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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

MANIFESTAÇÕES

 

Mudando de posição subjetiva diante da corrupção. Uma análise do filme Sindicato de ladrões

 

Changing the subjective position towards corruption. An analysis of the film On the Waterfront

 

Cambio de posición subjetiva frente a la corrupción. Un análisis de la película Nido de ratas

 

Changer sa position subjective face à la corruption. Une analyse du film Sur les quais

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Doutora pela UNIFESP, São Paulo. marion.minerbo@terra.com.br

 

 


RESUMO

A autora aborda a corrupção como um processo que se produz e se perpetua no entrecruzamento de três espaços psíquicos: a) individual, em que um sujeito com fortes traços paranoicos acede a uma posição de poder; b) intersubjetivo, no qual a pessoa que tem poder "enlouquece" com a ajuda das pessoas com quem convive; e c) transubjetivo, em que a desqualificação da lei é instituída e se transforma em uma cultura. Usa o filme Sindicato de ladrões (On the Waterfront, Kazan, 1954) como "material clínico" cuja análise mostra a desconstrução desse processo. Conclui que, tal como no processo analítico, a "cura" dessa patologia social se apoia na transferência com uma ou mais figuras que encarnam a lei, o que permite a mudança de posição subjetiva dos atores sociais.

Palavras-chave: corrupção, determinações psíquicas, patologia social, posição subjetiva


ABSTRACT

The author understands corruption as a process that is produced and perpetuated in the intersection of three psychic spaces: a) individual, in which a subject with strong paranoid traits holds a position of power; b) intersubjective, in which the person who holds power "goes crazy" with the help of people with whom he/she gets along; c) transsubjective, in which the disqualification of law is established and becomes a culture. The author uses the film On the Waterfront (Kazan, 1954) as "clinical material" whose analysis shows the deconstruction of this process. She concludes that, as in the psychoanalytic process, the "cure" of this social pathology is based on transference with a figure who embodies law. This transference allows social actors to change their subjective position.

Keywords: corruption, psychic determinations, social pathology, subjective position


RESUMEN

La autora aborda la corrupción como un proceso que se produce y se perpetúa en la intersección de tres espacios psíquicos: a) individual, en el cual un sujeto con fuertes rasgos paranoicos accede a una posición de poder; b) intersubjetivo, en el que la persona que tiene el poder "se vuelve loca" con ayuda de las personas con las que convive; c) institucional, donde la descalificación de la ley es instituida y se convierte en una cultura. Utiliza la película Nido de ratas (On the Waterfront, 1954) como "material clínico" cuyo análisis muestra la deconstrucción de este proceso. Llega a la conclusión que, como en el proceso de análisis, la "cura" de esta patología social se apoya en la transferencia con una o más figuras que encarnan la ley, permitiendo el cambio de posición subjetiva de los actores sociales.

Palabras clave: corrupción, determinaciones psíquicas, patología social, posición subjetiva


RÉSUMÉ

L'auteur aborde la corruption comme un processus qui se produit et se perpétue dans le carrefour de trois espaces psychiques: a) l'individuel, où le sujet ayant des forts traits paranoïaques accède à une position de pouvoir; b) l'intersubjectif, dans lequel celui qui a le pouvoir devient "fou", avec l'aide de son entourage; et c) le transubjectif, où la disqualification de la loi est instituée et devient une culture. Il utilise le film Sur les quais (On the Waterfront, Kazan, 1954) comme un "outil clinique" dont l'analyse montre la déconstruction de ce processus. Il conclue que, ainsi que le processus analytique, la "cure" de cette pathologie sociale s'étaye sur le transfert, ayant une ou plus figures qui incarnent la loi, ce qui permet le changement de la position subjective des acteurs sociaux.

Mots-clés: corruption, déterminations psychiques, pathologie sociale, position subjective


 

 

A corrupção sempre foi endêmica entre nós, mas nos últimos anos ela foi oficialmente instituída. Corromper, diferentemente de subornar, significa quebrar em pedaços, desnaturar, tornar podre. O que apodrece? No limite, as próprias instituições. Pois, uma vez instituída, a corrupção torna natural um modo de vida no qual a lei que funda o pacto social é sistematicamente desqualificada. A desconstrução desse processo depende, como veremos na análise do filme Sindicato de ladrões (On the Waterfront, Kazan, 1954), de uma mudança de posição subjetiva dos atores sociais sustentada pela transferência com figuras que encarnam a lei.

