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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015

 

RESENHAS

 

Tessitura de uma experiência

 

 

Celso Antonio Vieira de Camargo

Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. celsovieira@uol.com.br

 

 

Autor: Deocleciano Bendocchi Alves
Editora: Edição do autor
Resenhado por: Celso Antonio Vieira de Camargo, São Paulo

Nesse livro, Deocleciano nos brinda com várias experiências clínicas e reflexões, vividas ao longo de sua trajetória profissional. Escrito num estilo intimista e muitas vezes com um caráter poético, o autor inicia a obra com a "História de Mariana", relato comovente, sofrido, testemunhando ao mesmo tempo o crescimento do psicanalista e da menina Mariana, filha adotiva, com marcados traços psicóticos, que vão se amenizando ao longo da análise. Simultaneamente, a pequena criança desamparada desenvolve uma capacidade pictórica que desponta como um elemento importante de comunicação com o analista. Seu primeiro desenho, em que vemos uma menina gigante sendo escalada por seres minúsculos, poderia figurar como um modelo pictórico da vida mental, com sua multidão de personagens, que Bion literariamente vai descrever, muito depois, na Memória do futuro. Eles nos dão uma bela imagem, intuída por essa menina, da complexidade do funcionamento de nossa vida psíquica, antes, como diria Bergson, que nossa capacidade simbólica, mais preparada, organizada e ocupada com a sobrevivência, entre em ação.

Na série de trabalhos intitulada "Paideia", o autor vai se debruçar sobre questões relativas ao sentimento de soledade, inseparável do desenvolvimento psíquico, e da aquisição, ou desenvolvimento, de uma autoridade pessoal, ferramentas indispensáveis para a vida. Em 1986, surge "Paideia I", primeiro artigo de uma série de quatro. O título desse primeiro trabalho é "Da experiência ao conhecimento". Trata aqui de como podemos utilizar as diversas situações que vivemos, até mesmo as mais frustrantes, como possibilidade de enriquecimento e conhecimento da realidade que nos cerca.

Utiliza a metáfora dos homens pássaros, relato lendário ouvido quando esteve na ilha de Páscoa, para pensar na indagação permanente do homem sobre suas origens e o sentido da vida. A cada chegada da primavera, um grupo de jovens arriscava a própria vida para que fosse escolhido o homem pássaro, figura mitológica que, ao ser ungida, se recolhia por nove meses, enquanto a população comemorava o início da primavera. O ritual associava-se a cerimônias de comemoração da fecundidade da vida, mas continha também os elementos destrutivos que fazem parte dela, o mais representativo sendo a própria morte. Como diz o autor, "nesse movimento capto a presença de algo específico à natureza humana, o impulso ao desenvolvimento". Deocleciano observa, no entanto, que alguns dos turistas que foram à ilha de Páscoa achavam que nada havia de interessante ali, considerando a experiência monótona, e com isso perdendo a oportunidade de se enriquecerem com aqueles textos poéticos, lendas e histórias misteriosas, criativas e mágicas, indicadoras de uma civilização preocupada com um sentido superior da vida.

Em 1989, temos o segundo trabalho, "Paideia II", que aborda o tema da consciência da soledade. Tomando como modelos a vida de Teodora, esposa de Justiniano, que de origem humilde chega a ser imperatriz, outros da obra de Proust e de experiências clínicas, aborda também uma questão que foi bem sintetizada numa supervisão de Bion, também referida no trabalho: "Nós parecemos ser uma espécie animal que tem de se organizar em sociedade, que tem de ter irmãos e irmãs, pai e mãe, e todo um aparelho social. Nós dependemos disso e somos ao mesmo tempo inteiramente sós". A elaboração desse "ser só" conduz à possibilidade de formação de uma autoridade pessoal, independente da autoridade grupal. Como nos diz o autor,

O equilíbrio é sempre transitório e instável. Oscila entre a necessidade de erigir uma autoridade atuante (que pode ser a instituição ou a doutrina oficial, indicativa do caminho da verdade, mantenedora da ilusão de que podemos conhecer toda a mente humana), e a aceitação da ignorância e do desamparo, que lançam as bases para o estabelecimento de um estado de mente propício à observação, à indagação, à curiosidade e ao desenvolvimento da intuição, respeitando as possibilidades pessoais de desenvolvimento de cada um. (p. 92)

Em 1996, surge "Paideia III", e o título já nos diz muito a respeito do trabalho: "Da observação da intuição, da precisão, e da improvisação ao existir". Deocleciano dá novos contornos à "urgência de existir": a necessidade de criarmos, interiormente e no contato com os demais, um "espaço dramático", em que nossas possibilidades criativas possam aparecer, e em que possamos captar o movimento do desconhecido em ação na vida e na intimidade de cada um de nós, levando a um crescimento psíquico.

Utilizando modelos literários e poéticos, ele também fornece uma versão pessoal do mito da criação, exposto no Gênesis. Procura imaginativamente flagrar Adão e Eva logo após o "momento da transgressão":

Começavam uma coisa nova, estranha, indizível, ainda desconhecida. Como seria? O que seria? Seria? Assim começava a vida. Souberam que surgiria também a separação, o sofrimento, a dor e o trabalho em busca da sobrevivência. E sabiam também que o medo da morte se faria presente, ora insinuante, ora insidioso, ora sedutor sob a forma dos feitos heroicos, ora repugnantes na experiência do envelhecimento e do adoecimento, quando o fim muitas vezes fica encoberto pelo sentimento da juventude perene. E morreriam, pois esse era o inexorável fim.

