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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Reflexões sobre conjugabilidade e parentalidade. Um caleidoscópio de constituições familiares

 

Reflections on conjugality and parenthood. A kaleidoscope of family formations

 

Reflexiones sobre conjugabilidad y parentalidad. Un caleidoscopio de las constituciones familiares

 

Réflexions sur la conjugalité et le rôle parental. Un kaléidoscope des constitutions familiales

 

 

Marina Ferreira da Rosa Ribeiro

Prof. dra. do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. marinaribeiro@usp.br

 

 


RESUMO

O artigo faz uma reflexão sobre as novas formas de constituição familiar na contemporaneidade, com base na compreensão da complexidade dos vínculos intersubjetivos e de suas características polissêmicas e potencialmente transformáveis. Compreende-se que os aspectos intersubjetivos e intrassubjetivos são indissociáveis. O artigo apresenta algumas características da família contemporânea: horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. É discutida a questão da patologização do desconhecido, fruto das angústias diante do novo que se apresenta. Os conceitos de bissexualidade psíquica de Freud e a denominação neossexualidades de McDougall são usados na compreensão das novas formas de conjugabilidade e parentalidade.

Palavras-chave: conjugabilidade, parentalidade, vínculos intersubjetivos, constituições familiares


ABSTRACT

In this paper, the author presents a reflection on the contemporary ways of building families. Starting from understanding the complexity of intersubjective ties and their polysemic and potentially changeable features, the author believes that intersubjective and intrasubjective aspects are inseparable. The author writes about some features of contemporary family as follows, horizontal and fraternal (or brotherly), rearranged and networked, and usually with two or three successive marriages and their respective children. The author also discusses the issue of pathologizing the unknown. This pathologization arises from the anguishes of being in the presence of the new (or not familiar, not yet experienced). Freud's concepts of psychic bisexuality and the term "neosexualities", suggested by Mc Dougall, are used for comprehending new forms of conjugality and parenthood.

Keywords: conjugality, parenthood, intersubjective ties, family formations


RESUMEN

Este trabajo presenta una reflexión sobre las formas de constituciones familiares en la contemporaneidad a partir de la compresión de la complejidad de los vínculos intersubjetivos y de sus características polisémicas y potencialmente transformables, entendiendo que los aspectos intersubjetivos e intrasubjetivos son indisociables. El artículo aborda algunas características de la familia contemporánea: horizontal y fraterna, recompuesta y en redes, generalmente producto de dos o tres casamientos sucesivos, con sus respectivos hijos. Se discute también la cuestión de la patologización de lo desconocido, fruto de las angustias frente a lo que se presenta como nuevo. El concepto de bisexualidad psíquica de Freud y la denominación neosexualidades de McDougall es utilizado en la comprensión de las nuevas formas de conjugabilidad y parentalidad.

Palabras clave: conjugabilidad, parentalidad, vínculos intersubjetivos, constituciones familiares


RÉSUMÉ

Cet article est une réflexion sur les nouvelles formes de constitution de la famille dans la société contemporaine, à partir de la compréhension de la complexité des liens intersubjectives et ses caractéristiques polysémiques et potentiellement transformables, en entendant que les aspects intersubjectifs et intra-subjectifs sont inséparables. L'article présente quelques caractéristiques de la famille contemporaine: horizontale et fraternelle, recomposée en des réseaux, généralement avec deux ou trois mariages successifs et leurs enfants respectifs. On a aussi discuté la question de la pathologisation de l'inconnu, fruit de l'angoisse face à ce que l'on présente comme nouveau. Les concepts de bisexualité psychique de Freud et de la néo-sexualité de McDougall sont utilisés dans la compréhension des nouvelles formes de conjugalité et le rôle parental.

Mots-clés: conjugalité, parental, les rapports intersubjectifs, les constitutions familiales


 

 

A imaginação humana não tem limites. O psiquismo é de uma plasticidade ímpar, assim como as múltiplas e infinitas formas de conjugabilidade1 e parentalidade.2 Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a complexidade vincular característica do humano.