Com base no trabalho com casais e famílias, Isidoro Berenstein e Janine Puget (1997) propuseram pensar o espaço psíquico como produto de três dimensões indissociáveis: o intrapsíquico, o intersubjetivo e o transubjetivo. Pareceu-me que pensar a corrupção de um ponto de vista metapsicológico (e não sociológico ou político) implicaria necessariamente tomar em consideração essas três dimensões:

a) o psiquismo individual, em que um sujeito com fortes traços paranoicos acede a uma posição de poder (ou, acedendo a uma posição de poder, despertam-se seus traços paranoicos);

b) o espaço psíquico intersubjetivo, no qual a pessoa que tem poder "enlouquece" com a ajuda das pessoas com quem convive; e

c) o espaço psíquico transubjetivo, em que a corrupção é transformada em uma instituição e em uma cultura.

A participação de cada um desses três espaços psíquicos pode se dar em "proporções" diferentes, originando "corrupções" distintas. Respectivamente: a) como sintoma de uma estrutura patológica, b) como efeito de um "enlouquecimento" mais ou menos transitório, e c) como modo de vida. A corrupção descarada e deslavada é efeito da potencialização recíproca destes três espaços psíquicos.

Começo abordando o funcionamento paranoico ligado ao espaço psíquico individual. O termo "indivíduo" aqui se refere tanto a uma pessoa, quanto a um grupo, por exemplo, um partido político.

Psiquicamente, o paranoico não é capaz de conceber, nem de processar, situações complexas. Ele simplesmente não tem este chip. Por isso, as situações são simplificadas e reduzidas a um esquema binário no qual o bem e o mal são vividos como absolutos. Sua visão de mundo é sempre "nós, os bons, contra eles, os maus". O paranoico se percebe como perfeito, melhor do que os outros, pois é justo, correto e bom, enquanto os outros são injustos, estão errados e são do mal. Candidamente, ele se põe no centro do mundo: só existe uma opinião, a dele. Por isso, tem a expectativa sincera de que o outro reconheça sua superioridade e se submeta a ele, renunciando a suas próprias necessidades e desejos. Espera amor incondicional. É autoritário, tem ideias de grandeza, certezas absolutas e não admite críticas. Se alguém tem uma opinião diferente, é visto como desleal e traidor. Ou, então, é visto como incapaz e fraco, digno de desprezo. O paranoico também não tem o chip que lhe permitiria empatizar com o sofrimento do outro; não o vê como um "semelhante", que tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos.

Para o paranoico, seus objetivos, que são sempre bons, justos e nobres, justificam os meios. Ele fará qualquer coisa para alcançar seus objetivos. Se é acusado de alguma coisa, se ofende, porque a acusação é vivida como injusta. Sente-se cronicamente lesado em seus direitos, por isso é ressentido e rancoroso. Estrutura-se em torno do ódio ao outro, sempre visto como inimigo e como ameaça a seus projetos pessoais. Nessas condições, o paranoico pode se tornar violento, e as pessoas sentem medo dele. Para Elias Canetti, o paranoico, como o ditador, sofre de uma doença do poder. Esta se caracteriza por uma vontade patológica de sobrevivência exclusiva, e por uma disposição, ou mesmo um impulso, para sacrificar o resto do mundo em nome desta sobrevivência.

Naturalmente, a relação entre paranoia e poder é complexa, e, mesmo correndo o risco de generalizações abusivas, arrisco uma hipótese. Por um lado, é possível que aceder a uma posição de poder "acorde" o núcleo paranoico do sujeito - núcleo que todos nós abrigamos em alguma medida. Por outro, é possível que a visão de mundo determinada por fortes traços paranoicos torne o poder particularmente atraente, ou necessário, para tais sujeitos. O fato é que a História mostra que a associação entre paranoia e poder é tão frequente quanto perigosa.

