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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

AULA INAUGURAL

 

A propósito de lastro, peso e leveza na instituição psicanalítica

 

About ballast, weight, and lightness in the psychoanalytic institution

 

A propósito del lastre, peso y levedad en la institución psicoanalítica

 

À propos de lest, poids et légèreté dans l'institution psychanalytique

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. nnetti@uol.com.br

 

 


RESUMO

Tomando o mito de Perseu como ponto de referência, o autor faz um breve voo sobre a instituição psicanalítica em geral, e sobre a instituição psicanalítica paulista, ressaltando seus momentos e atos fundadores. Deles, derivariam todo o lastro e o peso institucional, sendo dever de cada um a discriminação crítica entre um e outro, para que a psicanálise possa manter seu vigor original.

Palavras-chave: lastro, peso, leveza, cidade, sujeito


ABSTRACT

Taking the myth of Perseus as the reference point for his paper, the author writes a brief overview on the psychoanalytic institution in general. When the author writes about the psychoanalytic institution of São Paulo, he emphasizes its moments and founding acts, from which all the institutional "ballast" and weight would derive. The author believes everybody must critically distinguish that ballast from that weight in order to enable Psychoanalysis to keep its original vigor.

Keywords: ballast, weight, lightness, city, subject


RESUMEN

Tomando el mito de Perseo como punto de referencia, el autor realiza un breve vuelo sobre la institución psicoanalítica en general y sobre la institución psicoanalítica paulista, resaltando sus momentos y actos fundantes. De los mismos derivarían todo el lastre y el peso institucional, siendo deber de cada uno discriminar críticamente entre ambos para que el psicoanálisis pueda mantener su vigor original.

Palabras clave: lastre, peso, levedad, ciudad, sujeto


RÉSUMÉ

Tout en prenant comme point de repère le mythe de Persée, l'auteur fait un bref survol sur l'institution psychanalytique en général, et sur l'institution psychanalytique de São Paulo en particulier, en mettant en évidence leurs moments fondateurs et leurs actions fondatrices. C'étaient de ceux-ci qui dériveraient tout le lest et le poids institutionnel, et c'était le devoir de chacun faire la discrimination critique entre l'un et l'autre, pour que la psychanalyse puisse maintenir son vigueur original.

Mots-clés: lest, poids, légèreté, ville, sujet


 

 

"Seis propostas para o próximo milênio" é o título do ciclo de conferências jamais feito por Italo Calvino na Universidade Harvard. Poucos dias antes de iniciá-lo, um infarto causou sua morte. Felizmente, para nós, cinco delas já estavam escritas em sua versão definitiva, e da última ficou apenas um esboço e o título, "Começar e acabar", como que denunciando que toda obra não é mais do que um esboço interrompido pela morte de seu criador. Disso já sabia Freud, que como testamento nos deixou o texto "Esboço de psicanálise", enfatizando que da psicanálise só tinha um esboço, a despeito de pensá-la, escrevê-la e, sobretudo, vivê-la por mais de quarenta anos. Para além de um campo por ele criado, sua obra se engrandece se a pensarmos como propostas a serem desenvolvidas ao longo dos próximos milênios. E, emergindo num momento histórico específico, é também o resultado do diálogo feito por ele com alguns milênios de pensamento e cultura humanos. Vasto, muito vasto, portanto, é o território em que nos situamos enquanto psicanalistas, muito mais amplo do que toda e qualquer instituição chamada psicanalítica é capaz de abarcar.

Assim como o ego jamais pode conter o id, nenhuma estrutura, nenhum instituto de psicanálise é capaz de contê-la, não havendo currículo que não seja apenas o esboço de algumas propostas para a clínica de todo aquele que se lança para a possibilidade desta profissão impossível. Pertencer a uma instituição psicanalítica significa ser capaz, acima de tudo, de não se deixar engessar, não se deixar encapsular pelo seu inevitável peso (força exercida sobre um corpo pela força gravitacional da Terra), mas sim dela servir-se para alçar maiores e melhores voos pela sempre desafiadora e insustentável leveza da clínica. O lastro (matéria pesada sem valor comercial que é colocada no fundo das embarcações para manter seu equilíbrio; base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa...) que a instituição - seja ela a própria estrutura organizacional, seja ela a obra ou as obras de sua referência - oferece a seus componentes não pode jamais ser confundido com o peso a ela inerente. E, para que se possa flutuar e não naufragar nessa viagem, é fundamental considerá-la em seu momento histórico próprio e o momento histórico do mundo no qual ela se insere. É fundamental considerá-la não como meta, não como casa, mas como um abrigo onde o viajante pode repousar por um tempo antes de retomar sua viagem. E, também, como praça pública, na qual desfilam, dialogam e se confrontam diferentes ideias e pensamentos.

