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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

O conceito de responsabilidade social: uma experiência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

The concept of social responsibility: reporting a work experience in the Brazilian Society of Psychoanalysis of São Paulo (SBPSP)

 

El concepto de responsabilidad social: relato de una experiencia de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de San Pablo (SBPSP)

 

Le concept de responsabilité sociale: une expérience dans la Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo (SBPSP)

 

 

Ligia Todescan Lessa MattosI; Beatriz da Motta Pacheco TupinambáII; Cristina Maria KurkdjianII; Regina Elizabeth Lordello CoimbraIII; Sonia Maria Camargo MarchiniII; Tania Mara ZalcbergII

IMembro efetivo da SBPSP e didata do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. ligiamattos@uol.com.br
IIMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. biamptupinamba@gmail.com, cris.kurk@gmail.com, smcmarchini@gmail.com, zalcberg@uol.com.br
IIIMembro efetivo e analista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. bethcoimbra07@gmail.com

 

 


RESUMO

Nos registros da história da psicanálise a preocupação com o atendimento psicanalítico a camadas mais amplas da sociedade esteve presente desde o pronunciamento de Freud no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional de Budapeste, em 1918, quando se oficializa o tema nos espaços internos das instituições psicanalíticas. Ventos promissores trouxeram a notícia até Durval Marcondes, e em poucos anos a SBPSP desenvolvia práticas para a divulgação da nova ciência. Em 2002, a IPA, mobilizada pelas demandas da sociedade contemporânea, estimula a ampliação das atividades psicanalíticas para além do setting tradicional, ocasião em que nasce o movimento da psicanálise "extramuros". Em 2012-2016 a equipe da Diretoria de Atendimento à Comunidade considera que ampliou os projetos de desenvolvimento de práticas de inclusão das instituições psicanalíticas e do pensamento psicanalítico no espaço social, e o conceito de responsabilidade social norteou a implantação dos projetos.

Palavras-chave: difusão da psicanálise, instituição psicanalítica, responsabilidade social, divulgação da psicanálise


ABSTRACT

The authors write a retrospective overview of an important aspect of the history of Psychoanalysis, that is, the concern with psychoanalytic assistance to wider levels of society. This concern could be found in Freud's pronouncement at the Fifth International Psychoanalytic Congress, in Budapest, in 1918, in which this theme became official inside the psychoanalytic institutions. Auspicious winds blew and brought this news to Durval Marcondes. In a few years, the SBPSP developed practices to spread the new science. In 2002, the International Psychoanalytic Association, which was mobilized by the demands of contemporary society, stimulated the expansion of psychoanalytic activities beyond the traditional setting. It was at that time the extramural (or "outreach") movement of Psychoanalysis was born. During the 2012-2016 administration of the SBPSP, the Community Service Directory team received a full support in order to expand projects and develop practices for including psychoanalytic activities in the social space. The authors emphasize that the implementation of those projects followed the concept of "social responsibility".

Keywords: psychoanalytic diffusion, psychoanalytic institutions, social responsibility, spreading Psychoanalysis


RESUMEN

Las autoras realizan una retrospectiva de un aspecto de la historia del Psicoanálisis: la preocupación con la atención psicoanalítica de camadas más amplias de la sociedad. Este hecho se hizo presente en la ponencia de Freud en el Quinto Congreso Psicoanalítico Internacional, en Budapest, en 1918, cuando se oficializó el tema en los espacios internos de las instituciones psicoanalíticas. Vientos prometedores llevaron la noticia hasta Durval Marcondes y en pocos años la SBPSP desarrollaba prácticas para divulgar la nueva ciencia. En 2002, la IPA, movilizada por las demandas de la sociedad contemporánea, estimuló la ampliación de las actividades psicoanalíticas para ir más allá del setting tradicional y así nació el movimiento Psicoanálisis "extramuros". En la gestión de 2012-2016 la Presidencia de la SBPSP apoyó al equipo de la Dirección de Atención a la Comunidad para ampliar proyectos de prácticas de inclusión de actividades psicoanalíticas en el espacio social. El concepto de Responsabilidad Social guió la implantación de estos proyectos.