O segundo espaço psíquico que contribui para o fenômeno da corrupção é o espaço intersubjetivo. Para a psicanálise, ninguém enlouquece sozinho, mas no espaço psíquico constituído pela relação com outros sujeitos. O poderoso pode enlouquecer num vínculo com pessoas que, sistematicamente, assumem uma posição reverente, intimidada, subserviente, de devoção fascinada e apaixonada. Por todas as características já descritas, o paranoico está bem talhado para produzir exatamente este tipo de reação nas pessoas que o cercam. Aliás, é a mesma atitude acrítica que a criança pequena tem em relação aos pais, que são vividos como aqueles que "podem tudo".

O poderoso enlouquece quando se identifica, isto é, quando "acredita" na mensagem que lhe é transmitida inconscientemente pelo lado mais infantil das pessoas com quem convive: que ele é superior aos outros e por isso tem o direito e o dever de gozar mais do que todos. Desta perspectiva, a corrupção pode ser entendida como sintoma de certo tipo de enlouquecimento - não no sentido de doença mental, mas no de hybris, palavra que em grego significa excesso ou desmesura.

A hybris pode acometer a pessoa que tem poder político, financeiro e/ou simbólico. Sua loucura consiste em tentar se igualar aos deuses - que não precisam temer nada, porque estão acima do bem e do mal. Quanto mais ficamos fascinados numa posição de submissão apaixonada, menos nos atrevemos a lhe mostrar que a lei vale para todos, e mais contribuímos para enlouquecer quem tem poder.

O terceiro espaço psíquico que contribui para o fenômeno da corrupção é o transubjetivo ou institucional. Para a psicanálise, os sistemas simbólicos instituídos em certa época e lugar formam o pano de fundo de nossa vida psíquica. Isto quer dizer que instituem ideias e valores que determinam nossa maneira de sentir, pensar e agir. Ora, a corrupção pode deixar de ser uma prática ocasional para se tornar uma instituição e uma cultura. Esse processo se dá em duas etapas: a desnaturação da ordem simbólica que funda uma instituição, e a institucionalização da corrupção, que se torna um modo de vida.

A primeira acontece quando alguém, que ocupa formalmente o cargo de representante de uma instituição, se "demite psiquicamente" de seu lugar simbólico: ele deixa de sustentar, por meio de seus atos cotidianos, os valores instituídos. (Como veremos, a reversão do processo depende, inversamente, da transferência que se estabelece entre os atores sociais e figuras que encarnam a lei.) Em vez disso, põe interesses pessoais acima dos interesses da instituição. O efeito dessa "demissão" é a corrupção e desnaturação da própria ordem simbólica que funda e sustenta aquela instituição.

Um exemplo ajudará a esclarecer essa ideia. Quando um juiz se deixa subornar, ou simplesmente intimidar - e vimos acima como o paranoico pode se tornar violento a ponto de realmente causar medo -, ele está se "demitindo" de seu lugar simbólico. O que acontece então é que o vínculo, até então naturalizado, entre a palavra "juiz" e o significado "justiça", vai se enfraquecendo, até que, no limite, se dissolve e se desnatura. Segue-se um efeito em dominó: todas as palavras ligadas a este sistema simbólico perdem o lastro que a instituição viva, e o símbolo forte, garantiam. Em lugar de inspirar afetos do tipo temor respeitoso, a toga e a beca nos parecem roupas engraçadas; as palavras: "réu", "culpa", "transgressão", "punição", "lei", "justiça", continuam existindo no vocabulário, mas estão vazias de significado emocional: já não acreditamos nelas. A instituição se torna disfuncional; ideias e valores que justificavam sua existência entram em crise. Instala-se uma condição de miséria simbólica que deixa as pessoas sem rumo. O suborno do juiz corrompe a instituição justiça.

Paralelamente, a corrupção se institucionaliza: torna-se uma cultura que tende a se reproduzir de forma autônoma. O pacto social está baseado em um "contrato" mediante o qual cada um de nós aceita renunciar às aspirações infantis de realizar todos os nossos desejos de forma absoluta, para, em troca, fazer parte da comunidade humana. Aceitamos que a lei vale para todos porque todos precisamos da proteção da lei. A renúncia ao absoluto e a submissão à lei, contudo, são feitas a contragosto, e nunca de forma definitiva. Gastamos bastante energia psíquica para fazer a gestão desses desejos e mantê-los sob certo controle civilizado. Por isso, essas fantasias regressivas de plenitude e onipotência, que estão latentes em todos nós, podem ser "acordadas" a qualquer momento. Basta que "alguém" acene com esta possibilidade: aí é a fome com a vontade de comer.

