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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

2001: Orsini / Chauí

 

 

Cecilia Maria de Brito Orsini

Membro efetivo da SBPSP. ceciliaorsini56@gmail.com

 

 

 

Depoimento ao Jornal de Psicanálise1

Recém-saída dos ritos finais da formação, foi uma experiência extraordinária enfrentar o desafio de encabeçar a equipe editorial do Jornal de Psicanálise, de 2001 a 2004. Vivenciei uma grande alegria e também uma imensa aventura ao realizar essa travessia com os colegas da equipe, com os autores e leitores!

Felizmente tivemos a chance de contar com uma equipe brilhante e engajada, composta de membros filiados: Alice Arruda, João Augusto Frayze-Pereira, Leda Barone, Lourdes Yamane, Osmar Luvinson Pinto (como coeditor) e Sandra de Souza Freitas. Uma equipe orgânica, sendo meu trabalho mais o de um elo articulador da cadeia associativa do sonho do grupo.2

E qual era o desejo que animava nosso sonho? Fazer da publicação um foro de discussão de pontos nevrálgicos da formação, em íntima sintonia com seus impasses, com o intuito de oxigenar o debate em torno de seus sintomas, abordando e arejando diferentes caminhos. Para tornar efetiva essa ausculta fina, foi uma vantagem sermos quase todos candidatos.

Começávamos detectando os problemas pulsantes, naquele momento, na instituição. A partir da definição do tema, empreendíamos, animados, a composição "musical" do número, às vezes sinfônica, às vezes melódica, às vezes dodecafônica.

Partindo de quatro eixos - a entrevista, o debate, os artigos e reflexões temáticos, e os articulistas de outras áreas -, pretendíamos que os artigos a serem publicados dialogassem entre si, expandindo o tema em múltiplas direções. A par dos textos que nos chegavam, também estimulávamos vivamente a escrita dos colegas em formação. Continuávamos por incitar o envio de artigos de colegas considerados referência no tema em questão, seja de dentro, seja de fora da instituição, seja do Brasil, seja de outras partes do mundo.

Nosso "filé-mignon" era articularmos os artigos do tema em tela com artigos de expressivos nomes da cultura. Nossa intenção era, ao mergulharmos no mundo, sairmos renovados, enquanto psicanalistas em formação, e jamais propor um exercício especioso de erudição. Sempre nos preocupou manter uma perspectiva de liberdade, buscando constituir uma atmosfera contrária aos aspectos asfixiantes da formação.

Como exemplo do fruto do trabalho, gostaria de mencionar o número que versou sobre "O caso clínico, sua narrativa".3 Esse tema brotou ao constatarmos a inibição de muitos colegas para escrever o famigerado relatório, o que constituía um dos gargalos cruciais da formação, creio que até hoje.

Como fazer circular esta problemática? Como exemplo, chamamos a atenção para as experiências dos analistas seniores relatadas no debate. Havia um sintoma em nossa instituição - o relatório devia e não devia, ao mesmo tempo, ser desta ou daquela maneira, o que deixava uma mensagem paradoxal, qual seja, faça o relatório como quiser, mas considere o padrão institucional, padrão que, contudo, não se conhece ao certo.

Vale lembrar que, na entrevista a esse mesmo volume, Pontalis foi ainda mais longe; "é verdadeiramente muito complicado fazer estes relatórios, e digo frequentemente que os eminentes membros titulares são muitas vezes bem incapazes de fazer o que exigem dos candidatos". O processo de recolocar nossos ícones no seu devido lugar, desidealizando-os, certamente favorecia uma distensão de nossas angústias para escrever.

Retomando o índice do volume 35, além da entrevista e do debate já aludidos, temos colegas contando seus casos, psicanalistas intra e extramuros refletindo sobre o tema da narrativa dos casos. Para se ter uma ideia de nosso mergulho na cultura, descobrimos Pasolini se deliciando ao ler os casos clínicos de Freud, quem diria? Ou, então, Walnice Nogueira Galvão revelando a importância seminal da correspondência de Guimarães Rosa com seu pai. Rosa rogava que ele lhe enviasse a narrativa de "causos", tributários da tradição oral de Minas, fonte inesgotável de sua obra. Se Rosa pode transformar seu "pai", por que não também nós? E o texto de W. Benjamim, reafirmando a ideia de que narrar é curar? Não é o que fazemos quando narramos?