Palabras clave: difusión del psicoanálisis, institución psicoanalítica, responsabilidad social, divulgación del psicoanálisis


RÉSUMÉ

Sur les registres de l'histoire de la Psychanalyse, on retrouve le souci d'amener la clinique psychanalytique aux plus larges couches de la société depuis les propos de Freud au Cinquième Congrès Psychanalytique International de Budapest, en 1918, lorsque l'on officialise le sujet dans les espaces internes des institutions psychanalytiques. Des vents prometteurs ont amené la nouvelle à Durval Marcondes et en quelques années la SBPSP a développé des pratiques pour répandre la nouvelle science. En 2002, l'ipa mobilisée par les demandes de la société contemporaine stimule l'avancement des activités psychanalytiques audelà du setting traditionnel, lors de la naissance du mouvement de la Psychanalyse "hors-murs". En 2012-2016 l'équipe de la Direction d'accueil à la communauté croit avoir élargi les projets de développement de pratiques d'inclusion des institutions psychanalytiques et de la pensée psychanalytique dans l'espace social et le concept de responsabilité sociale a guidé l'implantation des projets.

Mots-clés: diffusion de la psychanalyse, institution psychanalytique, responsabilité sociale, divulgation de la psychanalyse


 

 

É muito provável que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta ... Mas, como quer que se configure essa psicoterapia para o povo, quaisquer que sejam os elementos que a componham, suas partes mais eficientes e mais importantes continuarão a ser aquelas tomadas da psicanálise rigorosa e não tendenciosa. (Freud, 1919[1918], p. 181)

 

Histórico

As palavras que escolhemos como epígrafe foram pronunciadas por Freud no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional de Budapeste, em 1918, e depois publicadas no texto "Caminhos da terapia psicanalítica". Naquela ocasião Freud antevia a possibilidade de que, no futuro, seria possível estender os tratamentos psicanalíticos a camadas mais amplas da população e,

Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que os homens ... possam tornar-se, pela análise, capazes de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. (Freud, 1919 [1918], p. 180)

Esse discurso de Freud estimulou a criação, em 1920, em Berlim, de uma Policlínica psicanalítica na qual tratamentos gratuitos eram postos à disposição da população. Mas o projeto, audacioso e difícil, de levar a psicanálise a um grande número de pessoas exigia que muitos analistas fossem rapidamente bem formados. A esse empirismo inicial seguiu-se uma organização para atender à demanda da clínica, e a Policlínica, em 1923, se torna Instituto, com um centro de formação e de pesquisa no qual jovens analistas que atendiam os pacientes recebiam supervisão em seu trabalho clínico. Ao longo da década de 20 do século passado, Berlim tornou-se o centro mundial da psicanálise, e, daí em diante, a formação de todos os psicanalistas foi organizada com base nesse modelo berlinense.

Em toda a história da psicanálise a preocupação com aspectos sociais sempre esteve presente, e em inúmeras Sociedades foram criados, para populações menos favorecidas, Centros de Atendimento, que dessem abrigo ao exercício da prática clínica para os analistas em formação.

Na SBPSP, a preocupação com a difusão do conhecimento psicanalítico para a sociedade data de seus primórdios. No final da década de 20 do século passado o psiquiatra Durval Marcondes interessou-se pela psicanálise e tornou-se o fundador do movimento psicanalítico no Brasil. Em estreito contato com o meio cultural de São Paulo, passou a divulgar a nova ciência. Inaugurou um serviço de saúde mental no Instituto de Higiene de São Paulo e ali formou um grupo de assistentes sociais e professoras para levar os conhecimentos psicanalíticos à rede de ensino público e assim contribuir com a divulgação da psicanálise. Virginia Bicudo e Lygia Alcântara Amaral, duas pioneiras da SBPSP junto a esse Serviço de Saúde Mental do Estado, faziam palestras para professores da rede estadual de ensino sobre características psicológicas das crianças. Virginia Bicudo durante um longo período se dedicou também a emissões radiofônicas para divulgação de conhecimentos psicanalíticos que pudessem ajudar os pais a melhor compreender seus filhos e manteve uma coluna no jornal Folha de S. Paulo com artigos que abordavam questões sobre a vida mental. Eram iniciativas que, dessa maneira, buscavam contribuir para o bem-estar social.

