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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dic. 2016

 

TEMA: A POLÍTICA DA FORMAÇÃO NA INSTITUIÇÃO PSICANALÍTICA

 

Transmissão da teoria na formação analítica1

 

Transmitting theory in psychoanalytic training

 

Transmisión de la teoría en la formación analítica

 

La transmission de la théorie dans la formation analytique

 

 

Carlos Fernando dos Santos Motta

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, SBPRJ, Rio de Janeiro. carlosfsmotta@me.com

 

 


RESUMO

O autor busca pensar a questão da transmissão da psicanálise em coerência com o discurso analítico. E busca refletir sobre a relação entre saber e angústia, tendo como conceito de referência a pulsão de morte.

Palavras-chave: transmissão teórica, formação analítica


ABSTRACT

This paper attempts to study the transmission of Psychoanalysis in coherence with the psychoanalytic speech. The paper also shows the author's thoughts about the relation between knowledge and anguish. In those reflections, death drive is taken as a reference concept.

Keywords: theoretical transmission, psychoanalytic training


RESUMEN

El autor busca pensar la cuestión de la transmisión del psicoanálisis en consonancia con el discurso analítico. Y reflexiona sobre la relación entre el conocimiento y la angustia, tomando como referente el concepto de pulsión de muerte.

Palabras clave: transmisión teórica, formación analítica


RÉSUMÉ

L'auteur essaie de penser la question de la transmission de la psychanalyse, mise en accord avec le discours analytique. Et il réfléchit sur le rôle de la théorie dans l'activité analytique et le rapport entre la connaissance et l'anxiété.

Mots-clés: transmission théorique, la formation analytique


 

 

Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.
(Goethe, citado por Freud, 1913/1969b)

A transmissão da psicanálise em uma sociedade de formação de analistas, exige, daqueles que se defrontam com a problemática relação entre o discurso psicanalítico e a institucionalização da psicanálise, uma contínua elaboração dos impasses inerentes a essa relação.

Em que pese o valor fundamental da análise pessoal, todas as instâncias da formação são atravessadas por identificações, idealizações, resistências, injunções superegoicas e tantas outras questões analíticas que precisam ser consideradas no próprio processo de transmissão.

Para quem se propõe à transmissão teórica, essa consideração é igualmente importante, pois, à diferença de uma transmissão universitária que objetiva um saber, o objetivo último é propiciar o desenvolvimento de um pensamento clínico singular embasado por uma trama conceitual que permita uma reflexão metapsicológica. A transmissão teórica exige esse "conquista-o para fazê-lo teu", que implica processos de assimilação e subjetivação da trama conceitual que vão além da apreensão intelectual, e que permitam, em consonância com o próprio processo da análise pessoal, um entendimento que passe por uma assimilação que se poderia dizer afetiva, da teoria. O que traz duas decorrências. A relação entre a possibilidade de ocupar o lugar do analista, objetivo de toda análise de formação, com a singularidade de cada analista, igualmente objetivo de toda formação, e a relação sempre presente nesse processo, entre saber e angústia

Como disponibilizar as condições mais favoráveis a essa subjetivação conceitual da teoria? Como situar-se na transmissão teórica quanto às relações entre saber, poder, prestígio, narcisismo, mestria, discurso analítico, e tantas outras questões que permeiam de forma sutil ou não esse caminho pelo qual um sujeito se torna analista?

Hoje, com o discurso da neurociência somado à pregnância do imaginário na vida social, há uma forte tendência a se recobrir a subversão que a psicanálise promoveu, quanto à vida pulsional e às determinações inconscientes, com a tendência a redução do sujeito a um individualismo objetivado, que passa ao largo da relação constitutiva do sujeito com o Outro, relação sempre complexa e singular, em que a psicanálise descobriu seu veio de marcas e causalidades inconscientes.

Se os tempos atuais, que remetem à leitura de "Por que a guerra", exigem uma política de fortalecimento das instituições analíticas, ligada à difusão e à permanência do pensamento analítico, a questão da formação de analistas, repropõe ainda mais seus desafios, pois há uma relação sempre tensa, questionadora e criativa entre o pensar analítico e os discursos sobre o sujeito, mesmo e principalmente os relativos ao próprio saber analítico constituído, para que o discurso analítico não perca seu gume.

