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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

1995: Schaffa / Herrmann

 

 

Sandra Lorenzon Schaffa

Membro efetivo da SBPSP. sandralorens@uol.com.br

 

 

 

Itinerário de menoridade

A história se faz para a frente, de ontem para hoje e de hoje para amanhã, mas o saber da história se faz ao revés, retrospectivamente, quando as condições do presente dão ao passado um sentido, então insuspeitado, que, no entanto, é provavelmente seu sentido mais justo; o de produzir o que de fato veio a produzir.

(Herrmann, 1995)

O convite feito pelo Jornal de Psicanálise para tomar parte da comemoração de seus 50 anos, passados vinte anos da experiência de participar intimamente de sua história, é, sobretudo, emocionante.

Marina Massi, que, antes de assumir a posição atual de editora, integrou nossa equipe no Jornal, propôs que eu escolhesse um texto expressivo de nosso percurso de quatro anos de trabalho. Decidir entre escritos selecionados, sempre com cuidado e envolvimento, despertaria um impulso épico, disposto a celebrar heróis e modelos inspiradores que nos marcaram. Deixei-me, entretanto, levar por um espírito lírico nesse passeio retrospectivo.

Lírico se diz do gênero artístico "consagrado à expressão de sentimentos e pensamentos íntimos" (Houaiss, 2001). Davi Arrigucci Jr. afirma de seu livro dedicado a Manuel Bandeira, Humildade, paixão e morte, que "é a tentativa de compreender o processo pelo qual uma experiência particular, historicamente determinada, toma uma forma poética concreta, de caráter simbólico e validade universal, no poema" (Arrigucci, 1992, p. 14). O crítico salienta a importância de estudar-se o modo pelo qual o autor concebeu a poesia ou o seu processo de elaboração, o seu "fazer poético".

A questão da formação do poeta, avaliada retrospectivamente com base em seu percurso, relatado em Itinerário de Pasárgada (Bandeira, 1954), aponta para sua obra de maturidade; Lira dos cinquent'anos, livro de celebração, que tem posição central no conjunto da obra de Manuel Bandeira, concentra harmoniosamente as várias tendências estéticas de sua formação de poeta.

Cinquenta anos do Jornal permitem constatar sua preocupação central ao longo de seu itinerário com o sentido da formação. Condição crucial para o poeta, a formação é condição crucial também para o analista. O pensamento da formação, concebido com base na maturidade da obra de nosso grande poeta, no auge da apropriação do seu fazer poético, instigou minha escolha de um artigo que se apresenta não como fruto de maturidade, mas de menoridade:1 o artigo de Fabio Herrmann, "Reflexões de menoridade: sobre a ética da formação psicanalítica".

Cabe notar que certas características desse texto tornam sua escolha significativa. Primeiramente, sua peculiaridade histórica: oferece um testemunho da própria história do Jornal de Psicanálise, já que a formação no Instituto sobre a qual se debruça o autor corresponde ao período em que o Jornal nascia. Em 1995, ao republicarmos o texto, este comemorava 20 anos. Tinha sido publicado pelo Jornal em 1975, quando seu autor era candidato. Além disso, seu conteúdo, reflexivo, analítico, volta-se fundamentalmente ao problema da formação, interrogando a condição de liberdade de pensar psicanaliticamente. Ao ler as "Reflexões de menoridade", descobrimos de fato a liberdade de um pensar que se afirma com base no aprofundamento crítico rigoroso. O fazer clínico, tal como o fazer poético bandeiriano, é algo que se conquista ao longo de um itinerário singular, ainda que, no caso do candidato, este tenha se dado prematuramente.

Os que lerão as reflexões pela primeira vez descobrirão, entretanto, que, embora se tratando do primeiro texto publicado pelo autor, este corresponde ao resultado de uma consistente e lenta elaboração. Seu fundamento será explicitado no trabalho depois apresentado enquanto membro associado, "O campo e a relação", um resumo de Andaimes do Real, obra germinal que começaria a ser editada em 1979.

O cerne de Andaimes do Real envolve uma crítica da psicanálise das escolas e uma defesa do método psicanalítico entendido como condição ética da análise. O depoimento de menoridade de Herrmann sustenta a ideia de que a formação analítica comporta uma ética, proveniente da especificidade da atuação para que prepara. Ao especificar o sentido da palavra "ética", confessa Herrmann: "Não escapará ao leitor atento um discreto tributo a Lacan".

Sabemos que no Seminário VII sobre A ética da psicanálise (1959-1960), Lacan põe as questões éticas no coração do tratamento. O pensamento ético, no centro do nosso trabalho de analistas, a posição ética do analista, é revelado no modo pelo qual se concebe a finalidade do tratamento. O Seminário VII desenvolve uma crítica das formulações da Psicologia do ego sobre a adaptação do ego à realidade porquanto implicam uma ética normativa comprometida como terreno da sugestão, em que a resistência é um obstáculo a ser eliminado; já a ética da psicanálise está baseada no respeito pelo direito do paciente de resistir à dominação.

O balanço crítico de Herrmann sobre a formação, ocorrida entre os anos de 1971 e 1975, compromete-se com esse sentido de resistência à dominação. "À época parecia-me muito grave que o ensino da psicanálise fosse encaminhado no sentido de imprimir um só discurso teórico em nós, candidatos." O texto foi escrito, conta, "num tempo decisivo para a constituição da fisionomia teórica de nosso Instituto, pois foi quando se popularizou entre nós o ensino de Bion". Seu eixo é o de uma problematização da redução da história inteira de nossa disciplina a uma linha só envolvendo o sentido de evolução, de progresso linear: "Naquela época consagrou-se aqui a ideia, até hoje dominante na formação, de que a história da psicanálise resume-se à evolução de Freud a Melanie e desta a Bion" (Herrmann, 1995).

Um tal sentido de formação evolutivo, linear, foi criticado por Maud Mannoni. A autora recupera o sentido dado por Freud à palavra "formação", seu sentido etimológico de Ausbildung. Vale a pena citar o texto, posto em epígrafe no Editorial de Marina Massi em junho de 2013:

A certa altura da história da psicanálise, ele (Freud) afirma claramente que não basta ter sido analisado para tornar-se analista. Ele introduz a noção de formação, Ausbildung, mais próxima da ideia de interrogação, de uma crítica de si (em relação ao trabalho empreendido com um paciente), que da noção de modelo. Ora, a noção de modelo prevaleceu. Na noção de formação estava presente a preocupação de uma camaradagem, a necessidade no espírito de alguns de ajudar o sujeito a desvencilhar-se de toda identificação ao analista de todo o superego institucional. (Mannoni, citada por Massi, 2013)

Podemos reconhecer a preocupação formulada por Mannoni, que enfatiza a necessidade de um espírito de camaradagem contra a rigidez do superego institucional, no Editorial do primeiro número do Jornal, em 1966, escrito por Virginia Bicudo. A autora caracterizava o espaço institucional do Jornal que então se originava por sua

função de canal comunicativo entre candidatos, titulares e professores, em um espaço livre das limitações necessárias à preservação da situação analítica [...] o intercâmbio entre candidatos, professores e titulares, em um canal comum, amplia as possibilidades de melhorar o ensino, de estimular a pesquisa... (Bicudo, citada por Menezes, 2012, p. 501)

A função de canal de intercâmbio caracterizou-se progressivamente naquilo que Menezes definiu como "caixa de ressonância das questões institucionais". Este editor avaliava esta função como crucial para o encaminhamento das questões da instituição, "pois das saídas que se encontrem para elas depende o fracasso ou o (relativo) sucesso de uma associação psicanalítica em manter viva a chama do pensar psicanalítico" (Menezes, 2012, p. 504).