Bion (1962) foi um dos psicanalistas que estudaram e aprofundaram as questões vinculares, compreendendo os vínculos como elos que unem duas pessoas ou mais, no campo intersubjetivo. E, também, os elos intrassubjetivos que unem partes de uma mesma pessoa. Bion dedicou-se à análise do vínculo entre analista e analisando e entre os membros de um grupo. Os vínculos são polissêmicos e potencialmente transformáveis.

As reflexões aqui expostas privilegiam o aspecto intersubjetivo, considerando que todas as dimensões presentes nos vínculos estão inextrincavelmente ligadas e são indissociáveis umas das outras. A ênfase é na polissemia e plasticidade dos vínculos, características que parecem inviabilizar normatizações.

Levando em conta a potencialidade transformadora dos vínculos intersubjetivos, parto para uma reflexão panorâmica do que observamos nas complexas composições conjugais e parentais das famílias contemporâneas.3

 

Um caleidoscópio estonteante

O que era inimaginável há alguns anos hoje está nas ruas, na Internet, nas revistas. A ideia de família despedaçou-se em um caleidoscópio estonteante. Uma mãe menopausada gestando, uma avó que gera o neto, uma irmã que gera o sobrinho, as doações e adoções de gametas... a lista de novidades é grande, e tende a se estender ainda mais. A tecnologia de reprodução humana deu asas à imaginação, causando surpresas, discussões, preocupações. Como podemos pensar as relações familiares diante dessa explosão do conhecido que considerávamos estável? Como não tornar patológico o desconhecido?

A patologização pode ser compreendida como uma tentativa de organizar a angústia diante da vastidão de constituições familiares que encontramos hoje. O desconhecido acirra as angústias. Se a capacidade da mente de enfrentamento diante do novo for frágil, o apego ao conhecido e a patologização do desconhecido tornam-se modos defensivos de lidarmos com a experiência. O apego ao que já conhecemos muitas vezes é mais forte do que imaginamos ou do que gostaríamos. O desconhecido, o estranho causa medo e desamparo, levantando todo o arsenal de defesas do eu, tanto no campo intersubjetivo, quanto no intrassubjetivo, que são indissociáveis.

Temos a tendência de considerar o conhecido, aquilo que não estranhamos, como bom e profícuo. Os historiadores, entre outros estudiosos, podem favorecer o desprendimento de nosso relativo conhecimento histórico, além do desapego narcísico daquilo que nostalgicamente consideramos bom apenas por ser conhecido. Em outras palavras, conseguimos ter um olhar panorâmico sobre aproximadamente três gerações que nos antecedem e três que nos sucedem, apenas. Na história da humanidade somos um grão de areia na cadeia de gerações, mas para nós isso é simplesmente tudo. Precisamos, pois, dos historiadores para compreender que as relações humanas já foram muito diferentes dessa referência que ainda temos: a sagrada família.4

Philipe Ariès (1978) realizou um estudo iconográfico sobre a história social da criança e da família, atualmente uma obra de referência no assunto. O autor considera que, a partir do século XVI, com os quadros que representavam a sagrada família, teve início a família conjugal que conhecemos hoje, os pais e seus filhos. Como nascemos dentro desse contexto, a sensação subjetiva de que o mundo sempre foi assim é inevitável. Nessa perspectiva, a sagrada família ainda parece ser uma forte referência de um passado nostálgico e idealizado, quando havia uma organização familiar boa e saudável.

A sagrada família gerou e gera vínculos patológicos e pessoas psiquicamente doentes, assim como pessoas suficientemente razoáveis em seu funcionamento psíquico. Mesmo com todos os manuais para pais das décadas de 1950, 1960, 1970 e assim por diante, os quais tendem a perpetuar-se nas prateleiras, criar um filho e constituir a vida familiar continua a ser um grande desafio, sem receita, sem causalidades simplificadoras e, portanto, reducionistas da complexidade dos vínculos humanos. O ambiente psíquico da família é, pois, o nascedouro de todas as patologias e também do humano suficientemente saudável.