Na primeira de suas propostas para este milênio, Calvino fala da leveza, antídoto necessário à "rede de constrições públicas e privadas que acabam envolvendo toda existência humana em nós cada vez mais estreitos". Num momento histórico como o atual, em que o reino do humano parece condenado a seu próprio peso, deve-se voar como o mítico Perseu - aquele que decapitou a Medusa, o monstro petrificador - em outro espaço, já que "só a mobilidade e a vivacidade da inteligência" são capazes de desfazer o peso inerente a nossas escolhas. E a escolha por uma profissão, por uma determinada formação, é uma delas, a que nos traz a este aqui e agora de uma aula inaugural do ano letivo de 2016 do Instituto de Psicologia da SBPSP. Voemos, então, como Perseu, utilizando nosso lastro, nossa história, como nosso Pégaso.

Tudo aquilo que se diz inaugural carrega sempre o traço e o peso daquilo que foi o originário. E em todo mito das origens, escreveu Roberto Calasso em As núpcias de Cadmo e Harmonia, há sempre o embate do herói com um monstro. Nessa luta fundadora, as partes desmembradas do monstro vencido pelo herói migram demarcando as fronteiras do novo território, a sua moldura. Ocorre que, de tempos em tempos, as partes desmembradas do monstro - lembra-nos Calasso que o monstro originário é apenas vencido, desmembrado, jamais morto - tendem a reagrupar-se, e novo embate é necessário. Com o território psicanalítico não é diferente. Para que a psicanálise possa manter sempre sua força e seu vigor originários ela precisa constantemente ser refundada por cada par analista-analisando, por cada grupo psicanalítico. Este o sentido maior da "casa em chamas" e "da estação ficar sempre a 5 minutos daqui", imagens emblemáticas dos dois sonhos de Dora, a paciente inaugural de Freud. Este o paradoxo inerente ao nosso trabalho, como o caracterizou Piera Aulagnier, num importante estudo, "Sociedades de psicanálise e psicanalistas de sociedade".

Tenho para mim a ideia de que nossa instituição passou até agora por duas refundações. Se seus primórdios remontam ao final dos anos 20 do século passado, ela se funda quando o mundo caminhava para a Segunda Guerra, com a chegada de uma refugiada judia alemã, pouco antes da morte de Freud. Neste contexto de guerra e de lutos - a perda do Pai, a perda da terra natal - e em que o mundo psicanalítico se dividia em uma corrente francesa, uma inglesa e uma americana, Adelheid Koch chega a São Paulo com a tarefa de inserir e legitimar nossos pioneiros no grupo psicanalítico internacional. "Você deve saber com certeza que a presente situação na Alemanha deixou um grande número de renomados médicos praticamente homeless. Um número deles veio aos EEUU, e alguns deles nos falam da possibilidade de se estabelecerem na América do Sul", escrevera Brill a Durval Marcondes em 1934 (Moretzsonh, 2014). Sem ainda falar português, ela começa a análise de formação de Durval Marcondes, Ligia Alcântara do Amaral e Virginia Bicudo, entre outros. Em nossa origem há, portanto, a miscigenação entre uma mulher judia europeia, um médico paulista e duas jovens mulheres não médicas, uma de tradicional família paulista, a outra neta de sicilianos, por parte materna, e de um afrobrasileiro, por linhagem paterna.

Partindo de uma base freudiana que se implanta num contexto fortemente matizado pela antropofagia modernista da intelectualidade paulistana de então, pouco a pouco, já nos anos 1950, nossa instituição vai adquirindo uma coloração kleiniana, bastante influenciada pela Sociedade Britânica: o mundo precisava esquecer seu passado alemão, e parte do mundo psicanalítico, de alguma forma, sacralizava a terra na qual morrera seu fundador. Com a diáspora dos analistas perseguidos pelo nazismo, o espólio freudiano dividia-se então em três grandes vertentes ou fratrias: a inglesa, a francesa e a americana. Virginia Bicudo vai a Londres, em 1955, buscar, em nome do grupo psicanalítico paulista, o pensamento psicanalítico "atualizado". Com sua volta, no início dos anos 1960, nos-so grupo torna-se ainda mais influenciado pelo pensamento psicanalítico inglês.