Ao refletir sobre o papel do professor (mas que se aplica ao do supervisor, ao do didata e ao do coordenador de seminários), Marilena Chauí4 toca o ideal de formação, num ponto crucial do tornar-se analista: "o lugar do professor existe como lugar vazio ... o lugar do professor está vazio, pois seu ocupante ali se encontra para deixá-lo através de seu próprio trabalho". E, numa feliz metáfora, prossegue:

o professor de natação não pode ensinar o aluno a nadar na areia, imitando seus gestos, mas leva-o a lançar-se na água, revelando que o diálogo do aluno não se trava com o professor, mas com a água. Seu diálogo é com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais transmitidas pela linguagem e pelos gestos do professor, simples mediador. (grifos meus)

Enfim, como fruto de nosso trabalho, obtivemos o melhor resultado que poderíamos almejar: o Jornal de Psicanálise circulava, era manuseado, lido e discutido. Quem sabe tenhamos conseguido sustentar esse lugar vazio...

 

Ideologia e educação1

Marilena de Souza Chauí2

Resumo: O presente texto considera alguns temas correntes nas discussões pedagógicas contemporâneas e analisa a dimensão ideológica presente neles. Nesse sentido, a autora delimita o campo no qual a noção de ideologia se inscreve, definindo as determinações que a constituem. Ao longo do texto, além das noções de ideologia e de educação, outras ideias são brevemente consideradas, tais como universal e particular, formação e conscientização.

Palavras-chave: ideologia, educação, formação

Ideology and education

Abstract: The present work points out some current subjects in contemporary pedagogical discussions and analyses the ideological dimension present on them. ln this case, the author considers the field in which the notion of ideology inscribes itself, defining the determinations that constitute it. Along the text, beyond the notions of ideology and of education, another ideas are considered, such as universal and particular, formation and consciousness.

Keywords: ideology, education, training

Falar sobre "ideologia e educação" é quase como tentar uma dissertação sobre "Deus e sua época", isto é, uma certa dose de insensatez. Tanto um tema como outro são inesgotáveis, pois não se pode falar de ideologia em geral nem de educação em geral e, portanto, reuni-los parece rematada loucura. A tentativa aqui, hoje, limita-se ao levantamento de alguns temas correntes nas discussões pedagógicas, para avaliar até que ponto encobrem ou não alguma ideologia. Por outro lado, como o termo "ideologia" tem adquirido os sentidos mais variados nos últimos decênios, tentarei, apenas para evitar algum mal-entendido entre nós, delimitar brevemente o campo no qual defino os traços da ideologia, sem pretender com isso esgotar a questão nem mesmo tratá-la de modo suficientemente detalhado.

I. Ideologia

De modo sumário e para os fins que nos interessam aqui, poderíamos "resumir" a noção de ideologia nas seguintes determinações:

1. um corpus de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. Por sua anterioridade, a ideologia predetermina e pré-forma os atos de pensar, agir e querer ou sentir, de sorte que os nega enquanto acontecimentos novos e temporais;

2. o corpus assim constituído tem a finalidade de produzir uma universalidade imaginária, pois, na realidade, apenas generaliza para toda a sociedade os interesses e o ponto de vista particulares de uma classe: aquela que domina as relações sociais. Assim, a produção desse universal visa não só o particular generalizado, mas sobretudo ocultar a própria origem desse particular, isto é, a divisão da sociedade em classes;

3. como forma do exercício da dominação de classe, a eficácia da ideologia depende de sua capacidade para produzir um imaginário coletivo em cujo interior os indivíduos possam localizar-se, identificar-se e, pelo autorreconhecimento assim obtido, legitimar involuntariamente a divisão social. Portanto, a eficácia ideológica depende da interiorização do corpus imaginário, de sua identificação com o próprio real e especialmente de sua capacidade para permanecer invisível. Pode-se dizer que uma ideologia é hegemônica quando não precisa mostrar-se, quando não necessita de signos visíveis para se impor, mas flui espontaneamente como verdade igualmente aceita por todos;

