SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48 issue89Fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São PauloThe symbolizing function author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

A questão da formação: um percurso histórico

 

The training issue: a historical path

 

El tema de la formación: un camino histórico

 

La question de la formation: un parcours historique

 

 

Isabel Victoria Marazina

Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Doutora em Saúde Pública pela FSP-SP. Exerce atividade como docente na clínica privada e é supervisora clínico-institucional em diversas instituições em São Paulo e Buenos Aires. imarazina@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo dispõe-se a analisar alguns dos elementos históricos e políticos que atravessam o processo da formação psicanalítica e lhe dão forma, trabalhando a noção de produção social desse processo e das consequentes tensões nela implicadas. Baseia-se em um marco histórico amplo, que se inicia nas origens da instituição psicanalítica oficial e toma-se o recorte dos processos acontecidos no Brasil e Argentina a partir da década de 1970, como ponto de partida de questionamentos e aberturas dentro do terreno da formação psicanalítica oficial.

Palavras-chave: formação psicanalítica, percurso histórico do dispositivo, instituições implicadas, recorte em Brasil e Argentina, psicólogos e médicos dentro do processo


ABSTRACT

This paper aims to study some of the historical and political elements that pass through the psychoanalytic training process, and give it form, in order to build the idea of the social production of this process, and the consequent, implied tensions. This paper is founded on a wide, historic mark, whose beginning was the origins of the official psychoanalytic institution. The author emphasizes those processes that have happened in Argentina and Brazil since the 1970s, as a starting point of questions and openings within the field of official psychoanalytic training.

Keywords: psychoanalytic training, historical path of the device, implied institutions, emphasis in Argentina and Brazil, psychologists and doctors within the process


RESUMEN

Este artículo se dispone a analizar algunos de los elementos historicos y políticos que atraviesan y dan forma al proceso de la formación psicoanalítica, de manera a trabajar la noción de producción social de este proceso y de las consecuentes tensiones que ella implica. Para ello, se toma un marco historico amplio, que se inicia en los origenes de la institución psicoanalitica oficial y se toma el recorte de los procesos acaecidos en Brasil y en Argentina a partir de la década de 1970, como punto de partida de cuestionamientos y aperturas dentro del terreno de la formación psicoanalitica oficial.

Palabras clave: formación psicoanalítica, condiciones socio-historicas, instituidos e instituyentes inherentes al proceso


RÉSUMÉ

Cet article se propose à analyser certains des éléments historiques et politiques qui traversent et donnent une forme au processus de la formation psychanalytique de façon à travailler la notion de production social de ce processus et des tensions dont les effets y sont impliqués. Il est fondé sur une large borne historique qui commence aux origines de l'institution psychanalytique officielle lorsque l'on prend la coupure des processus qui on eu lieu au Brésil et en Argentine, à partir des années 1970, en tant que point de départ de demandes et d'ouvertures dans le terrain de la formation psychanalytique officielle.

Mots-cles: formation psychanalytique, parcours historique du dispositif, institutions impliquées, coupure au Brésil et en Argentine, psychologues et médecins dans le processus.


 

 

Ao longo desse percurso, tentarei demonstrar que a problemática da formação não pode ser dissociada das circunstâncias históricas em que se desenvolve. As escolhas sobre os modelos que orientaram essa formação foram resultado de complexos entrecruzamentos de fatores que abrangem, desde a singularidade de uma prática sustentada no fenômeno da transferência, até as circunstancias históricas e políticas que a formataram e lhe deram vida. Se posso contribuir de alguma forma a essa temática é inevitável que o faça com base no meu próprio percurso de formação, que teve início na Argentina, precisamente na década de 1970, alguns anos depois da enunciação do grupo Plataforma.

A formação em psicanálise constitui um dos eixos estruturantes do campo psicanalítico, além de um dos de maior complexidade, depositário de diversas tensões que até a atualidade vigoram e dão forma aos espaços institucionais em que se desenvolve. Se acompanharmos atentamente a história do movimento psicanalítico, podemos, junto com Roudinesco, caracterizar quatro etapas no processo de institucionalização da psicanálise:

• A primeira, que abrange de 1902 a 1906 seria o período dos tempos heroicos do surgimento do pensamento psicanalítico e das resistências a este.