Ao longo dos anos, muitos membros da Sociedade continuaram a tradição de dedicarem-se a atividades paralelas ao trabalho em consultório, atividades como atendimento a populações carentes por meio de parcerias com grupos empresariais e religiosos, destacando-se aqui sobretudo o trabalho de Melanie Farkas e também o de Chulamit Terepins; cursos, jornadas e seminários abertos ao público em geral; tratamentos psicanalíticos a preços acessíveis à população em um Ambulatório, criado em 1975 pela diretoria do Instituto de Psicanálise e que a partir de 1984 passa a ser progressivamente coordenado pelos candidatos em formação, recebendo a denominação de Serviço de Atendimento (sat). O sat atendia a dois objetivos, um externo, ao disponibilizar atendimento psicanalítico ao público, e outro interno, destinado à necessidade de prática clínica supervisionada no contexto da formação psicanalítica (Lanzoni; Nóbrega, 1999).

Em 2002, estando Otto Kernberg na presidência da IPA, foi apresentada uma proposta de abertura - "outreach" - das instituições psicanalíticas aos desafios da sociedade contemporânea. Muitas Sociedades passaram a desenvolver programas para uma expansão "extramuros" da psicanálise. Na SBPSP todas as atividades voltadas para o social, que até então existiam por exclusiva iniciativa de seus membros e candidatos, foram centralizadas, na gestão de seu presidente Marcio de Freitas Giovannetti, pelo que na época convencionou-se chamar de Setor III. Sob a coordenação de Ana Maria Andrade Azevedo, esse setor tinha como objetivo dotar a SBPSP de uma estrutura organizacional que incorporasse essas atividades de maneira estável em seu organograma.

A partir daí o estabelecimento de bases conceituais firmes e claras tornou-se algo indispensável à implantação e continuidade da área de atuação "extramuros", agora sob a orientação de uma Diretoria de Comunidade e Cultura já inserida no organograma da Sociedade. Em 2007, no novo Estatuto da SBPSP essa Diretoria foi dividida em: Diretoria de Cultura e Comunidade e Diretoria de Atendimento à Comunidade. Essa divisão permitiu melhor especificação das atividades que cada uma passaria a coordenar. Nessa ocasião, Oswaldo Ferreira Leite Netto, que, desde a criação do Setor III, em 2002, vinha participando das atividades desse Setor, assumiu a Diretoria de Atendimento à Comunidade, nela permanecendo até o final de 2012 (Leite Netto, 2012).

A implantação desses trabalhos na instituição recebeu críticas de seus membros durante alguns anos. A passagem do "ouro puro" da psicanálise para o "cobre" de outros atendimentos a setores ampliados da sociedade parecia, a muitos desses membros, trazer o risco da diluição da psicanálise. No entanto, em muitas outras sociedades, também foram surgindo trabalhos dedicados à reflexão sobre esse movimento "extramuros". Esses trabalhos nasciam em função das rápidas mudanças na sociedade contemporânea como fator a exigir alterações em várias práticas oferecidas pelas instituições psicanalíticas, para além do trabalho no setting estrito do psicanalista com seu paciente.

 

A Diretoria de Atendimento à Comunidade e o conceito de responsabilidade social

A Diretoria de Atendimento à Comunidade (DAC), a partir de 2012, tendo Regina Elisabeth Lordello Coimbra como diretora, e assessorada por sua equipe, procurou ampliar a proposta de abertura da SBPSP para a sociedade extramuros e elaborou seu Regulamento. Essa era exigência estatutária e condição primeira para que a Sociedade assumisse a responsabilidade jurídica por auxílio à população, por convênios e parcerias com instituições públicas e/ou privadas, visando projetos específicos, e para captação de verbas, seja no setor privado seja no setor governamental.