Cinquenta anos depois, por ter produzido o que de fato veio a produzir, reconhecemos no germe do espírito de liberdade, lançado por Virginia Bicudo,o seu caráter específico, o seu sentido mais justo, que a publicação ora celebra.

 

Reflexões de menoridade: sobre a ética da formação psicanalítica

Fabio Herrmann1

Resumo: Este artigo foi publicado no Jornal de Psicanálise, em 1976, e está sendo agora reeditado, atualizado por uma introdução e notas. Trata-se de um estudo sobre as condições da formação psicanalítica de minha época, avaliadas sob o ponto de vista ético. Ética, aqui, significa simplesmente aquilo que é próprio à especificidade do ato psicanalítico - um conceito metodológico de Ética. Palavras-chave: formação analítica, ética, transferência, interpretação, dependência institucional

Reflections on minority (underage status): About Ethics in psychoanalytic training

Abstract: This paper was first published in 1976, in the Jornal de Psicanálise. This republishing has been up-dated with an introduction and notes. The Author investigates here the ethical requirements of the analytical training, based in his own experience as a candidate. Since he employs in the following text a methodological concept of ethics, we will understand by ethics: what belongs properly to the specific task of the psychoanalyst during a psychoanalytical session.

Nota introdutória a "Reflexões de menoridade"

I.

Em 1995, o Centro de Estudos "Luiz Vizzoni", a Associação de Candidatos de nosso Instituto, está completando 25 anos; em maio, tivemos uma jornada comemorativa. Para o fim deste ano, em novembro, está sendo programado um Congresso Interno sobre o tema da Reforma do Currículo Teórico. Linhas de Ensino Teórico e Ideologia de Formação é, aliás, também o tema do Encontro sobre Formação do Congresso Brasileiro de Recife, em outubro.

Isso tudo é hoje, quando o Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise decidiu republicar meu velho artigo, "Reflexões de menoridade", escrito em 1975 e publicado originalmente em 1976 neste mesmo Jornal, pedindo-me para redigir algumas linhas introdutórias à republicação e notas ao texto. A história se faz para a frente, de ontem para hoje e de hoje para amanhã, mas o saber da história faz-se ao revés, retrospectivamente, quando as condições do presente dão ao passado um sentido, então insuspeitado, que, no entanto, é provavelmente seu sentido mais justo: o de ter produzido o que de fato veio a produzir. Voltemos pois a 1975, não porém com o olhar da saudade, e sim com a consciência histórica, vale dizer, com os olhos do presente. Em primeiro lugar, "Reflexões de menoridade" foi uma espécie de balanço ético-teórico de minha própria formação, a qual ocorreu entre 71 e 75, ou seja durante os cinco primeiros anos da Associação de Candidatos e num tempo decisivo para a constituição da fisionomia teórica de nosso Instituto, pois foi quando se popularizou entre nós o ensino de Bion. Naquela época consagrou-se aqui a ideia, até hoje dominante na formação, de que a história da Psicanálise resume-se à evolução de Freud a Melanie Klein e desta a Bion. Nessa definição há dois elementos fundamentais: o primeiro é a redução da história inteira de nossa disciplina a uma só linha; o segundo é a palavra evolução, que concebe uma espécie de progresso linear, o encerramento do progresso no terceiro autor e a necessidade de uma leitura retrospectiva - Freud passou a ser lido como um predecessor de Klein, que o seria de Bion. Em segundo lugar, agora num plano muito mais restrito e pessoal, mas a esse título mínimo também histórico, "Reflexões de menoridade" foi meu primeiro artigo publicado numa revista psicanalítica, e isto quando já havia terminado minha formação curricular. Em março de 1976, apresentaria meu trabalho de membro associado, um resumo do que seriam os dois primeiros volumes de Andaimes do real, obra que só começou a ser editada a partir de 1979. As ideias de Andaimes, os andaimes dessas ideias pelo menos, são perfeitamente reconhecíveis no texto que se segue. Isso é natural, já que eu vinha trabalhando lentamente as notas preparatórias do livro desde 1969 - ano em que redigi o Campo e a Relação, parte primeira do volume I. Das 100 ou 150 páginas escritas naquele período, nada havia publicado - o que talvez pareça estranho aos colegas candidatos de hoje -, por desconfiar seriamente das consequências que uma produção prematura poderia acarretar para minha formação. Além de outras coisas, o argumento de Andaimes envolve uma crítica da psicanálise das escolas, tanto quanto uma defesa do método psicanalítico.

II.

Pois bem, essa é a história do artigo. Mas que história é essa? À época, parecia-me muito grave que o ensino da Psicanálise fosse encaminhado no sentido de imprimir um só discurso teórico em nós, candidatos. Em minha formação prévia à entrada no Instituto, estudávamos, em pé de igualdade, os autores franceses e os ingleses, os primeiros seguidores de Freud e a escola da psicologia do ego, além de muito, muito Freud - e não podia compreender por que alguém deveria escolher uma só linha teórica, como se fosse um time de futebol. Por outro lado, eu havia sido presidente da Associação de Candidatos em 1974 e, naquele ano de 1975, participara da fundação da IPSO, no Congresso de Londres, fazendo parte da primeira diretoria. Além de uma crítica teórica, portanto, estava em razoáveis condições para formular uma crítica institucional. Sabia que no resto do mundo psicanalítico não havia outro Instituto que transmitisse uma história da Psicanálise exatamente igual à que era aqui apresentada e podia facilmente reconhecer o grau de infantilização a que éramos levados pela crença de que a sequência Freud, Klein, Bion conduzia à verdade sobre a psique humana. Não me era tampouco estranha a literatura psicanalítica sobre a chamada "doutrinação dos candidatos" - Balint, Lacan, Bernfeld e tantos outros autores denunciaram, em diversas ocasiões, a tendência das Sociedades e escolas psicanalíticas a produzir alunos conformistas, idealizadores das teorias dominantes, das instituições e dos didatas.

Pensava então que nossa formação teórica poderia trazer, como contrapartida clínica, um desvio em direção ao empirismo, a que caberia o nome de positivismo místico. Positivismo, porque já se começava a substituir a prática da interpretação pela "observação dos fenômenos psíquicos", enquanto fatos internos - fatos que coincidiam com a descrição teórica que Klein e Bion faziam do funcionamento mental. Místico, porque, para observar o não-observável, o psiquismo inconsciente, não restava outro recurso senão afirmar a supremacia da intuição, de uma intuição transcendente, capaz de "realizar os conceitos teóricos", mesmo os que só fossem conhecidos aproximadamente. Mas esta intuição passava por ser privilégio de alguns poucos analistas emocionalmente mais desenvolvidos, que nós, candidatos, deveríamos seguir e imitar. O outro lado dessa tendência ao intuicionismo ingênuo era, como não poderia deixar de ser, a condenação cada vez mais forte da produção teórica, metodológica e técnico-artística dos analistas. Como resultado, os relatórios e mesmo as discussões clínicas começavam paulatinamente a tomar o feitio repetitivo que se haveria de fixar anos depois.

Que remédio poderia haver para o problema? Naquele tempo supunha que a inclusão no currículo de uma generosa interdisciplinaridade, uma boa dose de estudo das ciências humanas, assim como o conhecimento das diferentes correntes teóricas da própria Psicanálise, poderia relativizar as certezas transmitidas pelo estudo de uma só escola. Acreditava também que uma discussão epistemológica séria do método psicanalítico haveria de mostrar que a clínica produz apenas verdades contingentes- produto da ruptura do campo significativo, na linguagem que estava desenvolvendo -, sendo a intuição positiva do "fato psíquico" somente uma forma de autossugestão teórica, variável de escola para escola.