• A segunda, de 1906 a 1912 implica o movimento de expansão, em que nascem as primeiras associações e a própria ipa (International Psychoanalytic Association).

• A terceira etapa, de 1912 a 1927, assiste à criação do Comitê Secreto, uma espécie de círculo de analistas de confiança de Freud, nucleados em torno dele, com o propósito de zelar pelos princípios fundamentais da teoria. Freud aceita com entusiasmo a proposta apresentada por Ernest Jones entendendo-a como uma forma de manter "sua criação". Fica claro que, logo depois do fracasso da nomeação de Jung como herdeiro - e, portanto, como polo transferencial possível -, o retorno à figura de Freud, que tinha tentado se deslocar desse lugar, é inevitável. A instituição do Comitê expressa, justamente, esse retorno, que serve como analisador de um momento importante em termos da continuidade institucional, ameaçada por uma liderança já atravessada pela doença e a idade, além do inegável peso que significava nesse momento na Europa a nascente sombra do antissemitismo. Esse dispositivo regeria a política interna do movimento, não somente no que tange à neutralização da liderança de Jung, mas em relação aos destinos da instituição psicanalítica até 1927 - constituindo um poder paralelo de enorme influência. No momento de sua dissolução, no X Congresso Internacional de Innsbruck, se considera que a expansão internacional está assegurada, pelo qual a liderança passa a se concentrar na associação e suas instâncias de gestão.

• A quarta etapa, inaugurada em 1926 no congresso de Bad-Homburg, é a da profissionalização, quando surge a análise didática obrigatória como quesito para advir um analista. Sem dúvida, esse caminho foi traçado pela política do Comitê Secreto, que, tendo cumprido os seus objetivos, se dissolve. Mas é necessário apontar que dentro do Comitê já estavam instaladas dissensões significativas, fundamentalmente a posição de Ferenczi, assim como de Rank. Ambos têm contradições importantes com o legado freudiano e saem da "sociedade secreta", sendo desestimadas suas contribuições. Na leitura de Roudinesco, esse período, que ela chama de "psicanálise moderna", traz como marco institucional a padronização e sistematização da formação analítica.

Kupermann (2014) se apoia em um trabalho de Balint para refletir sobre os modelos de formação adotados na época. Ele nos relembra que, em 1919, Freud cogitava criar um instituto de formação para analistas visando atender o que ele vislumbrava como uma demanda futura de psicoterapia para as massas. Para isso, seria preciso repensar a técnica e também a formação de analistas para essa tarefa. O projeto foi apoiado por Anton von Freund, que ofereceu considerável ajuda econômica para realizá-lo. No Congresso de Budapeste, em 1918, surge, então, o esboço da ideia dessa instituição, proposta por Freud, que abrangeria três funções: psicoterapia para as massas, formação de analistas e pesquisa psicanalítica.

Malgrado a aprovação de Freud, o modelo que triunfa é o do Instituto Psicanalítico de Berlim, fundado em 1920 por Eitingon, Abraham e Simmel, onde se implementa o aspecto da formação, sem considerar nem a o aspecto de psicoterapia das massas nem a pesquisa, segundo observação de Balint. Esse modelo foi adotado como política em relação ao paradigmático para a criação de todas as instituições posteriores, e é preciso considerar que o descarte das dimensões citadas analisa uma decisão que marca o destino do movimento.

O período da profissionalização implica uma institucionalização, que precisa enquadrar o fenômeno psicanalítico dentro das exigências "normativas" de um registro socioprofissional que, em rigor, entra em tensão com a própria exigência do processo analítico como eixo fundamental da transmissão do saber psicanalítico. A posição freudiana inaugura um espaço de transmissão que afasta a psicanálise da ciência, já que nele articula teoria, resistência e transferência, incluindo decisivamente o analista no campo do dispositivo e não fora dele, como observador/operador "imparcial". O seu inconsciente está em jogo a todo momento. Como conciliar essas exigências? Essa tensão permanece vigente ao longo de toda a historia do movimento psicanalítico.

