!

Na nossa primeira conversa sobre transferência (Minerbo, 2013), e também naquela em que falamos sobre pensamento clínico (Minerbo, 2014), você insistiu no fato de que o analista escuta a criança-no-adulto, o que é muito diferente de escutar o adulto. No caso dessa sua paciente fica muito claro: embora o comportamento seja destrutivo para a adulta, que engorda e perde seus compromissos, você apostou na construção de um sentido para a criança-nela. Poderia desenvolver essa ideia?

Claro! Você percebeu bem, está tudo interligado: transferência, escuta analítica e pensamento clínico. Tenho dois exemplos bem frescos para ilustrar a diferença entre escutar o adulto e escutar a criança-no-adulto. São exemplos mínimos - apenas uma palavra! - e por isso mesmo servem para mostrar qual é a "disposição de mente do analista". No primeiro escutamos o desejo sexual infantil recalcado, e no segundo, a criança-traumatizada-no-adulto.

Um paciente em torno de seus 18 anos vem para a análise porque tem "medo de descobrir que é homossexual". Ele mesmo acha isso enigmático, pois nada em sua vida sugere que tenha esse tipo de orientação sexual. Fala muito de um amigo que, segundo ele, consegue todas as mulheres. Ao mesmo tempo que o inveja, admira suas conquistas e se sente humilhado por ser tão passivo. Mas o que pode significar "ser homossexual" para esse paciente? Figueiredo, no texto já citado, diz que o inconsciente trabalha como o poeta, que procura imagens, analogias e metáforas que dão a ver, que expressam, que mostram alguma coisa do mundo e da realidade.

No nosso caso, do mundo interno e da realidade psíquica.

Exatamente. Imagine, então, que o inconsciente "procurou" e encontrou, na palavra "homossexual", uma metáfora cujas conotações imagéticas e afetivas nos dão notícias de conflitos ligados ao desejo infantil. Poderia ser um amor apaixonado "homossexual" pela figura paterna idealizada; o desejo "homossexual" de ser amado por esse pai, ocupando um lugar "feminino" em relação a ele; o desejo de se apoderar magicamente da virilidade paterna idealizada através de uma identificação anal. A escuta analítica do "medo de ser homossexual" nos permite acessar o sofrimento neurótico: a luta da criança-nele contra esses desejos edipianos inadmissíveis, bem como do retorno do recalcado na forma de angústia de castração/emasculação. Já a escuta do adulto nos levaria a falar sobre a homossexualidade como uma realidade em si mesma. Poderíamos ser levados a questionar o modelo cultural que ele tem do que é "ser homem", a resistência a assumir o próprio desejo. Estaríamos abandonando a criança-nele, e não deveríamos nos espantar quando ele abandonasse a análise.

Agora o segundo exemplo que lhe prometi. Hoje mesmo uma paciente me falava da relação com sua mãe, que está com Alzheimer há 15 anos. Vai todos os fins de semana à casa dela, toma as providências necessárias, mas não entra no quarto. Não aguenta ver a mãe fora do ar, desconectada, incapaz de reconhecê-la. Podemos escutar o adulto, isto é, uma mulher tentando se proteger de uma experiência dolorosa. É a escuta do senso comum, quer dizer, uma amiga também poderia ter empatia e ser bastante continente dessa dor. Mas podemos escutar a criança-nela nos contando a história da relação traumática com um objeto primário psiquicamente ausente, desconectado, incapaz de reconhecer e de responder às necessidades do eu.

Diferentemente do exemplo anterior, em que escuto algo da ordem do inconsciente recalcado, aqui a disposição de mente do analista capta algo da ordem do traumático. A escuta analítica é uma escuta criativa, na qual está implícita uma atividade silenciosa de interpretação daquilo que está sendo dito, ou melhor, daquilo que se expressa através de várias linguagens. A paciente falou em Alzheimer. É o "conteúdo manifesto". O analista sabe perfeitamente o que é Alzheimer; não nega que a mãe da paciente esteja doente, nem que isso seja motivo de sofrimento. Mas a demência também é uma imagem bastante expressiva que transmite o horror de se perder o objeto enquanto ele está ali presente. É a criança-traumatizada-nela que não consegue entrar no quarto e se deparar novamente com seu objeto primário fisicamente vivo, mas psiquicamente morto.

Como já disse, são exemplos mínimos, apenas uma palavra, mas servem para transmitir a ideia de que, quando o analista está em certa "disposição de espírito", não toma as coisas ditas como se fossem apenas uma realidade em si mesmas: homossexual e Alzheimer são palavras que expressam também um aspecto "latente" da realidade psíquica do paciente - realidade ainda em estado bruto, cujo sentido precisa advir para ela ser integrada. Mas atenção: nem todos os pacientes que têm mãe com Alzheimer ou medo de serem homossexuais serão escutados dessa forma! (Risos)

(Risos) Seria uma escuta do valor simbólico da fala?

De certa forma, já que estou tomando a palavra Alzheimer, com todas as suas conotações afetivas, como representação de uma experiência emocional específica da criança-no-adulto em sua relação com o objeto primário. O inconsciente-poeta "procurou" e encontrou na palavra Alzheimer uma imagem, uma metáfora para nos dar a ver a mãe interna psiquicamente ausente.