4. é nuclear, na ideologia, que ela possa representar o real e a prática social através de uma lógica coerente. A coerência é obtida graças a dois mecanismos: a lacuna e a "eternidade". Isto é, por um lado, a lógica ideológica é lacunar, ou seja, nela os encadeamentos se realizam não a despeito das lacunas ou dos silêncios, mas graças a eles; por outro lado, sua coerência depende de sua capacidade para ocultar sua própria gênese, ou seja, deve aparecer como verdade já feita e já dada desde todo o sempre como "um fato natural" ou como "algo eterno". Esses dois mecanismos permitem que cheguemos a duas conclusões de grande envergadura no que concerne à crítica das ideologias. Como lógica da lacuna e do silêncio, a ideologia não se opõe a um discurso pleno que viria preencher os "brancos" e tornar explícito tudo quanto ficara implícito. Em geral, é pela oposição entre o lacunar e o pleno que se costuma distinguir ideologia e ciência. Ora, não há qualquer possibilidade de tornar o discurso ideológico um discurso verdadeiro pelo preenchimento de seus brancos. Quando fazemos falar o silêncio que sustenta a ideologia, produzimos um outro discurso, o contradiscurso da ideologia, pois o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava. Não é, pois, a ampliação ou a plena explicitação das representações ideológicas que constituem uma crítica da ideologia transformada em ciência, mas a destruição das representações e das normas pela destruição de seus andaimes, isto é, as lacunas. A segunda consequência concerne à questão da gênese. A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois sendo a "missão" da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria. Por esta razão, a ideologia deve fabricar teorias a respeito da origem da sociedade e das diferenças sociais de modo a poder negar sua origem verdadeira. Trata-se, pois, da produção de uma gênese imaginária sustentada por determinadas "teorias" da história nas quais ideias, como as de progresso ou de desenvolvimento, têm a finalidade de colocar o presente como uma fase necessária do desdobrar do passado e do advento do futuro, estabelecendo continuidade entre eles. Assim, por exemplo, nos primórdios da ideologia burguesa, a gênese da sociedade era explicada por um pacto social como um "progresso" humano em face da Natureza, enquanto na ideologia burguesa contemporânea, a origem e a finalidade da sociedade são dadas pelas ideias de racionalidade, organização e planificação entendidas como um "progresso" no conhecimento "objetivo" das relações sociais;

5. a anterioridade do corpus, a universalização do particular, a interiorização do imaginário como algo coletivo e comum e a coerência da lógica lacunar fazem com que a ideologia seja uma lógica da dissimulação (da existência de classes sociais contraditórias) e uma lógica da ocultação (da gênese da divisão social). Por esse motivo, uma das operações fundamentais da ideologia consiste, segundo Claude Lefort, em passar do discurso de ao discurso sobre (assim podemos quase detectar os momentos nos quais ocorre o surgimento de um discurso ideológico: por exemplo, quando o discurso da unidade social se tornou realmente impossível em virtude da divisão social, surgiu um discurso sobre a unidade; quando o discurso da loucura tem que ser silenciado, em seu lugar surge um discurso sobre a loucura; onde não pode haver um discurso da revolução surge um outro, sobre a revolução; ali onde não pode haver o discurso da mulher surge um discurso sobre a mulher etc.). Ora essa passagem do discurso de ao discurso sobre caracteriza várias de nossas atividades intelectuais, como a ciência (a psiquiatria que fala sobre a loucura, a sexologia que fala sobre o sexo, a tecnologia que fala sobre o trabalho, a pediatria que fala sobre a criança), a filosofia (que fala sobre as coisas e sobre as ideias), e talvez a pedagogia, discurso sobre a educação. O discurso sobre, em geral, oculta seu caráter ideológico chamando-se a si mesmo de Teoria. A distinção entre duas formas de discurso pode permitir que distingamos algo que tendemos a não diferenciar muito: o conhecimento e o pensamento. O conhecimento é a apropriação intelectual de um certo campo de objetos materiais ou ideais como dados, isto é, como fatos ou como ideias. O pensamento não se apropria de nada - é um trabalho de reflexão que se esforça para elevar uma experiência (não importa qual seja) à sua inteligibilidade, acolhendo a experiência como indeterminada, como não-saber (e não como ignorância) que pede para ser determinado e pensado, isto é, compreendido. Para que o trabalho do pensamento se realize é preciso que a experiência fale de si para poder voltar-se sobre si mesma e compreender-se. O conhecimento tende a cristalizar-se no discurso sobre; o pensamento se esforça para evitar essa tentação apaziguadora, pois quem já sabe, já viu e já disse não precisa pensar, ver e dizer e, portanto, também nada precisa fazer. A experiência é o que está, aqui e agora, pedindo para ser visto, falado, pensado e feito.

