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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

TEMA: A POLÍTICA DA FORMAÇÃO NA INSTITUIÇÃO PSICANALÍTICA

 

Analistas formatados não podem sonhar

 

"Formatted" (or conventional) analysts cannot dream

 

Analistas formateados no pueden soñar

 

Des analystes formatés ne peuvent pas rêver

 

 

Julio Hirschhorn Gheller

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. juliohg@uol.com.br

 

 


RESUMO

O autor trata de questões do estilo de ensino nos institutos, ressaltando a importância de incentivar-se a criatividade dos analistas em formação. Sugere que, desde cedo, participem das discussões em reuniões científicas, tendo em vista o desenvolvimento de suas potencialidades. Enfatiza que cada um deve procurar estabelecer a sua própria identidade psicanalítica. Faz considerações sobre o preconceito contra psicanalistas homossexuais como um modelo para pensar a respeito da rigidez dos padrões idealizados para o perfil do analista.

Palavras-chave: castração, criatividade, homossexualidade, perversão, recusa


ABSTRACT

The author writes about training issues in psychoanalytic institutes. He emphasizes the importance of encouraging the creativity of analysts who are in psychoanalytic training. The author also suggests that psychoanalysts, from the early stage in their careers, should take part in discussions at scientific meetings in order to develop their potential. He emphasizes that each analyst should have the purpose of establishing their own psychoanalytic identity. The author comments on the prejudice against homosexual psychoanalysts; he takes this prejudice as a model to think about the rigidity of idealized standards for the psychoanalyst's profile.

Keywords: castration, creativity, homosexuality, perversion, disavowal


RESUMEN

El autor trata de temas de formación en los institutos, enfatizando la importancia de fomentar la creatividad de los analistas en formación. Sugiere que participen desde el principio de discusiones en reuniones científicas con el fin de desarrollar su potencial. Enfatiza que cada uno debe tratar de establecer su propia identidad psicoanalítica. Plantea consideraciones sobre los prejuicios existentes relativos a los psicoanalistas homosexuales, como un modelo para pensar acerca de la rigidez de las normas idealizadas para el perfil del analista.

Palabras clave: castración, creatividad, homosexualidad, perversión, renegación


RÉSUMÉ

L'auteur traite de questions de formation dans les instituts, en soulignant l'importance d'encourager la créativité des analystes en formation. Il suggère que, depuis le début de leur formation, ceux-ci participent aux discussions des réunions scientifiques afin de développer leur potentiel. Il souligne que chaque analyste devrait chercher leur propre identité psychanalytique. L'auteur examine la question des préjugés contre les psychanalystes homosexuels comme un modèle pour réfléchir sur la rigidité des normes idéalisées du profil de l'analyste.

Mots-clés: castration, créativité, homosexualité, perversion, déni


 

 

Introdução

Um tema bastante discutido me chama a atenção há tempos, sendo habitualmente veiculado por meio da seguinte pergunta: "Quem é o analista que queremos formar?".

Anteriormente considerava tratar-se de indagação indubitavelmente pertinente. Ocorre que a minha compreensão foi-se ampliando, especialmente em relação a um ponto que talvez ficasse obscurecido no referido questionamento. Embora o rigor na formação mereça ser enfatizado, um aspecto importante pode estar sendo subestimado. Trata-se do fundamental incentivo para a expressão da criatividade dos novos analistas, cuja singularidade deve prevalecer sobre a necessidade de seguir determinados modelos tidos como mais adequados.

 