Então é necessário esse trabalho contínuo para que não se perca na transmissão o caráter subversivo e simultaneamente acolhedor que o pensar analítico propõe, para que assim se busque transmiti-la como discurso vivo na relação sempre renovada entre o saber e a angústia.

E, se partimos dessa relação constitutiva do sujeito com o Outro, como pensá-la nas várias instâncias da formação, no que ela potencialmente tem de advento ou alienação?

Qual lugar ocupar na transmissão teórica para que essa não se limite a uma passagem de saber, mas que leve a uma produção de saber?

Os chamados seminários teóricos numa sociedade de psicanálise não se limitam a uma transmissão que tem a teoria como objeto. Eles são necessariamente seminários teórico-clínicos.

Como fazer na transmissão com que os conceitos possam ser articulados como elementos férteis para o trabalho clínico? De que forma propiciar que essa internalização faça brotar do sujeito um modo próprio de articulação que leve a um pensamento teórico-clínico singular?

São questões que parecem dadas a priori, mas que passam pela relação que aquele que propõe um seminário tem com o saber.

Nessa direção, é fundamental que quem se proponha à transmissão seja atravessado pela experiência analítica, que tenha a experiência do furo no saber, no que ele traz de angústia, elaboração e impossibilidade.

Creio que como ponto de partida, temos que deixar sempre explícito nos seminários que aquilo que suscita o desenvolvimento teórico, mesmo nas teorias mais complexas, não é uma especulação intelectual (apesar do pensamento metapsicológico, mais abstrato), mas o Real da clínica, com seus impasses e com a abrangência do seu campo. Há uma lógica que preside o desdobramento de uma teoria, e no pensamento freudiano ela é rigorosamente determinada pelos impasses da clínica e pelas próprias questões que o pensar analítico produz.

Qual texto de Freud poderia ser descartado sem ferir um encadeamento complexo dos conceitos? Talvez apenas os voltados para a difusão da psicanálise.

A transmissão da obra freudiana, no seminário teórico-clínico, inclui a tentativa de esclarecimento da forma pela qual ela se deu. É um debruçar-se sobre sua emergência, seu desdobramento, seus impasses, seus remanejamentos, seus pontos de quase ruptura e subversão, seu crescimento, sua abrangência, seus limites. Basta pensar no potencial subversivo de alguns conceitos como o narcisismo, com todas as suas repercussões, por vezes levando ao trabalho de repensar toda a teoria que a introdução de um conceito fundamental pode determinar. De nada disso Freud se furtou, pondo sempre em questão o saber estabelecido, sem abrir mão do rigor conceitual, com uma determinação psicanalítica que vai até o fim da sua obra. Como se a teoria avançasse pela relação viva com a necessidade clínica, e que tem seu momento crucial no conceito de pulsão de morte, na virada de 20, em que há uma mudança radical do estatuto do saber e do lugar da interpretação no ato analítico.

A relação imediata entre limites da representação e angústia, que a virada de 20 apresenta, levando à segunda tópica, à questão do masoquismo e do gozo e à nova teoria sobre a angústia, implica que toda transmissão se dê, não apenas pela relação entre saber e não saber, mas por relação ao impossível que a pulsão de morte traz.

Esse impossível deve impactar a transmissão e as instituições, propiciando no analista em formação tanto o desenvolvimento de uma capacidade de interpretação simbólica das representações, como uma capacidade de não interpretação, que exija dele outra relação com a angústia, que leve a possibilidades de "invenção" e de ato analítico. O que tira o analista da neutralidade e de uma concepção de transferência de representações inconscientes e exige um outro engajamento, não técnico, mas ético. A pulsão de morte muda a questão do lugar do analista e de sua "presença" transferencial.

Esse impossível vai estar ou não implícito nas várias instâncias da formação, como marca do saber analítico, que, ao contrário de outros discursos, não tenta obturar a castração.

A questão desse furo no saber, sua "transmissão enquanto impossibilidade", tem também como uma consequência positiva a maior abertura da circunscrição de uma escola para buscar em outras formas de pensar novas possibilidades para o trabalho clínico. Uma pluralidade e uma unidade determinadas não só por uma necessária reflexão metapsicológica mais abrangente para aproximar a proliferação de teorias clínicas, mas também por esse impossível.

