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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

1983: Giovannetti / Katz e Heemann

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti

Membro efetivo da SBPSP. nnetti@uol.com.br

 

 

 

Botas para ultrapassar fronteiras

"Mas eu nunca fui editor do Jornal", respondi surpreso à colega que, ao telefone, me comunicava que a editoria atual estava pedindo a todos seus ex-editores que escolhessem um artigo para ser republicado nesta edição histórica. Um verdadeiro lapso de memória que os mais de trinta anos passados não justificam por si mesmos. Mas, sem adentrar por uma autoanálise que possa melhor esclarecê-lo, vou tomá-lo como guia a um momento histórico de nossa instituição, os inícios dos anos 1980.

Naquele momento, a edição do Jornal era uma das tarefas regulamentares do Secretário do Instituto que aparecia na publicação como "Diretor Científico", não como "Editor", ficando, portanto, formalmente vinculado à Diretoria do Instituto, sem a liberdade que uma editoria própria deve ter. Os artigos publicados eram, quase na totalidade, relatórios de supervisão dos então chamados candidatos de nosso Instituto. Uma publicação doméstica, portanto. Nossa equipe pensou em expandi-la, publicando artigos de colegas de outros institutos do Brasil. Ideia que teve de ser submetida à aprovação da Comissão de Ensino, que a acatou em caráter experimental. Contatamos formalmente, então, os demais institutos - sempre a Diretoria - oferecendo nosso espaço público. Em dois anos, apenas um artigo nos foi enviado. Sintomático de um momento histórico de nossa instituição e de nosso país: nossas palavras vinham sempre abafadas.

No editorial do número 33 do Jornal escrevi: "Mais do que para promover talentosos psicanalistas ou psicanalistas com talento para a palavra escrita, o espaço oferecido pelo Jornal de Psicanálise está aberto para o colega em formação que, embrenhado no caminho multifacetado da personalidade humana, tenha algo a ser tornado público de sua experiência privada". Felizmente nossa instituição se desenvolveu muito nestes mais de trinta anos, como atesta o Jornal de Psicanálise hoje.

Claro que o artigo por mim escolhido para ser republicado é aquele único que, além de todas as fronteiras institucionais existentes, ultrapassou também as geográficas. Pioneiros, portanto, os colegas Katz e Heemann, com o artigo "O gato de botas, de Perrault".

 

O gato de botas, de Perrault

Gildo Katz e Suzana Heemann1

 

Hoje, como ontem, amanhã e sempre, seus contos serão lidos com o mesmo encanto e admiração; são contos imortais.

Todas as situações de crescimento durante a vida implicam crises, com as consequentes perdas, renúncias e mobilizações de ansiedades depressivas e paranoides, difíceis de tolerar, mas, entretanto, necessárias para que o homem progrida e possa passar de criança a adulto, de filho a pai ou de estudante a profissional. Acompanhando sua evolução desde a vida infantil, observamos que, nestes momentos de transição, ocorre, com maior ou menor intensidade, o recrudescimento do conflito edípico e a necessidade de elaborá-lo, em busca de soluções que capacitem a obter uma intensidade adequada com a nova posição assumida.

Mas, em todas essas situações, o ego tem de se defrontar com o luto pelos ataques feitos aos objetos integrantes da cena edípica e para tanto, lança mão de vários mecanismos defensivos, conforme sua fase de desenvolvimento. Entre eles encontramos os mecanismos maníacos, que têm desde o início uma função adaptativa, no sentido de auxiliar essa elaboração. Eles são necessários porque elaboração é um processo lento e é preciso muito tempo para que o ego adquira suficiente força e confiança em suas capacidades reparatórias.