Este "alguém" é a máfia, instituição que transformou a corrupção em valor e modo de vida. Ela seduz o sujeito propondo-lhe um pacto perverso no lugar do pacto social: ele é convidado a desqualificar a lei e a ela renuncia, em troca da possibilidade de realizar o desejo imorredouro de transcender os limites inerentes à condição humana. A desqualificação da lei se torna um valor e origina um modo de vida. Não é difícil perceber que o pacto perverso não tem condições de garantir a vida em sociedade.

Reunindo os fios da meada: quando um indivíduo ou grupo tem uma visão de mundo paranoica do tipo "nós, os bons/justos/donos da verdade, contra eles, os maus/desleais que ameaçam nossa sobrevivência"; quando este indivíduo ou grupo convoca, pela via do amor ou da intimidação, o lado inconsciente, infantil, submisso e reverente das pessoas que o cercam; quando a instituição torna natural a desqualificação da lei, e acena sedutora, mas perversamente, com a possibilidade de realização das fantasias infantis de onipotência, estão dadas as condições, do ponto de vista psíquico, para a corrução descarada e deslavada.

A corrupção é uma grave "patologia social" - tem sido comparada a um câncer que infiltra e destrói as instituições - porque institui como valor a desqualificação da lei. Não apenas da lei definida pela Constituição, mas também da lei no sentido psicanalítico do termo: aquela que nos torna humanos à medida que impõe limites à desmesura de nossos desejos fundando, assim, o pacto social. Por isso a corrupção pode ser definida como o processo por meio do qual a desqualificação da lei vai sendo institucionalizada. O processo se completa quanto a corrupção se torna, em si mesma, uma instituição.

Gostaria agora de mostrar como se dá na prática o processo de institucionalização da corrupção, e como ele pode ser revertido. Como se verá, a "cura" desta grave "patologia social" depende de uma mudança de posição subjetiva do sujeito - individual ou social -, e nesse sentido se aproxima de um processo psicanalítico. Uma sinopse do filme Sindicato de ladrões (1954, Elia Kazan) fará as vezes de "material clínico". Na análise que faço desse material procuro mostrar como a articulação dos já mencionados três espaços psíquicos - intrapsíquico, intersubjetivo e transubjetivo - determina tanto a institucionalização, quanto a reversão do processo de corrupção.

O filme se passa em torno do sindicato de estivadores do porto de Nova York, que nos anos 1950 estava em poder da máfia. Johnny Friendly teve uma infância miserável, tornou-se estivador e finalmente consegue ser eleito presidente do sindicato. Empoderado, passa a usar a instituição para atender seus interesses pessoais. Com a ajuda de seus capangas, passa a exigir propinas para liberar o carregamento e descarregamento dos navios. Esse dinheiro é distribuído entre o bando, que garante o funcionamento da máquina corrupta. Os trabalhadores recebem um salário miserável, mas se submetem com medo de ficarem sem trabalho e/ou de serem mortos, como já aconteceu antes.

Doyle, um dos estivadores, resolve colaborar com os policiais que estão investigando as atividades do sindicato. Considerado traidor, é assassinado com a ajuda involuntária de Terry Malloy, irmão mais novo de Charley, braço direito de Johnny. Ninguém ousa dizer à polícia quem o matou. Terry, o protagonista da história, não quer se envolver, e não se decide a contar o que sabe. Com o apoio de duas lideranças esclarecidas - um padre e Edie, irmã do rapaz assassinato - mudará de posição subjetiva.

O filme conta a história dessa transformação interna, que, como já mencionei, pode ser comparada a um processo de análise: Terry sairá de uma posição subjetiva de indiferença (à vida e às pessoas) para começar a construir para si um ideal, algo pelo que lutar, e que dará sentido à sua existência. O enredo fornece elementos para entender os motivos da indiferença de Terry a tudo e todos. Ele era um jovem lutador de boxe talentoso e com um belo futuro pela frente. A pedido do irmão, ele aceita fazer um favor à máfia: perder a final de um campeonato de boxe para um lutador muito inferior, no qual os criminosos haviam apostado alto. O bando embolsou o dinheiro, e ele se viu sem nada, depois de ter arruinado sua carreira promissora. Desde então ele se sente um fracasso, não tem mais projeto de vida, vive um dia atrás do outro tentando não afundar e se divertir um pouco. Ele se melancolizou.