Hoje reabrimos a discussão sobre o currículo teórico da formação analítica. Passados vinte anos, não posso dizer que minhas ideias se tenham transformado demais. Ainda gostaria de ver nosso Instituto transmitindo uma sólida base de estudos freudianos, seguida de seminários temáticos, em que se possam pesquisar as questões principais da psique, realizando investigação teórica (a única forma de transmitir teoria é criá-la ou recriá-la, pois quem não cria, crê), inspirada em vários autores de linhas distintas e em diversas aproximações interdisciplinares, visando criar condições para o surgimento de produções originais. Chegaremos algum dia a isso?

Reflexões de menoridade

Sobre a ética da formação psicanalítica

I.

Nós sabemos bem que a Psicanálise inaugurou uma prática nova no diálogo dos homens.2 E pensamos - ou queremos crer - que o lar desse diálogo deveria ser o próprio movimento organizado que o sustenta e divulga; em particular, quando exerce uma das suas funções de privilégio: a formação de novos analistas. Como essa nova prática exige uma consciência clara de seus princípios, é oportuno ter em mente que a formação analítica comporta uma Ética, proveniente da especificidade da atuação para que prepara.3 Ignorando-a, ficamos à mercê de uma espécie de "alienação de princípio" muito virulenta, que não será sanada por eficiência técnica, nem por qualquer tipo de reparação afetiva, como o amor à profissão ou o respeito pelo cliente. Consideremos agora, embora disso se venha a tratar mais à frente neste artigo, que a "formação analítica" não se limita ao tempo designado estatutariamente; é, ao contrário, um dos elementos constitutivos de nossa experiência anterior e posterior aos cinco anos de Instituto.

Pretendo examinar o problema dessa Ética com a falta de isenção que a minha situação de candidato concede. Um estudante, do centro de sua formação, desfruta de um panorama muito especial; submete-se a uma análise que, com ser didática, não é mais nem deveria ser menos que uma análise; trabalha como analista e expõe seu trabalho ao juízo de colegas e supervisores; frequenta cursos geralmente introdutórios ao saber que procura, e acaba sempre por se dar conta de que nesse saber só pode mesmo introduzir- se. Primeiro pela janela, como um ladrão honrado, depois introduzindo-o em si mesmo, mesclando-se com ele, nele se perdendo e perdendo-o, para reconstitui-lo diferente daquele que aprendera. Um estudante não pode afetar a imparcialidade que não tem. Também não se deve calar. O centro desse novo diálogo é a revalorização da parcialidade e do envolvimento emocional. O neurótico não se cura pela observação de sua doença, mas por um compromisso fundo - conhecido, nalguma época, como "neurose de transferência"4 -, chamado a substituir o seu estar fugidio no conflito: as "formações de compromisso". Nesse compromisso apaixonado que, afortunadamente, nos iguala aos nossos pacientes, vivemo-nos em formação; a nossa palavra contém, portanto, a irretorquível veracidade reconhecida por Freud nos sonhos, nos sintomas e na lucidez de seus pacientes, veracidade que o fez ceder-lhes respeitosamente a palavra. Esta é a nova prática do diálogo, nós o sabemos bem, mesmo quando um mecanismo de defesa chamado repressão no-la faz esquecer.

II.

A repressão, como o psicanalista não ignora, veste-se de roupas variadas. Uma delas é a das "palavras de moda". Neste sentido, aquilo que é mais oportuno consiste em ser inoportuno. Conscientemente inoportuno, como quem aponta um ato falho durante a análise ou como quem pretende levantar questões de Ética nesta época em que o tema parece caduco. De qualquer maneira, o leitor pode estar tranquilo: não o farei suportar um inflamado discurso axiológico, nem qualquer complicada dedução ético-formal. Trata-se apenas do seguinte. Se eu me disponho a preparar-me para ser analista, estou naturalmente interessado em perguntar à profissão: "O que decorre de tua especificidade?" Posso, é claro, estar a fazer uma pergunta incômoda para mim mesmo. Por outro lado, será sempre melhor fazê-la cedo do que terminar, como o protagonista de São Bernardo, concluindo, em melancolia: "Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado".5

Procederei ao inquérito usando este roteiro: haverá uma Ética implícita à atividade do pesquisador em ciências naturais (o exemplo será o de um neurofisiologista e seu equipamento - o outro lado, próximo e tão distante, do nosso campo de trabalho)? Haverá uma diferença essencial em nossa atividade que, por comparação, ajude a isolar uma especificidade e, desta, alguma decorrência Ética? Formulada, como espero, essa regra normativa: poderão reconhecer-se consequências práticas imediatas de sua formulação?

Deixarei de lado, contudo, o escrutínio direto da realidade de nossa formação. Não por falta de importância, mas por falta de espaço; não se pode permitir que um artigo cresça ao ponto de tornar-se indigesto. E se o colega mais atento reconhecer aqui uma carta circular, recebida em maio de 74, não terá sido um déjà-vu patológico; o sumo deste trabalho foi proposto naquela data, quando eu esperava suscitar um debate sobre a formação analítica no âmbito de nossa Associação de Candidatos. O assunto não foi adiante, provavelmente pela minha imperícia em reconhecer a sua oportuna inoportunidade face aos temas que nos eram mais costumeiros. Por que tentar de novo? Ora, já dizia Napoleão (que não é mais de moda nos hospícios, por sinal), na citação do velho e mal reputado Le Bon: "... não existe mais que uma única figura de retórica séria: a repetição".6

III.

Como se prepara um neurofisiologista?7 Haverá uma Ética decorrente de sua atividade, do seu olhar atento às ondeantes variações de um osciloscópio, à leitura de escalas, à localização precisa do microeletrodo? Eu diria que sim. O pesquisador se forma sob a lei de um "respeito de isenção" àquelas estruturas delicadas, mas sempre reponíveis, a nomotética assim o exige.8 Uma isenção que visa principalmente proteger a delicada estrutura do conhecimento científico, que se pode desfazer a um tremor da vontade, caso esse tremor abra caminho a que o desejo de certo resultado torça uma leitura ou uma interpretação de dados. Ainda que vivo, o objeto de estudo está morto e posto. Cabe ao cientista não lhe infundir uma indesejável vida, resquício de arcaicas formas vitalistas de pensar. É assim que nasce uma Ética de isenção, expressa no grupo de controle e no experimento "duplo-cego",9, como passos de uma norma restritiva que tenta eliminar o erro, caçá-lo a microscópio, se preciso. A verdade, esta irromperá por si.

Grosseiramente, pode-se dizer que todo método científico quando é pronunciado com as maiúsculas de um monoteísta singular - o "Método Científico" - procura principalmente isentar de erro. A questão da heurística põe-se, por certo, mas sempre na brecha deste autopoliciamento, como a "Outra Coisa", nova e fascinante. Essa parece ser a lei vigente da pesquisa em ciências naturais e dela se deriva a Ética de descompromisso do cientista, que o leva ao duro impasse do obsessivo: lavar ritualmente as mãos dos significados e das consequências, às vezes calamitosas, de seu trabalho, ou olhá-las e vê-las manchadas. E tão manchadas, nesta época de Hiroxima e "guerra permanente", que para as lavar, além de muita água, antisépticos e perfumes da Arábia, requer-se um médico - ao qual, como ao de Macbeth, só caberá dizer: This disease is beyond my practice (ato V, cena 1).10 Ver ou lavar? Mas nem sempre o cientista enfrenta o dilema, porque a fragmentação típica à sua pesquisa permite-lhe distanciar-se da utilização provável, que venha a ter.