O gato de botas, de Perrault, após quase três séculos de seu aparecimento, mantém um fascínio sobre nós porque carrega em seu conteúdo o conflito universal edípico. O fascínio é explicado porque acorda a criança que vive em cada pessoa, apontando "com o seu final feliz", uma saída infantil, é verdade, porém muito conhecida e desejada por essa criança inundada de fantasias difíceis de manejar. Aliás, é bem conhecido o fato de que uma das maneiras de elaboração da situação edípica se faça através de uma obra literária.

O conto inicia assim:

Era uma vez um moleiro que deixou ao morrer a seus três filhos, o moinho, um burro e um gato. O moinho ficou para o mais velho, o burro para o segundo, e, ao mais moço coube um gato.

O mais moço, não se consolando por ter recebido tão pouco, dizia:

- Meus irmãos poderão ganhar a vida honestamente fazendo sociedade, mas eu, se quiser comer o gato e fazer um agasalho com sua pele, terei perdido minha parte na herança.

A fantasia da morte do pai, envolvida no crescimento, é vivenciada como abandono, sentimento de solidão, tendo em vista negar os ataques dirigidos à figura paterna. Na tentativa de evitar a perseguição, culpa, solidão e abandono,o indivíduo lança mão desses mecanismos maníacos.

O gato, sem se impressionar com as palavras de seu amo disse-lhe com ar calmo e sério:

- Não se aflija meu senhor. Basta que me dê um saco e me mande fazer um par de botas para andar no campo, e verá que sua parte não foi tão má assim.

Apesar de não acreditar muito no gato, tantas espertezas vira empregar para pegar os ratos e camundongos, saltando rapidamente, fingindo-se de morto, ou escondendo-se no meio da farinha que não desesperou de se ver socorrido pelo bichano.

Nessa passagem, vemos como se processa rapidamente a negação do abandono e da culpa através de uma identificação no ego com um objeto idealizado - o gato - que tudo pode, sendo capaz das maiores proezas. Essas se processam, além disso, no sentido de alimentar constantemente o objeto, mais para aplacá-lo e controlá-lo do que para gratificá-lo genuinamente.

Quando o gato recebeu o que pedira, calçou as botas, pôs o saco no ombro, segurando os cordões com as duas patas dianteiras, foi para o campo, onde havia um grande número de coelhos. Colocou folhas de couve e cenouras no fundo do saco, e, estendeu-se como se estivesse morto, ficou à espera de que algum coelhinho, ainda pouco habituado com as maldades do mundo, viesse entrar no saco, para comer o que ali existia. Mal se deitara, e já ficou satisfeito: um coelhinho ingênuo entrou na armadilha, e Dom Gato, puxando os cordões, prendeu-o e matou-o sem misericórdia. Muito orgulhoso com a presa foi ao palácio do Rei e pediu para falar com o soberano.

Fizeram-no subir aos aposentos de sua majestade. Assim que entrou, o gato fez uma grande reverência e disse:

- Aqui está, Senhor, um coelho de raça, que o Marquês de Carabás (foi o nome que escolheu a seu amo) me incumbiu de trazer-vos.

- Diga a seu amo - respondeu o Rei - que muito lhe agradeço e que me deu grande satisfação.

Nessa parte do conto, claramente se evidencia a imagem de um pai-rei controlado e enganado pelo filho-gato, astuto, traiçoeiro, implacável com o coelhinho, através de uma reparação maníaca.

A culpa subjacente que a reparação maníaca procura aliviar não é, porém, exitosa e não traz satisfações duráveis porque os objetos que estão sendo reparados são tratados inconscientemente com ódio, desprezo, e por isso mesmo são temidos como perseguidores em potencial, daí a necessidade de o gato estar continuamente presenteando o Rei.

Assim, durante dois ou três meses continuou o Gato a levar ao Rei, de vez em quando, animais caçados, que eram presenteados em nome de seu amo.