A transformação interna de Terry, que acaba levando ao desmanche da organização mafiosa, tem dois motores. De um lado, a transferência positiva que estabelece com Edie e o padre, representantes do casal parental que lhe transmite valores humanos de justiça, igualdade e fraternidade. De outro, o ressentimento contra o chefão, figura paterna violenta e autoritária. Em um primeiro momento Terry quer fazer justiça com as próprias mãos e matar os assassinos de seu irmão. Mas o padre insiste no valor da Justiça e da Lei como único caminho legítimo contra a corrupção.

Terry acaba decidindo depor contra a máfia, comprando uma briga difícil e arriscada. No começo até os estivadores se voltam contra ele. Mas ele sabe que não tem opção: só pode recuperar sua autoestima se não entregar os pontos novamente - se, desta vez, ele lutar até o fim. O chefe de máfia acabará perdendo o apoio do político que lhe dava garantias de impunidade e se curvando à força da lei. O boxe é a metáfora da luta de um homem para recuperar sua dignidade, bem como a confiança nas instituições que formam a base do tecido social.

Passo agora à análise do filme acompanhando de perto, como se fossem

"sessões", as cenas mais esclarecedoras desse processo. Na primeira cena, Terry participa, sem saber, do assassinato de Doyle, o estivador que denunciou o esquema corrupto. Terry fica chateado por ter sido usado para atrair Doyle para uma emboscada. Sente-se culpado pela morte do rapaz. Johnny e Charley explicam a Terry por que foi necessário eliminar Doyle. Johnny e seus 10 irmãos tiveram uma infância miserável. Aos 16 anos implorava por trabalho. Com muita luta, chegou a presidente do sindicato. Nessa posição, exige propinas de quem quiser descarregar o navio. Ninguém descarrega um navio sem pagar propina para ele e seu bando. Charley, o irmão mais velho de Terry, faz parte do bando. Ele nos conta como pensa um mafioso: "Se pudermos pegar, temos o direito. Não vamos perder tudo isso por causa de um rato como Doyle". Ou seja, estão dispostos a tudo para se manter no poder

Este diálogo mostra que eles honestamente acham justo fazer de tudo para se manter no poder, duramente conquistado. Subornar, extorquir e matar são atos legítimos. Agem dentro da lei. Só que é uma lei própria. Doyle foi morto porque era um traidor da lei da máfia. E na lógica da máfia só há duas possibilidades: ou se é amigo, leal, fiel, ou inimigo e traidor. É uma lógica paranoica.

Mas Terry, que ainda está na periferia do sistema, não está convencido de que as coisas têm que funcionar assim. Johnny, o chefão, tenta suborná-lo com vantagens materiais (dinheiro e um trabalho fácil), mas principalmente com vantagens afetivas. Pois o chefão funciona como um pai que oferece amor, proteção e amizade. Em troca, exige apenas que ele aceite as regras do jogo: desqualificação da Lei que rege a sociedade e submissão absoluta à sua própria autoridade. É esse contrato - também chamado de pacto perverso - que, uma vez selado, dá início ao processo de corrupção.

Como vimos, todos nós abrigamos desejos primitivos de gozo absoluto que estão adormecidos, mas podem ser "acordados" - é exatamente o que Johnny está tentando fazer com Terry. O desejo imorredouro é a contribuição do espaço psíquico individual (intrapsíquico), sem o qual não é possível firmar o pacto perverso que está sendo proposto. A sedução desta proposta é perversa porque desqualifica o duro e lento trabalho civilizatório. É com esforço que todos nós acordamos de manhã e vamos ganhar o pão com o suor do rosto. E de repente aparece alguém para dizer que tudo isso é bobagem.