Do outro lado do espectro - que o orgulho da "Ciência Pura" localizaria no extremo inferior do espectro do saber, lá pela banda do infravermelho - temos a aplicação. Aqui também acredito que se possa encontrar um correlato ético que presida à correta pressão de cada parafuso ou o cumprimento dos padrões de pureza do Código de Farmácia. Trata-se, no fundo, da transposição a outro tom daquela mesma "isenção descomprometida" do pesquisador; embora, na ordem histórica, bem pode ser que a melodia primária seja a marcha da tecnocracia, a busca de eficiência - a aplicação tecnológica ditando as normas da ciência pura. Eficiência tecnológica significa, em geral, produção elevada e um padrão aceitável de qualidade - medidas de controle, técnicos em eficiência, rejeição das peças que se desviem além do limite de tolerância (acompanhando as peças rejeitadas, não raro, o responsável pelo desvio). Afinal, o importante é estar protegido contra o erro: esta potência oculta, que, a qualquer brecha, incide, vinda de não se sabe onde, mas ativa sempre e onipresente.

Em ambos os casos tem-se uma situação esquematicamente tríplice: o objeto dado como já existente, a lei que dele abstrairá certa propriedade geral (ou que o julgará em função desta geral propriedade) e, intermediária, a falibilidade humana contra a qual a lei e o objeto devem ser protegidos. Quanto à criatividade, ela é sempre bem-vinda, desde que se acomode à restrição metodológica. Pensamo-la, em verdade, como o alimentador do processo, segundo o modelo de uma máquina a vapor: a energia da caldeira a ser canalizada para trabalho útil, por tubos metálicos, judiciosos, indiferentes.11

IV.

E falamos, no entanto, de uma "técnica psicanalítica". Tão longe quanto se pretenda acrescentar por esta expressão alguma diferença específica à simples organização da prática analítica, estaremos cometendo uma impropriedade. Porque se excluem técnica e psicanálise; e só juntaremos tais expressões para escandalizar, chamando-nos a atenção para o quanto inexiste a técnica nesta antípoda de direito das linhas de produção.

Pois como se faz um psicanalista? A Psicanálise duplamente o faz. Por um lado pomos nossa confiança de menores nas análises didáticas. Por outro lado - e este é o que agora invoco -, só na relação analítica constitui-se o analista. A Psicanálise, o processo psicanalítico, fixa uma pessoa (moldada e pressionada por todos os determinantes culturais, sociais, bioquímicos e quantas mais abstrações se deseje acrescentar) nessa posição peculiar; que, de resto, só sabemos definir pela experiência. Quem ignora a dificuldade de explicar socialmente em que consiste o seu trabalho de analista? Tanto é estranho contar o que fomos, quando já não o somos.

Mas o analisando é resultado do mesmo movimento de que nasce seu analista. Diríamos que um produz o outro, no sentido em que ambos são contemporaneamente produzidos pelo trabalho que executam. Trabalho que é um mundo, ou seja, que nada exclui do que está presente e que possui regras definitórias precisas, embora não de todo reveladas à nossa reflexão. Regras das quais esperamos deduzir alguns princípios éticos, decorrentes da maneira particular pela qual o processo analítico forma, de uma pessoa apta a ser formada, um psicanalista.

O quadro parece completo. Mas não! Omitimos uma questão que por muito próxima se faz distante: quem faz a Psicanálise? O analista e seu paciente.

Ou, mais precisamente, o paciente, que elege seu analista e o força, pelo poder da eleição, a fixar-se na posição analítica, da qual já não ousará sair. Sabemos que a Psicanálise existe como um saber teórico. Todavia, na ocorrência de cada sessão, ela "pula ao existir", em virtude de uma relação dual que a contém inteira.

E, à medida que a reflexão esboçada acima não é mera tautologia, devemos reconhecer a presença de uma regra ordenadora, responsável pela organização da totalidade da situação descrita.

V.

Essa regra poderia ser formulada de várias maneiras - e, de fato, o foi. Arriscaria mais uma formulação, seguramente não a melhor. Acontecem muitas coisas durante o trabalho analítico, mas para que se possa assim chamá-lo, esta deve estar presente, esta que essencialmente enuncio como: dissolução e reconstituição sistemática do campo significativo.12

Assim, escapamos à tautologia, porque essa regra organiza e conforma o nosso proceder, quando se torna vigente pelos movimentos concretos de duas pessoas reais. Um exemplo. Certo paciente entra em meu consultório e tropeça no tapete; comenta que se atrasou por lhe ter acabado a gasolina; não o previra, porque estava com sono, cansado pelo estafante trabalho de coordenar até os últimos detalhes a première de uma peça teatral. Prossegue: "O seu tapete é uma verdadeira armadilha... Você o pôs como um teste na certa". Um episódio banal dentro de uma série; outro exemplo serviria igualmente. Poderia responder-lhe que não pusera o tapete pensando em tropeções; eu gosto do meu tapete e também de meus pacientes, preferiria vê-los todos conviver em harmonia. Além disso, se o paciente estava atrasado e entrou a correr, que culpa tenho eu? Essa defesa fácil não me contenta, conquanto pareça verdadeira. Por quê? Por se encontrar no mesmo plano significativo da fala do paciente. Culpas e desculpas. Calo-me e contemplo a situação com outro olhar. Vagas ideias cruzando-se: o pouco tempo que resta para a sessão (uns quinze minutos), o pouco tempo que falta para a estreia (pressa, pressa!), o que é fazer teatro hoje, nesta cidade (pressa!, crítica! A crítica dos críticos ou a minha?). Teatro em meu consultório? Que diretor descuidado este, que deixa tapetes tropeçáveis! Digo-me fundo em mim: "Você não é culpado, hein? O que vale mais, seu prazer estético (tapetes, teatro) ou os tropeções dos pacientes e do resto do mundo?" Recuso-me a prosseguir citando agora por falta de um advogado; a resposta poderia ser usada para incriminar-se, como nos enlatados da televisão... Coragem! Prossigamos. "Sim e não", seria a resposta. Porque o diretor apressado e ultracauteloso que se tem de defender dos críticos não sou eu, isto é, sou e não sou. Fui. O paciente penetrou-me, trazendo consigo toda a realidade do mundo, seu e meu. Deixei, por uma "suspensão metodológica", que se dissolvesse o campo da comunicação banal embora veraz, a rede de explicações causais que enlaçava meu paciente como uma serpente (uma última e vaticana imagem do Laocoonte. "Por que um rio?" Ah sim: "Grupo antigo..."13 Desgosto: "cada besteira que nos passa pela cabeça..."). Durante o processo de suspensão não deixei de estar atento e (im)perfeitamente cônscio de meu paciente, digo-o com honradez; aliás, isso tudo não demorou mais que o curto silêncio feito pelo paciente para tomar fôlego. E o episódio inteiro não levou mais que um minuto.

Ao apreender no âmbito de uma (im)perfeita totalidade a desconjuntada consciência simultânea, dele, de mim, de aqui, com tapete e tudo, de fora e do mundo, eu - submetido aos meus preconceitos, ideologias e preferências estéticas (entre as quais incluo uma certa tendência a fazer interpretações bem-soantes), submetido àquilo que em mim ele evocou e ao que me pareceu ter sido surrupiado desta totalidade - pude interpretar que...

Para que serve contar a você, leitor e colega, o que eu disse? Só valeu por um momento o resultado dessa síntese impossível. Logo depois perdemo-nos de novo e a análise prosseguiu: regra ordenadora presente in potentia, que se atualiza por movimentos concretos de duas pessoas reais.

