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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dic. 2015

 

RESENHAS

 

O trágico: Schopenhauer e Freud

 

 

Sergio Vieira Bettarello

Psiquiatra. Psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). sergiobettarello@hotmail.com

 

 

Autora: Jassanan Amoroso Dias Pastore
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2015
Resenhado por: Sergio Vieira Bettarello, São Paulo

 

A dignidade da vida trágica

Entre o grito do nascimento e o silêncio da morte, estamos condenados, juntamente com todos os outros animais, à labuta diária pela sobrevivência. Mas, como humanos, insuficientemente aparelhados por nossos recursos inatos para enfrentar a vida, e conscientes de nossa finitude, temos, por assim dizer, uma tarefa suplementar: a necessária inserção no âmbito da cultura. Uma trágica tarefa suplementar, que é magistralmente abordada no livro O trágico: Schopenhauer e Freud, da psicanalista Jassanan Amoroso Dias Pastore.

O livro é fruto de ampla pesquisa para dissertação de mestrado na PUC-SP, sob orientação do prof. Luiz Felipe Pondé. A questão que a autora investiga é se Schopenhauer e Freud podem ser considerados pensadores trágicos.

Como ficará claro a todos os que aceitarem o convite para lê-lo, o livro vai muito além do que promete. Isso se deve não apenas à riqueza do tema, mas também à ampla formação da autora, que mostra a rara competência de alçar grandes voos intelectuais, sem perder de vista a experiência concreta do existir humano.

Temas complexos demandam desenvolvimentos cuidadosos. Como nos alerta o aforisma de Hipócrates: "A arte é longa, a vida é breve, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil". Atenta a esse preceito, a autora não busca atalhos nem se precipita.

O percurso foi longo e trabalhoso, como ela mesma reconhece:

partimos da investigação do trágico desde a Antiguidade greco-romana, passamos pelo trágico na filosofia moderna, em particular, por Schopenhauer, até chegar ao trágico em Freud. Em cada um desses momentos, descortinou-se um novo universo de constelações conceituais a respeito do trágico inerentes a cada campo. (p. 329)

Mesmo alertados de que a noção de trágico não tem "uma definição precisa" (pp. 90-91), vamos propor uma que nos pareça suficientemente abrangente: trágico refere-se à tensão entre o papel do acaso na existência humana e a aspiração a uma vida digna. Podemos utilizar outros termos tanto para acaso como para vida digna. Ao fazê-lo, compreenderemos a riqueza polissêmica do conceito.

Assim, por exemplo, ao substituir acaso por desígnios divinos ou providência, adentramos o domínio do religioso. De modo análogo, trágico adquire novos sentidos se acaso for substituído por caos, sorte/tique/fortuna/destino, casualidade ou contingência/contexto (pp. 182-187). Essas nuances de sentido são muito bem abordadas no livro, de modo que não há por que insistir muito nesse ponto. É interessante, contudo, antecipar que, se o termo substituto for Vontade cega ou pulsões inconscientes, estaremos no cerne da filosofia de Schopenhauer ou da teoria freudiana, respectivamente.

No tocante à vida digna, também, o sentido varia dependendo do modo pelo qual se entenda eudaimonia. Esse é um dos principais conceitos da ética aristotélica e etimologicamente significa algo como "estar sendo habitado por um bom espírito ou gênio". Indica uma condição de vida plena, realizada, virtuosa ou excelente. Na filosofia contemporânea, eudaimonia tem sido frequentemente traduzida por felicidade, prazer ou bem-estar, o que tem gerado alguma confusão. Não é difícil avaliar a diferença qualitativa entre aspirar à construção de uma vida que vale a pena ser vivida e buscar a felicidade.

De qualquer modo, sejam quais forem os pares de termos utilizados na conceituação de trágico, a ideia de conflito estará sempre presente (p. 331). Conflito entre determinações divinas e livre-arbítrio humano, entre caos e cosmos, entre inconsciente e sujeito consciente, entre pulsão de vida e pulsão de morte, além de inumeráveis outros exemplos.

Interessante também observar que a palavra tragédia é de origem grega e se forma com a junção de tragos (bode) e ode (canção). Literalmente canção do bode (p. 61). A análise etimológica sugere raízes históricas na religião, especialmente no culto ao deus Dionísio, praticado pelos gregos antigos e mais remotamente pelos povos que os antecederam. Os rituais dionisíacos perduraram por séculos e foram realizados em muitas regiões. Nessas oportunidades, um bode era sacrificado enquanto os participantes embriagados cantavam e dançavam até a exaustão. Como um dos mais importantes atributos desse deus é a desmedida, muitas dessas festas caracterizavam-se pela embriaguez, violência e libertinagem sexual (pp. 55-72).

Quando o ritual começou a ser comemorado em Atenas por ocasião da vindima, o caráter violento da festividade atenuou-se e adquiriu um aspecto mais representativo e teatral, surgindo então a tragédia grega enquanto gênero literário característico do século V a.C. (p. 72).

