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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA: FILOSOFIA DA PSICANÁLISE

 

Há uma relação entre filosofia e psicanálise?

 

Is there a relation between philosophy and psychoanalysis?

 

¿Existe una relación entre la filosofía y el psicoanálisis?

 

Y a-t-il un rapport entre philosophie et psychanalyse?

 

 

Ana Carolina Soliva Soria

Doutora em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Professora adjunta do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCAR - São Carlos, São Carlos. anasoliva@ufscar.br

 

 


RESUMO

O presente artigo, que tem como guia as ideias de Sigmund Freud expostas nas "Palavras preliminares" de Fragmento de uma análise de histeria, visa investigar uma possível relação entre filosofia e psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise, filosofia, caso clínico, Dora


ABSTRACT

The purpose of this paper, which is based on Sigmund Freud's ideas presented in the prefatory remarks to Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria, is to investigate a possible relation between Philosophy and Psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Philosophy, clinical case, Dora


RESUMEN

Tomando como punto de partida las ideas de Sigmund Freud expuestas en las palabras preliminares de Fragmento de análisis de un caso de histeria, este artículo tiene como objetivo investigar una posible relación entre la filosofía y el psicoanálisis.

Palabras clave: psicoanálisis, filosofía, caso clínico, Dora


RÉSUMÉ

Tout en partant des idées de Sigmund Freud présentées dans l'Avantpropos au Fragment d'une analyse d'hystérie, cet article examine la possibilité d'un rapport entre la psychanalyse et la philosophie.

Mots-clés: psychanalyse, philosophie, cas clinique, Dora


 

 

É bastante comum aos pesquisadores que trabalham com a filosofia terem de enfrentar a seguinte questão, formulada pelas pessoas que, mesmo sensíveis e interessadas por essa disciplina, não se dedicam a ela: "mas, afinal, para que serve a filosofia?" Essa inquietação não é destituída de motivos. Ao tomarmos o que expõe o Dicionário Oxford de Filosofia, podemos encontrar indícios das razões desse questionamento. Lemos ali o seguinte:

Em filosofia, são os próprios conceitos através dos quais compreendemos o mundo que se tornam tópico de investigação. A filosofia de uma disciplina, como a filosofia da história, da física ou do direito, não procura resolver problemas históricos, físicos ou legais, mas antes estudar os conceitos que estruturam o pensamento em tais disciplinas, e tornar claros os seus fundamentos e pressupostos. Nesse sentido, a filosofia é o que acontece quando uma prática se torna autoconsciente. (Blackburn, citado em Aranha, 2009, p. 24)

Na definição acima, encontramos um delineamento bastante preciso do lugar da filosofia em relação às demais disciplinas e suas práticas no mundo: não é o mundo, ou, ainda, as ações concretas dos indivíduos e os eventos particulares que se tornam tópicos de sua investigação, e sim os conceitos que nos permitem compreender o mundo. De acordo com o autor do verbete, podemos afirmar que o objeto de exame filosófico não é, por exemplo, a implementação de certa lei, tal como a antifumo. Esse evento, visto apenas com base em suas particularidades, não diz respeito à filosofia, mas antes, ao direito. Não queremos, de maneira alguma, afirmar com isso que situações como essa não pertençam à investigação filosófica. Sua aparição ficaria, contudo, condicionada ao seguinte pressuposto: enfrentar o tema com base em um ponto de vista conceitual, tornando claros os seus fundamentos e pressupostos.

Segue-se disso que não é a implantação da lei antifumo que estaria no centro da questão, e sim problemas como: cabe ao Estado regular as escolhas mais íntimas da vida dos indivíduos, como as relacionadas à saúde e ao vigor? Ou, ainda, não competiria ao Estado oferecer as condições básicas para que as escolhas privadas pudessem se dar de modo livre? Esses questionamentos nos levam a outros: qual o papel e a função do Estado? O que é o Estado justo? A resposta para essas questões não está na particularidade dos eventos do mundo, mas na ideia que formamos com base neles. Tal como definido acima, a filosofia de uma disciplina, ou, se quisermos, a própria filosofia, não escolhe como objeto de investigação o mundo em sua qualidade imediata e singular, mas a visão objetiva e desinteressada deste.