Por coincidência, no mesmo ano de 1972, outra paciente, também ligada ao teatro, abriu a sessão dizendo, apática, que tinha "regredido". Voltara a ter aqueles velhos pavores de doença, de morte. Não saía da cama. Procurou explicar isso com meia dúzia de organizações conceituais de que seus quatro anos e meio de análise a haviam provido. "Mudou de assunto." O trabalho em que estava a participar fora interrompido precocemente por razões técnicas (leia-se financeiras). "Eu estava gostando", concluiu laconicamente e procurou novo tema. Algo se passara comigo, entretanto. Eu tinha pensado nos muitos casos de amor que ela vivera com sincera intensidade, até o ponto em que os parceiros começavam a enfadá-la, e ela os despedia, destruídos. Um deles havia sido internado numa "casa de repouso"; para um repouso bem merecido, a meu ver. Ficara como "um bagaço de laranja bem chupado", palavras dela. A imagem impôs-se por si, tiraram-lhe a laranja antes que a pudesse terminar ou fingir que era ácida. Ficou triste, digamos. Para quem não conhece a tristeza, o que deve parecer encontrá-la de súbito? Uma imagem: para uma criança pequena, arroz solto na boca pode parecer formigas a correr. Alguém me dissera isso ou a frase era minha? Não importa: a suspensão já produzira tal dissolução do campo significativo, que nascera a estranheza do ventre da rotina. E depois, bem depois, vinte minutos depois - se o tempo da angústia mede-se em minutos -, foi possível interpretar-lhe os albores de uma depressão. (Deus me livre de usar palavras como "depressão", tão gastas. Se bem me lembro, falei que ela estava triste, sem saber exatamente que isso era a tristeza. Ela respondeu: "Não é possível... tudo isso! Você está brincando!" Não estava; mas, brincadeira, sugeriu-me que...)

Dois pacientes, dois atores. Um no segundo mês de análise tropeça no tapete; a outra, com quatro anos a mais, tropeça na depressão. Ambos me recriminam, com certa razão. Esta poderia ser a diferença entre algum tempo de trabalho analítico: o tapete oriental e a (des)orientação diante da tristeza.

Nos dois casos a interpretação foi o efeito de uma provisória e conscienciosa desestruturação do campo referencial do discurso dos pacientes, ocorrida em mim, que presumo estar mais ou menos "apto a ser transformado em analista", e por isso aceito pacientes para análise. A dissolução do campo faz surgir estranheza e, se consigo suportar este efeito de estranhamento, reconstitui-se um campo - não o mesmo que dominava a sessão -, em que tento introduzir o paciente pela via da interpretação.14 Suas palavras têm agora, pela minha atenção submetida à regra enunciada, um valor metafórico, isto é, definem metaforicamente a sua condição presente. Eu interpreto, isto é: traduzo a metáfora para uma linguagem mais acessível a meu paciente, tanto pela clareza da nomeação, como pela modulação afetiva que torna menos aflitiva a experiência. Como Freud disse tudo isso melhor e mais simplesmente com a expressão "atenção flutuante"! Enfim, aceitemos a menoridade em relação a Freud.

Dessa regra enunciada e exemplificada, dessa regra operativa, seguem-se decorrências éticas? Veremos.

VI.

O "Método científico" procura decantar do pensamento seu valor circunstancial, contingente; a quintessência do "Método" reside em operações como a de refutar uma falácia, automaticamente, pelo uso correto de um cálculo de predicados, por exemplo. Produção da "Verdade" em seu estado puro (ou em padrões de pureza aceitáveis), e tão abundante e eficientemente quantoo instrumental permitir. Eticamente: "isenção e descompromisso".

Dobre-se a Psicanálise quanto se quiser, e ela não passará pelo fundo de tal agulha, nunca entrará no "Reino da Ciência Pura". A pesquisa psicanalítica nasce de um compromisso e não pode esquecer a relação que a deu à luz e iluminou-lhe os passos. Sua norma não consiste na purgação dos erros, e sim na produção de uma "verdade ocasional", de uma apreensão totalizante e fugaz do "mundo analítico". Mundo transferencial, onde está presente o contexto inteiro e simultâneo de todas as determinações que sintetizaram o par reunido pela análise. E mundo significa aqui: totalidade das coisas que pertencem ao mesmo domínio.15 Ao domínio da transferência pertence todo o "Mundo Real" do ponto de vista do paciente e daquele do analista. Apreendê-lo em certo momento, numa forma nova, é, ao mesmo tempo, interpretação e, no sentido mais rigoroso dos vocábulos, formação analítica. Este mesmo mundo há de ser estudado também nos graus diferentes de abstração sociológica ou biológica, no seu valor estético ou político. Porém, é próprio da Psicanálise - ou assim me parece - essa apreensão de totalidades que, em certo plano, se lhe oferecem inteiras.

Esse plano é o da transferência. O primeiro valor que se lhe atribuiu foi o de presentificação do trauma: da história do trauma e, logo depois, o da estória do trauma, da fantasia. Talvez fosse oportuno dar um passo (atrás ou à frente, como o leitor preferir) e reconsiderar a transferência como um dos modos da presentificação da história. O que nos beneficiaria, reforçando a ideia de que o juízo expresso numa interpretação transferencial, sendo juízo sobre a História - a dele e a minha, a de todos -, só pode nascer de um compromisso; nunca da fábula da absoluta isenção, do espelho imperturbável. Ou seja: "isenção comprometida" é a norma Ética de minha formação como analista. Comprometida com tudo aquilo que cerca meu consultório, com tudo aquilo que cerca o tempo de sessão, com os gritos e o temor, com algumas vozes de alegria. Numa palavra, com todo o humano que cerca a minha humanidade.16

VII.

Assim, traçamos, superficial e fragmentariamente, a rota dessa produção de conhecimentos contingentes, que não servem ao consumo, porque eles mesmos se consomem no processo de produção. Deles sobram teoria e terapia. Para poucos, pelo menos até hoje. A nossa Ética? A de uma isenção? Sim, para a isenção que visa nos retirar do mundo de objetos reais17 sem o conseguir, é óbvio - para que em nós mesmos, transferencialmente, se possa apreender a totalidade desse mundo. Isenção: mas comprometida com o pacto que permite a formação desse mesmo mundo transferencial e a nossa própria formação como analistas. Isenção comprometida com uma produção que não se pretende pura (ou dentro de aceitáveis padrões de pureza), nem abundante, mas simplesmente móvel: no sentido em que eu possa explorar as sugestões de cada analogia e o valor alegórico do discurso do meu paciente; em que, uma vez constituído um código de comunicação com o paciente, esse código seja usado e denunciado; em que, cada vez que uma ideia se consolide, possamo-la dissolver; em que a "técnica", ao ser usada, seja contestada pela própria interpretação que ela permitiu construir, demolida e refeita, num trabalho que ultrapassa, de muito, o da mera execução "tecnicamente correta". Então, aqui chegando, o problema mais sério torna-se visível. Se devemos dissolver cada certeza para apanhá-la numa nova compreensão de totalidade, dissolvemos também a certeza de ser analistas (um certo modo de analista), para voltar a sê-lo (numa nova dimensão que engloba, a cada passo, a precedente). Nem o paciente permanece seguro. Nessas sucessivas reformulações recíprocas, onde podemos reconhecer a essência do processo psicanalítico, não há um objeto já posto e um observador isento e descomprometido. A isenção se compromete e se faz isenção comprometida. Enquanto eu crio o meu paciente e ele me cria. E não a partir do nada, mas de um mundo do qual emergimos para um outro mundo que então se cria; mundo novo, enquanto nova maneira de visar a realidade. Só o captamos, é preciso repetir, pela isenção comprometida e isso quer dizer: presentes que estávamos, retiramo-nos para retornarmos mais presentes e um pouco menos ignorantes.

VIII.

Até aqui tenho tratado o assunto de forma quase dedutiva: um pouco séria demais, uma ponta de pretensioso rigor, um bocadinho de pompa. Penitencio-me e justifico essa atitude de duas maneiras: 1. por ser uma reflexão de menoridade, mas isso explicarei no item final; 2. porque o tema, sendo absolutamente sério e vital, só admite tal tipo de aproximação. Penitencio-me agora por não ter sido tão sério e rigoroso como deveria, ao discutir com o colega e leitor que empenhou a sua vida e os seus sonhos na profissão de cuja Ética temos tratado. De penitência em penitência espero receber absolvição ou, pelo menos, exemplificar a permanência da posição esquizoparanoide.