II. Alguns temas para discussão

Os temas que enumerarei a seguir não obedecem a qualquer critério lógico de encadeamento, nem pretendem abranger todos os problemas suscitados pelo trabalho pedagógico. A escolha foi aleatória e sem pretensão a qualquer "esgotamento" das questões.

a) Quem silencia o discurso da educação:

Como sabemos, em nossa sociedade é tacitamente obedecida uma regra que designarei como a regra da competência, e cuja síntese poderia ser assim enunciada: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Em outras palavras, o emissor, o receptor e o conteúdo da mensagem, assim como a forma, o local e o tempo de sua transmissão, dependem de normas prévias que decidem a respeito de quem pode falar e ouvir, o que pode ser dito e ouvido, onde e quando isto pode ser feito.

A regra da competência também decide de antemão, portanto, quais são os excluídos do circuito de comunicação e de informação. Essa regra não só reafirma a divisão social do trabalho como algo "natural", mas sobretudo como "racional", entendendo por racionalidade a eficiência da realização ou execução de uma tarefa. E reafirma também a separação entre os que sabem e os que "não sabem", estimulando nestes últimos o desejo de um acesso ao saber por intermédio da informação (isto é, por meio do discurso sobre). A regra da competência nos permite indagar: quem se julga competente para falar sobre a educação, isto é, sobre a escola como forma de socialização? A resposta é óbvia: a burocracia estatal que, por intermédio dos ministérios e das secretarias de educação, legisla, regulamenta e controla o trabalho pedagógico. Há, portanto, um discurso do poder que se pronuncia sobre a educação definindo seu sentido, finalidade, forma e conteúdo. Quem, portanto, está excluído do discurso educacional? Justamente aqueles que poderiam falar da educação enquanto experiência que é sua: os professores e os estudantes. Resta saber por que se tornou impossível o discurso da educação.

A ideologia contemporânea está montada sobre o mito da racionalidade do real entendida como razão inscrita nas próprias coisas exprimindo-se através das ideias de organização e de planejamento. Como sabemos, a origem dessa ideologia encontra-se no mundo econômico da produção, isto é, no "taylorismo" como forma de racionalizar o processo de trabalho. A racionalidade "taylorista" opera em dois níveis: no primeiro, fragmenta ao máximo o processo de trabalho a fim de torná-lo cada vez mais "produtivo", isto é, cada vez mais rentável pelo controle exercido sobre cada parte do corpo do trabalhador; no segundo, procura reunificar o que foi fragmentado, recorrendo à organização e à planificação. Ora, estas duas esferas concernem à decisão acerca do processo de trabalho e encontram-se separadas da esfera da simples execução. A "racionalidade" consiste pura e simplesmente em separar de modo radical aqueles que decidem ou dirigem e aqueles que executam ou são dirigidos, retirando destes últimos todo e qualquer poder sobre sua própria atividade. O mito da racionalidade assim concebida permite, por um lado, o surgimento das burocracias como forma de reunificar o disperso, reproduzindo-se nelas próprias (através do sistema de autoridade fundado na hierarquia) a mesma divisão efetuada na esfera produtiva, mas permite ainda, por outro lado, o surgimento da ideia de administração. Administrar é organizar e planejar. Ora, o que caracteriza a sociedade de mercado ou o modo de produção capitalista é o fato de engendrar a partir de uma equivalência (as mercadorias) um sistema universal de equivalentes graças a vários processos de abstração ao final dos quais tudo se equivale a tudo ou qualquer coisa vale por qualquer outra. Essa homogeneização do social equalizando abstratamente todas as esferas de socialização e todas as obras sociais é o que torna possível o advento da noção e da prática da administração. Com efeito, a administração possui seu próprio sistema de regras, normas e preceitos, seus próprios princípios acerca do ato administrativo independentemente do objeto ou realidade que será administrada. Em outras palavras, do ponto de vista da administração, a Volkswagen, a universidade, o primeiro e segundo graus, o Detran, a PM, o museu de arte, o cinema, o teatro, a Bom-Bril ou a Bendix são absolutamente equivalentes. Nada há, do ponto de vista da administração, algo que individualize ou singularize esses "objetos", pois são todos igualmente administráveis, isto é, organizáveis e planejáveis.