O conceito que norteou a implantação dos projetos da DAC foi o de responsabilidade social, centrado na ideia do desenvolvimento de práticas de inclusão das instituições psicanalíticas e do pensamento psicanalítico no espaço social. Esse conceito teve como inspiração o Relatório da ONU de 1987, que define a ideia de sustentabilidade voltada para o atendimento e o cuidado com o desenvolvimento das gerações atuais de modo que não se comprometam as condições de vida das que as sucederão. O conceito apresentado no Relatório da ONU engloba três aspectos fundamentais: a relação com o meio ambiente, a relação com a economia e a relação com o social, principalmente nos quesitos de saúde, cidadania, ética e desenvolvimento humano. É nesse último aspecto que se insere o conceito de responsabilidade social, tomado como norte pela DAC, na busca da ampliação do processo de ajuda da psicanálise ao ser humano, visando seu status de sujeito responsável por sua própria vida. Os trabalhos desenvolvidos nos vários setores da DAC adotaram, assim, uma perspectiva eminentemente clínica, no sentido do cuidado com o ser humano.

Em 2015, no Congresso da Febrapsi em São Paulo, a questão da responsabilidade social da psicanálise foi amplamente debatida. Na reunião plenária internacional, com o tema "Engajamento do psicanalista no social", Stefano Bolognini, presidente da IPA, destacou o fato de que a psicanálise já exerce uma função social graças ao processo de transformação pessoal dos pacientes. Esse processo afeta também a cultura, a "mentalidade", os padrões de relações interpessoais e o ambiente global das comunidades humanas. Sobretudo na cultura atual, com o excesso alienante das tecnologias e da informatização, que traz o risco de desconexão do contato do sujeito consigo mesmo (self) e com os outros, a psicanálise tem a possibilidade de promover a recuperação de elementos de humanidade que têm sido perdidos. Citamos Bolognini:

Uma sociedade, com seu sistema mental comunitário, sem o conhecimento suficiente de si mesma e da realidade não alucinatória (vertente do EU), sem consciência moral adequada e sentido de limites (vertente do SUPEREU), sem capacidade de reconhecimento das necessidades fundamentais e naturais dos indivíduos e da comunidade (vertente do IDE e do SELF), sem florescimento de ideais evolutivos e objetivos comuns aos quais aspirar (vertente do Ideal do EU), seria uma sociedade doente. (Bolognini, 2015)

Diversas atividades voltadas para o social vêm sendo agora realizadas em muitas sociedades da IPA. Para além do trabalho transformador que acontece na relação analista-paciente, essas atividades que têm como vértice o pensamento psicanalítico buscam contribuir com uma visão equilibradora da realidade social, da mesma maneira que a psicanálise individual cuida dos momentos de desequilíbrio de um indivíduo.

As várias atividades desenvolvidas pela Diretoria de Atendimento à Comunidade, tendo como escopo a questão da responsabilidade social, buscaram contribuir com essa visão equilibradora, como diz Bolognini, por meio dos cursos abertos à população, de trabalhos com grupos operativos em torno de temas específicos que interessam a setores da comunidade e com a presença do Centro de Atendimento Psicanalítico, evolução ao longo do tempo do antigo sat, no qual membros filiados do Instituto de Psicanálise e membros da Sociedade recebem pacientes com honorários diferenciados daqueles praticados no atendimento privado.

1. Cursos abertos à população

O Setor de Cursos, Jornadas e Seminários estabeleceu como objetivo ser um polo de difusão da psicanálise e do trabalho psicanalítico, apresentando suas aplicações e seus conceitos teórico-clínicos para o público leigo e para profissionais de áreas voltadas para a compreensão e o cuidado do ser humano. Nesse Setor foram propostas novas regras para a apresentação de projetos que atendessem aos objetivos definidos com base no entendimento do conceito de responsabilidade social adotado pela DAC, priorizando o vértice clínico. Os temas dos vários eventos realizados, sempre com grande público, apresentaram a visão psicanalítica focada em vários campos de conhecimento: educação, psiquiatria, direito, relações familiares, adoção, entre outros.

Esse Setor cumpriu a função de divulgar as ideias psicanalíticas aplicadas a vários campos do conhecimento e possibilitar um diálogo enriquecedor entre profissionais de diversas áreas de atuação, psicanalistas e público interessado. As atividades desse Setor trouxeram significativo aporte financeiro para a SBPSP, o que permitiu a realização de outras atividades, essas de caráter gratuito, destinadas à população em geral.