Gostaria de poder recompensá-lo pela paciência (reparação?) propondo-lhe que considere algumas das muitas consequências práticas que se seguem ao enunciado: "Ética de isenção comprometida". Faremos isso juntos, sem nos preocuparmos em esgotar os assuntos possíveis, nem mesmo em tocar o fundo de um qualquer, particular.

O psicanalista não é um especialista e não tem por que se preocupar em sê-lo. É verdade que hoje chega a ser herético ignorar o organograma da tecnologia, com seus gêneros e espécies; podemos até sofrer uma crise de agorafobia ao nos vermos fora dele. De fato, forçando um pouco o sentido da palavra, eu conseguiria dizer que há "especialidades" dentro da Psicanálise, como a Ludoterapia. Contudo seria aberrante designar a Psicanálise como uma das espécies do gênero "Psicoterapia". Mais natural e simples é admitir que o nosso trabalho, conquanto o seja (trabalho), dificilmente há de figurar numa tabela de divisão racional de trabalho na sociedade industrial. Abandonar semelhante marginalidade - que aproxima o psicanalista deste outro desclassificado, o intelectual - talvez fosse possível. Mas custaria o preço alto de perder de vista o centro, o umbigo que nos alimenta no útero de uma experiência ímpar. Nalguma parte, nalgum tempo, alguns ou até a maioria dos psicanalistas poderão ter realizado o esforço violento de enfiar a Teoria Psicanalítica no molde pronto das ciências naturais, subordiná-la aos cânones neopositivistas da lógica formal e reduzir-se a executores de uma técnica sofisticada. E isso justificaria a sentença de M. Heidegger: "Devido a que a logística acopla-se de maneira propícia com a moderna psicologia, a psicanálise e a sociologia, o truste da filosofia futura fica perfeito".18 "Dá o que pensar" em termos heideggerianos, sem dúvida, a que sociologia e a que psicanálise refere-se o filósofo. Em verdade, se sacudirmos o incômodo peso de nos saber comprometidos pela interpretação a interpretar o mundo que se faz presente no modo da transferência - e no qual estamos mergulhados até a medula ideológica dos ossos que mantêm ereto o corpo de uma sessão -, podemos nos sentir descomprometidos, enquanto nos comprometemos de fato e no pior sentido. Sem compromisso há comprometimento. Isto é:o pacto com a tecnologia, como o pacto com o Diabo, dá o mundo e sua aceitação, mas custa a alma, a essência Ética da profissão. Cada cidadão eminente a descarregar a má consciência nos braços acolhedores de um técnico em perdão, pagando em dinheiro vivo a sua indulgência plenária... Não é uma perspectiva animadora! Para escapar a tamanha catástrofe moral, o analista, e principalmente o estudante, conta com a possibilidade, diria melhor, tem a obrigação de conhecer o mundo em que trabalha. Quase digo o mundo para que trabalha; mas prefiro formular assim: o mundo que trabalha, no sentido de trabalhar a argila ou de trabalhar o saber. Estamos todos ligados a duas antigas tradições: à dos artesãos - nas acepções do Aurélio: "1. artista; 2. indivíduo que exerce por conta própria uma arte, um ofício manual" e à dos intelectuais. Reunindo num verbete imaginário. "Psicanalista: indivíduo que exerce, por sua própria conta e risco, artisticamente, um ofício intelectual" (as mãos são úteis também para abrir a porta e martelar a máquina de escrever). Da conjunção dessas tradições antigas temos: 1. a possibilidade de ver o produto final e cada momento intermediário da sua produção (frequentemente, como os artesãos, não chegamos a ver nenhuma obra terminada. É pena, mas há o consolo de não fazer parte de uma linha de produção; resta a esperança de ver alguma coisa, tendo acompanhado o paciente tão longe quanto foi possível, para ele e para nós); 2. a consciência de ser um dos elos na cadeia do saber (e se cuidarmos de conhecer os outros elos - ciências, mito, tradição oral de habilidades, filosofia etc. - alcançaremos certa compensação para nossa marginalidade); 3. a possibilidade de livremente pôr a Psicanálise em tela de juízo, pela reflexão epistemológica, sem prestar vassalagem às doutrinas de moda nas ciências naturais e na tecnologia.

Assim, o inequívoco parentesco da Psicanálise com as outras ciências humanas, desde que não "tecnicizadas", ou seja, desumanizadas, obriga-nos, pela força do sangue, a estudar história, antropologia, psicologia, sociologia, linguística e demais disciplinas consanguíneas. Estabelecer o sítio da Psicanálise é mais que conhecer o seu lugar entre o resto da parentela, é deixar-se sitiar por esta, pelas ciências humanas e filosofia, acolhê-las, trocar contribuições. É também conhecer limites; afinal, o nosso é um sítio, e não uma fazenda, não nos façamos passar por latifundiários. A "isenção comprometida" insta principalmente a um compromisso com a própria Psicanálise, revendo seus princípios teóricos, pondo em questão as suas bases metodológicas e até, como aqui, a Ética que sua especificidade exige.

E, se lembramos as artes, não esqueçamos de considerar o problema da "Verdade". Se a "Verdade" para as Ciências da Natureza" reside numa "adequação entre o enunciado e a coisa" ou na "inexistência provisória de uma refutação" - conceitos talvez utilizáveis até mesmo em certas áreas do saber psicanalítico -, a verdade de uma interpretação dada em certa sessão aproxima-se mais do sentido em que uma obra de arte é verdadeira, isto é, sua capacidade de exprimir a essência de uma aparição do fenômeno - intuição de essências - ou, por que não, ficção verdadeira.19 Ainda acrescentaria que, à coerência implicada no ser verdade sempre, devemos opor uma espécie diferente de conceito: a verdade contingente, que tem por marca distintiva permanecer coerente consigo mesma. Ainda que seja uma verdade menor, por definição, um juízo do tipo: se isso é coerente com o que se produz na sessão, então expressa algo útil, quer dizer, verdadeiro. Refiro-me, naturalmente, a interpretações, a sessões analíticas e à coerência artística. O que não é verdadeiro nesse sentido, não é exatamente falso: é mentiroso.

Se não me submeto a essa restrição de método, terei de supor uma coisa, com a qual se pareça, ou não se pareça, a interpretação: um inconsciente coisificado ou uma reificada experiência, dos quais me aproximo ou distancio. Só assim salvaria o princípio de adequação.20

Estou passando rapidamente os olhos sobre problemas tão vastos e importantes, que aqui, numa reflexão de menoridade, apenas desejo que constem como uma pedra no caminho; quer o colega prefira estudá-la, guardá-la para sua coleção de preocupações futuras, quer, simplesmente, opte por chutá-la para o lado. Não se acanhe em escolher.

IX.

Outra classe de decorrências práticas deste ensaio ético é o compromisso - não comprometimento - com os preconceitos que permeiam nossa teoria e nossa prática. Compram isso, repito, quer dizer (re)conhecimento; ignorância ou cegueira do compromisso - sim, isso compromete.