Segundo Weissmann (2009, p. 142), a família constitui-se com base em uma "rede de relacionamentos entre sujeitos atravessados pelo parentesco, na qual subjaz uma matriz vincular inconsciente que os abarca".

A família contemporânea caracteriza-se por ser horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. Há uma conjugalidade afetiva, com ou sem filhos (Roudinesco, 2003).

Hetero, homo, monoparental, pluriparental, e o que mais vier! De toda forma, a família continua a ser desejada como lugar de pertencimento. Penso que a pluralidade de constituições familiares existente hoje é fruto da plasticidade do psiquismo humano e da maior liberdade de manifestação das diferenças. Hoje aquilo que ficava escondido está nas ruas. Além disso, a tecnologia de reprodução humana tem viabilizado essa expansão de possibilidades, já que a procriação biológica sem a intervenção de técnicas não seria possível para pares do mesmo sexo biológico.

Diante de tamanha diversificação, e do risco de elegermos critérios nos quais predomina mais o medo do desconhecido do que algo que colabore com a compreensão da complexidade, trago a seguir o conceito freudiano de bissexualidade psíquica5 e a ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall.6

 

O conceito de bissexualidade psíquica

O termo "bissexualidade" foi sugerido a Freud por Wilhelm Fliess; há sobre isso vários comentários esparsos ao longo da obra freudiana, e aqui faço uma brevíssima apresentação do conceito, pois este já foi objeto de uma análise aprofundada em minha tese de doutorado citada acima.

Em 1923, em O ego e o id, ao discutir as identificações com os pais e o complexo de Édipo, Freud (1923/1980a) escreve:

A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo ... um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. (pp. 46-47)

Apenas em 1938, em Esboço de psicanálise, Freud usa a expressão "bissexualidade psicológica", e não mais bissexualidade constitucional. A bissexualidade, compreendida como identificação - primária e secundária - com os aspectos masculinos e femininos dos pais, é indissociável da constelação edípica e de suas múltiplas vetorizações homo e heterossexuais. No que diz respeito à temática da masculinidade e feminilidade, Freud (1925/1980b), escreve:

todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. (p. 320)

Estamos sempre diante de uma composição única e intrincada entre masculinidade e feminilidade, obra da singularidade da história individual e suas articulações inéditas e contínuas. A bissexualidade psíquica está na base das identificações edípicas.

Ogden (1992) escreve sobre as identificações bissexuais:

Quando se tem de fazer uma eleição entre a mãe e o pai (entre feminilidade e masculinidade) não se chega a ser nem masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925, 1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos. (p. 155)

Essa breve apresentação do conceito de bissexualidade psíquica dá a dimensão da complexidade da questão abordada aqui. As constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade que compõem uma identidade sexual assemelham-se a um caleidoscópio - são infinitas as composições possíveis. Logo, qualquer normatização pode levar a uma estagnação do que é próprio do humano suficientemente saudável: a constante expansão, transformação e criatividade.

 

As neossexualidades

McDougall (1999, 1991), psicanalista estudiosa da psicossexualidade humana, denomina neossexualidades as inúmeras possibilidades de vínculos entre duas pessoas. A autora não considera esse termo um conceito, mas sim uma forma de escutar os analisandos no que se refere à experiência da sexualidade, destacando que esta só pode ser considerada sintomática quando gera sofrimento no paciente ou em seus parceiros. Se o respeito às diferenças e à alteridade do outro estão presentes, não há motivos ou razões para considerarmos uma manifestação estranha a nós como patológica.