CINAPSIA - Curso Introdutório ao Atendimento Psicanalítico de Crianças e Adolescentes

No Setor de Cursos a DAC criou o Curso Introdutório ao Atendimento Psicanalítico de Crianças e Adolescentes, CINAPSIA, com duração de dois anos, voltado para profissionais de saúde e educação interessados no desenvolvimento psíquico de bebês, crianças e adolescentes. A sigla CINAPSIA faz alusão à palavra "sinapse", que quer dizer "união", ressaltando assim o importante papel que os vínculos de várias ordens desempenham no processo de desenvolvimento psíquico. O curso propõe-se a formar a postura, a escuta e o olhar psicanalíticos focados na criança e no adolescente. A ideia que presidiu a criação desse curso, tendo como referência a psicanálise, foi levar o conhecimento do desenvolvimento e das patologias da infância e adolescência a profissionais que iniciam seu trabalho, aproximando-os também de uma possível formação psicanalítica oferecida pelo Instituto de Psicanálise Durval Marcondes. A equipe de coordenadores e professores do curso é composta por membros da SBPSP com larga experiência no atendimento de crianças e adolescentes. No final de 2016 o CINAPSIA formou sua primeira turma de alunos, enquanto a segunda turma já frequentava o primeiro ano do curso.

A criação do CINAPSIA foi uma iniciativa particularmente bem-sucedida. A proposta de levar a profissionais das áreas da saúde e educação os ideais da postura e do olhar psicanalítico voltados para a infância e a adolescência tem sido muito bem aceita, e a cada ano mais interessados têm-se inscrito para a seleção. O grupo de psicanalistas que idealizou o CINAPSIA considerava que esse curso deveria ser basicamente dirigido a jovens profissionais. No entanto, nas duas primeiras turmas, psicólogos, médicos e pedagogos, profissionais experientes, interessaram-se pelo curso, e sua presença e participação nas aulas têm sido fa-tor de enriquecimento para o conjunto dos alunos e dos professores. O CINAPSIA tem, também, estimulado o interesse de vários de seus alunos pela formação psicanalítica no Instituto, e alguns deles deverão em breve iniciá-la.

2. CAP - Centro de Atendimento Psicanalítico

O Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) quando de sua criação em 2002, após a extinção do sat, manteve como função principal, retomando a tradição inaugurada pela Policlínica de Berlim e que foi seguida por muitos Institutos de Psicanálise filiados à Associação Internacional de Psicanálise (ipa), contribuir primordialmente para a formação dos membros filiados do Instituto de Psicanálise em sua prática clínica e supervisões oficiais. Expandindo suas atividades, outras equipes foram criadas para atendimento de crianças e adolescentes, de casal e família, intervenção na relação entre pais e bebês e de psicossomática psicanalítica. Essa ampliação progressiva seguiu a direção do que Freud designou como o "cobre da psicoterapia", tendo sempre como inspiração a "psicanálise rigorosa e não tendenciosa". No decorrer dos anos, com a proposta da diversificação de atendimentos, membros mais experientes da Sociedade foram-se integrando nas equipes de trabalho, seja participando diretamente dos atendimentos, seja oferecendo supervisões aos colegas a preços compatíveis com os honorários praticados no CAP, o que ampliou a capacidade do setor de receber maior número de pessoas e teve o objetivo de contribuir com o aprimoramento teórico e clínico de todos os seus participantes. Essa participação de membros trouxe também a possibilidade de interação de psicanalistas mais experientes com membros filiados, enriquecendo assim as discussões clínicas nas equipes.

O Centro de Atendimento Psicanalítico foi o setor que se apresentou para a DAC como o mais complexo. O fato de ser um espaço inserido há vários anos na instituição e suas atividades terem se desenvolvido ao longo de diversas diretorias da SBPSP, cada uma com sua visão própria, apresenta-se como um ponto a ser mais bem analisado e discutido nas próximas gestões, para que o CAP possa vir a desempenhar, dentro de uma perspectiva longitudinal e cada vez com melhores resultados, as duas funções que lhe são atribuídas em relação à face interna e à face externa da SBPSP.

As duas faces do Centro de Atendimento Psicanalítico

O CAP tem uma face interna, voltada especificamente para a prática clínica dos membros filiados em formação no Instituto de Psicanálise e, de maneira mais ampla, para o aprimoramento clínico e teórico não apenas desses analistas em formação, mas também dos membros da Sociedade que desejem participar das atividades do Centro. Tem também uma face externa, voltada para o atendimento psicanalítico à população a preços mais acessíveis, que procura atender aos objetivos sociais da Diretoria de Atendimento à Comunidade.