Um exemplo: os modelos que usamos para descrever as emoções. Emoções podem ser reconhecidas, na sua existência vivida, pelo sujeito que age por elas, que se emociona e chora ou ri. A descrição melhor será esta: a das palavras e ações que as expressam. Quando tentamos generalizar as descrições, lançamos mão de critérios procedentes de um consenso social acerca da propriedade ou impropriedade da emoção em certas formas de ser. Eu digo: "Ele chorava como criança". E por que não: "chorava como adulto"? Porque os adultos não choram. E por quê? Eu sei que os adultos choram. Choram menos. Talvez porque não queiram chorar como crianças? A necessidade inelutável de nos distinguirmos do outro que já fomos obriga-nos a este movimento de contenção que precisamente a Psicanálise é chamada a dissolver. Contudo, a proibição social do choro adulto parece também intrometer-se indevidamente nos nossos modelos psicanalíticos. Ao ponto de, em certos momentos, considerarmos como regressivo meramente aquilo que não diferencia o adulto da criança. Surge assim um preconceito de desenvolvimento que considera normal o desenvolvido e primitivo o outro, que põe sua fé na evolução e no progresso.21

Seria de grande proveito permitir que a proposta de uma isenção comprometida - comprometida, no caso, com todos os determinantes que nos fazem distinguir valorativamente o adulto da criança - agisse sobre essa distinção, fazendo-nos ver, com o mesmo olhar que interpreta a emoção de um paciente, a contenção e os seus planos de distinguir-se do sub-ser criança. O reconhecimento da intromissão de tais preconceitos na área da nossa teoria psicanalítica deve estar presente nas interpretações, como um pano de fundo que realce a ação.

Porventura essa ordem de ideias lance alguma luz sobre dois conceitos que não nos inspiram muita confiança, sem que se saiba por quê. Regressão e resistência. Estão ambos pejados de evolucionismo e culto ao progresso. No que respeita ao processo analítico, a ideia de desenvolvimento rumo a... - seja à normalidade, ao autoconhecimento, à experiência adulta etc. - implica a condenação moral de qualquer recusa a progredir. Nós evitamos, é claro, utilizar conscientemente tal critério no trabalho de interpretação. A pergunta crucial, no entanto, permanece: será que a categorização com base no progresso, vendo barrada a porta de entrada, não se insinua pela janela dos eufemismos? Cada um pense por si. A recaptura da experiência infantil no espaço analítico, a regressão, é tão neutra de valor moral e preconceito? Se o fosse, por que teríamos de lembrar constantemente a existência de regressões a serviço do ego? É tão espontâneo traduzir regressão por patologia. Por que nos esforçarmos para pôr de lado a noção de patologia, senão porque nos intimida o peso da condenação que ela profere? Finalmente, gostaria de lembrar a peculiar cegueira, que, exigindo do paciente de consultório uma dedicação e disponibilidade semelhantes às nossas (que pretendemos assumir a Psicanálise como profissão), tende, não raro, a interpretar algumas impossibilidades econômicas como simples fenômenos de resistência.

X.

O interesse por descrever a evolução de um candidato através do curso vem, de algum tempo, transformando-se em mania para mim. Minha ideia seria tentar uma revisão crítica do estado de candidatura. Comportaria duas partes: o estudo do movimento ascencional pelos degraus da formação, cercado de normas explícitas e padrões ocultos, mas vigentes; e a evolução das reflexões teóricas e práticas que marcam um roteiro pessoal. Suponho que tanto os colegas como o Instituto apreciariam um retrato fiel, uma história da candidatura, um espelho a refleti-los.22

Pelo duplo sentido de refletir, o título geral desse trabalho poderia ser Reflexões de menoridade, sendo a menoridade um estado jurídico arbitrário, que cessa por um gesto igualmente formal: seja a emancipação, seja, como aqui, a apresentação do Trabalho de Membro Associado. Ao menor, cabem certas regalias e uns poucos deveres. Inimputabilidade, proteção contra abusos de terceiros etc. Por outro lado, existe um daqueles padrões ocultos, que vale a pena pôr às claras: da menoridade espera-se um comportamento menor.

Abordando a educação humana, Huxley escreveu as deliciosas páginas da Educação de um anfíbio.23 É isto um candidato: um anfíbio. Enquanto cursa o Instituto, trabalha também como analista. Tem de pensar como analista e enfrentar os problemas teóricos que a prática suscita. Se não se dá conta de seu próprio desenvolvimento, afoga-se na lagoa da dependência institucional, como um sapo estúpido que continua a pensar que é girino.

 