Aliás, se a paciente me dissesse que sonhou que sua mãe estava com Alzheimer, eu não teria dificuldades em reconhecer nessa imagem onírica o resultado do trabalho do sonho - trabalho de poeta! - que encontrou uma forma para expressar a falta de conexão emocional profunda entre elas. Dependendo do paciente e do contexto afetivo da fala - principalmente do tipo de angústia presente -, essa forma de escutar o material clínico também vale para os relatos que ele faz de seu cotidiano "acordado".

Quando Freud introduz a ideia de associação livre, tudo o que o paciente diz se torna igualmente importante, e nossa atenção livremente flutuante não deveria privilegiar a priori isto ou aquilo. Você já reparou que quando o paciente diz que vai contar um sonho esticamos as orelhas analíticas para interpretar seu "conteúdo latente"? Mas se ele está contando algo sobre seu cotidiano, recolhemos nossas orelhas, nossa escuta murcha, e tendemos para o senso comum, como se aquilo fosse menos importante.

Pelo que estou entendendo, a escuta analítica tenta acessar as várias formas de sofrimento da criança-no-adulto. Esse sofrimento, que está diretamente ligado à história emocional com os objetos primários, mobilizou as defesas psíquicas que garantiram a sobrevivência psíquica, mas impediram que essas experiências fossem integradas.

Sim, e por isso mesmo esse corpo estranho psíquico continua vivo, fixado, não transformado, determinando o modo de vida sintomático - a psicopatologia, o sofrimento psíquico - que traz o paciente para a análise. A pessoa percebe que "é agida" por algo enigmático - o inconsciente ou o "infantil". Afinal, a primeira e fundamental descoberta freudiana é um inconsciente vivo que produz efeitos - o sofrimento psíquico! - no cotidiano.

É por isso que gosto tanto de falar, com Ferenczi, da "criança-no-adulto". As partes não subjetivadas da própria história tendem a se repetir em busca de simbolização e de integração. O analista desenvolve a escuta necessária para reconhecer esses efeitos no material clínico. Veja, o paciente que tem medo de ser homossexual percebe que é um medo enigmático, já que nada indica isso em sua vida. Por isso mesmo é o caso de se perguntar: o que é "ser homossexual" para ele?

Lembro de outra paciente, uma mulher casada que quer adotar um menino de 5 anos. Para escutar analiticamente é preciso ir além do que está sendo dito - o conteúdo manifesto. Até porque ela mesma nunca se perguntou "por que um menino", nem "por que de 5 anos". Por isso mesmo, cabe ao analista tentar entender que sentido pode ter "adotar um menino de 5 anos" para a criança-nela. Há as racionalizações de praxe que a adulta nos oferece. Mas basta insistir um pouco para descobrirmos que a criança-nela deseja viver uma relação apaixonada, plena e recíproca, tal como imaginaria que a mãe a amaria se fosse um menino.

Voltando à sua paciente que falava da mãe com Alzheimer, o que você diria a ela?

Poderia dizer algo como "a imagem de uma mãe desconectada é muito forte, faz pensar em muitas coisas". É uma fala aberta, insaturada, uma tentativa de abrir o campo associativo para ver se a paciente "pega a deixa" e acrescenta alguma coisa que nos aproxime do sofrimento da criança-nela.

Roussillon diz que a escuta em atenção flutuante é uma forma de associação livre do analista cujo ponto de partida não é o seu próprio inconsciente, mas as associações do paciente. O jogo do rabisco de Winnicott seria um modelo da escuta em "coassociatividade" (2012a, p. 51). Nessa sessão, a comunicação funciona como no jogo do rabisco. Ela faz um primeiro rabisco quando diz "Alzheimer". Eu associo a partir do rabisco dela, isto é, deixo minha atenção flutuar livremente, abro-me ao impacto dessa fala, e eis que em algum momento me vem a ideia de "incapacidade de conexão emocional". Agora, então, é minha vez de acrescentar um rabisco, e eu digo "é uma imagem forte, faz pensar em muitas coisas". Se o jogo puder continuar, os sentidos irão se sucedendo. Pode ser que ela "pegue a deixa" e se lembre de um filme em que a mãe está tão drogada que se esquece do bebê, que morre no berço.

O sentido, ou o "conteúdo latente", seria, então, uma representação do sofrimento da criança-nela?

Exatamente. Um sofrimento não simbolizado, que até agora produzia apenas atuações - ela não consegue entrar no quarto da mãe, lembra-se? -, agora tem uma representação e poderá ser usado para pensar. É um momento importante no processo de simbolização. Nesse exemplo, como há uma boa conjunção entre associação livre e atenção flutuante, o material clínico pôde ser escutado como se fosse um sonho. O analista considera o valor simbólico da palavra Alzheimer e o põe em jogo no campo transferencial. Graças a um trabalho a quatro mãos, o jogo vai produzindo transformações simbolizantes: "mãe com Alzheimer" se transforma em "mãe fora do ar, criança em risco de morte psíquica".