Uma vez mais precisamos reconhecer que quando nossos analisandos recontam estas condições complicadas ou incomuns de fazer amor com parceiros que consentem nisto, embora seus relatos possam nos levar a procurar pelo sentido oculto de tais cenários, se estas neossexualidades não causam nenhum sofrimento a nenhum dos parceiros e não são sentidas como indevidamente compulsivas, não temos nenhuma razão para levar estes analisandos a encarar outros objetivos sexuais por causa de nossos próprios julgamentos de valor. Se tal é nossa ambição, o problema é nosso, e não deles! (McDougall, 1999, p. 24)

Inicialmente, McDougall (1999) apresenta essa forma de denominar arranjos sexuais inusitados como uma maneira de autocura por parte dos pacientes. Considera que a erotização é um caminho para lidar como os traumas psíquicos, fazendo com que Eros prevaleça sobre Thanatos: "O que eu chamo de uma neossexualidade representa a melhor solução que a criança pôde encontrar para adquirir não somente uma vida e uma identidade sexuais, mas, algumas vezes, simplesmente uma identidade" (McDougall, 1991, p. 64). Em seu livro As múltiplas faces de Eros considera que "a sexualidade humana é inerentemente traumática e força o ser humano a um eterno questionamento" (McDougall, 1999, p. 12). Partindo dessa compreensão, a sexualidade humana, em suas diversas manifestações, pode ser considerada como uma conciliação sintomática; sendo assim, a totalidade da sexualidade consistiria em neossexualidades.

Esta é a articulação provocadora e interessante que McDougall faz: a experiência da psicossexualidade humana é constituída de neossexualidades.

Penso que essa maneira de denominar as manifestações sexuais considera a complexidade da questão para refletirmos sobre o novo que se apresenta, e o novo sempre se apresenta ao longo da história - a criatividade humana não tem limites. Neossexualidades parece nos livrar de preconceitos frutos de nossas angústias diante do que não conhecemos. Trata-se de uma denominação que, em vez de favorecer um vértice patológico, enfatiza aquilo que ainda não é conhecido e compreendido.7

Como bem descreve McDougall (1999), masculinidade e feminilidade são construídas ao longo do desenvolvimento com base em uma rede complexa de influências identificatórias, na qual os pais têm uma influência significativa:

Acrescento que podemos seguramente propor que a realização destas duas identidades fundamentais - por exemplo, nossa identidade de gênero, assim como nos-so senso de identidade sexual -, não é de forma alguma transmitida por herança hereditária, mas pelas representações psíquicas transmitidas, em primeiro lugar, pelo discurso de nossos pais, juntamente com a importante transmissão proveniente do inconsciente biparental - ao qual, mais tarde, é adicionado o input do discurso sócio-cultural do qual os pais são uma emanação. (McDougall, 1999, p. 15)

A trama identificatória constituída na vida adulta é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, que demanda muitos anos. Há, de fato, um longo percurso até nos tornarmos capazes de realização sexual genital. Caminho próprio a cada um, e extremamente plástico.

A constituição da identidade sexual é, portanto, algo muitissimamente complexo, fruto de uma constelação identificatória de masculinidade e feminilidade própria a cada um. Ser é ser do próprio sexo, e existem inúmeras, únicas e infindáveis formas de ser. Cada um compõe identificações masculinas e femininas de maneira única para ser do próprio sexo.

O reconhecimento das diferenças e da alteridade do outro está presente nos vínculos suficientemente saudáveis, independentemente da exterioridade na qual se apresentem. Esclareço: a composição manifesta de um casal, dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher, não acompanha nem revela a intrincada rede identificatória, predominantemente inconsciente, que está em jogo no funcionamento psíquico de uma dupla. As aparências não revelam essas complexas composições psíquicas de cada casal, constituídas por uma rede intrincada de constelações identificatórias.8

No âmbito da plasticidade do psiquismo e das constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade, a capacidade psíquica de reconhecimento da diferença entre os sexos e da diferença entre as gerações pode estar presente em uma relação entre duas pessoas biologicamente pertencentes ao mesmo sexo.

A sexualidade humana é uma psicossexualidade, sem formas fixas ou predeterminadas. Nesse sentido, podemos pensar que a sexualidade humana é imaginativa, decorrente das sensações corporais em concomitância com as múltiplas identificações provenientes do inconsciente do casal parental. As sensações corporais são o solo da imaginação da psicossexualidade humana. A identidade sexual de cada um de nós é única, como uma digital.9

 

As novas constituições familiares

Tendo em mente o conceito de bissexualidade psíquica e o termo "neossexualidades", volto ao tema específico do artigo, as novas constituições familiares.