Fica implícito que a transmissão teórica, não na universidade, mas numa sociedade de formação, tem que ser promovida necessariamente por um analista, enquanto sujeito que tem a teoria atravessada e constantemente processada pela análise pessoal e pela experiência clínica. Porém, para além da filiação a um autor, a meu ver, a transmissão é singular e vai se dar com base no lugar de inserção de cada analista no campo analítico, pois é com base nesse lugar Real para cada um que podemos verdadeiramente dizer ou transmitir alguma coisa.

O analista que transmite a teoria tem que ser causado, fisgado pela psicanálise, mas simultaneamente ter uma transferência esclarecida com o autor cujo pensamento pretende transmitir. Pois é só através da transferência com o autor e com a psicanálise que vai ser possível algo fundamental num seminário: o entusiasmo. É desse sentimento íntimo que pode brotar a transmissão, não de um saber enquanto consolidado, transmitido por uma mestria, com todos os riscos do fascínio e das identificações imaginárias, mas uma transmissão que leve a uma perlaboração conceitual, que muitas vezes suscita nos participantes do seminário um estado de emergência de questões subjetivas e clínicas, que levam a um estado de associação livre coletiva. Momentos privilegiados em que algo claramente se realiza.

É como privilegiar a transmissão mais pelo viés da causa do que pelo viés do saber constituído.

Sem o entusiasmo, a transmissão se esvazia. Lacan diz que sem ele pode haver até análise, mas não produção de um analista. Talvez se refira à assunção do desejo do analista, simultâneo aos efeitos depressivos do final da análise. É essa função de causa que torna o texto uma matéria-prima aberta em seus múltiplos veios, que permite renovadas leituras, que o faz ser inquirido e reinquirido, questionado e articulado com rigor, mas sempre testado em suas articulações e em seus pontos de impasse.

O entusiasmo é fundamental no que convoca ao saber como descoberta, como descoberta pessoal, da relação de cada um com a trama conceitual que tem sempre em aberto uma face de enigma.

Nesse sentido, os seminários, vividos numa relação mais horizontal, enquanto espaço de trabalho com o texto, enquanto transferência de trabalho dos sujeitos com os conceitos fundamentais (o que não exclui momentos de um ensino formal), podem ser, numa instituição, um lugar para um questionamento espontâneo da hierarquia institucional, e contribuir assim para elaborar o risco de assujeitamento num processo que busca, ao contrário, a singularidade. Afinal, esse processo inclui a travessia de um sintoma complexo da formação. A superação do supereu institucional, que abrange, além da proibição e do Ideal, o imperativo. Essa superação, ligada à relação do sujeito com o desejo do Outro, é o que talvez permita uma identificação resolutiva que leve ao lugar do analista e ao engajamento na ética analítica.

Essa transmissão por uma transferência de trabalho com o texto, vai exigir de cada sujeito, incluindo o que coordena o seminário teórico, um dar de si, um se deixar causar pelos conceitos, não de forma passiva, mas de um modo que eles sejam inquiridos naquilo que trazem de esclarecimento e de enigma. Seria um processo de "subjetivação da teoria", sempre articulada à vivência e ao saber produzido na análise pessoal, que afinal é o único "saber" que pode impregnar a teoria mais conceitual, e conferir o sentimento da pertinência da psicanálise.

Na transferência de trabalho, o analista que propõe o seminário também se encontra na posição de analisante causado pela teoria. E a proposta é que, mais que a expectativa de uma transferência de saber, haja uma produção de saber dos que participam do seminário.

A transferência é com o texto, mais do que com o autor, o que possibilita uma leitura, tanto dos enunciados, quanto da enunciação produzida pelo autor/sujeito. O que não quer dizer interpretação, mas dimensões da leitura.

Então, não se trata apenas de uma elaboração conceitual, mas de trabalho psíquico, de uma perlaboração que possa dar aos conceitos um potencial teórico-clínico. Perlaboração no sentido freudiano, enquanto trabalho de ligação entre ideia e afeto, com todos os remanejamentos que isso implica relativos à defesa, idealização, clivagem, intelectualização, tomar o saber como defesa ante a angústia, tomar o saber como verdade, e tantas outras questões que se põem na transmissão teórico-clínica, a serem consideradas no desenvolvimento de um pensamento clínico.