Mas nem sempre funciona assim! E, aí, como fica a questão da escuta?

Você tem toda a razão. Voltando ao texto de Roussillon, ele sustenta que, quando o sofrimento tem a ver com experiências emocionais vividas/inscritas no psiquismo antes da aquisição da linguagem, ele irá se manifestar nas várias formas de linguagem não verbal próprias desse momento da vida. "Em se tratando de experiências que precedem a aparição da linguagem verbal, [as experiências arcaicas não integradas] retornam na 'linguagem da época' de seu registro" (2012b, p. 16). As "linguagens da época" são as várias formas de linguagem do corpo:

• A linguagem dos afetos primitivos em estado bruto, passional, como na síndrome do pânico, ou em estados de apaixonamento amoroso, ou quando há expressões de ódio, violência, inveja, culpa ou vergonha passionais.

• A linguagem do corpo em suas manifestações psicossomáticas.

• A linguagem sensório-motora: atos e comportamentos que produzem sensações corporais, tais como hiperatividade, adições, compulsões, violência e impulsividade.

• A linguagem mimogestopostural.

• A linguagem da percepção alucinatória/delirante da realidade. Quando há um retorno alucinatório das percepções arcaicas não simbolizadas, elas infiltram o cotidiano: são percebidas como atuais e vividas como verdades incontestáveis.

O importante é que o conjunto dessas linguagens - afeto, soma, motricidade, mimogestopostural e a linguagem da alucinação - configura o que Roussillon denomina "polimorfismo da associatividade psíquica" (2012b, p. 26) e "supõe um modo de escuta que integre e inclua, na escuta das cadeias associativas verbais, as 'associações' oriundas das diferentes formas de expressão primárias que se apoiam sobre o corpo, consideradas como linguagens iniciais" (2012b, p. 16).

Não fica muito claro para mim como podemos "escutar" o retorno alucinatório das percepções arcaicas não simbolizadas. Você teria um exemplo?

Uma paciente escuta tudo o que o marido diz como evidência de que ele se acha perfeito e atribui todas as falhas a ela. Por isso, vive em clima de guerra conjugal, em que o ódio passional é uma constante. Não precisamos negar que o marido talvez não tenha contato com suas próprias limitações, ou que lhe falte empatia com a esposa, mas para entender a intensidade do ódio dela contra ele, precisamos supor que algo da ordem do traumático na relação com o objeto primário não foi integrado - e que esse algo se reapresenta alucinatoriamente, tendo como suporte atual a relação com o marido. Aqui, não se trata de uma representação, como no caso da palavra "Alzheimer", mas de uma apresentaçãoalucinatória do traumático, já que a "intenção" do marido tem, para ela, um estatuto de verdade incontestável.

Pois bem: sendo uma das formas de manifestação do inconsciente, o alucinatório exige um tipo especial de escuta analítica. Esse tipo de material não se presta a ser escutado como se fosse um sonho ("sonhei que minha mãe estava com Alzheimer"), mas poderia ser escutado como se fosse o relato de um pesadelo recorrente - um sonho traumático, como Freud entendeu em 1920, quando introduziu a noção de um além do princípio do prazer, abrindo caminho para o estudo das condições não neuróticas.

Escute só. Ela chega e me conta que teve outra briga com o marido. "Ele se acha o máximo. Se ele se atrasa, não se sente mal com isso. Estava ocupado, e isso justifica tudo! Não vê que falhou comigo, não reconhece. Se eu fico irritada, é porque sou chata. A falha é minha. Estou errada em sentir o que sinto. Aí eu me torno uma pessoa horrível, brigo com ele, digo coisas das quais me envergonho. Mas não consigo me acalmar enquanto ele não reconhecer que errou."

Poxa, tenho uma paciente bem parecida com essa, que se queixa do marido o tempo todo (risos). No caso da minha, está tudo posto lá fora!

Não é bem que esteja tudo posto "lá fora". Se ela está contando isso para mim, já está posto "aqui dentro", na situação analítica. Há a esperança de que eu possa ajudá-la a construir algum sentido para as inscrições psíquicas inconscientes, que estão se expressando do jeito que dá. Talvez o "jeito que dá" não seja bem o jeito que a gente gostaria (risos), mas isto não é problema do paciente, e sim nosso.

Veja, se ela e o marido estivessem em terapia de casal comigo, eu poderia tentar mostrar como as identificações projetivas cruzadas criam o clima de guerra no dia a dia. Mas, sendo uma terapia individual, preciso escutar essa fala de outro jeito. É como se essa paciente me contasse o mesmo pesadelo em todas as sessões. "Tive aquele pesadelo novamente. Desta vez, meu marido chegou três horas atrasado, e eu fiquei com raiva. Quando ele viu que eu estava com raiva disse: 'Eu cheguei, não cheguei? Não vai dar um beijinho no seu maridinho? O que mais você quer de mim? Como você está chata!' Quando via que ele estava pondo a culpa em mim, eu ficava com tanto ódio, que quebrava tudo o que tinha na sala. Nessa hora eu acordei assustada."