O CAP e um Setor de Pesquisas

Embora do Regulamento da Diretoria de Atendimento à Comunidade conste um Setor de Pesquisas, este ainda não foi implantado, e sua organização já se faz necessária.

A ampliação progressiva das atividades do CAP passou a exigir organização e registros acurados dos atendimentos e do trabalho nas várias equipes para a constituição de um banco de dados, visando a possibilidade de futuras pesquisas.

O estudo desses dados permitiria apreender o alcance dos atendimentos oferecidos, as características da população que procura o serviço, as contribuições que esse Setor dá aos membros filiados do Instituto e aos membros da Sociedade. A coordenação do CAP considerou de fundamental importância a organização de registros, sobretudo para estudar e refletir sobre as características da inserção de um Centro de Atendimento numa instituição como a SBPSP: qual seu raio de ação junto à comunidade, se o objetivo voltado para a face externa da Sociedade, da oferta de psicanálise a preços mais acessíveis, está sendo devidamente alcançado, e se os trabalhos desenvolvidos nas várias equipes atendem ao objetivo, voltado para a face interna da Sociedade, de desenvolvimento clínico e teórico de membros filiados do Instituto de Psicanálise e membros da Sociedade. Um histórico bem documentado da evolução do trabalho do CAP, o registro de seus dados e pesquisas constantes sobre os resultados obtidos ao longo dos anos pareceram à coordenação absolutamente indispensáveis para uma avaliação mais consistente do Centro e de suas várias atividades.

Questionamentos sobre o CAP demandando maiores estudos

A inserção, dentro de uma instituição psicanalítica, de um serviço dessa natureza cuja característica principal é ser mantido exclusivamente pelo trabalho de seus membros tem evidenciado questões que mereceriam maior aprofundamento.

Os dados colhidos durante esses quatro anos de gestão indicam, por exemplo, que a consideração pelas peculiaridades do atendimento, no qual há a presença do terceiro institucional, é um fator que o diferencia do atendimento privado em consultório, e que merece ser mais bem examinada. É preciso considerar que a passagem do trabalho em consultório privado, prática habitual dos participantes das equipes, para um trabalho em que a Sociedade é corresponsável é questão a ser mais bem analisada e compreendida.

É um fato que as pessoas que procuram o Centro vêm sobretudo pela relevância que a SBPSP tem em São Paulo, o que introduz de imediato uma transferência no terceiro institucional. Embora não haja qualquer interferência da Sociedade na intimidade da relação paciente-analista, ela é, em última instância, corresponsável pelos atendimentos oferecidos. É, portanto, atribuição da Sociedade propor as diretrizes gerais de funcionamento das equipes do CAP.

Uma questão que tem trazido preocupação é que apenas 30% das pessoas que se inscrevem para atendimento com a assistente social do CAP são efetivamente encaminhadas para os analistas. O restante, 70% dessas pessoas, não tem condições de arcar com o preço1 estabelecido pela coordenação para no mínimo duas sessões, podendo chegar a quatro sessões semanais, caso a decisão tomada para o encaminhamento seja de uma psicanálise standard, que interessa particularmente aos analistas em formação para suas supervisões oficiais. Por outro lado, identificam-se também resistências, do lado dos participantes do Centro, em trabalhar por valores muito abaixo do preço mínimo fixado, mesmo quando um número menor de sessões é proposto. As pessoas que não podem arcar com os preços praticados são dirigidas pela assistente social para outras instituições, que oferecem atendimentos gratuitos ou com valores ainda mais acessíveis.

Uma importante necessidade a ser pensada é quanto ao estudo das características do funcionamento psíquico de cada pessoa em busca de atendimento, para que a decisão a ser tomada com respeito ao tipo de tratamento a ser oferecido tenha um fundamento metapsicológico e não fique apenas condicionada pelo fator financeiro.

Também mereceria estudo a avaliação do interesse do público pela psicanálise nos moldes propostos pela nossa instituição, na atualidade, sobretudo neste momento em que o país encontra-se em situação de grave crise econômica.