Assim, a regra da competência, somada ao mito da racionalidade encarnada no "taylorismo" e na burocracia (com suas sequelas, isto é, hierarquia, fragmentação, separação entre dirigentes e dirigidos), e acrescida dos padrões de organização e planejamento sob a forma "neutra" da administração, silencia o discurso da educação, para que o poder fale sobre ela. A educação não pode falar porque, se o fizer, obrigará ao reconhecimento de sua existência singular ou específica articulada a outras singularidades que diferenciam as relações sociais, de sorte que, de diferença em diferença, acabaria levando ao reconhecimento das divisões sociais. Postas as coisas nestes termos, poderíamos levantar algumas questões, como, por exemplo: por que há interesse em regionalizar a educação (aparentemente, portanto, admitindo diferenças)?, mas por que há interesse em articular a regionalização com as ideias generalizadoras de segurança e desenvolvimento nacionais (apagando a diferença inicialmente afirmada)?, por que há interesse em cursos profissionalizantes (supondo, outra vez, a diferença agora no plano da demanda e da clientela)?, mas por que há interesse numa seriação tal que, a partir de um determinado ponto, a profissionalização mude de significado, isto é, profissionalizar-se no segundo grau e na universidade não tem o mesmo sentido (aumentando portanto, a diferenciação ao mesmo tempo em que esta fica escondida sob a designação meramente quantitativa dos "graus")? Enfim, o que é, quem é e para que serve um administrador escolar?

g)3 Educação como formação e como conscientização

Em geral, costuma-se opor educação como formação e educação como informação, oposiçao que reaparece quando se distinguem aprendizagem e treinamento, conscientização e pragmatismo, espírito crítico e autômatos. Aqueles que privilegiam o polo formação/aprendizagem/conscientização têm a esperança de que a educação possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do real, graças à sua compreensão crítica. Não podemos também ignorar o fato de que tais oposições implicam uma outra, qual seja, entre uma visão humanista e uma visão tecnocrática da educação.

O que é "formar"? Quem lê o Emílio de Rosseau, O que são as luzes? de Kant, a Fenomenologia do espírito de Hegel, A educação para a liberdade de Dewey, as propostas da escola ativa, as de Summerhill ou as de Freinet, para não mencionar a República, de Platão, o Livro dos ofícios de Cícero, e o De magistro, de Santo Agostinho, há de perceber que a ideia de formação é inseparável de um determinado campo teórico e do contexto histórico no qual é formulada a proposta pedagógica, de sorte que esta não pode ser compreendida sem a compreensão do papel atribuído ao pedagogo com relação à sociedade, à política e ao saber. Lembradas estas obviedades, a questão colocada - que é "for-mar"? - permanece inteiramente aberta à procura de resposta. Parece-me um tanto duvidosa a oposição formação/informação e aprendizagem/treinamento, não porque quem forma informa e quem ensina treina, mas porque, ao contrário, informar já é também uma maneira determinada de conceber a formação, assim como treinar já é uma maneira determinada de conceber o aprendizado. Os termos não são dicotômicos e opostos, mas complementares. Evidentemente, poder-se-ia argumentar dizendo que a diferença entre as duas concepções se estabelece num outro plano, ou seja: num dos casos há uma opção humanista na qual o estudante, como homem, é o fim da educação, enquanto no outro caso há uma opção tecnocrática na qual o estudante, e o ser humano, é meio ou instrumento da educação. Ora, se fizermos a distinção entre as duas alternativas pedagógicas usando tais critérios, estaremos apenas optando entre duas versões da ideologia burguesa, pois o homem tanto como fim (Kant, Mounier) quanto como meio (Skinner, Taylor) é uma abstração. Foi em nome da "humanidade" que os povos da África, Ásia e América foram escravizados e trucidados, isto é, colonizados para que de bárbaros se tornassem civilizados. Foi em nome da "humanidade" que durante o processo da acumulação primitiva do capital decretou-se que todos os homens eram livres, se bem que a "natureza" tivesse feito alguns mais aptos e outros menos aptos para a liberdade. Foi para salvar o "homem integral" que fascismo e nazismo eliminaram os que eram "menos" homens do que outros. Etc., etc., etc. Se for em nome do humanismo e da humanidade como fim que estabelecemos oposições entre alternativas pedagógicas, corremos o sério risco de andar em má companhia. Mesmo que se argumente que não se trata dessas concepções deturpadas ou oportunistas do humanismo, mas de um humanismo "verdadeiro" ou "autêntico", não creio que tenhamos saído do campo definido pela ideologia burguesa, pois é nela que, pela primeira vez, se definiu o Homem como fim, de sorte a legitimar a existência dos homens como meio. Em uma palavra, optar pelo humanismo não é, ainda, criticar a ideologia, mas permanecer no interior de um campo cujas regras são dadas por ela. Suponhamos um professor que, tendo trabalhado as ideias de Freud e de Marx, se decidisse pela crítica do humanismo burguês. A partir desse momento, a educação seria para ele um problema e não uma solução, pois que há de se formar um outro quando se conhece a força irredutível do inconsciente e a dissimulação sistemática da exploração através da moral da responsabilidade? Para tal professor, formar não seria informar aos alunos acerca dessas questões e discuti-las com eles? Mas como poderia esse professor ter a pretensão de formar para a "liberdade" conhecendo o papel corrosivo e repressivo da cultura como superego e o significado de uma sociedade que se reproduz pela reposição da repressão (do corpo e do espírito) através da exploração econômica? Não estaria, esse professor, tocando justamente nos limites e nas ilusões do humanismo?