O fato é que, se me ela conta isso, e me conta repetidamente, é porque há uma urgência em simbolizar. O aparelho psíquico tem uma "compulsão a simbolizar", assim como o digestivo tem uma "compulsão a digerir", lembra-se? Ela usa a relação alucinatória com o marido para me contar o que, de sua história emocional, está em sofrimento de simbolização.

Por isso é uma forma de associatividade?

Que bom que você entendeu! E, se lembrarmos que o marido representa um aspecto traumatizante do objeto primário, a cena que ela descreve como um pesadelo corresponde a um "microfilicídio" - um assassinato de alma, na bela expressão do pobre Schreber -, que a aterroriza, e que é imediatamente transformado em ódio e violência.

Mas como se interpreta um pesadelo?

Não sei se a gente interpreta um pesadelo, ou se tenta transformá-lo em sonho usando a nossa rêverie. Ogden (2010) diz que o analista intervém sonhando os sonhos não sonhados e os gritos interrompidos. Tentando sonhar o pesadelo da minha paciente, posso imaginar o horror de depender, de forma absoluta, de um objeto que, para salvar o seu próprio narcisismo, não hesita em sacrificar o eu da criança ("não fui eu que errei, eu sou perfeito, você que é chata"). Por sua posição de passividade diante do objeto parental, representado pelo marido do qual ela depende, a criança-nela não tem alternativa a não ser se identificar com e se transformar na "chata", que fica emburrada ou parte para a violência.

Mas não é meio exagerado falar em microfilicídio?

É claro que isso é uma interpretação da criança-traumatizada-nela, e não de um adulto! A criança vê o adulto avançar com ódio para cima dela, e o que ela pode pensar com os recursos simbólicos de que dispõe? "Este aí, de quem eu dependo, quer me matar!" Em outros termos, a cena traumática do "microfilicídio" é constantemente reapresentada, sessão após sessão, de forma alucinatória. Eu preciso tentar transmitir a ela meu sonho sobre seu pesadelo. Seria algo como: "cada vez que 'ele' - note que, para mim, 'ele' é o marido, e ao mesmo tempo é um representante atual do aspecto traumatizante do objeto primário - não reconhece que tem alguma coisa a ver com a sua chatice, você morre um pouquinho".

Acho que entendi o que você quer dizer com microfilicídio. É como se, para a criança-nela, o objeto primário estivesse dizendo: "você é tão chata, que eu preferia que você não existisse. Se eu pudesse, me livraria de você!" Dá para entender que uma criança que lê isso nas entrelinhas das acusações do adulto - que em momentos de funcionamento psicótico sente mesmo um ódio assassino pelo filho - fique traumatizada, tanto quanto o soldado que sabe que o inimigo deseja sua morte, e que esta é uma possibilidade real.

Exatamente! Ambos os traumas "retornam" de forma alucinatória, seja no pesadelo dormindo, seja no que estou chamando de "pesadelo acordado". É a grande descoberta de Freud a respeito das neuroses traumáticas!

Percebo a importância de que a experiência de "morrer um pouquinho" seja compartilhada pelo analista. Isso lhe permite dar sentido ao terror que foi efetivamente vivido, mas não simbolizado.

Isso mesmo! Como você bem percebeu, estamos falando de uma maneira de escutar o traumático, o inconcebível, o não representado. Não há trilhas associativas, como na neurose, mas uma explosão de ódio em estado bruto que sinaliza, ainda que de forma distorcida, a angústia de morte.

Mudando de assunto, você poderia falar um pouco sobre a contribuição de outros autores à questão da escuta analítica?

Certamente. Para isso vamos retomar o texto de Luís Claudio Figueiredo, que fez uma excelente revisão das estratégias de escuta do inconsciente (ou do infantil, ou da criança-no-adulto) ao longo da história da psicanálise. Ele reconhece cinco momentos em sua "história das escutas analíticas" e também um momento atual, em que praticamos uma escuta polifônica.

O primeiro é o momento fundador, no qual Freud propõe a escuta livremente flutuante das trilhas associativas que conduzem aos desejos inconscientes recalcados, segundo o modelo do sonho.

Exemplo?

Lembra-se da paciente da transa mítica? Ela sonhou com uma piscina muito grande, muito azul, muito bonita. Há uma mangueira cujo jorro caudaloso a mantém permanentemente cheia, transbordante. Ela não entrava na piscina, mas levitava acima dela, usufruindo esteticamente daquela cena. Do lado havia um pequeno lago, no qual talvez houvesse peixes. Apesar de bonito, ela não se aproximava dele. Associações da paciente: azul como os olhos da mãe, que também é muito bonita. O pai trabalhava com algo relativo a águas. O lago era raso, transbordaria se a mangueira fosse colocada ali. Foi a interpretação desse sonho que nos levou a falar na fantasia de desejo de uma transa mítica, na qual o prazer da mulher, transbordante e infinito, é profundamente invejado. Prazer que a criança-nela queria para si a qualquer preço, apesar da impossibilidade física decorrente da diferença entre as gerações (o lago pequeno não aguentaria a mangueira).

