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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

1993: Chaves / Menezes

 

 

Liana Pinto Chaves

Membro efetivo da SBPSP. lianapchaves@gmail.com

 

 

 

50 anos do Jornal de Psicanálise

Eu colaborei com a feitura do Jornal por quatro anos, de início de 1991 a final de 1994. O Menezes era o editor e eu sua coeditora. A partir de 1992, o Menezes cavalheirescamente me convidou para ser editora junto com ele. Considero esse gesto uma expressão do ambiente amistoso em que trabalhávamos. E trabalhávamos bastante, como é sempre o caso quando se produzem publicações. E nos divertíamos. E, principalmente, pensávamos com gosto a psicanálise e suas questões. Nossa equipe trabalhou exatamente no meio dessa história de 50 anos. E nós éramos 25 anos mais jovens!

Das discussões do grupo iam surgindo os temas para cada número, sempre temas relevantes para pensar a formação dos novos analistas: a prática da teoria, o ensino de Freud, avaliação, regulamentação da análise, o ensino teórico da psicanálise, a escrita. Além dos temas que davam nome a cada número, muitos outros assuntos também entravam, cobrindo uma gama de interesses que iam se apresentando. Traduções de artigos de analistas estrangeiros, entrevistas, debates com grupos de analistas - era uma atividade bem diversificada.

Lembro-me bem de algumas conversas com pessoas que tiveram seus artigos recusados em que procurávamos da maneira mais construtiva possível apresentar os motivos da recusa ou, então, sugestões de como melhorar o texto. Tarefa sempre delicada e nem sempre bem-sucedida.

Foi-me pedido que eu escolhesse um artigo desse período que eu considero mais interessante. Diante do desafio, fiquei com dois! Entre les deux mon coeur balance: "Da escuta ao trabalho da escrita", do Menezes, de 1994, e "Análise didática: uma história feita de críticas", de Fabio Herrmann, de 1993. Ambos são ótimos, vazados num estilo convidativo, estimulantes. O Fabio com a sua verve habitual e um jeito sempre inesperado de encarar as questões e o Menezes com uma grande finura no emprego das palavras e no bordado dos seus argumentos.

Se eu for obrigada mesmo a escolher, acho que vou acabar escolhendo o trabalho do Menezes, porque eu e muita gente continuamos permanentemente às voltas com os tormentos da escrita e de praticar autoanálise (a escrita é uma forma de autoanálise, talvez seu primeiro momento).

Parabéns ao nosso Jornal e às sucessivas equipes que o levaram e levam adiante. Foi um grande prazer trabalhar nele e prestar este pequeno depoimento. Só posso agradecer a oportunidade que me foi dada de fazer parte dessa história.

 

Da escuta ao trabalho da escrita1

Luís Carlos Menezes2

 

Resumo: O autor procura estabelecer pontos de convergência entre um uso possível da escrita pelo psicanalista e a própria escuta analítica, tanto na situação de análise como na de supervisão. A função da escrita para o psicanalista, como atividade inserida na vida científica das instituições, também é considerada.

Palavras-chave: a escrita na psicanálise, a supervisão, a instituição

From the listening to the writing work

Abstract: The author seeks to establish convergence points between the possible use of the psychoanalytic writing and his own listening in the analytic situation as well as in the supervision. The writing function to the analyst as a scientific practice in the institution is also discussed.

Keywords: the writing in psychoanalysis, the supervision, the institution

 

Escrever para mim é trabalhoso. Mas, para além desta afirmação ou queixa, que com certeza muitos partilhariam comigo de bom grado, eu queria refletir um pouco sobre a natureza, para nós psicanalistas, do trabalho de escrever e sobre os frutos que este possa nos trazer.

Santo Agostinho, numa citação de Patrick Mahony, diz algo que, na candura de sua forma, a minha experiência ainda não desmentiu. Diz ele: "eu próprio reconheço que ao escrever (este trabalho3 ) aprendi várias coisas que não sabia".