Ao tomar as ideias como tópicos de investigação do mundo, a filosofia parece estar circunscrita a um ambiente bastante restrito, a saber, o espaço intelectual. Interrogar conceitos nada mais é do que interrogar o próprio pensamento. O exercício filosófico segue um método bastante preciso: o da dobra do pensamento sobre si, ou, pelo que se costuma designar, reflexão.

Ora, desse ponto de vista, a filosofia parece estar separada do mundo que nos é comum por um abismo, sendo o filósofo um ser que vive em um universo imaterial, ou na "cucolândia das nuvens", para usarmos a expressão de um pensador que se debruçou sobre as questões da relação da filosofia com o mundo, a saber, Schopenhauer (2005). Sigmund Freud também tirou proveito dessa imagem caricaturada do filósofo na 35ª das Novas conferências de introdução à psicanálise. Nesse texto, o trabalho do filósofo é exposto da seguinte maneira: "com seus barretes de dormir e farrapos de seu robe de chambre/Tapa as lacunas do edifício universal" (Freud, 1932/1999b, p. 148).1

Nessa conferência, como sabemos, será recusada a construção de uma visão de mundo pela psicanálise, isto é, "uma construção intelectual tal, que solucione de maneira unitária todos os problemas de nossa existência com base em uma hipótese que se ponha acima de qualquer outra" (Freud, 1932/1999b, p.150). Segundo Freud, em uma visão de mundo "nenhuma questão permanece em aberto e tudo o que chama nosso interesse acha seu lugar preciso" (Freud, 1932/1999b, p. 150).

A filosofia de uma disciplina específica, como a da psicanálise, poderia parecer, segundo o que acabamos de expor, um contrassenso. E mais: a filosofia misturada à prática analítica, um total desvio de rota. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o método reflexivo seria completamente estranho à psicanálise e deveria ser apartado da prática psicoterapêutica. Não se poderia falar, então, em uma reflexão sobre a clínica, ou que os conceitos não poderiam ser tópicos de investigação do psicanalista. Separar de maneira radical filosofia e psicanálise parece, assim, levar-nos a conclusões extremas e até absurdas.

Esforcemo-nos agora por tomar o problema inicial de outro ponto de vista e recomecemos nosso trajeto com base no que expõe Freud acerca dos problemas que a prática clínica impõe à disciplina por ele fundada. E, para nos posicionarmos em um ponto aparentemente muito distante do inicial, passemos à análise de um caso clínico repleto de lacunas e questões em aberto. Referimonos ao Dora, e ao que o autor expõe no início desse texto.

 

As dificuldades de relatar o caso

Já no título do caso Dora, o problema da incompletude está exposto: Fragmento de uma análise de histeria. Logo de início, intriga-nos por que uma fração de análise, ou, ainda, uma análise da qual dispomos apenas de restos que não completam um todo, interessaria ao leitor. Aparentemente, uma análise digna de ser publicada seria aquela que o terapeuta chegou ao fim desejado, ou, ainda, em que pôde expor uma técnica eficaz para a solução de um caso particular. Não é isso, contudo, o que Freud nos apresenta: assim como outros médicos, ele foi incapaz de ajudar sua paciente. Esta abandonou a análise por vontade própria três meses após o início do tratamento. Alguns dos enigmas do caso ainda não haviam sido abordados, e os que chegaram a ser analisados só se esclareceram de maneira incompleta.

Além disso, em "Palavras preliminares", o autor afirma que a técnica de que se serviu durante a análise da enferma - a associação livre - permitia a ela passar do relato de fatos do passado para o de fatos do presente, e vice-versa, dando ao conjunto de sua fala uma feição desordenada e fracionada. Soma-se a isso o fato de a análise da paciente ter por base o que foi exposto em seu estudo exaustivo e prolongado sobre os sonhos, publicado em 1900. Como afirma o próprio autor, A interpretação dos sonhos foi alvo de várias críticas de seus colegas médicos, sobretudo, tendo em vista o seguinte ponto: redigido com base na análise de sonhos do próprio Freud, ou seja, em que o sujeito e o objeto de estudo científico coincidiriam, suas conclusões não poderiam produzir um convencimento baseado no controle crítico. Os resultados da obra não seriam passíveis de validade universal. A mesma ausência de universalidade poderia ser detectada na incompletude do caso Dora, mais um exemplo da ineficácia do método interpretativo que conferiria razão aos opositores de Freud.