Outro exemplo da escuta das trilhas associativas. Uma paciente deprimida conta que não gostava de estudar, mas se interessava por história. Silêncio. Pergunto do que gostava, e ela diz que se interessou pela Guerra de Canudos. Silêncio. Pergunto o que lhe interessou nessa guerra. Fala de um grupo, liderado por Antônio Conselheiro, que queria viver do seu jeito, mas foi violentamente reprimido pelo governo. "Mataram toda a população." Silêncio. "Poxa, que tragédia! Silêncio. E o que mais você curtiu, em história?" "Gostei da Revolução Francesa, em que o povo se revoltou contra os abusos dos reis." Silêncio. "E o que mais?" "Gostei de entender como surgiram as favelas nos morros do Rio. Aquelas pessoas moravam em um lugar pobre, mas decente, até que a especulação imobiliária tirou eles de lá. Não tendo para onde ir, foram para o morro. Aí veio o tráfico e a violência."

Belo exemplo. Depois que você "recorta" o material, e ainda mais incluindo no seu relato os silêncios, fica fácil reconhecer o conflito entre, de um lado, o desejo de confrontar a figura parental, vista como opressora, e a proibição de fazê-lo. Como você disse há pouco, a gente tende a se esquecer de escutar as trilhas associativas no material clínico comum.

O que é uma perda enorme para a psicanálise! Nesse exemplo, as associações não vêm espontaneamente, o que é um dado fundamental. A escuta das trilhas associativas inclui, aqui, os silêncios que ela faz depois de cada frase. O sujeito - os sertanejos, o povo francês e os favelados - se sente tão oprimido que nem ousa falar. Por isso eu tenho que sustentar, com base na transferência, o próprio processo de associação livre. Para ela, falar já é enfrentar seu objeto interno opressor.

Continuando com Luís Claudio Figueiredo, o segundo momento na história das escutas em análise começa em 1923, ainda com Freud, mas já com a produção teórico-clínica de outros analistas, como Abraham, Fenichel, Balint, Reich e Klein. Ele decorre da segunda teoria da mente, que torna necessário escutar, além do recalcado, também as resistências e os aspectos inconscientes ligados a isso, ao eu e ao supereu. A escuta se torna mais complexa. Surge o que ele nomeia de

escuta gestáltica dos sistemas resistenciais do paciente: forma, estilos, modo de funcionamento, atmosfera relacionais, caracterizando o que pode ser denominado de escuta estética ... Em vez de fragmentos, lacunas e sequências, como na escuta das trilhas associativas, esse segundo tipo de escuta capta "uma totalidade, um estilo, um modo de funcionar". (2014, p. 126)

Você poderia me dar um exemplo desse segundo tipo de escuta?

A situação da transa mítica também pode ser vista pelo vértice da "escuta gestáltica ou estética", proposta por Luís Claudio. Mas, para tornar a ideia mais clara, aqui vão dois exemplos.

Um paciente preenche as sessões com relatos sobre "teorias da conspiração". Ele me conta como percebe claramente em seu trabalho quem está contra quem, quem vai passar rasteira em quem e como ele mesmo, ao perceber o que certo colega pretende fazer com ele, se antecipa e se defende. Há outra modalidade de teorias, as "teorias da traição": percebeu claramente o olhar de um amigo dirigido a sua esposa, percebeu também como a esposa roçou seu cotovelo no cotovelo de outro amigo que se sentou perto dela no restaurante, e como ela rapidamente olhou para baixo quando reparou que ele percebeu. O que fazer com todas essas teorias de cunho francamente paranoico? Como escutar esse tipo de material? Meu ponto de partida foi uma escuta gestáltica. A criança-no-adulto está tentando me mostrar que é esperta, que ninguém a faz de boba, que percebe as "motivações ocultas" dos adultos em relação a ela. E que não vai engolir passivamente qualquer coisa que eu lhe disser. Uma intervenção em que "reconheço sua esperteza", isto é, a da criança-nele, começa a desmanchar o clima paranoico que o simples fato de estar em análise - o analista é visto como alguém que sabe mais e pode tentar "fazer a cabeça dele" - produz nesse paciente.

Uma paciente diz, nas primeiras entrevistas, que sentiu uma empatia especial comigo - acha que tem a ver com o meu olhar e o meu sorriso. Começada a análise, desenvolve um padrão comportamental curioso. Assim que chega, enche um copo com água na sala de espera e o leva para a sala de análise. Toma a água devagar, enquanto conversa comigo face a face. Enquanto toma água, age como se a sessão ainda não tivesse começado e fala de amenidades. Diz que é um momento muito importante para ela. Não poderia se deitar no divã sem isso. Em seguida ela se deita e começa a falar de "coisas analíticas".