1 Do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (O que significava "candidato". Hoje, não obstante, o título ainda é válido, já que continuo a ser "do Instituto". Acrescentarei ao texto algumas notas explicativas ou de atualização, porém sempre em itálico, para que se possam distinguir daquelas do original. Com isso, o leitor fica livre para lê-las ou saltá-las, como preferir. Algumas pequenas correções do texto foram feitas apenas em caso de excessiva obscuridade). Fabio Herrmann faleceu em 2006.
2 Assim começava "O Campo e os Dois" (atual segunda parte do livro I de Andaimes do Real), na versão da época. Neste artigo, utilizei fragmentos e, sobretudo, o argumento desse livro, sem o poder citar naturalmente, já que não estava publicado. Esse fato empresta ao artigo um estilo demasiado conciso, que chega em certos momentos a ser obscuro. Mas era meu jeito de escrever, naquele tempo: muito sintético, por um lado, por outro, alusivo.
3 É absolutamente essencial para a compreensão deste texto fixar a ideia de que a Ética psicanalítica não provém de princípios gerais da moral, como é costumeiro nos códigos de Ética, mas que, ao contrário, vem diretamente da especificidade da prática clínica. Ética, assim entendida, descreve propriedades essenciais do método interpretativo da Psicanálise. Não escapará aqui ao leitor atento um discreto tributo a Lacan.
4 Alusão irônica ao abandono da teoria freudiana. Se a ironia era característica de meu estilo, o abandono de Freud ainda iria acentuar-se nos anos vindouros, até que o excesso provocasse uma reação contrária. Naquele tempo, começava apenas a se formar o hábito de fechar o livro e intuir a vida mental. O correlato prático desse hábito, como hoje se pode ver, é considerar a análise como "uma simples conversa". Perdida a visão metapsicológica da clínica e posto de parte o método interpretativo, só restaria à psicanálise confundir transferência com relação interpessoal, imaginando que uma conversa franca sobre os sentimentos ocorrentes durante a sessão pudesse curar.
5 Naturalmente, Paulo Honório, do romance de Graciliano Ramos, que lamenta, ao fim da história, a perda do amor de Madalena.
6 Psychologie des Foules, PUF, 1963, p. 72. Le Bon, como se sabe, é referido por Freud na questão da sugestionabilidade das massas e serviu, por outro lado, de fundamento a mais de um argumento reacionário com relação à incapacidade do povo em autodirigir-se. Mas o cínico comentário do Imperador não deixa de conter alguma verdade, no caso. Pelo visto, este meu texto está tão definitivamente condenado à repetição quanto o está a própria situação que ele denuncia. É claro que, ao escrevê-lo, não podia sonhar que viesse a merecer uma republicação, que, com certeza, menos se deve a seu valor intrínseco, do que ao destino posterior da formação analítica em nosso Instituto, que acabou por justificar essa antiga crítica.
7 Durante um curtíssimo período, havia feito pesquisa em neurofisiologia. Aproveitei a experiência para tentar definir a Ética da formação psicanalítica pelo grau de dessemelhança e mesmo de oposição com respeito à formação em pesquisa empírica de corte positivista. Não deixa de ser irônico que, hoje, a pesquisa empírica em Psicanálise, com estatística e tudo, se tenha convertido em moda nalguns lugares.
8 Nomotética, no sentido empregado por Windelband para designar as ciências naturais, que buscam encontrar leis gerais, por oposição às ciências ideográficas, ou ciências do espírito, que buscam descrever fenômenos particulares. De fato, ambas as formas de pensar, nomotética e ideográfica, mesclam-se na Psicanálise. Ao empregar essa distinção inusual em nosso meio, eu provavelmente esperava, com certo otimismo juvenil, despertar uma discussão sobre o nascente cientificismo que prometia dominar nossa Sociedade, encarnado naquele "positivismo místico" a que me referi na nota introdutória, Na primeira metade dos anos 70, aliás, a única teoria epistemológica que circulava em nossa formação era a de K. Popper, autor que dificilmente se imaginaria simpático aos critérios de verdade que decorrem da interpretação de forma psicanalítica.
9 Lembro-me de que se dizia na época que um experimento "duplo-cego" exige, como o nome implica, dois cegos: um para administrar o remédio e o outro para tomá-lo. Na medicina, esse gênero de conduta investigatória procura anular os efeitos do desejo do pesquisador. 10 Não é pois permissível que o analista se pretenda isentar dos efeitos sociais e políticos de sua prática, afirmando que só lhe cabe observar o que se passa na sessão. Essa introversão profissional era claramente tributária da situação política do país, durante os anos da ditadura.
11 As ciências contemporâneas construíram uma máquina padrão de pensamento, cujo bom funcionamento exige que o cientista ou o técnico nunca incluam qualquer visão crítica do mundo entre seus parâmetros de operação. O equivalente psicanalítico desse descompromisso fundamental pode ser encontrado na ideia de que ao analista só concerne a experiência emocional da sessão, sendo toda preocupação que ultrapasse o "vértice psicanalítico" mera atuação, ideia essa que começava a se popularizar naquele tempo. Nisto consistiria a técnica psicanalítica, entendida como uma espécie de tecnologia da "emoção transferencial": em deixar livre o analista para observar os "falos internos", sem interferências de qualquer pensamento cultural mais amplo. Iniciava-se uma pasteurização da clínica que só podia, pensava eu, produzir sempre mais do mesmo.
12 E chegamos por fim à fórmula central da Teoria dos Campos: a noção de ruptura de campo. Trazê-la à baila a essa altura do texto cumpria uma função precisa. Como se verá nos exemplos clínicos seguintes, o procedimento essencial do analista consiste em apreender a comunicação de seu paciente para lá do contexto de realidade a que esta se deseja ater, rompendo o campo aprisionador. O resultado é uma tradução da metáfora em que se converteu o discurso concreto, que não deve conduzir a nenhuma teoria pré~formada, embora várias linguagens teóricas possam descrever a posteriori o produto final. Ora, a verdade contingente que nasce do método de ruptura de campo exige que o analista esteja isento, no sentido de não se confundir com um objeto da realidade, mas inteiramente comprometido com o "mundo transferencial", isto é, com "todas as determinações que sintetizaram o par reunido pela análise". Este também é um princípio ético no ensino da Psicanálise, pois não admite que o candidato caia na armadilha tautológica mais comum da formação, consistente em acreditar que descobriu no analisando, como que por conta própria, a mesma teoria que orienta sua prática, como mencionei na Nota Introdutória.
13 Fragmento do conhecido poema de Castro Alves que descreve a cachoeira de Paulo Afonso: "Grupo antigo do fero Laocoonte... " O grupo escultórico chamado Laocoonte encontra-se nos Museus Vaticanos. No tocante ao gosto estético, ainda hoje aprecio interpretações que não soem mal, mas aprendi a distinguir interpretação de fala do analista: uma interpretação bem-soante para mim, hoje, seria antes um conjunto de pequenos toques emocionais, provavelmente transmitidos por meio de sentenças curtas e gramaticalmente quebradas. É fascinante como o tempo inverte-nos tão perfeitamente que quase não nos muda: permanecemos mais ou menos com a mesma cara, porém de pernas para o ar.
14 E é do choque entre ambos os campos que pode provir uma ruptura de campo.
15 Aurélio, 9ª acepção/figurada.
16 Como ficou dito, essa demonstração Ética opunha-se a certa tendência antes referida que ameaçava impor-se durante meu tempo de formação, como de fato impôs-se. Mas, evidentemente, também se opunha às tendências adaptativas ou pragmáticas que informavam outras práticas terapêuticas e analíticas.
17 Como fundamento ético, bem como fundamento de uma técnica não identificada a uma "tecnologia das emoções", é preciso ter em mente que a relação analítica não é uma simples relação entre duas pessoas. O trabalho no campo transferencial exige que o analista aceite o jogo de posições proposto pelo desejo do paciente, renunciando a impor-se como pessoa.
18 Que significa pensar? Editorial Nova, p. 26.
19 "A Wesenschau (intuição eidética) obtém-se por 'livre variação' imaginária de certos fatos. Para chegar a entrever uma essência, consideramos uma experiência concreta e fazemo-la variar no pensamento, tratamos de imaginar de que é efetivamente modificada sob todos os aspectos: o que permanece invariável através dessas mudanças é aquilo que constitui a essência dos fatos considerados." M. Merleau-Ponty, La fenomelogia y las ciencias del hombre. Buenos Aires: Editora Nova, p. 62.
20 Já esta parte do texto é um pouco menos estruturada que as anteriores. Não havia ainda desenvolvido suficientemente o sentido de veracidade no sistema campo-relação. Embora um pouco embaralhado, preferi deixar que o original permanecesse praticamente sem retoques. Em resumo, sustenta o texto que, sendo absurdo supor que se possa ter contato direto com o inconsciente, ou com qualquer outro tipo de verdade final interna do paciente, minhas sentenças interpretativas apenas valem pelo que provocam como resposta, pela coerência do processo analítico em que se inserem.
21 É interessante notar que precisamente este problema ressurge hoje como uma das questões propostas ao próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise, na mesa "O que é Desenvolvimento em Psicanálise".
22 Este projeto nunca chegou a concretizar-se, embora o estudo da situação concreta dos candidatos e membros continuasse a interessar-me, interesse de que resultou a organização da pesquisa "Onde Estamos?" (com Claudio Rossi e Ignácio Gerber). É uma pena, em todo caso, não haver explorado em tempo aquela ideia, sobretudo agora, quando se abre na Sociedade a discussão sobre nosso currículo de ensino. Uma "história da candidatura" teria mostrado, com certeza, que o problema mais sério da formação de um analista em nosso Instituto consiste no pequeno estímulo à criação que o enquadramento forçado numa só escola teórica engendra. A ideologia reinante na formação, por conta disso, leva a apresentar a Psicanálise como uma produção já terminada em suas linhas mestras, em que o esforço por romper o cerco teórico é muito mal visto. Em consequência, a produção teórica tem sido identificada com falta de intuição clínica e a busca do conhecimento de outros campos do saber, com intelectualização.
23 Huxley, A. Tomorrow, Tomorrow and Tomorrow and other Essays. The New America Library, p. 64.

 

Referências

Arrigucci, D. (1992). Humildade, paixão e morte. A poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Bandeira, M. (1954). Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Jornal de Letras.         [ Links ]

Herrmann, F. (1995). Reflexões de menoridade: sobre a ética da formação psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 28(53),79-98.         [ Links ]

Houaiss, A. (2001). Dicionário Houaiss. São Paulo: Objetiva.         [ Links ]

Massi, M. (2013). Editorial. Jornal de Psicanálise, 46(84),11-15.         [ Links ]

Menezes, L. C. (2012). O Jornal de Psicanálise. In: P. K. Montagna. Dimensões - Psicanálise - Brasil (pp. 501-504). São Paulo: SBPSP.         [ Links ]

 

 

1 Como não pensar aqui no sentido de menoridade pelo qual Deleuze e Guattari definiram "uma literatura menor" ao analisar a obra de Franz Kafka? "Menor" refere-se a escrever na língua da minoria; no caso de Kafka, demarca a posição de marginalidade do autor, sua impossibilidade de escrever em outro idioma que não fosse o alemão em Praga, uma língua desterrada, confinada a um uso menor.

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