Mas, como veremos adiante, é no espaço intersubjetivo, entre dois ou mais sujeitos - a relação entre Johnny e seu bando -, que o pacto perverso se reproduz e se fortalece. É graças aos capangas que Johnny se percebe como chefão; é graças ao chefão que os capangas se sentem amados e protegidos por uma figura paterna forte - ao mesmo tempo que se submetem por medo de sua violência.

O filme mostra que quando Terry finalmente decide depor no tribunal contra os criminosos, ele passa a ser hostilizado pelo grupo como se fosse um traidor. Há uma inversão total de valores. E, de fato, há várias cenas em que a lei é abertamente desqualificada. O agente da polícia que está investigando a morte de Doyle é "o palhaço da comissão de crimes". No tribunal, o grupo todo zomba dos advogados e do juiz ao afirmar, cinicamente, que "infelizmente, os documentos solicitados foram roubados ontem".

Terry não se deixa seduzir pela proposta de Johnny porque está deprimido e porque não investe transferencialmente o chefe da máfia. Como foi dito, ele perdeu uma luta que estava ganha para fazer um favor a ele. Mas não imaginava que se vender a Johnny pudesse lhe custar tão caro. Junto com o título, perdeu o amor próprio. Sente-se um fracasso. Na cena em que os dois irmãos estão dentro de um carro, Terry diz a Charley: "Podia ter sido alguém, em vez de ser um vadio".

A corrupção faz do pacto com o diabo um valor e um modo de vida. Mais cedo ou mais tarde, paga-se, como na lenda sobre o Dr. Fausto, o preço de se vender a alma ao diabo. Tanto que, agora, nada mais lhe interessa realmente. Não tem mais ambições. Nada o seduz. Nem mesmo o pacto perverso. Ele fica na periferia do sistema, oscilando entre as duas éticas: a da máfia, que não o seduz, e a do pacto social, na qual ele não acredita. Acha Edie ingênua quando diz que sua vida só tem sentido se puder fazer algo pelos outros.

Como foi dito, a corrupção depende também de elementos pertencentes ao espaço psíquico intersubjetivo. Johnny tem uma personalidade "forte" - isto é, fortes traços paranoicos - bem talhada para produzir efeitos transferenciais nos seus capangas. Ele representa uma figura paterna violenta e tirânica, mas também amorosa e protetora.

Esta mistura de amor e violência convoca a criança aterrorizada e obediente que existe em cada um. Fortemente transferidos, todos têm medo de sua fúria, mas desejam seu amor. Por isso, aceitam pagar o preço da submissão absoluta. Cria-se uma dinâmica que contribui para perpetuar o sistema. Quanto mais todos se submetem, mais contribuem para empoderar Johnny. Quanto mais ele é empoderado, mais eles se comportam como crianças aterrorizadas. Humilhados, os estivadores vão perdendo sua dignidade e sua autoestima. Vão ficando apáticos, perdem a esperança em uma vida melhor. A cena da distribuição das senhas é terrível. Vemos nos rostos e nas mãos semiestendidas a vergonha de terem que mendigar uma senha para ter o direito de trabalhar. Apesar de odiá-lo, não se revoltam. Passam fome, submetem-se, mas não ousariam matar o próprio "pai". O chefe da máfia é poupado pelos filhos.

Ora, por que uma centena de homens fortes, como os estivadores, se submete à tirania de meia dúzia? Para entender isso precisamos recorrer ao terceiro espaço psíquico, o transubjetivo ou cultural. Além do medo e da infantilização cultivados no espaço psíquico intersubjetivo, a impossibilidade de reagir se deve ao fato de que a corrupção se tornou, ela mesma, uma instituição. Isso significa que agora ela tem poder para instituir um modo de vida que se torna natural, como se não houvesse outra forma de viver fora do domínio da máfia. A repressão se torna desnecessária, pois a própria ideia de se revoltar contra o sistema se tornou impossível. Até mesmo, quando Terry decide contar o que sabe, é visto como traidor pelo próprio grupo de estivadores, mostrando a que ponto o sistema se naturalizou. A meu ver, essa é a face mais perversa da corrupção, pois como qualquer cultura, ela tende a se reproduzir e a se perpetuar sem questionamentos - e com a participação de todos.