Levo alguns meses para perceber que estou sentindo falta daquela repetição insistente de um ou dois temas que muitos pacientes costumam trazer - temas que os angustiam e nos quais estão enroscados. A paciente da guerra conjugal, por exemplo, só fala das brigas com o marido, a da transa mítica tende a falar de homens ou de sexo, mas essa falava de tudo! No relato dos "temas analíticos" - a mãe, a infância, a vida sexual, a dificuldade em engravidar - nada sobressai em especial. Em certo momento, há um material significativo. Ela, que é meio desajeitada com bebês e não sabe muito bem como pegá-los, segurou um bebê de 6 meses no colo. Ele se aninhou em seu corpo, encostou a cabeça no seu ombro e dormiu. Ficou imóvel, extasiada, maravilhada com aquela sensação, até o bebê acordar. Foi uma experiência incrível para ela. Passou a ter uma relação muito forte com esse bebê. As coisas vão indo nessa toada até minhas primeiras férias, que são muito difíceis para ela. Quando volto, fala da morte de duas pessoas conhecidas e diz que "espera que sobre alguém vivo". Está bastante regredida, sem energia, não consegue mais trabalhar.

A escuta analítica polifônica envolve o conjunto das formas de associatividade desse material, em que elementos inconscientes encontram várias maneiras de se expressar. Primeiro, há o contato sensorial pela via do olhar face a face que acompanha a conversa prazerosa - lúdica? - sobre amenidades; o copo de água, tomado devagar, em pequenos goles, parece mais significativo nesse momento que o que acontece no divã; há o relato de uma verdadeira epifania, quando experimenta o contato corporal com o bebê que adormece com a cabeça em seu ombro; depois, a separação das férias tem consequências catastróficas e a referência de duas mortes.

E então, de repente, esse conjunto se organiza em uma gestalt: graças à "legenda" que me é dada pela associação verbal com o "bebê que se aninha no colo", o momento do copo de água me produz um impacto estético e passa a ter um sentido. Enquanto toma o copo de água e conversa sobre amenidades, eu "vejo" a criança-nela aninhada em meu ombro durante alguns minutos a cada sessão. Sem saber muito bem qual era o sentido disso tudo, sabia, no entanto, que precisava permitir que isso acontecesse pelo tempo que fosse necessário, sem interpretações prematuras - como ela, que ficou imóvel com o bebê no colo até ele acordar.

O interessante é que esse processo de se aninhar no meu colo é interrompido, a cada sessão, quando termina seu copo de água e vai para o divã. A repetição desses dois tempos parece ser, justamente, o que está em jogo na transferência: a possibilidade de estabelecer um vínculo corporal primitivo e prazeroso com a analista, que representa um aspecto da figura materna, ao mesmo tempo que se abre delicadamente o espaço para elaborar a separação corporal, quando vai para o divã. Contanto que essa separação não seja violenta! A reação dela às minhas férias mostra que ela se sentiu violentamente "expulsa" do corpo a corpo delicado que se instalara. É então que me dou conta do conjunto desse movimento, o qual revela algo da ordem do trauma precoce que se repetiu na situação analítica e que agora pode começar a ser posto em palavras.

O exemplo é muito claro. Ilustra tanto a presença da linguagem do corpo quanto a escuta de uma forma, de uma totalidade, captada por uma sensibilidade estética. E o terceiro momento dessa história das escutas analíticas?

O terceiro momento, segundo Luís Claudio, é o kleiniano. Além da escuta das trilhas associativas verbais e da apreensão estética de uma forma, Klein introduz a escuta das identificações projetivas. Aqui entra em cena, pela primeira vez, a escuta da contratransferência. O que "acorda" o analista para esse tipo de escuta é a percepção de que, de alguma forma, ele perdeu a liberdade de ser ele mesmo. Ele acaba percebendo que está colonizado por um corpo estranho que provém justamente da transferência psicótica. O analista foi convocado, com maior ou menor força, a se identificar com um objeto interno não integrado pelo eu do paciente. Percebe a relação entre o tipo de escuta e a psicopatologia?

Eu me lembro de certa paciente masoquista com quem, vira e mexe, eu me via sendo sádica.