A necessidade de alimentar o Rei, de saciar a voracidade do objeto, também pode ser entendida como a projeção da própria voracidade infantil, vinculada ao desejo da potência e riqueza do rei-pai. Por isso no conto, a aparente cordialidade do Gato para com o Rei tem ainda outro objetivo:

Soube o Gato um dia, que o Rei devia ir a passeio à beira do rio, levando consigo a filha, que era a mais bela princesa do mundo. Disse o Gato a seu amo:

- Se o senhor quiser seguir o meu conselho, sua fortuna está feita. Terá apenas que ficar tomando banho no rio, no lugar que eu lhe indicar, deixe o resto comigo.

O Marquês de Carabás fez o que o Gato lhe aconselhava sem saber de que lhe serviria isso. Quando se encontrava dentro d'água, passou o rei. O gato pôs-se a gritar com desespero: - Socorro! Socorro! O Marquês de Carabás está se afogando!

Ouvindo os gritos, o Rei ordenou que seus guardas fossem depressa em socorro do Marquês.

Enquanto o pobre Marquês era tirado do rio, o Gato aproximou-se da carruagem e disse ao Rei que, enquanto seu amo se banhava, surgiram ladrões que lhe roubaram as roupas. Determinou o Rei imediatamente a seus camareiros, que fossem buscar uma das suas mais belas roupas para entregá-la ao Senhor Marquês de Carabás.

O Rei recebeu-o muito bem e, como as roupas servissem para realçar-lhe o aspecto, a filha do Rei interessou-se por ele, sentindo-se loucamente apaixonada.

Novamente aqui observamos o engano do pai através da dramatização de um falso afogamento. O estar precisando do rei é em realidade o conteúdo manifesto, pois, mais profundamente, existe o desejo de obter suas roupas, isto é, sua potência e identidade para roubar e conquistar a mão, que é representada pela princesa. Surge dessa forma um outro aspecto da reparação maníaca na situação edípica, ou seja, de que ela tem o objetivo de negar a culpa por não renunciar ao objeto que deseja - a mãe.

Mas a negação da realidade psíquica do menino, de que ele não tem a mãe e, mais do que isso, de que ele é pequeno e indefeso diante do pai temido pelos seus próprios ataques e enganos, pode ser mantida pelo Marquês de Carabás e representa o redespertar e o reforço da onipotência, e principalmente controle do objeto.

Quis o Rei que o moço entrasse no seu carro para tomar parte no passeio. E o Gato, ao ver que seu plano começava a dar resultados, saiu correndo na frente ameaçando os camponeses que ceifavam trigo.

- Minha gente, se não disserdes ao Rei que o campo onde estais ceifando pertence ao Senhor Marquês de Carabás, sereis todos feitos em pedacinhos, como carne de pastel.

O Rei não deixou de perguntar aos ceifadores a quem pertenceria o campo, em que eles trabalhavam. Ao Senhor Marquês de Carabás - disseram todos em conjunto, pois a ameaça do Gato lhes causara medo.

- Grande propriedade a vossa! - disse o Rei ao Marquês de Carabás.

- Saiba, Senhor - respondeu o Marquês - é um campo que produz, abundantemente, todos os anos.

Podemos entender não só nessa passagem como na seguinte do conto em que o gato repete a ameaça aos moleiros e a todos quantos encontrava, que o medo que eles sentiam era, em verdade, o sentimento de aniquilamento pela culpa edípica que havia em cada um deles, daí a necessidade de aceitarem facilmente os enganos e mentiras do gato. Os personagens amedrontados e enganados do conto representam uma tendência de todos nós de não querermos tomar conhecimento da agressão, culpa e necessidade de renúncia frente ao conflito edípico. Também nós, ao lermos o conto, fomos camponeses e moleiros, pois nossa primeira impressão foi a de que ele tratava de uma elaboração exitosa do complexo de Édipo, com autênticos mecanismos de reparação. No entanto, verifica-se ao contrário, pois os mecanismos reparatórios empregados pelo gato tinham o objetivo de seguir atacando o pai-rei para se apossar, como já referido, de suas capacidades, sem culpa.