Em relação ao modelo adotado pela ipa, vemos que ele produz um primeiro efeito problemático: o lugar do analista se confunde e/ou sobrepõe ao seu lugar institucional, lugar que lhe é facultado para decidir sobre o destino da candidatura do seu analisando. Isso provoca um ponto cego referido às relações de poder institucional que se instalam no seio do dispositivo que, como qualquer ponto cego, fica irredutível à análise, com efeitos diretos na transferência das análises didáticas. As críticas ao modelo acompanham o seu estabelecimento: Ferenczi e Balint apresentam objeções sobre os aspectos superegoicos do dispositivo, bem como seus efeitos sobre a subjetividade dos analistas a ele submetidos. Ao longo dos anos 1950 existe um pensamento crítico minoritário não organizado e fragmentário que mantém aberta essa discussão. Mas é nos anos 1960 e 1970 que ela adquire mais força contestatória à luz de um momento histórico em que se articulam intensos questionamentos às formas tradicionais de organização social e política. Por outro lado, na história própria da Instituição, as falências do modelo instituído vão se evidenciando. Cresce o mal-estar em relação à condução das análises didáticas, à concentração das decisões institucionais, a uma normatização da prática e de um modelo do que deveria ser um psicanalista (o chamado "analista padrão") que se reveste de um alto conteúdo ideológico, inviabilizado pelas prescrições "técnicas".

Na psicanálise francesa, a presença de Jacques Lacan opera desde os anos 1960 uma espécie de intervenção institucional no quadro da Associação Psicanalítica. Sua decisão de decidir a temporalidade das sessões por critérios diferentes dos propostos pela instituição provoca por parte dos dirigentes um intenso questionamento de sua clínica, o que abre um debate com partidários de ambos os lados. Lacan defende sua posição sem se propor a retificá-la, e isso determina sua expulsão. Junto com um grupo de analistas que se separam da ipa, funda um novo espaço, a Escola Freudiana de Paris. Nesse espaço, Lacan tenta articular novos dispositivos de formação coerentes com suas concepções, no esforço de recolocar o fenômeno da transferência como fio condutor do processo de formação.

O grupo Plataforma Internacional, de origem europeia, tem expressiva ressonância na América Latina, instalando uma forte crítica política aos aspectos autoritários e concentradores de poder do processo formativo da Internacional Psicanalítica. Na esteira desse movimento, criam-se na Argentina os grupos Plataforma e Documento, integrados por jovens analistas e candidatos da apa que se separam desta, acompanhados por alguns didatas, como Marie Langer e Enrique Pichon Rivière, integrantes do grupo fundador da instituição.

Não é o propósito deste trabalho se deter na análise dos percursos atravessados por essas tentativas de reformulação institucional - percursos complexos, e muitas vezes afetados por fenômenos muito semelhantes àqueles que tentavam criticar -, mas entender que outras realidades formativas foram se abrindo a partir do estremecimento de estruturas que, até ali, se propunham como únicas garantias da formação psicanalítica. De fato, entendo que aquilo que Roudinesco aponta como "abertura generalizada para o pluralismo" dentro da psicanálise francesa, com a revalorização de diversos autores - sobretudo o próprio texto freudiano -, levou a uma diversificação de espaços de formação, e a arranjos que abalaram a hegemonia do modelo único da ipa.

Aquela realidade local, cabe distinguir particularidades já presentes na própria instituição psicanalítica oficial: a existência, dentro de seus quadros, de psicanalistas que exerciam tarefas formativas fora da apa. Esses analistas tiveram atuação destacada dentro da recém-criada carreira de Psicologia (1954), sendo os mentores de um processo de progressiva psicanalização nesse meio. José Bleger, analista didata da apa, se engaja no corpo docente desde o início, logo acompanhado por David Liberman, Edgardo Rolla e outros.

O processo de psicanalização da formação do psicólogo foi criando uma demanda de formação psicanalítica que a apa não podia satisfazer, já que não aceitava profissionais não médicos. Os médicos também tinham dificuldades de acesso, dada a escassez de analistas didatas e os elevados custos da formação. A opção que se apresentava era a de grupos de estudos privados, muitas vezes coordenados por membros da apa, e começar uma análise pessoal fora da instituição até serem aceitos. Sob pressão da demanda, foram surgindo alternativas de formação. Em 1964 cria-se a Escola Argentina de Psicoterapia para Graduados, por iniciativa de Arnaldo Rascovsky, analista didata da apa. Em 1960, a Escola de Psiquiatria Social, e depois Escola de Psicologia Social, dirigidas por Enrique Pichon Rivière, onde ensinavam também Bleger, Ulloa e Liberman.