E há aqueles pacientes com quem não conseguimos dizer certas coisas que achamos que deveríamos dizer; ou com quem temos a sensação de falar bem mais do que gostaríamos. Ou com quem nos sentimos obrigados a ficar imóveis, quase sem respirar para não sermos intrusivos, ou para não produzir uma explosão de fúria. Ou, ao contrário, com quem sentimos que não conseguimos ficar em silêncio. Aqueles com quem sentimos que o ambiente está tenso, carregado, como se fosse desabar um temporal. E aqueles com quem, por mais que tentemos, não conseguimos empatizar. Com quem atuamos um supereu excessivamente crítico, ou que tentamos proteger do massacre de seu próprio superego. Pacientes com quem sentimos que precisamos tirar leite de pedra, ou a quem tentamos manter vivos e esperançosos, lutando contra o clima mortífero e sem esperança que se instalou na transferência. Aqueles com quem experimentamos o nada, o horror do vazio. Alguns com quem perdemos todo o senso de humor, ou, ao contrário, com quem nos percebemos apelando demais para interpretações bem-humoradas. Pacientes com quem começamos a falar de uma maneira que não é a nossa: caprichamos no português, ou ao contrário, usamos mais gíria do que seria o natural, tomamos cuidado para não usar expressões chulas, ou as usamos demais da conta. Pacientes de quem gostamos de mais ou de menos, de quem temos pena ou raiva, que nos dão vontade de entrar em discussões sobre algum tema, que nos irritam ou nos encantam, que nos dão medo ou intimidam. Há aqueles que nos deixam perplexos, como se viessem de Marte. Outros que nos parecem excessivamente frágeis. Outros, ainda, que fazem com que a gente sinta que não voltarão na próxima sessão, nos dando notícias de como é frágil o vínculo com o objeto interno, enquanto há aqueles com quem sentimos que não irão embora nunca. Sem falar daqueles que a gente não quer, de jeito nenhum, que nos abandonem, enquanto outros, que ameaçam demais e por muito tempo nosso narcisismo, podem nos levar a sentir que seria um alívio se fossem embora. Alguns com quem sentimos que não aguentariam uma frustração, outros com quem temos dificuldade especial em ocupar o lugar daquele que frustra, como se isso equivalesse a uma crueldade inominável. Aqueles com quem perdemos a criatividade clínica, que não nos despertam nada, e com quem nos transformamos em analistas "operatórios", repetidores de falas burocráticas, já lidas em algum texto ou já ouvidas de algum colega. Há também aqueles com quem sentimos vontade de fazer ou dizer coisas fora do enquadre, enquanto outros nos transformam em guardiães fanáticos do dispositivo analítico. E também...

Chega! Chega! Não precisa fazer uma lista exaustiva (risos), já entendi que a escuta da contratransferência é um caminho precioso para a compreensão da transferência.

(Risos) Pois é, e todas essas maneiras de "perder a liberdade", como diz Luís Claudio, todos esses efeitos da identificação projetiva, mostram que fomos atingidos em nossa corporeidade. É nosso corpo, ou, se você prefere, a parte mais primitiva de nosso psiquismo, que vai sintonizar com a linguagem corporal do afeto em estado bruto de que fala Roussillon (2012a; 2012b). Nesse tipo de comunicação, o analista tem que funcionar, segundo esse autor, como o "espelho do negativo" do paciente: ele precisa refletir aquilo que está negativado, defendido, clivado, inacessível, inconsciente para o paciente.

Naturalmente, na escuta da contratransferência não há certo e errado, coisas que deveríamos ou não deveríamos sentir, que deveríamos ou não deveríamos estar fazendo. Não é isso que importa. Apenas, sem essa escuta, não temos como recuperar a liberdade perdida, condição para tentar nos diferenciar e nos separar do objeto interno do paciente com o qual estamos identificados, e por isso mesmo perpetuando a repetição sintomática.

Podemos passar para o quarto momento?

O quarto momento que Luís Claudio Figueiredo propõe em sua história das escutas em análise é o bioniano, no qual surge um novo tipo de escuta, para além da contratransferência: a escuta imaginativa, que envolve a rêverie do analista. "A rêverie converte-se, assim, em uma espécie de dispositivo de escuta" (2014, p. 127). Além da escuta imaginativa, Bion contribui com o conceito de "fato selecionado", graças ao qual a escuta das trilhas e dos fragmentos associativos do primeiro momento se articula com a escuta gestáltica-estética do segundo.

Como naquele exemplo da sua paciente que tomava o copo de água?

Exatamente! A associação verbal, que vem na forma de uma descrição do que sentiu quando o bebê se aninhou no seu colo, é o fato selecionado que me permite "sonhar" e dar sentido ao comportamento, apreendido em uma gestalt, de tomar o copo de água conversando sobre amenidades antes de se deitar. Da mesma forma, no caso daquela paciente da transa mítica, as associações verbais em torno do sonho da piscina desencadeiam minha escuta imaginativa, que dá sentido ao comportamento compulsivo de comer e dormir.

E o quinto momento?

É o momento que Figueiredo denominou escuta empática, estratégia através da qual o analista vai tentar escutar o sofrimento emudecido da criança-no-adulto. Afirma que devemos a Kohut e a Winnicott a possibilidade de escutar aquilo que não aconteceu, os efeitos traumáticos das necessidades do eu que não foram atendidas pelo objeto primário. Winnicott usou o termo "preocupação materna primária" para um estado de extrema sensibilidade regressiva que permite à mãe escutar, reconhecer e atender de maneira suficientemente sintônica às necessidades somatopsíquicas do eu da criança.

A escuta do sofrimento narcísico silenciado por operações defensivas poderosas, tais como a hiperadaptação em falso self, ou a pura e simples desistência de encontrar um objeto suficientemente sintônico, depende do tato e da empatia do analista. Nas palavras do autor:

As necessidades do eu, quando precocemente traumatizadas, ou seja, quando não foram encontradas e reconhecidas sistematicamente pelos objetos primários, tendem a se retrair e permanecer silenciosas, enregeladas, petrificadas e clivadas ... É preciso ir ao encontro e reconhecer justamente o que se mantém no silêncio; mas como escutar o inaudível? (2014, p. 128)

Tentando dar um estatuto metapsicológico à empatia, Roussillon (2014; 2012a) propõe o conceito de identificação narcísica de base, esta ligada à dimensão mais corporal/primitiva do psiquismo. É com ela que "escutamos" a linguagem do corpo do outro. A preocupação materna primária é o estado em que esse tipo de identificação tornou a mãe efetivamente capaz de se identificar em duplo (Roussillon, 2008) com o psiquismo primitivo do bebê. Se não estiver excessivamente defendida, ela irá "sentir com ele", reconhecendo nela mesma algo análogo a seus (dele) estados emocionais. A identificação narcísica de base torna o analista sensível e empático ao sofrimento mudo da criança-no-paciente.