Reminiscências

Ao iniciar a formação, na década de 1990, eu já vinha trabalhando como psicoterapeuta havia vinte anos. No entanto, ao começar os cursos, fui envolvido e tomado por um clima de respeito - justíssimo, porém, até certo ponto excessivo - pelos mais antigos. Estes representavam o saber, deviam ser escutados, e aos candidatos cabia esperar por seu desenvolvimento, algo que viria no devido tempo. Isso implicava uma atitude de reserva, assistindo a reuniões científicas sem participação ativa, denotando reverência para com os mestres, especialmente em relação aos analistas didatas. Como exemplo dos efeitos de uma influência inibidora de espontaneidade, lembro que, ao escrever o primeiro relatório, cogitei incluir nas referências bibliográficas textos de todos os grandes autores como Freud, Klein, Bion e Winnicott. Seria uma forma de agradar a gregos e troianos. Entenda-se por aí a tentativa de ser aceito pelos principais grupos da Sociedade. Era o indício de um clima persecutório, que não se explicava apenas pela minha ansiedade de candidato. Uma parte dessa "paranoia" era causada por elementos da cultura vigente no ambiente. Por vezes transparecia certo acirramento nas posições divergentes entre representantes de distintas escolas. Nem sempre ficava claro o respeito à diversidade de pensamento, desejável no âmbito de uma instituição psicanalítica. Ressalto que não creio que se tratasse de uma prerrogativa exclusiva da minha sociedade, a SBPSP, nem do Brasil. A renomada psicanalista inglesa Betty Joseph, convidada para um evento em São Paulo, interrompeu - diante de um auditório lotado e após tecer várias críticas - a supervisão do material clínico de um colega nosso, afirmando que as interpretações por ele comunicadas eram uma produção de sua cabeça, não tendo necessariamente a ver com o paciente. Ela categoricamente diagnosticava uma questão contratransferencial mal elaborada pelo analista, desqualificando suas intervenções na sessão.

Nos primeiros anos de Instituto eu tendia à idealização de minha analista e esperava pela aprovação do supervisor, o que indicava vestígios de uma infantilização claramente defasada de meu momento de vida. Por um lado, poder-se-ia dizer que a transferência estava bem instalada, propiciando uma produtiva regressão no setting analítico, o que permitia um trabalho mais minucioso em relação a pontos pouco aprofundados em análises anteriores. Por outro lado, os elementos transferenciais para com a instituição, evidenciados por timidez e inibição no meio societário, eram desfavoráveis ao crescimento mental. Foi possível dar-me conta disso - felizmente - ainda no decorrer da análise. Ao constatar certas divergências entre minhas ideias e as da analista, fui compreendendo quão importante era pensar com autonomia. Eu não pretendia ser um mero replicante, derivado do modelo que ela representava. Ela era uma decana da Sociedade, tratada por todos com merecida deferência, mas situada, assim como outros de seus contemporâneos, em uma espécie de pedestal acima dos mortais comuns. Ora, mesmo com toda a minha admiração e gratidão por ela, pude - graças ao desenvolvimento da própria análise - passar a enxergá-la, bem como a esses outros decanos, como os seres humanos que, obviamente, eram. Seres humanos respeitáveis, mas relativos e falíveis, dotados de virtudes e também de limitações. Essa mudança em meu olhar significou um momento de inflexão na análise. A sensação anterior - de estar sendo analisado por uma figura idealizada do Olimpo psicanalítico - embutia um componente persecutório, prejudicando, até certo ponto, a liberdade de pensamento. O que me valeu foi ter a ajuda de uma analista humana, encarnada e - apenas e tão somente - suficientemente boa. Gradativamente fui-me conscientizando de várias de nossas diferenças. Pensar diferentemente dela sobre algumas questões que surgiam em nossas conversas não impedia que eu pudesse me beneficiar de nossa fértil parceria. Possibilitava, isto sim, que eu me percebesse como possuidor de um pensamento próprio.

Nesse movimento e já na segunda supervisão, experimentei o desejo de ficar mais independente. Queria escrever o relatório sem interferência do supervisor. Este, em sintonia com minha aspiração, deixou-me à vontade. Esta sua atitude não era regra geral nas supervisões didáticas. Assinalo que, se os candidatos forem, indistintamente, tratados como imaturos, inexperientes e "pouco analisados", irá predominar a tendência de prolongar seu processo de desenvolvimento. A mensagem subjacente seria "afinal, eles podem esperar porque a vez deles vai chegar", revelando uma forma de tratá-los como profissionais ainda despreparados. A opção atual pelo termo "membro filiado" em substituição ao uso da palavra "candidato" tem como intenção dar mais respeitabilidade ao status de analista em formação. Particularmente, penso que a antiga denominação, já consagrada pelo uso, não era necessariamente depreciativa, e a mudança - por mais politicamente correta que seja - não garante uma autêntica atitude de consideração para com quem está começando a carreira de psicanalista. O que importa realmente é dar espaço para que a formação possa desenvolver-se sem obstáculos excessivos.