A tecnologia de reprodução humana pode ser convocada a fazer parte tanto em vínculos manifestamente homo ou hétero, gerando uma série de desafios para os profissionais, além dos debates sociais e éticos sobre o tema. Há também aqueles casais que optam por adotar uma criança, e, nesse contexto, a participação de um terceiro - clínica de reprodução assistida ou judiciário - tem levantado acaloradas e difíceis discussões (Vieira, 2011; Toledo, 2008).

Os vínculos veiculam tanto aspectos criativos quanto outros que geram sofrimento. É característica dos vínculos humanos a concomitância e alternância tanto do amor, como do ódio, podendo predominar a amorosidade ou não, independentemente da forma pela qual se constituem. Existem vínculos nos quais predominam variáveis que geram sofrimento: o desrespeito à alteridade que pode levar a situações de violência. Perante o vértice no qual predominam vínculos que geram sofrimento, médicos e equipe são convocados a situações extremamente delicadas. Ante o vértice dos vínculos nos quais predominam o respeito às diferenças, aqueles que não geram níveis elevados de sofrimento em seus participantes, também há grandes surpresas, mas, geralmente, mais fáceis de serem recepcionadas, pois a capacidade psíquica de consideração à alteridade está presente. Esses são, então, os vínculos nos quais predominam os aspectos criativos e construtivos, independentemente da forma manifesta com a qual se apresentam, homo ou hétero.

O que acontece hoje não é inédito: já acontecia na cultura greco-romana. Na Roma antiga, os grandes generais tinham em casa a esposa e os filhos, e no exercício do poder, o fiel escudeiro, além de, muitas vezes, amante. Segundo Veyne (1985, p. 43), na Roma antiga as condutas sexuais não eram classificadas como homo ou hétero, mas como passivas e ativas. A passividade era a questão importante para essa sociedade, enquanto a bissexualidade era manifesta e aceita. Com o advento do cristianismo, a sagrada família tornou-se o modelo abençoado, e as relações homo foram consideradas pecaminosas, migrando das saunas públicas para lugares escondidos e culposos.

Os vínculos homoafetivos talvez sejam os mais polêmicos e alvos de uma patologização defensiva, também, infelizmente, por parte dos profissionais envolvidos.

A psiquiatria, por muitos anos, considerou como uma manifestação patológica a homossexualidade, que só deixou de pertencer há bem pouco tempo às classificações psiquiátricas (Roudinesco, 2003), e a homossexualidade masculina parece ter sofrido uma maior repressão social. Por causa disso, o escritor Oscar Wilde, por exemplo, na Inglaterra vitoriana, foi preso e condenado por atentado ao pudor - flagrante indecência. Em seu conhecido livro O retrato de Dorian Gray, insinua uma relação amorosa homossexual. A prisão e o afastamento dos filhos foram experiências tão devastadoras psiquicamente para Wilde, que esse gênio da literatura morreu precocemente, incapaz de voltar a criar.

Cabe um breve comentário acerca do imbróglio, também por parte dos psicanalistas nas últimas décadas, quanto à questão da homossexualidade. Bulamah e Kupermann (2013), no artigo intitulado "Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico", por meio da análise de arquivos e artigos, apresentam a discriminação sofrida por candidatos homossexuais à formação. Tanto Roudinesco (2003) como Bulamah e Kupermann (2013) citam uma carta de Freud escrita em 1935 a uma mãe americana preocupada com a homossexualidade do seu filho. Faço aqui uso da mesma citação, pois expressa de forma clara o que Freud (1951) pensava sobre a questão:

A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas nada existe nela de que se deva ter vergonha, não é nem vício nem um aviltamento, e seríamos incapazes de qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos altamente respeitáveis, dos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e entre eles encontramos alguns dos homens mais grandiosos (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, e também uma crueldade. (p. 787)

Como um grande e criativo pensador, Freud manteve-se aberto e ético quanto à questão da homossexualidade, mesmo considerando o momento histórico no qual viveu, imerso em uma forte normatividade heterossexual.