Todas essas observações estão ainda a demandar reflexões aprofundadas sobre os trabalhos desenvolvidos no CAP e, possivelmente, uma nova visão a respeito da inserção de um setor com essas características numa Sociedade mantida por um conjunto de membros e sem aportes financeiros externos.

3. Parcerias e convênios

Outro Setor sob a coordenação da Diretoria de Atendimento à Comunidade é o de Parcerias e Convênios. Embora esse Setor já fizesse parte do organograma do Setor III, suas regras de funcionamento ainda não tinham sido inscritas num documento oficial da Sociedade, exigência necessária para o estabelecimento de convênios com outras instituições. A ideia que presidiu o desenvolvimento desse Setor foi incluir nas atividades oficiais da SBPSP um trabalho de natureza essencialmente social dirigido para a população em geral. As atividades são oferecidas em caráter gratuito e financiadas pela Sociedade. Instrumentos de convênio redigidos e assinados de comum acordo entre a SBPSP e as instituições interessadas oficializam os projetos a serem concretizados.

O desenvolvimento desse Setor permitiu que a SBPSP, por intermédio da DAC, venha sendo, então, procurada por outras instituições em busca de parcerias e convênios, todos em caráter gratuito. Essa ideia possibilitou à Sociedade, ao ser procurada para dar assessoria psicanalítica a essas instituições, criar atividades específicas para atender a essa demanda. A Sociedade remunera os psicanalistas que coordenam os trabalhos.

Parceria com a instituição Lar das Crianças da cip

A atividade inaugural desse Setor, no início de 2014, foi uma parceria com o Lar das Crianças da Congregação Israelita Paulista. Membros associados e efetivos da SBPSP dispuseram-se a dar supervisões gratuitas a psicólogos voluntários que atendiam crianças e adolescentes naquela instituição.

A criação do CINAPSIA proporcionou a feliz possibilidade de intersecção do trabalho que já estava em curso no Lar das Crianças com a necessidade de prática clínica do lado dos participantes do curso. Estes passaram a atender crianças e adolescentes do Lar em psicoterapia de base analítica. O atendimento é voluntário e gratuito, e os alunos recebem supervisão semanal e individual das professoras do corpo docente do CINAPSIA, também em caráter gratuito. Esse projeto está sendo muito bem avaliado pela direção do Lar das Crianças, e o desenvolvimento clínico dos participantes dessa experiência é evidente.

Parceria com o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis)

O Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) promoveu, juntamente com o Instituto Gallup, uma ampla pesquisa em âmbito nacional sobre a solidariedade do brasileiro. Por meio de parceria, solicitou à DAC um "olhar psicanalítico" sobre as conclusões obtidas na pesquisa. Constituiu-se um grupo de trabalho com membros da Sociedade, membros filiados e profissionais do Idis, e, depois de diversas reuniões, a participação da Sociedade mereceu um capítulo especial em publicação editada por aquele instituto (Idis, 2016).

Convênio com a Secretaria Municipal de Segurança

Esse convênio está em fase de estudos e de implantação, destinando-se à Casa de Atenção da Divisão Técnica de Orientação Social, que atende aos profissionais da Guarda Civil Municipal e seus familiares. Por esse convênio, o CAP disponibilizará atendimentos, em caráter gratuito, em psicoterapia breve de base psicanalítica aos profissionais da Guarda afastados de suas funções por questões psíquicas.

Vara da Infância e Juventude da Lapa - Tribunal de Justiça de São Paulo

Um convênio, com a equipe da Vara da Infância e Juventude da Lapa, do Tribunal de Justiça de São Paulo, está em fase de estudo para parceria com o Projeto Apadrinhamento Afetivo desenvolvido por essa equipe do Tribunal de Justiça.