Guardadas as proporções quanto aos resultados (comparados ao desse grande pensador), devo dizer que também aprendo cada vez que tenho que fazer um trabalho escrito. A partir do momento em que me comprometo a fazê-lo fico tomado por uma tensão intermitente, sobretudo quando o prazo começa a esgotar-se, como obviamente deve acontecer com a maioria das pessoas. Neste primeiro período, me surpreendo às vezes tendo acessos imaginativos, às vezes loquazes e pretensiosos, inflados, e me acontece no calor do momento, fazer algumas anotações; chegada, no entanto, a hora de escrever mesmo o texto, confrontadas às exigências de racionalidade e de forma impostas pela escrita, as ideias não tardam em ficar bem mais humildes. Precisam mostrar consistência, mostrar a sua força e o seu valor ao olho irrequieto e interrogativo do autor, que sendo também e ao mesmo tempo leitor, quer, no ato de escrever, ir encontrando no texto a expressão do sentimento, da intuição que tem de seu pensamento.

Para a mãe, todas as "artes" do filho, mesmo as mais bobas e odiosas, são encantadoras; esta, em todo caso, pode ser a ilusão da criança e constitui aquilo que, na expressão de Conrad Stein, é a "criança imaginária" ou o que de um modo mais geral poderíamos chamar de "eu ideal" e que é necessário para que o sujeito ouse pensar ou afirmar algo diferente, de um jeito diferente da norma ambiente. É, no entanto, no confronto do autor, também leitor do que escreve, que se vai impondo a dura realidade da língua, que sendo de todos, a ela todos estão igualmente sujeitos, quer às suas regras de sintaxe, quer às possibilidades de estilos que oferece, quer à necessidade do pensamento que ao se moldar em sua "matéria" precisa encontrar nela a forma adequada para dizer o que traz em si, de maneira a tornar-se inteligível na exata medida do que "quer dizer". Dolorosa experiência para a "criança maravilhosa" em sua persistente aspiração a ser a única: pela escrita terá que dar um destino mais modesto às suas necessidades narcísicas, ao inscrever-se, na singularidade de suas formulações, como apenas mais um entre outros.

Uma vez constituída numa formulação escrita, nela capturada, a ideia vai, no entanto, revelando uma potencialidade e uma potência inesperadas, ao conduzir-nos em seus desdobramentos a coisas que "não sabíamos", para retomar a citação do pensador da Igreja.

Embora a prática da psicanálise se faça pela fala e não pela escrita, tanto uma como a outra supõem um destinatário, um outro transferencial a quem se dirigem. Sérgio Cardoso, num belo trabalho sobre Os ensaios de Montaigne, apresentado no recente evento organizado pela Sociedade, mostrou como este autor, ao empreender pela escrita uma espécie de exercício introspectivo para saber a verdade sobre si mesmo, foi se confrontando com a emergência dos mais díspares enunciados, ideias e representações, em que se figuram versões de si totalmente fragmentárias. Chamou-me a atenção o fato de Montaigne precisar continuamente "justificar" a aventura que ia se revelando insana, pela referência aos leitores, aos seus familiares, que ao lerem cada uma daquelas ideias, pensava ele, poderiam constituir, a partir delas, uma determinada representação sobre sua pessoa. A referência ao leitor, ao destinatário, dava como que uma garantia unificadora, continente, para a dispersão emergente, livre associativa do autor, o que, aos meus ouvidos, soou numa aproximação com a função do analista na análise. O tema da autoanálise de Freud, feita através de cartas destinadas a Fliess, através do imenso trabalho de escrita que o levou à "Interpretação dos sonhos", é bem conhecido. Que mesmo o conjunto da obra escrita de Freud, testemunha de um processo autoanalítico do autor, é uma via que tem sido bastante explorada.

Não é meu propósito, aqui, considerar as possibilidades ou modalidades de uma autoanálise ou de uma análise por escrito, em referência a alguns casos excepcionalíssimos. O que eu quero é tentar encontrar pontos de convergência entre a escrita e o processo analítico. Um destes pontos é sem dúvida a exigência num e noutro caso de um interlocutor imaginário (que depois será encarnado em pessoas e falas bem reais) ou real (mas carregado de imaginário), tanto para aquele que escreve como para aquele que fala numa análise. Poderia também avançar que em ambos, tanto na fala livremente associativa a que é convidado o analisando - "diga o que quiser, o que lhe ocorrer" -, quanto na disposição do analista de "deixar" fluírem em sua cabeça as ideias que se apresentarem, mesmo quando estapafúrdias e insensatas, evitando um esforço de raciocínio excessivamente orientado, podem manter alguma semelhança com o que descrevi há pouco como a fase que antecede o ato de escrever o texto. O momento da interpretação poderia ser comparado com o tempo exigente da formulação, da transformação das ideias em frases escritas. É, como na escrita, um momento de escolha e de comprometimento, pois na formulação da interpretação, emborao analista tenha podido pensar em todas as direções, há uma escolha, uma condensação ou uma precipitação de ideias que terão que encontrar, em palavras justas, a ressonância exata da inteligência do sensível de que serão portadoras.