Jorge Balán (1991) nos diz:

havia se desenvolvido uma verdadeira escola de psicanálise fora da APA, porém com a liderança dos seus membros, escola cujos alunos eram os psicólogos da universidade nacional. (1991, p. 87)

Nesse meio tempo, esses psicólogos pretendiam assumir sua autonomia e criavam suas instituições. Na segunda metade da década 1960 surgem a Associação de Psicólogos de Buenos Aires, a Revista Argentina de Psicología e duas importantes instituições de formação clínica. O caráter privado desses movimentos tem a ver com o clima repressivo instalado na esfera pública a partir do golpe de Estado de 1966. Mas, já para o final da década, num marco político de abertura os psicólogos questionam a autoridade da apa, caracterizando-a como uma instituição política e psicanaliticamente reacionária. São criticados não somente os critérios elitistas de admissão como uma formação que elide aspectos sociais e políticos sob a alegação de que esses aspectos não fariam parte do trabalho analítico, necessariamente abstinente.

No Brasil, a nascente categoria dos psicólogos também procura alternativas de formação psicanalítica. À diferença do Rio de Janeiro, em São Paulo os psicanalistas também estão presentes no curso de graduação em Psicologia. Da análise de depoimentos recolhidos por Coimbra (1995) surge a clara ideia de que, para os psicanalistas que nele atuavam, o curso de Psicologia capacitava os psicólogos a se tornarem "técnicos" que iriam popularizar a psicanálise por meio do atendimento "à população carente". Contudo, para se tornarem psicanalistas, a única alternativa era a formação nas sociedades da ipa. Isso não afeta os princípios preconizados pela Internacional Psicanalítica; pelo contrário, parece haver um fortalecimento na demanda de formação dirigida à instituição oficial, sustentada também pelos psicólogos. A crítica à instituição residia na impossibilidade de acesso, não no tipo de formação que se brindava.

Sem entrar em maiores detalhes, entendo que a história percorrida vai assinalando um espaço semelhante para a nascente categoria dos psicólogos, tanto na Argentina quanto no Brasil. Mas há uma diferença: no movimento dos psicólogos argentinos se enxerga mais claramente uma crítica política à instituição oficial, e maior organização em entidades sindicais e profissionais. O movimento dos psicólogos no Brasil, mais frágil politicamente, não se afasta das alternativas de formação propostas pela formação oficial, com exceção do Instituto Sedes Sapientiae, capítulo singularíssimo na história da formação psicanalítica de São Paulo. Essa instituição nasce como um espaço alternativo às formações das instituições públicas, estranguladas pelo projeto da ditadura militar, que, por meio do Ministério da Educação, mantinha estreito controle dos conteúdos curriculares considerados passíveis de subversão ideológica.

Sob os auspícios de Celia Sodré Doria, a Madre Cristina, o Sedes acolhe em seu seio uma diversidade de correntes da psicologia e, entre elas, o primeiro curso de psicanálise fora da instituição oficial, a ipa. Alguns analistas didatas da SBPSP se articulam com psicanalistas argentinos exilados e criam um dispositivo de formação que continua até hoje. Ao longo de mais de 30 anos, formou inúmeras gerações de psicanalistas, com parâmetros que, em muitas oportunidades, se estabelecem criticamente em relação aos utilizados pela instituição oficial, fundamentalmente referidos a uma democratização do acesso, assim como de maior horizontalidade nos dispositivos de formação.

Voltando à Argentina, na década de 1960, e na linha das instituições alternativas, um acontecimento cria um novo paradigma institucional: o Hospital Lanús, sob a direção de Mauricio Goldemberg, propôs uma formação dentro do serviço em que atuaram como docentes vários quadros diretivos da apa. Essa proposta deixou uma marca dentro do campo psicanalítico e foi seguida por outras instituições. Isso originou um movimento de articulação entre conceitos psicanalíticos e realidades institucionais que transbordaram os limites da instituição oficial, já amplamente criticada, e abriu percursos diferentes para a formação desse contingente profissional.