Com isso, talvez seja necessário rever a ideia da educação como conscientização. Como sabemos, o surgimento da consciência de si como subjetividade livre e autônoma inaugura o pensamento moderno (Reforma e Filosofia Moderna). Mas sabemos também que papel foi dado a essa ideia na formação da ideologia burguesa. Sob certos aspectos, aliás, poderíamos considerar a ideologia contemporânea da organização/administração como mais "honesta" do que a formulação inicial da ideologia burguesa. Com efeito, nesta a consciência servia para definir a igualdade, a liberdade e a responsabilidade, isto é, a identidade de todos os homens garantindo a dissimulação das diferenças de classe. Na ideologia contemporânea, o elemento "consciência" já não exerce qualquer papel, tendo sido substituído pelas ideias de eficiência e de competência no interior dos quadros definidos pela organização. É nisto que a nova ideologia é mais "honesta" do que a anterior. Nela, a consciência permanece apenas a título de retórica no discurso do poder (o apelo à consciência dos cidadãos) e como espetáculo oferecido pelo poder (o prêmio ao melhor operário, estudante, policial, empresário, professor, cientista, isto é, aos mais conscientes de seus deveres e responsabilidades para com o mundo capitalista).

Poder-se-ia argumentar aqui exatamente como se argumentou no caso do humanismo, isto é, dizendo-se que a conscientização seria justamente a formação de um espírito crítico que contestasse as duas versões dominantes acerca da consciência (seja como igualdade, liberdade e responsabilidade abstratas, seja como resíduo teórico ou como espetáculo de reafirmação ideológica). Cabe, portanto, aprofundarmos um pouco a discussão indagando se há ou não riscos ideológicos na concepção da educação como conscientização.

É verdade que a ideia de conscientização pressupõe a aceitação (e a crítica) das diferenças de classe a partir da divisão social e que, sob este aspecto, é anti-ideológica. Todavia, cabe agora uma pergunta: como a classe social tende a ser tomada na perspectiva da conscientização? Como uma coisa (um fato social) e como uma ideia (a consciência de classe), ou traduzindo para uma linguagem mais conhecida: a classe em si e a classe para si. No caso pedagógico, teríamos o aluno em si e o aluno para si ou o aluno ser-social-em si e o aluno ser-social-para si. Ora, uma classe social e um aluno não são coisas (como pensa a sociologia) nem são ideias (como pensa a filosofia): são um acontecer, um fazer-se, ação e reação, conflito e luta, movimento de autodescoberta e de autodefinição pelo seu próprio agir em cujo curso a classe, tanto quanto o aluno, se constituem sabendo de si. Qual seria, então, o risco ideológico da noção de conscientização?

Em primeiro lugar, haveria o risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência latente ou virtual, adormecida no seu ser em si e que o professor (ou a vanguarda) viria atualizar ou despertar. Há o risco da atitude iluminista.

Em segundo lugar, haveria o risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência de si que, por ignorar-se a si mesma, isto é, não ser ainda para si, tenderia a manifestar-se através de palavras e de ações alienadas ou como "falsa consciência". Assim sendo, parecerá necessário esperar que a desalienação ou a consciência "verdadeira" lhe seja trazida de fora por aqueles que "sabem". Há o risco ideológico de diferenciar o aluno (e a classe social) do professor (e da vanguarda) em termos de imaturidade/maturidade, ignorância/ saber, alienação/verdade, em suma, diferenciar hierarquizando e fazendo com que um dos polos seja uma espécie de receptáculo vazio e dócil no qual venha depositar-se um conteúdo exterior trazido pelo outro polo. Com isso, sob o nome de conscientização, reedita-se sob nova roupagem o conservadorismo e autoritarismo da educação que se pretendia combater.