A semelhança é, no entanto, acompanhada de uma grande diferença: a interpretação se faz na precipitação do momento, de improviso e, sabemos, em geral acaba saindo de maneira bastante desajeitada, enquanto a frase escrita pode ser refeita, repensada à vontade, deixando mais lugar para a racionalidade. Ora, esta diferença pode ficar atenuada se levarmos em conta que a interpretação também pode e é sempre retomada, em outros momentos e com outras palavras, ora com mais fidelidade, ora com menos. Quanto à racionalidade, não podemos esquecer que, também na elaboração da interpretação, está o tempo todo presente uma forma imaginativa da racionalidade. Encontramos na teoria dos sonhos de Freud, um modelo (uma linguagem) que permite pensar, em seu paradoxo, o fato de que na escuta analítica, embora a atenção flutuante esteja voltada para o irracional, o inconsciente, o primário, nela opere simultaneamente uma exigência de inteligibilidade nos pensamentos e representações que vão se produzindo no analista. Refiro-me à afirmação de que, no trabalho do sonho, o processo secundário opera desde o início, em seu âmago, e não somente a posteriori, como se poderia crer, nas racionalizações acessórias que vêm preencher as lacunas e dar uma versão unificada, racional, razoável do sonho. Uma exigência de inteligibilidade é pois intrínseca ao trabalho do sonho, embora, como sabemos, este seja dominado pelos processos primários.

Feita esta aproximação entre as duas atividades, a da linguagem falada na situação analítica e a da produção escrita, podemos nos interrogar sobre as relações que podem se estabelecer entre elas.

Para avançar neste ponto, preciso referir-me, no entanto, a uma outra prática, tão importante na psicanálise, que é a da escuta por um colega de um analista que lhe fala de seu trabalho clínico, e para a qual não encontramos ainda um nome melhor que o de supervisão. Este nome, diga-se de passagem, tem a desvantagem de reforçar com o prefixo "super" os efeitos imaginários, transferenciais, que esta situação já de per se tende a suscitar, num e noutro de seus participantes.

O fato é que a supervisão não é somente necessária durante a formação analítica, mas a ela o analista poderá e deverá recorrer em qualquer fase de sua vida profissional. É verdade que a prática da psicanálise está envolta, desde as suas origens, num rico imaginário romanesco, pintada em cores vivas como aventura faustiana aos confins da alma ou ciência da observação às voltas com os misteriosos fenômenos elementares do espírito, a nossa revolução coperniciana é comemorada cotidianamente nos trabalhos dos psicanalistas, qualquer que seja, aliás, o seu linguajar teórico. Pode-se, de fato, compreender que tenhamos que nos interrogar constantemente sobre o que fazemos e que, numa espécie de trabalho de Sísifo, tenhamos que sempre recomeçar em nossas tentativas de formular as bases conceituais de uma prática que parece, a cada vez, escapar um pouco a estas justificadas, mas vãs, pretensões de esgotá-la numa versão completa e acabada. Daí a crise das escolas, daí as periódicas e fecundas crises no interior da obra de Freud.