Oito anos depois, em 1968, no momento de maior fechamento de nosso país, o do Ato Institucional número 5, baixado pela ditadura militar, que parecia reagir às aberturas do mundo ocidental - o início da revolução sexual, a chegada do homem à Lua, maio de 1968 em Paris, os primeiros transplantes de órgãos -, retorna a São Paulo, também vindo da Inglaterra, Frank Phillips, que havia participado nos anos 1940 dos inícios de nosso grupo. Tendo feito sua formação na Sociedade Britânica e tendo sido analista de Virginia durante a estada desta em Londres, ele é recebido pelo grupo paulista com todas as honras, tornando-se rapidamente o analista de quase todos os analistas didatas de então. O peso da ditadura brasileira contrapondo-se às revoluções dos costumes no resto do mundo ocidental parece ter favorecido um terreno fortemente facilitador para a palavra de um europeu que dizia trazer a nova e verdadeira psicanálise; nossa instituição foi, por assim dizer, se reanalisar.

A esse momento chamo de primeira refundação de nosso grupo. Phillips e Virginia introduzem entre nós o pensamento de um outro inglês, Bion, ex-diretor do Instituto da Sociedade Britânica e ex-analista de Phillips, culminando com sua primeira visita a São Paulo em 1973. Seguiram-se mais três vindas, em 1974, 1975 e 1977. O impacto da chegada em nosso meio de um analista com obra escrita importante - na realidade, não havíamos nós, habitantes do Terceiro Mundo, sido visitados, vale dizer, reconhecidos, nem por Freud, nem por Klein, nem por Lacan - foi de tal ordem, que a instituição se "bioniza". Nosso grupo ganhava assim um reconhecimento havia muito ansiado, existindo um antes e um depois de Bion, passando seu pensamento a ser considerado, por grande parte dos membros da Sociedade, o real lastro psicanalítico e científico.

"Não se deve desconsiderar a tempestade emocional oriunda do encontro de duas personalidades", dizia Bion. Pois foram verdadeiras tempestades que se abateram sobre nosso grupo, tanto aquela que chamo de sua "bionização", quanto aquela provocada pela resistência a ela por parte de parcela do grupo. Deste embate, resultou aquilo que chamo de sua segunda refundação, nos meados dos anos 1980. Forças internas descontentes com o andamento do grupo, estimuladas por forças externas vindas da própria IPA, insurgem-se contra o que viam como cristalização e endurecimento - uma petrificação, por assim dizer - do pensamento grupal, que girava em torno de um só nome. É a partir desse momento que nossa instituição começa a ocupar cada vez mais espaço no movimento psicanalítico internacional, não apenas escutando as vozes do Primeiro Mundo, mas levando nossa própria voz e fazendo-se ouvir para além de nossas fronteiras. Esses três momentos históricos dão hoje a cara de nosso grupo: um grupo de pensamento plural, no qual convivem aqueles chamados freudianos, kleinianos, bionianos, winnicottianos, campistas e os independentes. O corpo do pai totêmico estava agora assimilado por várias fratrias. Um longo processo de mais de cinquenta anos para a elaboração de tão pesado luto.

Esse o nosso lastro, a nossa história. No entanto, para que esse lastro não se transforme em um peso que impeça o barco de seguir adiante, é fundamental que cada um de nós se utilize, dentro de nossa instituição, da mesma ferramenta básica que utilizamos em nossa clínica, a atenção flutuante. O que significa escutar não apenas os relatos, mas as melodias e as cacofonias que se atrelam a eles. Seja em nossas análises pessoais, seja nas supervisões, seja nos seminários teóricos, seja nos autores privilegiados em nosso currículo. Pois não existe grupo humano sem suas cristalizações transferenciais, como mostra nossa breve história. E é fundamental sermos capazes, a todo momento, de separar o que de fato é um insight, um pensamento significativo, daquilo que não passa de um precipitado caracterológico e transferencial vindo de nossos mestres e partindo de nós para eles.

Freud nos relata ter sonhado, na noite que precedeu o enterro de seu pai, com uma tabuleta num cemitério em que estava escrito "Pede-se fechar um olho, ou pede-se fechar os olhos". Jamais o olhar do psicanalista deve fixar-se, pois é justamente da alternância de luz e sombra que nosso presente é constituído. Ser capaz de enxergar na obscuridade do presente, não apenas aquilo que já veio iluminado por olhares anteriores, é parte da elaboração do luto que cada um de nós tem de fazer de nossas mais fortes crenças para escutar a palavra viva e contemporânea de cada paciente.