Não se trata, evidentemente, de abandonar a questão da conscientização, mas apenas de reavaliá-la para poder colocar algumas questões novas. Não seria mais rico, em termos educacionais, se o professor, na relação com os alunos, levasse em conta um fenômeno que encontramos entre aqueles genericamente definidos como oprimidos e dominados (fenômeno, aliás, que encontramos em nós mesmos enquanto professores), qual seja, o da contradição interna entre uma consciência que sabe e uma consciência que nega seu saber? Isto é, a divisão interna entre a clara e total consciência que se tem de uma dada situação e, diante do sentimento ou da percepção da impossibilidade de transformá-la (apesar de conhecê-la), o surgimento de uma segunda consciência, um segundo discurso, uma segunda prática que negam ou anulam aquilo que realmente se sabe. Levar em conta esse fenômeno não seria enfrentar cara a cara o enigma da dominação? Não seria mais rica (em termos pedagógicos, políticos e históricos) uma pedagogia que percebesse e interrogasse esse fenômeno no qual um saber real, uma consciência verdadeira das condições objetivas, é sufocado internamente sob o peso da adversidade que impede a verdade conhecida e reconhecida de propagar-se numa prática e que, ao contrário, cinde essa consciência que sabe fazendo-a produzir atos e discurso negadores de seu saber? Em lugar de nos comprazermos no maniqueísmo apaziguador de certas dicotomias, nas quais tanto a ignorância quanto a verdade vêm de fora, tanto o mal (a opressão) quanto o bem (a liberação) também vêm de fora, não seria mais rica uma pedagogia que levasse a sério o fenômeno da consciência contraditória? Por que essa pedagogia seria mais rica (poderíamos mesmo dizer: libertária)? Porque a contradição sendo interna (tanto no aluno quanto no professor), pode pôr-se em movimento por si mesma sem que precise aguardar a ação de um "bom" motor-imóvel para movê-la, tirando-a da suposta passividade para levá-la a uma não menos suposta atividade. Uma pedagogia desse tipo não seria iluminista, intervencionista, dirigista, mas tentaria captar aqueles momentos objetivos e subjetivos nos quais a contradição possa vir a explicitar-se. Não se trata de um espontaneísmo aguardando que cada um faça quando puder e como puder a autodescoberta de suas contradições; trata-se apenas de uma pedagogia capaz de criar condições (o que pode ser obra tanto dos alunos, quanto do professor, quanto de todos) para que a descoberta possa acontecer. ...

h) O que seria o professor?

Platão diria: aquele capaz de fazer com que o outro se lembre da verdade, reconhecendo-a. Rousseau diria: aquele capaz de fazer da cultura uma astúcia que reproduza, por novos caminhos, a vida natural perdida. Kant diria: o que traz as luzes, ensinando a pensar em lugar de fornecer pensamentos. O jesuíta disse: aquele capaz de estabelecer uma distância absoluta entre o conhecimento e o real, ensinando, por exemplo, a crianças que falam o português o latim por meio das regras da gramática latina. Hegel diria: aquele capaz de fazer lembrar e trazer as luzes, respeitando as etapas de desenvolvimento da consciência. Victor Cousin disse: um funcionário posto pelo Estado a fim de transmitir moral e civismo formando espíritos aptos necessários ao próprio Estado. Um marxista perguntaria: quem educa o educador? Paulo Freire disse: aquele capaz de conscientizar, revelar a opressão e anular a colonização.

Essa multiplicidade de afirmações díspares (quase um samba do crioulo doido) e abstratas, pois foram feitas sem qualquer consideração do contexto histórico que as solicitava, tem apenas a finalidade de um lembrete óbvio: quando propomos uma pedagogia, além de possuirmos determinadas ideias acerca do conhecimento e de sua transmissão e uma ideia acerca do aluno, qual o professor que pressupomos?

Na qualidade de professora e de alguém que há pouco fez sugestões pedagógicas a partir da visão do aluno como consciência contraditória, sinto-me na obrigação de explicitar brevemente qual seria o professor aqui pressuposto. Gostaria de adiantar que se trata de um professor utópico. Por utópico não entendo ideal e impossível, pois a utopia não é isto. Trata-se de um professor que é utópico porque ora pode existir, ora pode desaparecer, cuja permanência é fugaz porque, como seus alunos, também é uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo. É um professor possível (e não provável), isto é, que tanto pode existir quanto não existir, tudo dependendo das condições contingentes de seu trabalho. É, portanto, um professor que não possui modelos para imitar porque aceitou a contingência radical da experiência pedagógica.