Os principais autores trágicos gregos foram Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (no livro há vários trechos comentados de textos desses autores). O tema recorrente nessas obras é a "inexorabilidade do destino" (p. 95). Hoje em dia, os apreciadores das tragédias gregas são tidos como pessoas de alta cultura, eruditos, ou mesmo esnobes. Mas, na época clássica, a apresentação das tragédias era um evento cívico de grande apelo popular. Embora cada autor elaborasse versões pessoais dos temas representados nos palcos, as histórias já eram, em linhas gerais, de domínio público, pois faziam parte da tradição, conforme nos esclarece Jassanan: "O tragediógrafo escreve a tragédia a partir da mitologia, representante do passado de seu povo, e a utiliza, abrangendo questões próximas da época, para promover a reflexão e o diálogo com o público" (p. 94). Reflexão e diálogo. Dois objetivos que o teatro trágico grego compartilha com a filosofia; afinal, na Grécia clássica, a separação entre filosofia e arte poética não era ainda tão marcada como atualmente.

Entre os filósofos, foi Aristóteles o primeiro a formular a definição de tragédia enquanto gênero de dramaturgia (p. 73). Curiosamente, quando ele nasceu, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes já haviam morrido, mas suas obras continuavam vivas. Aristóteles "entende a encenação dramática como uma espécie de remédio da alma, que ajuda o público a expelir suas dores e sofrimentos ao presenciar o desenlace" da trama (p. 74), nos conta Jassanan. A tragédia nos esfrega na cara nossa insuficiência diante do destino imponderável, mas ao mesmo tempo tem um caráter terapêutico. Seria também a filosofia um caminho para desenvolver uma relativa autonomia com relação às contingências da vida?

De fato, alguns filósofos envidaram o melhor de seus esforços na construção de casamatas intelectuais para evitar o acaso e os tormentos da paixão. Algo como construir um cosmos para eliminar o caos (pp. 179-182). Outros procuraram abrigo na intimidade de si mesmos, mediante um contínuo trabalho de aprimoramento pessoal, entre eles, os epicuristas. Jassanan dedica grande atenção ao pensamento de Epicuro, mediante a análise dos escritos de um de seus mais proeminentes seguidores, o poeta e filósofo romano Lucrécio, do século I a.C., cuja principal obra, Sobre a natureza das coisas, foi escrita em versos. Mais uma vez filosofia e arte caminharam juntas.

A importância do pensamento de Lucrécio no projeto geral do livro é enorme. O trágico está em maior ou menor grau presente em muitos filósofos que o precederam, mas, para a autora, ele foi o "mais significativo" e radical de todos.

Lucrécio fascinou-se pela doutrina de Epicuro, a quem se referiu como "honra da graça grega", e o reconhece como o mestre que apontou o caminho para compreender os segredos do universo, livrar o homem da submissão ao divino e valorizar a felicidade humana.

O pensamento de Lucrécio fundamenta-se no atomismo (Leucipo, Demócrito), segundo as concepções de Epicuro (pp. 118-123). Tudo o que existe é composto de átomos e vazio. Os átomos, indivisíveis e eternos, caem em trajetórias paralelas através do vazio. O que preside o nascimento das coisas é o clinamen, definido como desvio original dos átomos a qualquer tempo ou lugar, o que permite a combinação entre os elementos e o surgimento do mundo natural. Em suma, o fundamento do mundo não é Deus, nem a Natureza. É o acaso. O sentido do mundo é não ter sentido algum. Assim pareceu também a Pondé, citado pela autora: "a realidade última das coisas [para Lucrécio] é o acaso, a natureza das coisas ... é não ter natureza alguma. Não há uma ordem (uma natureza) que produziria algum sentido esperado no mundo e na vida" (p. 122). Radicalmente trágico.

Com base nessa cuidadosa fundamentação da noção de trágico, Jassanan prossegue com segurança para analisar tais componentes na obra de Schopenhauer e Freud. Baseada em vasta documentação, a autora apresenta e comenta as raízes filosóficas e históricas do pensamento de ambos, para, finalmente, discutir as convergências e discordâncias entre suas propostas teóricas.

A possibilidade de aproximação entre a filosofia de Schopenhauer e a teoria de Freud é inegável (pp. 308-326). O próprio Freud reconheceu, em várias oportunidades, a influência de Schopenhauer em temas fundamentais de sua teoria, como o inconsciente e a sexualidade.

As semelhanças temáticas e conceituais nas respectivas obras decorrem, contudo, também do fato de ambos serem pensadores trágicos que "enfatizam a preponderância das determinações dos impulsos inconscientes, em detrimento da razão, sobre as ações humanas" (p. 335), como reiteradamente é demonstrado no livro, em que a autora defende enfaticamente a originalidade de Freud na elaboração de seus conceitos.

Entre convergências e divergências, é preciso deixar claro que Freud jamais fez uma importação selvagem da filosofia schopenhaueriana para a psicanálise, nem pretendeu que a psicanálise se reduzisse a um prolongamento terapêutico da doutrina de Schopenhauer, estabelecendo uma descontinuidade entre as intuições totalizantes do filósofo e as pesquisas psicanalíticas (p. 326).

Apesar de versar sobre o trágico, o livro não é pessimista. No confronto trágico com o existir, Jassanan discrimina duas atitudes emblemáticas. Afirmar o acaso, apostando no potencial criativo da vida, ou negá-lo, e com isso renunciar à própria vida. Cuidado de si ou renúncia a si. Escolham. A leitura desse livro nos leva a optar pela digna alegria de viver tragicamente.

 

 

Recebido em: 16/6/2015
Aceito em: 23/6/2015

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