Para além das questões apontadas acima, outras de ordem técnica também devem ser consideradas: Freud atendia de seis a oito pacientes por dia, sem tomar nota durante as sessões para não despertar a desconfiança destes e perturbar o andamento da análise. Por essa razão, um histórico muito prolongado seria de difícil redação. O caso não deveria conter múltiplos desdobramentos; teria de ser abarcável em sua escritura, memorizável e simples. O tratamento de Dora, como dissemos, não ultrapassou três meses, e seus esclarecimentos agruparam-se em torno de dois sonhos anotados no final da sessão. O histórico clínico, ao contrário, foi redigido de memória após o término do tratamento. Freud não se manteve fiel à sequência do aparecimento dos temas e dos esclarecimentos na análise. Para a redação, o caso foi recomposto, tentando manter outro tipo de fidelidade que não a fonográfica. Lemos no texto:

Escrevi o próprio histórico da enfermidade de memória apenas após a conclusão do tratamento, enquanto o tinha ainda fresco em minha recordação e elevado pelo interesse da publicação. Por isso, o escrito não é absolutamente - fonograficamente - fiel, mas pode reivindicar um grande grau de confiança. Nada essencial alterou-se nele, se bem que, para maior coerência, em muitas passagens modifiquei a sequência dos esclarecimentos. (Freud, 1901/1999a, pp. 166-167)

Acrescenta-se a isso uma série de outras dificuldades para a redação do histórico clínico, ligadas à preservação da identidade da paciente. Primeiramente, porque há certos acontecimentos da vida da enferma, muito próprios dela, que não poderiam ser comunicados, sobretudo, sob pena de revelarem quem seria o indivíduo relatado no caso. Freud escreve:

Se é verdade que a causa das enfermidades histéricas encontra-se nas intimidades da vida psicossexual dos enfermos e que os sintomas histéricos são a expressão de seus mais secretos desejos reprimidos, o esclarecimento de um caso de histeria terá por consequência revelar essas intimidades e trazer à luz esses. É certo que os enfermos não teriam falado se suspeitassem que suas confissões pudessem ser objeto de um uso científico, e também é certo que seria em vão pretender que eles mesmos autorizassem a publicação. Pessoas delicadas, mas bastante temerosas, fariam prevalecer nessas condições o dever da discrição médica e lamentariam não poder contribuir para o esclarecimento científico.
(Freud, 1901/1999a, p. 164)

Ora, todas as dificuldades levantadas até aqui - o caráter fragmentado do caso; a falta de êxito; o uso do método interpretativo, cujos resultados não poderiam ser objetivados; a redação de memória dos eventos do caso; e a reconstrução por Freud de todos os acontecimentos particulares da vida da paciente (falsificando-os para a sua redação) - apontam para uma dificuldade ainda maior, já apresentada anteriormente: como dar ao texto um caráter universalmente válido? Como contornar todos os problemas apontados e, com base em uma pequena peça, chegar a resultados de validade objetiva? Em um primeiro momento, o caso poderia não passar de um roman à clef, no qual não se alcançaria a objetividade pela particularidade dos eventos.

Freud, entretanto, nesse caso parece estar buscando exatamente o contrário disso. Vejamos a questão mais de perto.