O trabalho pedagógico, por ser um trabalho, não é transmissão de conhecimento (para isto existem outros instrumentos), mas também não é um diálogo, uma comunicação intersubjetiva entre o professor e seus alunos. O professor trabalha para suprimir a figura do aluno enquanto aluno, isto é, o trabalho pedagógico se efetua para fazer com que a figura do estudante desapareça. Para isto, o professor precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça vazio, pois seu trabalho é tornar impossível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão excluídos dele e que aspiram por ele e pelo qual não poderiam aspirar se já estivesse preenchido por um senhor e mestre. Porque existe o lugar do professor, mas existe como lugar vazio, todos podem desejá-lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo. A relação professor-aluno é assimétrica e sem diálogo: este se torna possível quando o aluno desaparece e em seu lugar existe o novo professor. O diálogo é o ponto de chegada, e não o ponto de partida, só se torna real quando o trabalho pedagógico termina e o professor encontra-se com o não-aluno, o outro professor, seu igual. É preciso aceitar a assimetria com rigor para não forjar a caricatura do diálogo e exercer disfarçadamente a autoridade. Ausência de diálogo não significa presença de autoridade: o lugar do professor está vazio, pois seu ocupante ali se encontra para deixá-lo através de seu próprio trabalho. Ao professor não cabe dizer: "faça como eu", mas "faça comigo". O professor de natação não pode ensinar o aluno a nadar na areia fazendo-o imitar seus gestos, mas leva-o a lançar-se n'água em sua companhia para que aprenda a nadar lutando contra as ondas, fazendo seu corpo coexistir com o corpo ondulante que o acolhe e repele, revelando que o diálogo do aluno não se trava com seu professor de natação, mas com a água. O diálogo do aluno é com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais e transmitidas pela linguagem e pelos gestos do professor, simples mediador.

Por que esse professor é utópico ou possível? Por que ora aparece, ora desaparece? Porque sua posição é muito arriscada: está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do lugar do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos. Uma pedagogia crítica deveria interrogar esse risco cotidiano: de onde vem e por que vem a sedução de tornar-se guru? De onde vem e por que vem em nós e nos alunos o desejo de que haja um Mestre, o apelo à figura da autoridade? E por que, divididos que somos, não cessamos de ter consciência desse risco e dessa sedução sem cessarmos de agir para promovê-los? Que forma mais sutil poderia haver para reconciliar nossa divisão do que fazer com que os alunos dialoguem conosco, e não com o pensamento e com o mundo que os rodeia, dissimulando nesse diálogo imaginário o deslocamento operado para conduzir a assimetria real até uma simetria ilusória? A ideologia não está fora de nós como um poder perverso que falseia nossas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez porque tenhamos boas intenções.

 

1 Este texto tem origem numa conferência realizada na Faculdade de Educação da Unicamp em novembro de 1979. Conservado o tom oral da exposição, foi publicado em 1980 na revista Educação e Sociedade, 5, 24-41. Por considerar que alguns dos temas propostos e analisados pela autora são extremamente pertinentes para aqueles que se dispõem a refletir sobre o processo de formação do psicanalista na atualidade, a Comissão Editorial do Jornal de Psicanálise decidiu republicá-lo parcialmente, com o propósito de oferecer mais subsídios teóricos para o aprofundamento daquela reflexão. Assim, dos vários temas enumerados, selecionamos aqueles que mais diretamente dizem respeito à nossa formação.
2 Professora Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
3 Os itens de b a f joram suprimidos pois não faziam conjunto com o tema do Jornal. (N. da E.)

 

 

1 Agradeço o convite da equipe do Jornal para efetuar este depoimento.
2 Agradeço o apoio generoso de S. Schaffa e L. C. Menezes, para dar sequência ao legado deixado por ambos. Como também agradeço a Leda Barone e Alice Arruda, que deram sequência a todo este trabalho, na equipe editorial que nos substituiu.
3 O volume 35. 4 M. Chauí. "Ideologia e educação". Jornal de Psicanálise, 34 (62/63), 99-110, 2001.         [ Links ] Em razão dessa posição diante da formação, fulcro do Jornal, é que escolhi este artigo para republicação.

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