"Paideia IV" é apresentada como uma suíte (composição musical) em quatro movimentos. Aqui o autor elabora com mais precisão o conceito de expectação, relacionado aos anteriores, como sendo o centro de uma postura constante que envolve confiar na evolução rumo ao desconhecido.

Nos capítulos "Agir, alucinar, sonhar", "Notas sobre o trabalho psicanalítico", "Objetivos de uma psicanálise", "Observação - De o cravo bem temperado a A arte da fuga", "Religião e estados de mente religiosos", "Reflexões estimuladas por Bion", "Transformações e sonhos", "Da observação: conhecimento<->liberdade", Deocleciano desenvolve questões como a verdade, que pode surgir da apreensão da realidade psíquica, levando-se em conta o caráter fugaz, transitório e efêmero de qualquer experiência emocional. Também significativas são a possibilidade de separar-se do grupo, a aquisição de uma autoridade pessoal e a consciência de que o ser humano é só.

À necessária disciplina de amenização de memórias e desejos, o autor observa que Bion acrescenta também a necessidade de não se esforçar por compreender, e manter a percepção sensorial também afastada, por serem fatores que necessariamente levam à alucinação e à perda da capacidade intuitiva de apreensão do novo, do desconhecido da sessão analítica.

O livro de Lewis Carroll Aventuras de Alice no país das maravilhas é usado como um modelo para observar, acompanhar, não explicar, não entender, e viver as incongruências de uma situação para lidar com o inesperado, tal como acontece com Alice.

Nesses trabalhos, Deocleciano aborda os diversos espaços em que nosso Play (conceito tirado de Philips, que se aproxima da nossa necessidade de existência real, como ser psíquico, não apenas como alguém com um registro de nascimento) se dá: espaço mítico, religioso, dramático e psicanalítico. Para ter contato com este último, aquele em que nossa personalidade surge como ela é, é fundamental a capacidade de improvisação e transformação para podermos lidar com o desconhecido. Começamos com a imitação e consequente alucinação, até adquirirmos uma autoridade pessoal, trabalho este que não termina enquanto se está vivo.

Na última série de artigos, intitulada "Tessitura de uma experiência", que afinal dá nome ao livro, são expostas ideias desenvolvidas entre 2011 e 2014. Vemos como o autor aprofunda o que denomina undistractibility e "serendipidade", conceitos que vão dar novas dimensões aos anteriores.

O próprio título desses cinco artigos nos mostra a proposta de Deocleciano: como numa partitura musical, ou na trama de um tecido, vemos amalgamarem-se anos de experiência psicanalítica, enriquecidos agora com a tessitura e complexidade de toda uma vida. Entremeando todo seu trabalho com citações de Bion, Philips, Bergson, entre outros pensadores, a importância que dá ao trabalho mental intuitivo sobrepõe-se à atividade racional.

Para desenvolver seu "espaço dramático genuíno", como nos diz o autor, cada psicanalista precisa deixar de lado o aprendizado teórico imitativo para incorporar as experiências vividas na própria análise pessoal, com base na qual as teorias podem ser criadas e recriadas de maneira viva.

A ideia de pentimento, termo usado mais habitualmente em pintura, indicando uma mudança de ideia do pintor (uma pintura nova é colocada sobre um desenho mais antigo, indicando uma maneira de ver de novo, mas feita de um vértice diferente), é usada para ilustrar esse movimento psíquico constante, em que o passado e o presente se interligam, criando um novo momento. Acrescenta-se aqui a ideia de duração, de Bergson, da passagem constante do tempo, indicando que estamos em mudança permanente, mesmo quando não o percebemos. Mudamos, no sentido do crescimento ou da estagnação.

A mudança criativa traz o amadurecer, criar-se a si próprio, em oposição a permanecer estagnado. Com isto, ela atende à necessidade emocional de existir genuinamente, numa aproximação ao urge to exist de Bion. O termo undistractibility, cunhado pelo biólogo Hugh Dingle, é aplicado à sessão psicanalítica. Como nos diz Deocleciano, neste contexto, undistractibility refere-se ao crescimento psicoemocional rumo a uma finalidade maior: a realização de uma existência. O termo, originalmente, refere-se à tenacidade e atenção necessárias nas grandes migrações dos animais, necessárias para procriar e abrigar a cria. Na sessão, seria a energia necessária para criar o espaço dramático em que os pensamentos selvagens e o inusitado possam surgir, exigindo do psicanalista uma capacidade de improvisação para lidar com o transitório sempre turbulento da experiência emocional nova.

No último desses trabalhos, o autor traz o termo emprestado do inglês "serendipidade". O Webster nos informa tratar-se da faculdade de fazer novas (e inesperadas) descobertas por acidente. No sentido em que o autor usa o termo, refere-se à percepção de outras configurações mentais distintas da que estamos percebendo no momento. Ou seja, refere-se a não perdermos de vista que a vida psíquica está sempre em evolução, mesmo quando não o percebemos, para caminhos frequentemente inesperados, se estivermos atentos e não preenchermos o espaço mental com aplicações vazias de teorias sem um substrato vivencial.

Na tessitura desse livro, Deocleciano nos traz sua reflexão a respeito de muitos anos de árduo trabalho, na acepção mais significativa que o termo "psicanálise" pode ter: contato criativo com a riqueza da efemeridade da vida.

 

 

Recebido em: 11/9/2015
Aceito em: 15/9/2015

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