Interessante pensar que, até onde sabemos, não há registros de discussões ou manifestações preconceituosas quanto à homossexualidade feminina.

No caso clínico A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher, Freud (1920) relata que a característica da escolha do objeto de amor revela uma composição sempre dúplice de aspectos femininos e masculinos entrelaçados, satisfazendo tanto as tendências homossexuais como as heterossexuais, ou seja, a bissexualidade de base que estrutura o complexo de Édipo. Nesse relato clínico, analisa o caso de maneira isenta de qualquer julgamento normativo, como era sua característica.

A relação amorosa entre mulheres (Martinez, 2011; Corrêa, 2012) escapou parcialmente dessa mão de ferro moralista; parece ter usufruído de um maior benefício social, talvez por não provocar tantas reações fóbicas, pelas próprias características da feminilidade.

Até há pouco tempo, as relações entre pares do mesmo sexo biológico estavam no armário, não podiam aparecer ao sol. A pluralidade dos vínculos conjugais homo expandiu-se e ganhou visibilidade. Se há pouco tempo as relações homo eram vividas a sete chaves, com culpa e embaraço, hoje são públicas - que nossos olhos e mentes se acostumem às novas cenas amorosas, que não mais se restringem àquelas do mocinho beijando apaixonadamente a mocinha.

As cenas que vejo hoje na rua não fazem parte de minha infância, como farão parte da das novas gerações. Encontramos boa amostragem fazendo um passeio na Avenida Paulista, ícone paulistano. O estranhamento inicial talvez possa ser sucedido por uma familiarização com a diversidade de manifestações amorosas a que assistimos.

Uma jovem universitária comentou recentemente que quase todos os seus colegas mostravam-se disponíveis a experiências sexuais consideradas inusitadas pela geração anterior, ou, também, podemos refletir que essas experimentações sexuais não eram declaradas nas gerações passadas, permanecendo veladas. Precisamos também considerar que há hoje uma supervalorização narcísica do prazer sexual, talvez em detrimento do compromisso afetivo entre os pares, o qual implica enfrentamento das inevitáveis frustrações da convivência cotidiana.

Em determinado episódio do programa de televisão (GNT) Novas famílias, dirigido por João Jardim e que aborda essas novas constituições familiares, um casal constituído por dois homens e dois filhos frutos de um processo de fertilização assistida e barriga solidária, adverte: "nossos filhos vão crescer sem estranhar o nosso amor". De fato, se os filhos são considerados uma bênção da união do casal, dentro das referências sociais ainda predominantes, a sagrada família, os pares do mesmo sexo biológico também desejam essa inclusão. Muito além disso, desejam a experiência da parentalidade, ser pai e mãe. As funções materna e paterna não estão encarceradas em um sexo biológico, são funções psíquicas e, portanto, também plásticas em sua realização.

O desejo de ter um filho é carregado de fantasias inconscientes, desejo primordial, de nos vermos e nos sucedermos em nossos filhos, como escreveu a poetisa Lya Luft (1997, p. 37): "naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo, amado meu, como eles se verão futuramente quando nós formos sombra na memória". Ter filhos é uma maneira de realizar o desejo narcísico de imortalidade do eu: algo que é próprio a cada um pode ter continuidade em um filho.10

A tecnologia de reprodução humana apresentou uma oferta que viabiliza a procriação onde isso biologicamente não era possível, gerando inéditos arranjos familiares. Pesquisas sobre as novas constituições familiares surgidas com auxílio das técnicas de reprodução assistida estão sendo feitas (Souza, 2014), e muitas outras surgirão.

O exercício da parentalidade entre pares do mesmo sexo biológico não parece ser estritamente atual, provavelmente já ocorria de maneira informal e não explicitada. Lembro-me do relato de uma paciente, nascida na década de 1940, pertencente a uma família de cinco filhos: o pai tinha sempre ao seu lado um grande amigo, e os dois trabalhavam e viajavam juntos. Na memória dos seus olhos de criança, que enxergam afeto e ternura, era um tio querido e amado por todos; já adulta, percebeu que não era apenas o melhor amigo do pai, mas também seu amante.