Por fim, chegou o Gato a um castelo, cujo dono era um papão, o mais rico que jamais existiu, pois todas as terras que o Rei percorrera faziam parte de suas propriedades. O Gato, que teve o cuidado de se informar bem sobre quem era o dono das terras e como costuma agir, pediu licença para lhe falar dizendo, que não quisera passar perto do seu castelo sem lhe prestar homenagem. Dirigindo-se ao papão ele disse:

- Garantiram-me que tendes o dom de vos transformar em qualquer espécie de animal. Podeis, por exemplo, virar leão ou elefante. Num instante o papão transformou-se num feroz leão. Algum tempo depois, vendo que o papão retornava a primitiva forma, o Gato confessou que ficara com muito medo.

- Garantiram-me, também, mas eu não acreditei, que tendes igualmente o poder de tomar a forma de um camundongo. No mesmo instante, transformou- se num camundongo que se pôs a correr pelo chão. Mal o gato percebeu, caiu sobre ele e o engoliu.

O papão representa (projetivamente) o aspecto do pai, potente, rico e desejado. Entretanto, é fundamentalmente temido, necessitando ser engolido e controlado, para enfim obter sua submissão total. Isso configura o objetivo final da reparação maníaca, pois o gato, quando passa a ser o papão, triunfa sobreo pai apossando-se de tudo o que é dele. O Marquês de Carabás que antes só existia de nome, agora tem terras, castelo e está apto para casar com a princesa:

- Bem-vindo seja Vossa Majestade a este castelo do Senhor Marquês de Carabás!

O Rei entusiasmado pede para entrar, e o Marquês dando a mão à princesa e seguindo o Rei, que subia na frente, entraram numa grande sala, onde encontram um magnífico banquete, que o papão mágico mandara preparar.

O Rei encantado com as boas maneiras do Senhor Marquês de Carabás e vendo a grande fortuna que o jovem possuía, depois de beber um copo de vinho, assim falou:

- Só depende de Vós, Senhor Marquês: quer ser meu genro? O Marquês, fazendo grandes cumprimentos, aceitou a honra que lhe era concedida pelo Rei e, no mesmo dia, se casou com a princesa.

Este final fala por si próprio do triunfo maníaco e da falsa reparação na situação edípica, pois o Rei, que representa o pai, não só é vencido e enganado, não havendo em nenhum momento a renúncia do objeto materno, como também é ele, "encantado", que oferece a filha ao Marquês. Isto é mais uma vez a tentativa de alívio da culpa, pois não se trata do Marquês que deseja (a mãe), mas sim o Rei que a oferece.

Mas a resolução da depressão mediante a reparação é um processo lento e o sofrimento muitas vezes só pode ser superado pelas defesas maníacas, as quais protegem o ego do desespero total. Quando o sofrimento e a ameaça diminuem, as defesas maníacas podem ceder seu lugar, gradualmente, à reparação real e neste sentido, os mecanismos maníacos, como em processo intermediário e simultâneo, se constituem em mecanismos adaptativos e evolutivos.

A reparação maníaca nunca é feita em relação aos objetos primários ou internos, mas sempre em objetos mais remotos. Assim, o menino, ao dar as botas para o gato, possibilita, através dele, na fantasia, o afastamento e a negação dos objetos primitivos atacados na cena primária. As botas permitem ao menino-gato se afastar no campo, indo para longe do moleiro morto, isto é, para longe da depressão.

Por isso, o conto termina assim:

Isto prova que por maior que seja a vantagem de receber uma herança, em geral para os moços a sagacidade e o modo de agir valem mais do que as maiores fortunas. E prova também que se o filho dum moleiro tão depressa conquista o coração de uma princesa que o contempla de olhos apaixonados é que as boas roupas, a mocidade e a beleza do rosto facilmente inspiram ternos sentimentos.

 

1 Do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

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