A imagem implícita ou explicitamente exaltante da aventura de ser psicanalista encobre, no entanto, as constantes incertezas, as fragilidades deste trabalho, além de seu lado cinzento e rotineiro, com a tendência à banalização das falas pelo efeito da resistência à análise. Esta, a resistência, vai impondo imperceptivelmente um desgaste e um empobrecimento nas possibilidades inventivas da linguagem do analista em sua escuta, o que resulta em estereotipias interpretativas e de vocabulário, às vezes não muito aparentes, ou mesmo, em desespero de causa, em uma espécie de afrouxamento, de banalização das falas e do pensamento sob o pretexto de espontaneidade relacional. O recurso a referências tecnicistas escritas ou a algum cenário teórico-ideológico prestigioso poderão também funcionar como próteses que alimentam no analista a ilusão necessária de consistência, em um momento pouco produtivo de uma análise. Durante algum tempo o analista poderá então perder de vista os indícios preciosos que permitem adivinhar, encontrar, os pontos de impasse transferencial e contratransferencial em que se encontram enredados ele e o paciente. Destes períodos de imobilidade numa análise é muitas vezes possível sair, a partir de movimentos internos ao próprio processo, seja por um movimento do lado do analista, seja do lado do analisando, em momentos de descoberta, às vezes, particularmente importantes no andamento da análise. Nestas situações, poderá, no entanto, ser também importante o recurso à prática da supervisão, na qual, ao falar do caso, de sua clínica a outro analista, este irá reencontrando em sua própria fala e na fala do outro, ideias, percepções, teorizações incipientes ou fantasias teorizantes, tudo aquilo enfim que povoa de forma fecunda, desde que se lhe dê atenção, a escuta; isto permitirá não só perceber o lugar transferencial de que era refém (de maneira a poder ouvir e falar de um outro modo ao seu analisando), como deve levá-lo a reinvestir nas produções de sua escuta e de sua observação. Restauram-se assim no analista, em detrimento do peso dado ao razoável, o prazer e a crença no incrível, quer dizer, no inconsciente, e que é sempre reconstrução a partir da atenção dada ao íntimo, ao anódino, ao ocasional, ao aparentemente sem importância; é dessa crença que se sustenta todo o trabalho analítico. O analista estará recuperando algo do que eu dissera no início, sobre a escrita, quando me referi à audácia imaginativa que precede e alimenta o momento da decisão, do risco, da formulação, agora, da formulação da interpretação.

Além da supervisão, ou mesmo, da retomada de uma análise pessoal, como antídotos contra a desvitalização e a rigidificação do pensamento do analista, posto o tempo todo a duras provas não só pelas suas próprias resistências, mas, sobretudo, pela resistência à análise inerente às falas dos analisandos que se sucedem ao longo do dia, no dia a dia, em seu divã, há também o trabalho pela escrita.

Se tentei uma aproximação entre escuta e escrita, teria muito menos dificuldade para ver na escrita um prolongamento ou um substituto da prática da supervisão; a escrita pode ter para o analista essencialmente a mesma função, qual seja, a de lhe dar coragem em seus pensamentos, em suas "fantasias teorizantes", por estranhas que possam parecer, e de reforçar e reavivar as suas possibilidades de funcionamento na escuta.

Poderíamos assim considerar o trabalho pela escrita não só como uma atividade intelectual, mas também como um momento de elaboração psíquica, em que o "insensato" pode se transformar, na transferência ao "outro " exigente da "simbolização" pela escrita, em conceituações partilháveis. Neste sentido, todo trabalho de escrita de um analista, a exemplo do que se passa na supervisão, comporta uma dimensão autoanalítica, mobilizando impasses ou restos contratransferenciais do(s) caso(s), mesmo quando isto não seja, ou não possa ser, explicitado no trabalho. Resta lembrar, quanto à semelhança da escrita com a supervisão, que o outro transferencial da escrita não é, em geral, mudo, já que o trabalho acaba sendo lido e discutido com outros analistas, e que efeitos e falas se reproduzem a partir daí.

Penso ter delineado, assim, um modo de entender a natureza e a função do trabalho escrito como sendo aquilo que o justificaria como prática dentro das associações de analistas. Nesta perspectiva espera-se que o trabalho escrito seja portador de uma necessária fragilidade, já que é fruto dos recortes, dos devaneios e construções inventadas pelo analista (... e por seu paciente), situado na encruzilhada entre um singular titubeante, incipiente, e o universal comunicável e partilhável pela comunidade. Esta vai ouvi-lo munida do acervo de formulações teóricas mais ou menos consagradas que lhe é próprio, mas também da aptidão à escuta sensível com que cada analista aprende a ouvir o outro que lhe fala, seja de um lugar de analisando, seja de um lugar de supervisando. Um texto que em sua produção não se situe neste terreno não terá chances de produzir no leitor ou no auditor esta espécie de convite ao pensamento associativo, à teorização fantasiante, à maleabilidade transformadora própria ao funcionamento do analista e que é característica de uma "episteme" original que permeia mesmo as mais imponentes construções teóricas da psicanálise. Não sei se há uma escrita psicanalítica, creio que não, mas há, sem dúvida, um uso da escrita que é próprio aos psicanalistas em função das necessidades específicas do modo de pensamento em que se produz a sua prática. Por isso, confesso que me surpreende um pouco que o lnternational Journal of Psychoanalysis ache conveniente exigir de seus autores o modelo de escrita empregado pelas revistas internacionais de ciências experimentais, o que foi defendido com muita ênfase por David Tucket, um dos coeditores da revista, em recente entrevista à Revista Brasileira de Psicanálise.4