Afinal, a necessidade de um saber como verdade é uma característica da neurose. É como chegamos à psicanálise. Com essa expectativa, exatamente após perdermos nossa "verdade".

Como não responder a essa demanda e, ao modo de uma retificação subjetiva, cujo paradigma é o caso Dora, promover a produção de saber? Na análise, o manejo da transferência visa a que o paciente associe, fale e, como diz Lacan, nesse caminho da verdade que é a fala, produza um saber não sabido, o saber do inconsciente que já é um saber, pois se articula enquanto representação, como resposta ao Real pulsional.

Quanto à demanda de saber no seminário teórico, como lidar com ela se não remetendo-a ao texto e, pela função da causa subjacente ao desejo de ser analista, fazendo cada sujeito trabalhar o saber, para melhor encontrar sua função no trabalho clínico e em seu lugar de analista? O que não retira o que possa haver de ensino, de esclarecimento, de contextualização e recontextualização da obra, por parte de quem coordena um seminário. Mas sempre pelo viés de uma disjunção entre saber e verdade.

O saber de um analista é sempre o amálgama entre o saber da própria análise, o saber da experiência da clínica e da vida, e o saber textual. É desse saber em suspenso, como que inconsciente ou encarnado, que vão brotar as conjecturas e o fantasiar teórico-clínico em ressonância com o desconhecido do caso, que é sempre singular. A reflexão metapsicológica desses processos, no analista, no analisante e no campo transferencial, é essencial para pensar a questão da função da teoria na clínica, e, em decorrência, nos situar na reflexão sobre sua transmissão.

Atenção flutuante, de Freud, capacidade negativa, de Bion, e a ignorância douta, de Lacan (saber ignorar o que sabe), falam dessa suspensão do saber num primeiro momento lógico, que permita um não enquadramento aprisionante e redutivo pela teoria, para que então seja possível a emergência analítica de um saber.

A função da teoria no trabalho analítico é sempre uma questão que engloba a relação do saber com o não saber. No que isso traz implícito de uma capacidade analítica, de fazer da angústia uma bússola no trabalho analítico, por vezes mais fundamental que a teoria na direção do tratamento.

Como nas palavras do poeta John Keats, que exprime, quanto ao fazer literário, uma posição análoga à do analista, "a Capacidade Negativa, isto é, o homem que tolera incertezas, mistérios e dúvidas, sem a busca desesperada por fato ou razão". No caso do poeta, ele pensa na relação intrínseca entre a angústia e o alcance da sua poesia. A relação sublimatória entre horror e beleza.

Quanto ao analista, é a atitude para que uma análise aconteça com a angústia que ela comporta, sem a busca obliterante por fato ou razão.

Mas são grandes os apelos que levam a uma expectativa de mestria e de junção entre saber e verdade como modo de responder à angústia.

Lacan define a angústia como um afeto que não engana. Angústia ligada à presença do objeto como falta Real.

Se a questão do "sujeito suposto saber", tal como Lacan a formula, é uma ilusão por vezes necessária e constitutiva da transferência e do processo analítico, trabalha-se no sentido de uma dessuposição de saber, que leve por sua vez a uma produção de saber, mais que a uma localização de saber no Outro.

Claro que são desenvolvimentos que dependem de forma fundamental, da análise de quem se propõe a esse lugar de analista. E que passa, de forma essencial, pela análise do desejo de ser analista. É a prova da angústia. É essa prova que vai poder situar a função do saber do analista.

 

Referências

Freud, S. (1969a). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 223-270). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 13, pp. 11-163). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Lacan, J. (2011). Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Orsini, C. M. B. (2012). Leitura de Freud: um estilo de transmissão. Jornal de Psicanálise, 45(83),129-144.         [ Links ]

Schaffa, S. L. (2006). Pierre Fédida e a atualidade dos modelos freudianos: evolução da teoria e prática psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 39(71),101-123.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 2/11/2015
Aceito em: 10/11/2015

 

 

1 Trabalho apresentado no Eixo Didático do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado em São Paulo, de 29 a 31 de outubro de 2015.

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