Otto Kernberg (1996), em um famoso artigo, propôs-se, ironicamente, a descrever trinta métodos para destruir a criatividade dos futuros psicanalistas. O que ele criticava em seu cerne era o estabelecimento de barreiras que retardavam o avanço dos candidatos: ora pelo assinalamento de demasiadas ressalvas em seus trabalhos escritos, ora pela ênfase nos equívocos em seu desempenho clínico, ora pelo endurecimento exagerado dos critérios de passagem e qualificação para outras categorias. A inegável importância do estudo teórico não deveria resultar em acentuados gargalos no ritmo de progressão dentro dos institutos. Sublinho a importância do incentivo aos novos analistas, permitindo que expressem seus pensamentos, associações, impressões e hipóteses clínicas nas reuniões de que participam. Acredito que a função dos coordenadores de seminários é estimular o interesse pelo tema em pauta e o intercâmbio de ideias. As discussões devem proporcionar condições para que todos os participantes queiram investir cada vez mais em sua formação, estimulando-os a buscar uma trajetória própria, de acordo com suas preferências teóricas. Assim, eles poderão traçar boa parte de seu percurso de aprendizado, filiando-se aos autores com que mais se identificam. Especialmente nos seminários clínicos, eles devem ser encorajados a "sonhar" o material apresentado, ousando apresentar conjecturas baseadas na sua compreensão psicodinâmica, seguindo a própria intuição, ancorada nas teorias que mais lhes apetecem, sem estar necessariamente alinhados a uma única corrente de pensamento psicanalítico.

A flexibilidade para percorrer diversas trilhas de pensamento e ampliar redes de significado, contribuindo para que os pacientes possam pensar o que até então seria impensável, depende de uma formação em que essas capacidades - caracterizadas pela fluência no sonhar, representar, associar ideias e processar emoções - sejam desenvolvidas desde o início. Tendo incorporado este mode-lo, o analista poderá, no exercício profissional, propiciar a difusão do que é o maior diferencial de nosso método: permitir que cada analisando se aproprie cada vez mais, ao longo do processo analítico, de sua subjetividade.

O significado de "sonhar" a sessão foi assimilado por mim ao travar contato com as ideias de Ogden (2004b). Ele mencionava a necessidade de ajudar o paciente a sonhar sonhos não sonhados, material que, no meu entender, é proveniente do inconsciente não recalcado e demanda intervenções do tipo construção de sentido. Recomendava também que os pacientes fossem convidados a sonhar os choros (ou gritos) interrompidos, cujos conteúdos considero serem provenientes do inconsciente recalcado e que, portanto, possibilitam a interpretação do analista. Tanto a interpretação quanto a construção funcionam melhor quando criadas e elaboradas em conjunto pelo par analítico. Ogden acentuava, no relato de alguns casos, a importância da rêverie como elemento facilitador para o analista acolher as associações livres do paciente e agregar as suas próprias associações, produzindo uma expansão de sentidos. Já tratei desse tema em outro texto (Gheller, 2016), no qual discutia a evolução de minha própria capacidade de trabalho analítico, por meio de, entre outros atributos, um progressivo reconhecimento realista tanto de meu potencial como de dificuldades específicas que me limitavam, alcançando um tipo de "sabedoria" de grande valia no exercício da clínica.

 

Formatação e preconceito

Oswaldo Ferreira Leite Netto (2014) estudou e discutiu o preconceito em relação aos analistas homossexuais. O debate dessa questão resultou em acréscimos à minha reflexão sobre formação psicanalítica. A homossexualidade foi considerada durante bom tempo, talvez por influência de algumas teorias analíticas, como uma forma de defesa contra a psicose. Era classificada como condição que ficava entre a neurose e a psicose, apontando-se sua correlação com a paranoia. A neurose, sendo entendida como mais próxima da "normalidade", era naturalmente considerada como o pré-requisito para um pretendente interessado no exercício da psicanálise. Este viés persistiu mesmo depois que a própria Psiquiatria retirou o diagnóstico de homossexualismo - note-se que o sufixo ismo sugere conotação patológica - da classificação de doenças mentais.