O Hospital Lanús foi mais do que um serviço. Foi um estilo. Maurício Goldemberg definia assim sua ideologia:

a não discriminação por preconceitos raciais, políticos e religiosos, a tolerância a todas as orientações teóricas, para permitir que coexistam em um clima de troca e colaboração. (Visacovsky, 2002, p. 121)

O estilo assim definido se baseia no pluralismo como princípio democrático. Mas, ao lado dessa prédica plural, o nome de Goldemberg aparece fortemente associado à psicanálise, convocando maciçamente os psicanalistas da apa como professores e/ou supervisores da formação dos plantéis profissionais do serviço. Isso faz com que a maioria dos historiadores da psicanálise argentina inscreva o serviço e a prática do Lanús como paradigma na historia das práticas ligadas à saúde e à doença mental.

Muitos de nós, jovens psicólogos recém-formados, fomos afetados por esse paradigma. Este abria no dizer de Vezetti (2000) uma concepção interdisciplinar que afetou tanto a psiquiatria hospitalar, enquanto disciplina autônoma, quanto a psicanálise chamada ortodoxa, já que demonstrava ser possível uma formação alternativa à oficial.

Assim, muitos de nós, orientados e imantados por esses movimentos, percorremos um caminho de formação onde se mantinha o tripé análise/supervisão/teoria, mas era possível fazer escolhas em relação aos condutores desses processos, prioritariamente orientadas pela relação transferencial. Essas escolhas se agenciavam em contratos pessoais, sem a influência de uma instituição que autorizasse ou reconhecesse o percurso em questão. Esse percurso, que não se realizou sem percalços e angústias, seguiu caminhos transferenciais, também influídos por efeitos de maestria e imaginários diversos. Contudo, considero que no saldo final, a escolha orientada pela transferência foi um processo trabalhoso, mas, sem dúvida, com possibilidades de enunciação e crítica.

Nesse momento, relembro Elliot Jacques e sua conhecida afirmação de que as instituições servem de enquadre para os aspectos mais primitivos dos sujeitos que as constituem, para pensar de que maneira e, no caso de analistas "independentes", o que poderia surgir como sintoma dessa angústia. Era a relação aos grupos de referência, geralmente os grupos de estudo, embora estes não alcançassem a categoria de referência institucional, geravam efeitos de pertencimento muito intensos, quase identificatórios.

A incansável pergunta sobre a legitimidade do processo psicanalítico na nossa clínica, retornava - e ainda retorna - em parte porque essa legitimação não tramitava por um pertencimento institucional, mas também porque entendo que a interrogação permanente pela ética do dispositivo analítico faz parte da sua própria estrutura.

Atualmente, me inclino a ler essa interrogação, nem tanto nos termos de uma operação disciplinar - como tantas vezes foi, e é, processada no interior das instituições de formação -, mas como um questionamento dos pressupostos de uma disciplina. Se esta se interroga sobre as condições históricas que lhe deram origem, e sobre sua inserção no mundo, rompe o imobilismo de noções construídas em um momento específico, mas que são tratadas como verdades eternas. Essas verdades, que constituiriam a "essência" psicanalítica, o famoso ouro puro da psicanálise, serviram à institucionalização da experiência analítica, de forma que se minimizassem a incerteza e o jogo das diferenças que lhe são indispensáveis.

Mas também - e acho importante destacar isso - se mantiveram como uma manobra política, quase nunca debelada, de concentração de saber-poder, como aponta tão agudamente Coimbra (1995) em seu trabalho Guardiões da ordem. Foucault nos alertou para o fato de que a possibilidade de nomear, e, desde essa posição, de se instituir como oráculo da "verdadeira psicanálise", implica inevitavelmente uma concentração de poder sem limite dentro das instituições formativas. Não houve mais necessidade de instalar Comitês Secretos, mas essa prática se perpetuou insidiosamente, elidindo a dimensão política das práticas por um discurso que negava a filiação ideológica e política dos psicanalistas. Se a psicanálise como teoria não pode constituir uma Welstanschauung, isso não significa que cada analista não tenha sua visão de mundo, e que não seja preciso revisar os seus pressupostos para evitar que tomem conta da sua prática. Ou, o que é pior, que opere com eles de forma a impô-los, não somente aos seus pacientes - o que já é muito grave -, mas também aos pares que pensem de forma diversa.