Penso que vincos clínicos devem emergir de maneira quase natural num trabalho psicanalítico, embora não sejam obrigatórios. O relato de caso, quer dizer, de toda uma análise, pode ser muito rico, embora aqui o meu ponto de vista, na linha do que disse acima, é de que não se deve levar muito a sério a ilusão objetivante, embora seja necessária em sua composição: o caso como relato é de certa forma uma criação do analista (ou do paciente, se este resolver escrevê-lo) e assim deve ser, na perspectiva de que é permeado pelo trabalho de uma "memória amnésica",5 aquela que opera na escuta, e que é portadora dos ecos transferenciais e contratransferenciais mais vivos, daquilo que ficou "trabalhando" o analista, daquilo que nele ficou depositado. As longas transcrições de sessões nos trabalhos, ao contrário, são em geral, a meu ver, maçantes e pouco mobilizadoras para quem as lê, testemunhando, nesta forma indigesta, uma carência do pensamento clínico.

Ao procurar caracterizar, como fiz aqui, o que chamei de natureza e função da escrita para nós psicanalistas, ao sublinhar que além do paciente todo analista necessita de pelo menos um outro analista, o que justifica e fornece referências para a prática da vida associativa (e deixo aqui de lado o tema específico da formação), não estou ignorando que a resistência à análise não ocorre apenas no consultório, não estou ignorando que a tendência à perda do relevo do pensamento, a tendência à uniformidade repetitiva e à monotonia das linguagens e dos modelos possam, nelas, estender-se às próprias instituições. De um instrumento para estimular os analistas a manterem o investimento de suas práticas, trazem também em si a possibilidade contrária, a de favorecer a constituição de modalidades coletivas de resistência à análise. Tendências contraditórias, a do desejo de análise e a da resistência à análise em todas as suas formas, não poderiam deixar de existir também nas associações de psicanalistas. No trabalho institucional, a exemplo do trabalho analítico, o que estará sempre em jogo será o esforço para descobrir e ultrapassar as modalidades de resistência do momento e de restabelecer assim a função favorecedora de análise para a qual a instituição existe.

Num momento mais resistencial, a instituição, no que diz respeito à escrita, favorecerá não tanto o trabalho pela escrita, mas os trabalhos escritos em que, na incerteza sobre a fiabilidade e a sensibilidade analítica dos destinatários, poderá induzir a produção de escritos sem risco, defendidos, chapados, às vezes montados numa linguagem cansada de si mesma, desprovidos de surpresas tanto para quem escreve como para quem lê.

O meu propósito aqui foi de formular referências para pensar o tema proposto, na sua inserção com a vida institucional: "a comunicação entre os analistas". Naturalmente que não vejo neste momento, nesta Sociedade, nem a vertente ideal, impossível, de uma ausência de resistência à análise, nem o triunfo da resistência que viesse a impossibilitar o pensamento analítico.

Gostaria apenas de lembrar que Freud definiu de maneira muito pragmática a resistência à análise como tudo aquilo que possa impedir o andamento de um processo analítico. As práticas institucionais, os congressos, os trabalhos escritos poderiam, a cada momento, interrogar-se em função deste critério.

A ideologia pluralista de que tanto se fala hoje, a tolerância ou o gosto pelo funcionamento democrático de uma instituição é uma concepção política da qual partilho profundamente. Um dos mais preciosos frutos da civilização, contraposta à barbárie, a democracia deve vigorar em qualquer lugar do convívio humano.

Este trabalho, no entanto, permite afirmar que a abertura para a escuta do outro, e justamente daquilo que este diz de mais estranho, de mais inesperado, o que corresponde à própria natureza da prática analítica, apresenta-se como uma necessidade muito específica das associações de analistas, aliás, em última análise, a sua única razão de existir. Defender a psicanálise é praticar e conquistar esta disposição psíquica, sobretudo em relação a si próprios, já que neste ponto somos sempre nossos piores adversários.

 

1 Texto apresentado no colóquio "A comunicação em psicanálise - a escrita", realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 1992.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP.
3 Trata-se do Livro Terceiro do tratado latino De Trinitate. Em "Psicanálise - o tratamento pela escrita" de Patrick Mahony. Rev. Bras. de Psicanálise (1990) Vol. 24, p. 555.
4 Revista Brasileira de Psicanálise, 26 (1-2), 135-148, 1992.
5 Expressão de P. Fédida.

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