O que é significativo, marcante, é o afeto - a forma pela qual ele se manifesta não segue regras, nem formatações; ao contrário, os vínculos são polissêmicos e plásticos.

A novidade parece ser a intervenção de um terceiro, o médico ou o sistema judiciário (no caso das adoções), deslocando a situação vivida informalmente na intimidade dos lares para o lugar público, demandando novos formatos legais e inúmeras discussões. A medicina tornou possível que duplas homossexuais gerem filhos com o uso da tecnologia de reprodução humana, além dos casos de adoção, abrindo uma grande e polêmica discussão ética na sociedade (Almeida, 2012; Rodriguez, 2012). No entanto, o exercício da parentalidade fora do modelo da sagrada família parece anterior ao advento das novas tecnologias de reprodução humana. A diferença é que hoje se trata de um assunto público e publicável.

Diante desse caleidoscópio de constituições familiares a céu aberto, talvez o mais importante e desafiador seja não tornar patológico o desconhecido, e ter sempre em mente a plasticidade das constituições dos vínculos humanos, nos mantermos abertos à compreensão da alteridade do outro e das neossexualidades.

Finalizo com um belíssimo conto de Mia Couto (2013) chamado O embondeiro que sonhava pássaros. A história é uma descrição fantástica sobre um vendedor de pássaros que encantava as crianças na rua. Os pais paulatinamente se sentiram ameaçados por aquele desconhecido que maravilhava crianças e pássaros. "Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?"

Perseguido pelos moradores João Passarinheiro é inquirido pela polícia:

Inquirido sobre a sua raça, respondeu:

- A minha raça sou eu, João Passarinheiro.

Convidado a explicar-se, acrescentou:

- Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia. (p. 65)

Todos nós somos únicos, e os vínculos que estabelecemos também são únicos. A compreensão das contemporâneas formas de conjugabilidade e parentalidade passa pela capacidade e disponibilidade de compreender e conhecer o novo.

Por fim, quando uma humanidade inteira, um eu, é capaz de compreender outro eu, algo de extraordinário e sublime acontece, e o extraordinário torna-se comumente humano.

 

Agradecimentos

Agradeço a Claudia Perrotta, Gina Tamburrino, Lisette Weissmann e Raquele Ferrari pelas sugestões para o desenvolvimento deste artigo.

 

Referências

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Recebido em: 29/2/2016
Aceito em: 14/9/2016

 

 

1 O termo "conjugabilidade" surgiu como um neologismo derivado da palavra "conjugar" (Diehl, 2002).
2 Concepção contemporânea do processo mental de se tornar mãe ou pai, também um neologismo (Solis-Ponton, 2004).
3 Este artigo se abre como possibilidade de reflexão com base em duas pesquisas desenvolvidas anteriormente: Psicanálise e infertilidade: desafios contemporâneos (dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, 2003), publicada como livro em 2004 com o título de Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea. E, também, a tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (PUC-SP, 2009), publicada como livro em 2011. Além de dois artigos que tangenciam questões próximas: "A bissexualidade psíquica: livre trânsito" (2008) e "O gênero do analista: reflexão necessária? Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica" (2012). Utilizo-me também nesta reflexão do conceito de bissexualidade psíquica (Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d) e da ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall (1999, 1997 e 1991).
4 Uso essa denominação "sagrada família" como referência compartilhada por muitos e por várias gerações.
5 Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d.
6 McDougall, 1999, 1997 e 1991.
7 S. Muszkat (2014), em recente artigo, também utiliza o conceito de neossexualidades para pensar sobre a ampla gama de expressão das sexualidades, muito além dos padrões binários normativos da heterossexualidade.
8 Termo desenvolvido na tese de doutorado De mãe em filha. A transmissão da sexualidade, 2009.
9 Tema desenvolvido em minha tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (2009).
10 Para um aprofundamento remeto o leitor ao meu livro Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea, 2004.

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