Joyce McDougall (1983) oferece-nos generoso material clínico de seu atendimento de pacientes homossexuais com comportamentos regidos por mecanismos derivados de traços perversos de personalidade. Ela assinala nos comentários de algumas vinhetas clínicas que o indivíduo homossexual nega a diferença e complementaridade dos sexos, aspecto que se aplica realmente em muitos casos, mas que, penso eu, não deveria ser tomado como irredutível à exploração analítica. Trata-se de uma teorização baseada em elementos do referencial lacaniano. Lacan conceitua a perversão como estrutura psíquica diferenciada, distinta da neurose e da psicose, caracterizando-se pela recusa da castração e abrangendo o significado de uma espécie de desafio constante à lei. Feita esta contextualização, considero a obra de McDougall muito rica em termos de permitir o entendimento do que seria a estrutura perversa, própria dos indivíduos que recusam a castração. Ela acabou por não se restringir à rigidez do conjunto tripartite constituído por neurose, psicose e perversão. Criou os conceitos de neossexualidade e sexualidade aditiva para formas de sexualidade perversa, as quais, em função de rituais e enredos compulsivos, que demandam insistentemente um tipo preferencial - frequentemente exclusivo - de satisfação, lembram a adição a drogas. A partir de sua leitura, fui levado a pensar que o olhar psicanalítico deveria dirigir-se para uma clínica do desejo, voltada para a compreensão dos inúmeros sentidos peculiares, envolvidos nas distintas manifestações sexuais que expressam a subjetividade de cada indivíduo.

Pesquisando o Dicionário de psicanálise de Plon e Roudinesco, especialmente nos verbetes sobre Lacan (pp. 445-451), homossexualidade (pp. 350355), perversão (pp. 583-587), fetichismo (pp. 235-238) e renegação (p. 656), encontrei contribuições preciosas para essas elaborações. Os aprofundamentos de Lacan e seus discípulos franceses possibilitaram um alcance maior do significado do conceito de perversão. Penso que cada sujeito pode e deve ser analisado de acordo com sua singular especificidade, até mesmo nas características perversas. Estas não são exclusivas de uma única orientação sexual nem devem ser consideradas como não analisáveis. Analisar não significa necessariamente "curar" no sentido de eliminar um traço, mas sim explorar os aspectos peculiares de cada paciente da forma mais completa possível, deixando ao sujeito a escolha do que quer fazer com base na reflexão analítica.

Lacan divergiu da perseguição contra os homossexuais na IPA. Não impediu que seguissem a formação e se tornassem analistas, independentemente de sua concepção teórica de estruturas psíquicas que os incluiria no quadro da perversão. Isso não acarretava, necessariamente, conotação depreciativa. Até por uma questão de bom senso, sabemos que a heterossexualidade não é condição suficiente para ser um bom analista. Seria, porventura, uma condição necessária? É incorreto afirmar que um indivíduo homossexual não pode ser bem analisado. Da mesma forma, seria uma arbitrariedade postular que ele não possa ser dotado de sensibilidade, criatividade, flexibilidade mental, capacidade de sintonia, escuta e acolhimento. Nada impede que ele faça uma boa formação e se prepare condignamente para o exercício de analista. Há um extenso conjunto de interpretações psicanalíticas sobre a homossexualidade, algumas mais antigas indicando núcleos psicopatológicos de base, coloridos por elementos de sadismo. A experiência clínica me ensina, por vezes, o óbvio. Isto é, que cada caso é um caso, havendo nuances e sutilezas específicas para cada paciente, no que tange à origem e à forma de tudo aquilo que expressa a sua inclinação libidinal. Já observei analisandos com questões narcísicas, à procura de um outro idealizado e igual, quase um espelho de si mesmo. Também tive contato com analisandos conduzidos inconscientemente por fantasias de amar e ser amado, tal como suas mães os amavam ou deveriam tê-los amado. De todo modo, qualquer que seja o fundamento psicodinâmico de sua escolha homossexual, acredito firmemente que o indivíduo poderá, no decorrer de seu processo analítico, alcançar insights e compreensão sobre esses elementos internos. Poderá constituir os alicerces mentais para lidar melhor com estes e outros de seus traços característicos.