Desde o título deste ensaio venho anunciando que o processo de "cura" da grave patologia social chamada corrupção depende de uma mudança de posição subjetiva - que, nesse sentido, se aproxima de um processo analítico. A mudança começa com a entrada em cena de outra figura paterna, o padre, também investida transferencialmente pelos estivadores. Ao contrário do chefão, que encarna a desqualificação da lei, o padre vive na e pela lei: não apenas ele a encarna de forma exemplar, mas afirma a validade do pacto social contra o pacto perverso. Ele funcionará como catalisador de uma transformação social, que, depois de tantas mortes, já está madura para acontecer.

Ao contrário de Johnny, o padre convoca o lado mais adulto dos estivadores. "Vocês vão continuar aceitando isso até quando?" "Só acabaremos com a máfia não os deixando impunes." Ele lembra que não estão sozinhos nesta luta. "Neste país temos meios para reagir." Mostra aos estivadores que eles contribuem para perpetuar a situação perversa em que se encontram. Quanto mais se submetem, mais fortalecem o sistema. Mobiliza e organiza os diversos setores da sociedade que estavam dispersos.

Dugan representa o cidadão que mantém seu senso crítico, e só se submete à máfia porque precisa trabalhar. Mas, depois de ser espancado e humilhado, entende que não adianta continuar vivo, mas sem dignidade.

Edie representa a intelectual que tem uma formação humanista - é a única que estudou - e não aceita simplesmente cruzar os braços diante da injustiça social. Não tem preconceitos e aposta no potencial de desenvolvimento de cada um.

Mas é Terry que representa a possibilidade concreta de mudança de posição subjetiva. É com ele que nos identificamos. Tanto quanto num processo analítico, a transformação de Terry se apoia na relação transferencial não apenas com o padre, mas também com Edie. Ambos formam o casal parental graças ao qual Terry passará da alienação apática à possibilidade de se apropriar de uma luta que é dele, e de mais ninguém.

Primeiro, ele se humaniza na relação com a moça, que funciona como uma figura materna. Ela não o vê como um vadio, nem como um bandido, apesar de ser irmão de um mafioso, e apesar de ter sido cúmplice da morte do irmão dela. Ela o vê como um menino perdido, carente, abandonado. Enxerga nele o potencial humano que não foi desenvolvido por falta de oportunidade. Ele mesmo, que se via como um burro, como um vadio, passa a se ver de outra maneira nessa relação.

Graças a ela, Terry consegue recuperar alguma autoestima e sai do buraco melancólico. Vai depor na justiça contra a máfia. Vai dizer que sabe quem matou Doyle. Faz isso não só porque foi pessoalmente prejudicado (seu irmão também é morto porque se recusou a matar Terry), mas porque é a única maneira de recuperar a dignidade perdida junto com o título de boxeador. Num primeiro momento todos os estivadores se voltam contra ele, chamando-o de traidor. Embora o sistema fosse perverso, funcionava, todos tinham trabalho.

Por outro lado, a máfia garante que ele nunca mais vai conseguir emprego nos Estados Unidos. Mas ele vai lutar pelos seus direitos. Enfrenta o chefão na frente de todos os estivadores. Apanha muito, mas consegue ficar de pé e liderar o grupo de volta para o trabalho, desmoralizando Johnny.

Depois que Terry depõe contra a máfia, há uma cena rápida em que alguém, possivelmente um político, assiste ao depoimento pela TV. Quando percebe que a lama pode respingar nele por causa da delação de Terry, desliga a TV e se retira. Dá instruções ao mordomo: Se Johnny ligar, é para dizer que ele não está. Não quer que a lama respingue nele. Entendemos que a máfia não teria poder algum se não tivesse por trás o apoio de um político. E quando o político retira seu apoio essa instituição começa a se desmanchar. Tanto que, pela primeira vez no filme, Johnny afirma que não pode matar Terry, porque seria preso. Pela primeira vez ele sente medo da lei. O medo é sinal de que ele reconhece a castração e que a lei do pacto social voltou a valer para ele. Ele volta a se sentir um homem como os outros. O filme mostra que reverter o processo é difícil, mas não é impossível.

 

Referências

Berenstein, I. e Puget, J. (1997). Lo vincular. Clínica y técnica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

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Recebido em: 18/12/2016
Aceito em: 20/12/2016

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