Um exemplo dessa escuta empática?

É difícil descrever algo que não se mostra de maneira alguma ou que se mostra pelo negativo. Levo algum tempo para perceber que um jovem empresário - bem apessoado, culto, inteligente, articulado, mas totalmente desvitalizado - repete na situação analítica o comportamento hiperadaptado com o qual vem sobrevivendo desde sempre. Chega, deita e fala do que ele entende serem "assuntos analíticos": sua dificuldade na relação com o filho, a irritação com uma esposa infantilizada e psiquicamente ausente, o ódio do pai invasivo e crítico.

Lembra aquela sua paciente do copo de água, não é?

É mesmo, bem lembrado! Só que há um tipo de sofrimento emudecido, do qual ele não se queixa, não porque não queira, mas porque não consegue "se sentir": ele não tem empatia consigo mesmo. O que nos mostra sua identificação com um objeto interno "duro", não empático. A dor de não conseguir se comunicar verdadeiramente com outro ser humano está emudecida. Ele vive em uma solidão atroz, e acha que a vida é assim mesmo!

E, veja, é importante "embarcar" nos assuntos cotidianos, até porque são temas que de fato produzem sofrimento - mas é um sofrimento consciente. O sofrimento inconsciente tem a ver com a experiência de não poder contar com absolutamente ninguém para o que realmente importa. Por isso, não posso perder de vista que, de alguma forma, ele também se esconde atrás das palavras.

Lá pelas tantas - não consigo lhe explicar como! - simplesmente percebo que o perdi de vista. Fiquei falando com a "casca", enquanto a "polpa" não está mais lá. A imagem que me vem é de um menino triste, tímido, introvertido, que se esgueira silenciosamente pelas paredes da casa, quase invisível. Não pede nada e não incomoda. Ninguém percebe que ele está lá, sozinho, fechado em um mundo do qual ninguém sabe rigorosamente nada. Quando o perco de vista, o abandono traumático e a solidão se atualizam na transferência. Mais uma vez, o objeto não reconheceu as necessidades do eu. A diferença que consigo introduzir na pura repetição do mesmo é identificar esses momentos e lhe dizer que o perdi de vista. Paradoxalmente, quando digo isso, propicio a experiência emocional de uma forma muito fundamental de reconhecimento. Tanto que ele, que nem sabia que estava escondido, se emociona e fica aliviado ao "ser encontrado".

É um trabalho sutil e delicado! Você disse que Luís Claudio Figueiredo menciona um sexto momento, o momento atual.

Sim, e acho que com isso podemos encerrar a conversa de hoje. Ele afirma que hoje não podemos ignorar a importância de todas as estratégias de escuta que foram sendo desenvolvidas ao longo da história da psicanálise.

Hoje, a noção de "atenção igualmente flutuante" deve incluir uma dimensão não prevista por Freud: a flutuação entre diferentes canais de comunicação, entre as diferentes vozes - incluindo as caladas, ou entrecortadas ... Cria-se uma escuta ampliada, diversificada, paradoxal - uma escuta verdadeiramente polifônica. (2014, p. 135)

Obrigada, aprendi muito com esta nossa conversa. Até a próxima!

 

Referências

Figueiredo, L. C. (2014). Escutas em análise/Escutas poéticas. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1),123-137.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Freud - Obras completas (Paulo César Souza, org. e trad., vol. 14, pp. 161-239). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Minerbo, M. (2013). Transferência: diálogo com um jovem colega. Jornal de Psicanálise, 46(85),167-181.         [ Links ]

Minerbo, M. (2014). Pensamento clínico: diálogo com um jovem colega. Jornal de Psicanálise, 47(87),215-230.         [ Links ]

Ogden, T. (2010). Esta arte da psicanálise. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Roussillon, R. (2008). L'entreje(u) primitif et l'homossexualité primaire "en double". In R. Roussillon, Le jeu et l'entre-je(u) (Coleção Le fil Rouge, cap. VI). Paris: puf.         [ Links ]

Roussillon, R. (2012a). Manuel de pratique clinique. Paris: Elsevier Masson.         [ Links ]

Roussillon, R. (2012b). As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-identitárias. Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos, 30(1),7-32.         [ Links ]

Roussillon, R. (2014) L'Empathie maternelle. In A. Besse, M. Botbol, N. Garret-Gloanec, L'empathie au carrefour des sciences et de la clinique. Paris: Doin Editeurs. (Trabalho apresentado no Colóquio de Cerisy em 2011)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/5/2015
Aceito em: 12/5/2015

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