O paciente de análise não está em busca de um tratamento cirúrgico, cuja meta seria extirpar e erradicar aspectos supostamente indesejáveis de sua personalidade. A análise favorece o autoconhecimento, com base no qual o paciente refletirá sobre suas tantas particularidades. Terá oportunidade, por seu livre-arbítrio, de empenhar-se no desenvolvimento das facetas que julgar construtivas, bem como tentar se haver com as que julgar destrutivas.

Seria, evidentemente, um grande retrocesso dar força a antigas posições "preventivo-profiláticas" do tipo barrar o acesso à formação psicanalítica de pretendentes homossexuais. Ou ainda, sutilmente, direcionar suas análises para um objetivo de reorientação heterossexual.

Contestar a afirmação da homossexualidade como impedimento para o exercício da profissão de analista ajudou-me a, ampliando a perspectiva, pensar nos riscos de a formação tornar-se uma verdadeira formatação. Uma formatação que privilegia certos modelos de comportamento, em detrimento de outros, pode reprimir o desenvolvimento da espontaneidade e singularidade do sujeito. Sendo assim, pergunto-me como um analista formatado, sem liberdade de sonhar, sem condições de ser ele mesmo, sem apropriar-se de sua essência enquanto ser humano, poderá ajudar a desabrochar tais potencialidades em seus pacientes. Relembro as palavras de Sonia Azambuja (2006), antiga diretora do Instituto da SBPSP, em seu comentário segundo o qual a interpretação - sempre que possível - representaria uma presença inspiradora, destacando-se pelo seu atributo essencial de estímulo à produção própria e autônoma do paciente.

No entanto, com alguma frequência, os analistas, por seu estilo pessoal, deixam de ser inspiradores.

 

Estereótipos e clichês

Tomo a liberdade de dar asas à imaginação para delinear, com uma leve dose de humor, o perfil do que seria o estereótipo de um analista "adequado". Certas configurações foram tradicionalmente valorizadas e idealizadas: o analista casado em uma união duradoura, bom pai (ou mãe) de família, calmo, ponderado, de poucas palavras e discreto. Estas características, evidentemente, não são ruins em si, mas podem estar a serviço de uma tendência à padronização, resultando em indivíduos menos livres e criativos em sua atividade como clínicos, supervisores e professores. Com o tempo, o analista desse modelo pode evoluir para um patamar mais alto, o de guardião de um conhecimento profundo, exibindo um charmoso traço enigmático, atributo dos que possuem a chave de acesso aos mistérios mais insondáveis da alma humana. Nesse ponto, ele se permitiria não dizer nada muito claro para os analisandos, supervisionandos e alunos, a não ser breves pistas de seu pensamento, cabendo aos seguidores desvendar suas ideias e propagar seus ensinamentos.

Outros optam por um estilo franciscano, com ênfase na sensatez, comedimento e despojamento, como indicação de uma profunda sabedoria acumulada durante anos.

Nesses casos, correríamos o indesejável risco do surgimento de gurus com suas seitas de aficionados, em vez de, simplesmente, contarmos com colegas mais experientes dispostos a transmitir seus conhecimentos para as gerações seguintes.

Sem intervenções claras e, até mesmo, incisivas, os processos analíticos podem tornar-se estéreis. Estaremos fornecendo munição para os detratores da psicanálise, aqueles que recomendam psicoterapias superficiais e breves - mais sintonizadas com a Psiquiatria e o uso de psicofármacos -, vendendo a ilusão de um bem-estar sem promover o pensar.