Terry Eagleton interpretando Walter Benjamin, importante crítico contemporâneo, afirma em seu livro Towards a revolutionary criticism:

O que é transmitido pela tradição não são "coisas" e muito menos "monumentos", mas situações - não artefatos solitários, mas as estratégias que os constroem e os mobilizam. Não é que nós constantemente reavaliemos a tradição; tradição é a prática de incessantemente ir escavando, curando, violando, descartando e reinscrevendo o passado. (Eagleton, 1981, p. 59)

Assim retomo o mito de Perseu e seu enfrentamento com a Medusa, o monstro que a tudo petrificava com o seu olhar. A estratégia de Perseu para derrotá-la foi não a olhar diretamente, e sim apenas através do reflexo em seu escudo. Ideia nem um pouco distante do "Pede-se fechar um olho..." do sonho de Freud e da atenção flutuante, e que deve nortear todo psicanalista no confronto diário com o humano, seja em sua clínica, seja em seu grupo de inserção. Nem petrificar o paciente pelo emprego de conceitos já conhecidos, nem se deixar petrificar pela doxa institucional. Ser capaz de lançar mão de um escudo próprio, sua própria capacidade reflexiva, não para fugir ao confronto, mas, ao contrário, para ir em direção a ele com a leveza necessária para a refundação cotidiana da psicanálise.

Pois, como nos lembrou Dora, com seus dois sonhos emblemáticos, a casa está sempre em chamas, a cidade é sempre desconhecida e a estação está sempre a 5 minutos daqui. Só depois que ela deixou Freud, no luto provocado por ter sido por ela abandonado, ele construiu o conceito de transferência, como sabemos todos, pondo em movimento sua tópica...

Como a luz proveniente de algumas estrelas que somente chega a nós muito tempo depois que elas já deixaram de existir, nossos conceitos são sempre criados em atraso. A questão posta a cada um de nós não é diferente daquela formulada por Giorgio Agamben a respeito do contemporâneo: a urgência em perceber não a luz, mas a escuridão do momento. Em nos darmos conta de que, apesar de todo o treino, nossa habilitação para o trabalho ao qual nos propomos, psicanalisar, está sempre vencida. Na percepção de que toda a iluminação proveniente de nossos mestres está, de alguma forma, sempre desatualizada em relação à fala nova e viva de qualquer analisando.

A adesão irrestrita aos conceitos dos mestres, quaisquer que sejam eles, não é mais do que uma forma de, melancolicamente, transformá-los em fetiche, deixando-nos ofuscar por seu brilho, e, pior de tudo, pretendendo encaixar nosso analisando no porta-malas de nossas transferências. Sem considerar o momento histórico e cultural em que cada conceito foi construído, somos engolfados por nosso próprio inconsciente, lugar por excelência do sagrado e da petrificação.

Digestão e assimilação dos conceitos - nosso lastro - significam profaná-los, quer dizer, perceber que eles também foram objeto de assimilação e digestão por um colega de uma geração anterior. Significam que nossa casa está sempre em chamas, como a do sonho de Dora, e que a estação, o estacionamento está sempre a 5 minutos daqui.

Tenho vivido nestes últimos meses um fato inédito, nestes mais de quarenta anos de clínica: a questão pública tem chegado antes da privada. Num movimento que tem vindo num "crescendo", os analisandos têm chegado às sessões falando em primeiro lugar da política brasileira. Só depois dessa "catarse" inicial e especial, voltam-se para sua vida privada. Fato que me faz repensar a questão do sujeito psicanalítico, retomada que já havia sido deflagrada pelos acontecimentos do setembro de 2001.

Nesse momento em que há um vácuo, um vazio, no governo - o trono vazio -, fica evidente que a fronteira entre o público e o privado se dissolve. Cada um de nós precisa realizar um trabalho inconsciente para restabelecê-la. Isto é, precisa de algum modo se ocupar das questões de "Estado" para, só depois, se ocupar de suas questões individuais. E isso evidencia que aquilo que chamamos de sujeito ultrapassa a clássica situação edípica, a triangulação familiar. A cidade, a pólis - e a Esfinge estava às portas de Tebas -, é a outra perna, o outro e importante fator constituinte desse sujeito.