Encontros e Conversas

Ainda dentro da perspectiva voltada para o social, foi criado um novo espaço, Encontros e Conversas, para o oferecimento de grupos, também gratuitos, com temas que pudessem interessar à comunidade: Prevenção ao uso indevido de drogas, destinado a profissionais da área; Desenvolvimento emocional da primeira infância, dirigido principalmente a professores de educação infantil; Adolescência e Família; Adoção, entre outros. Essa proposta foi muito bem recebida pelo corpo societário. Encontros e Conversas é uma atividade na qual um grupo de trabalho, conduzido por um membro da Sociedade e um observador, membro filiado do Instituto, coordenam a dinâmica grupal com base em um estímulo comum a todos os participantes. As expressões emocionais que emergem no grupo são então discutidas, sem que haja a intenção precípua de um trabalho psicoterápico direcionado aos indivíduos ou ao grupo.

Está em curso em Encontros e Conversas um grupo operativo com comandantes da Guarda Civil Municipal estabelecido igualmente com base no Convênio com a Secretaria Municipal de Segurança.

 

Considerações finais

Assinalamos na epígrafe o "cobre da psicoterapia" e o movimento "fora dos muros" como inspiração para a presença de uma Diretoria de Atendimento à Comunidade no seio da instituição psicanalítica. Essa presença, embora há anos venha possibilitando atendimentos de psicanálise para pessoas que não teriam condições de se beneficiarem de um atendimento privado e também ampliando a divulgação do pensamento psicanalítico, exige cuidados com vistas a que nessas atividades os pressupostos psicanalíticos não sejam perdidos.

É preciso considerar que a SBPSP é constituída e mantida por seus membros, em sua maioria mais habituados ao trabalho dentro do setting estrito da psicanálise tradicional. Esse fato, muitas vezes, pode suscitar resistências às atividades voltadas para o público externo. Por um lado, torna-se necessário que essas atividades sejam divulgadas dentro da instituição e seus propósitos expostos para que venham a ser compreendidos por seus membros. Por outro lado, essas mesmas atividades, distantes das práticas habituais dos psicanalistas, pedem especial atenção de todos os que são responsáveis pelo seu planejamento e execução para que se mantenham fiéis aos fundamentos da psicanálise e não derivem para campos deles distantes.

Consideramos que, dentro dessas premissas, há espaço para a elaboração de projetos sociais ainda mais ousados e abrangentes do que os que foram expostos neste trabalho. No entanto, para que isso se constitua como uma prática contínua dentro da SBPSP, algumas questões precisarão ser examinadas. Por exemplo, a ampliação de atendimentos em caráter de gratuidade, como os desenvolvidos atualmente no Setor de Parcerias e Convênios, ou a preços reduzidos, como os que são atualmente praticados no CAP, exigiria um aporte financeiro que uma associação de membros como é a SBPSP não tem condições de proporcionar ao longo dos anos.

As futuras gerações de colegas, caso decidam manter como conceito o de responsabilidade social da instituição psicanalítica desenvolvendo o Setor da Psicanálise Ampliada, precisarão buscar em instituições públicas e/ou privadas o apoio financeiro necessário para que as atividades voltadas à comunidade externa possam vir a ser desenvolvidas sem grande ônus, seja para a instituição, seja para seus membros. Por sua vez, a demanda por verbas ou outros tipos de patrocínio terá sempre como exigência regras bem estabelecidas nas quais a responsabilidade das partes deverá constar de forma explícita.

 

Referências

Bolognini, S. (2015). La función social del psicoanálisis. Palestra pronunciada em sessão plenária internacional com o tema "Engajamento do psicanalista no social" - Congresso Febrapsi São Paulo. (Tradução do texto em espanhol pelas autoras)        [ Links ]

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Idis - Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (2016). Pesquisa Doação Brasil 2015, realização Idis e Instituto Gallup. São Paulo.         [ Links ]

Lanzoni, M. P. Z. e Nóbrega, L. F. (1999). Ambulatório/Serviço de Atendimento, uma história, Jornal de Psicanálise, 32(58/59),277-303.         [ Links ]

Leite Netto, O. F. (2012). O atendimento à comunidade pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. In J. A. D. Pastore e S. G. S. Soares (Orgs.), O psicanalista na comunidade. São Paulo: SBPSP.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 28/11/2016
Aceito em: 20/12/2016

 

 

1 Nota: o valor de R$ 500,00 mensais é o mínimo proposto pelo CAP. O valor final, que pode ser mais alto, seja para duas ou mais sessões, é acordado entre paciente e analista, após o encaminhamento feito na equipe.

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