 

Considerações finais

Existem analistas que, desde cedo, revelam grande capacidade de intuição, escuta, sintonia e percepção. O tempo traz experiência, mas não é condição necessariamente determinante destas qualidades. O fundamental é uma disposição para deixar-se tocar pelo sofrimento do outro. A par disso, uma abertura para a vida, a pulsão para o conhecimento, o interesse pelas artes em geral, literatura, cinema e ciências humanas contribuem para a constituição de um acervo pessoal a ser disponibilizado no contato íntimo que se estabelece em um processo analítico. Tudo isso vai promover a condição para atingir-se um objetivo defendido por Luiz Meyer (2015). Na forma de diálogo imaginário com um colega mais novo, acentua que a escuta analítica é voltada para a compreensão da dinâmica inconsciente, implicando o afastamento da busca causalista por explicações. Menciona ideias semelhantes de Marion Minerbo (2015), que, em conversa igualmente imaginária com um colega menos experiente, orienta-o a compreender a diferença entre escutar o adulto e escutar a criança-no-adulto. Vale salientar que essas recomendações nos remetem - e insisto nesse ponto - ao amplo uso da atenção flutuante e à relevância da liberdade e flexibilidade do analista ao metabolizar o material que recebe do analisando, tendo sempre em vista a possibilidade de expandir o campo de significados.

Abordando o tema da criatividade, noto que nossos trabalhos escritos, por vezes, apresentam um estilo parecido: epígrafes iniciais, citações de algum filósofo ou literato, observações clínicas que se assemelham entre si, talvez por influência de mestres que moldam seus discípulos. Há, não raro, um tom que valoriza a generosidade, tolerância e capacidade de acolhimento dos analistas, virtudes necessárias, mas não suficientes para promover a expansão de sentidos. A falta de originalidade, de uma centelha de luz própria implica a produção de textos que parecem ter passado por processo de pasteurização. A forma pela qual alguém escreve indica como esse alguém pensa e trabalha.

Por último, enfatizo que o essencial na análise é a oferta de suporte para que o paciente possa ir-se constituindo como sujeito e de continência para ajudá-lo a processar emoções, transformando-as em material pensável, utilizável no desenvolvimento de sua capacidade de reflexão e elaboração. A importante distinção entre holding (conceito de Winnicott) e continente (conceito de Bion) me foi apresentada por Ogden (2004a), enfatizando a fundamental complementaridade entre estes na clínica. Torna-se difícil cumprir esta tarefa quando faltam ao próprio analista as condições de plasticidade mental e criatividade para sonhar a experiência emocional na relação com o analisando. Ressalto, portanto, a importância de fugirmos de modelos engessantes e idealizações estereotipadas. Neste sentido, manifesto-me em favor de uma formação não formatada, respeitando a singularidade do indivíduo e permitindo-lhe seguir seu legítimo caminho, aquele que ele queira e possa genuinamente escolher.

 

Referências

Azambuja, S. (2006). A interpretação na experiência clínica. In S. Azambuja, Presenças e ausências, parceiras na simbolização (pp. 83-96). São Paulo: HePsykhe. (Trabalho original publicado em 1988)        [ Links ]

Ferreira Leite Netto, O. (2014). Psicanalistas diante da questão homossexual: perplexidade? In Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1),81-92.         [ Links ]

Gheller, J. H. (2016). Dilemas do analista. Revista Brasileira de Psicanálise, 50(3),45-59.         [ Links ]

Kernberg, O. (1996). Trinta métodos para destruir a criatividade dos candidatos a psicanalistas. Livro Anual de Psicanálise, 12,151-160. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

McDougall, J. (1983). A cena sexual e o espectador anônimo. In J. McDougall, Em defesa de uma certa anormalidade (C. E. Reis, trad., pp. 17-31). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1978)        [ Links ]

Meyer, L. (2015). Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista. Jornal de Psicanálise, 48(89),203-218.         [ Links ]

Minerbo, M. (2015). Escuta analítica: diálogo com uma jovem colega. Jornal de Psicanálise, 48(89),219-237.         [ Links ]

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Ogden, T. (2004b). This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. The International Journal of Psychoanalysis, 85(4),857-877.         [ Links ]

Roudinesco, E.; Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1997)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/5/2016
Aceito em: 14/9/2016

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