Hoje, em um mundo atravessado pela velocidade e pelo anseio do imediato, em espaços cada vez mais direcionados para um pensamento de alta complexidade ou interdisciplinar, é imprescindível questionar proposições que se alicerçam em construções subjetivas que datam de outras épocas. Para tomar um exemplo do setting tradicional, considero que a exigência de um elevado número de sessões semanais só é possível em função da singularidade do caso. Essa exigência não se sustenta como indicação geral, precisamente porque implica uma padronização que pode levar a pensá-la como garantia de alguma condição analítica, quando, se alguma garantia existe, está na capacidade de escuta de ambos os participantes do processo.

Retomo, neste momento, a valiosa referência à posição freudiana que Kupermann (2014) faz para tentar pensar um fluir instituinte da psicanálise num espaço possível entre o ecletismo e um sistema cristalizado e totalizador. Freud escreve em 1914, na "História do movimento psicanalítico":

qualquer linha que reconheça a transferência e a resistência e os tome como ponto de partida do seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. (Freud, 1914/1978, p. 18)

Entendo que essa proposição marca um caminho que nos afasta de propostas de diluir a clínica psicanalítica em cômodas e mansas receitas palatáveis, já que é na transferência e na resistência, pensadas com os elementos que já Freud dispunha na época, em que se joga o núcleo do jogo analítico. Ao mesmo tempo, essa colocação mantém o vigor e a frescura de um momento da psicanálise onde ainda se vivia um movimento, sem a cristalização posterior.

Ao longo desse percurso, tentei demonstrar que a problemática da formação não pode ser dissociada das circunstâncias históricas em que se desenvolve. As escolhas sobre os modelos que orientaram essa formação foram resultado de complexos entrecruzamentos de fatores, que abrangem, desde a singularidade de uma prática sustentada no fenômeno da transferência, até as circunstâncias históricas e políticas que a formataram e lhe deram vida.

Minha circunstância histórica me ensinou que, nos agenciamentos coletivos de psicanalistas, é possível realizar uma tarefa de transmissão aprendendo com as histórias já vividas, de forma que se evite os efeitos de maestria e de fechamento sectário que a inviabilizam. O efeito de maestria, muito sinteticamente entendido, implica a cessão de um sujeito de sua possibilidade de pensar sobre o seu desejo para um mestre "que sabe". Por tanto, à medida que essa cessão se realiza, estamos impedidos de pensar no nosso destino de sujeitos como algo singular e único, mas a sujeitados ao saber de Outro que nos protege e conduz. O fascínio que alguém situado na posição de mestre produz é a base de todas as servidões voluntárias, com bem aponta La Boétie em 1528.

O conceito de transmissão adquire aqui um sentido forte porque, à diferença da formação - que pode implicar uma "boa forma" a ser alcançada -, transmissão me diz de uma passagem em que cada sujeito poderá se inscrever, segundo a sua posição subjetiva, alcançando, não uma forma, mas um estilo. Que, como sabemos, é ditado pelo inconsciente.

 

Referências

Balan, J. (1991). Cuéntame tu vida. Una biografía colectiva del psicoanálisis argentino. Buenos Aires: Planeta.         [ Links ]

Bauleo, A. e Langer, M. (1971). Cuestionamos. Buenos Aires: Granica.         [ Links ]

Coimbra, C. (1995). Guardiões da Ordem. Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do Milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor.         [ Links ]

Freud, S. (1978). Historia del movimiento psicoanalítico. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol 14, pp. 7-64). Madrid: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Jacques, E. (1972). Los sistemas sociales como defensa contra las ansiedades persecutorias y depresivas. In E. Jacques, Nuevas direcciones en psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Kupermann, D. (2014). Transferências cruzadas. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

La Boetie, E. (2004). Discurso sobre a servidão voluntária. Rio de Janeiro: Cultura Brasil. (Trabalho original publicado em 1892)        [ Links ]

Marazina, I. (2003). Psicanálise implicada. Relação da Psicanálise com o campo da Saúde Mental na Argentina e no Brasil. Dissertação de Mestrado, PUC-SP. Inédita.         [ Links ]

Roudinesco, E. (1988). História da psicanálise na França. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Vezzetti, H. (1996). Aventuras de Freud en el pais de los Argentinos. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Visacovsky. S. (2000). El Lanús. Memoria y política en la tradición psicoanalítica y psiquiátrica de la Argentina. Buenos Aires: Alianza.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 4/12/2014
Aceito em: 9/12/2014

Creative Commons License