O ponto que desejo ressaltar é quão pouco temos trabalhado com essa perspectiva. Praticamente, excetuando-se os trabalhos chamados de "culturais" de Freud, a bibliografia que temos é ainda bastante pequena. Um pouco em Lacan, um pouco em Viñar, um pouco em Fabio Herrmann. E é esse o território que necessitamos profanar com urgência.

Cito Agamben (2016):

Em um livro importante, Simondon escreveu que o homem é, por assim dizer, um ser de duas fases, que resulta da dialética entre uma parte não individualizada e impessoal e uma parte individual e pessoal. O pré-individual não é um passado cronológico que, em um certo ponto, se realiza e se resolve no indivíduo: ele coexiste com ele e lhe é irreduzível. (p. 56)

É também nesse trabalho que Agamben aponta para a necessidade que cada nova geração tem de fazer "realizar" aquilo que ainda está em "potencial" nas grandes obras.

O fato que quero enfatizar agora é o quanto não temos dado a importância devida aos aportes preciosos e fundamentais de Freud - "Totem e tabu", "Psicologia das massas e natureza do ego", "Moisés e o monoteísmo" -, justamente por serem eles seus textos mais incomodativos, mais provocadores, pelo simples motivo de jogarem o sujeito para além de seu núcleo familiar, para além da triangulação edípica. Um território difícil, assustador e perigoso, sagrado por excelência. Para além da relação mãe-bebê, já que, se não existe bebê sem mãe, como nos disse Winnicott, não existe mãe sem pólis...

É esse potencial freudiano que precisa urgentemente ser desenvolvido - nossas habilitações estão vencidas dessa perspectiva -, e é para isto que as falas de nossos analisandos hoje nos convocam. Sejam elas vindas de um país desgovernado, sejam elas vindas de um mundo globalizado. Mais de um século depois de nosso momento originário, a tarefa que se nos impõe é refletir criticamente sobre as teorias consagradas, e não as aplicar de forma recitativa. Num belíssimo poema, "Viek mei", Ossip Mandelshtam1 fala da fratura entre um século e outro, usa a figura da coluna vertebral fraturada da fera, o monstro, para falar do embate do homem com seu mundo em seu tempo. Haroldo de Campos traduziu-o como "A era": "Minha era, minha fera, quem ousa, olhando nos teus olhos, com sangue, Colar a coluna de tuas vértebras?" (Mandelshtam, 1923).

Um aggiornamento de nosso pensamento é necessário para que a "peste" trazida por nosso fundador ainda guarde seu potencial transformador, sua virulência. Num momento em que se apagam as fronteiras, ou, dizendo de outro modo, num momento histórico que denuncia as fronteiras como acordos passageiros e fictícios, e as fraturas de nosso conhecimento ficam mais evidentes, não faz mais tanto sentido pensarmos numa tópica - um inconsciente recalcado. Aquilo que era guardado no inconsciente está hoje posto nas nuvens, as clouds, enfatizando que mundo interno e mundo externo são vasos mais que comunicantes. Essa, a meu ver, é a única forma de manter a vocação original da psicanálise. Esta a tarefa que a instituição psicanalítica espera de todo aquele que hoje, como vocês, bate à sua porta. Nós contamos com vocês para continuar a navegação e o voo neste vastíssimo e inconquistável território, pois a casa continua em chamas e a estação a 5 minutos daqui. E a Esfinge, às portas de nossas cidades - ainda e sempre desconhecidas.

 

Referências

Agamben, G. (2016). Che cosa è l'atto di creazione? Macerata, Itália: Quodlibet.         [ Links ]

Aulagnier, P. (1990). Sociedades de psicanálise e psicanalista de sociedade. In: P. Aulagnier. Um intérprete em busca de sentido (Vol. 1, pp. 59-100). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Calasso, R. (1990). As núpcias de Cadmo e Harmonia. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Calvino, I. (2015). Lezione Americane. Roma: Oscar Mondadori.         [ Links ]

Mandelshtam, O. (1923). A era (H. Campos, trad.). http://portal.mpc.rs.gov.br/portal/page/portal/noticias_internet/textos_diversos_pente_fino/OssipMandelshtam.pdf.         [ Links ]

Eagleton, T. (1981). Towards a revolutionary criticism. Norfolk: Thetford.         [ Links ]

Moretzsonh, M. A. (2014). De Bergasse a Villa Nova: uma aventura vienense na pauliceia desvairada. Jornal de Psicanálise, 47(87),251-260.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/2/2016
Aceito em: 29/2/2016

 

 

1 Poeta russo.

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