 

Uma solução não sistemática

Ao comentar a necessidade de preservação da identidade dos pacientes, Freud emite a seguinte posição sobre o problema:

Mas sou da opinião de que o médico não só tem obrigações para com seus enfermos como indivíduos, mas também para com a ciência. E dizer para com a ciência equivale, no fundo, a dizer para com os muitos outros enfermos que padecem do mesmo ou poderiam sofrer disso no futuro. A comunicação pública do que se crê saber acerca da causa e do conjunto da histeria converte-se em um dever, e é censurável covardia omiti-la, sempre que se pode evitar o dano pessoal direto ao enfermo em questão. (Freud, 1901/1999a, p. 164; grifo meu)

O médico tem obrigações não apenas em relação ao campo da subjetividade do tratamento dos sintomas, isto é, ao tratamento deste paciente em particular (Dora, nesse caso), mas com todos os que adoecem e que um dia poderão adoecer. E, conforme avançamos no caso, o leitor experimentado na obra de Freud pode constatar que não há uma diferença de natureza entre o indivíduo normal e a histérica. Dito de outro modo, no psiquismo normal, o que vigora são afetos de menor intensidade que no do enfermo; não podemos distinguir um do outro pela qualidade destes, ou de qualquer outra propriedade psíquica: instâncias, representações, princípios que regulam os acontecimentos da alma etc. Estamos autorizados, então, a afirmar que este paciente poderia ser qualquer outro indivíduo; e que o compromisso do médico não é apenas com um paciente específico, mas com toda a humanidade. A redação do caso tem de tocar, assim, o que os homens têm de compartilhável. Um caso clínico singular, que não pudesse ser alçado à condição de exemplar, ao que nos parece, não teria interesse algum para o público em geral e, possivelmente, para a construção de uma teoria psicanalítica.

Perguntamo-nos, então, quem é Dora, senão a representante de todos os casos de histeria e, em certo sentido, de um fundo comum a todos os indivíduos? Personagem, cuidadosamente construída por Freud, que vai além da fidelidade dos acontecimentos materiais. Mas como?

A reconstrução do caso se dá, segundo o autor, da seguinte maneira: Freud escolhe relatar o caso de uma paciente que não habitava Viena, cujos acontecimentos eram desconhecidos na capital. Guardou segredo, desde o início, desse tratamento. Esperou quatro anos após a sua conclusão para publicar esse caso, tempo necessário para que a vida da paciente tomasse novos rumos. Nenhum nome é conservado, e o caso é relatado em uma revista estritamente científica, protegendo a enferma do público não especializado. Esses cuidados restringiram enormemente a escolha de seu material, de tal modo que, segundo o autor, apenas um caso poderia ser relatado. Predominância do particular na construção de uma ideia universal? Prevalecimento do subjetivo na fundamentação e no alicerce da objetividade? Como, do múltiplo, chegamos a uma unidade teórica que exponha a enfermidade em toda a sua veracidade e realidade?

Se Freud, por um lado, dissimula muitas das informações da vida pessoal da enferma, modifica a ordem dos esclarecimentos na clínica, não se mantém fonograficamente fiel ao que foi apresentado em análise; por outro, expõe o que acredita ser de interesse real: as relações sexuais e os órgãos e funções da vida sexual. Estes não são dissimulados; ao contrário, apresentam-se com seus verdadeiros nomes.

Na construção do caso, a reprodução mecânica e idêntica, em cada um de seus pontos, do que se deu em análise pode não contribuir para a ciência. A busca pela materialidade dos fatos pode, até mesmo, nos distanciar dos resultados pretendidos. Basta recordarmos os textos em que Freud depositou confiança na efetividade dos relatos de seus enfermos, tal como na abandonada teoria da sedução. Segundo nossa leitura, assim como buscar a verdade do relato em uma espécie de identidade entre o relato do enfermo e seu passado efetivo nos leva a equívocos enormes, também a identidade entre a escritura de Freud e o tratamento efetivo de Dora não deve ser esperada. Essa relação direta somente faria desaparecer a "mais sutil estrutura da neurose" (Freud, 1901/1999a, p. 169), tão buscada pelo autor.

A reconfiguração do caso parece acontecer tendo em vista a exposição da regra geral dessa estrutura. Nesse processo de construção, se há um pensamento que se volta sobre si, ou, ainda, um ato reflexivo, este acontece ao separar-se o supérfluo do essencial, mas não só isso: deve-se tomar o material fragmentado em seu conjunto e saber olhar para além das pequenas peças singulares a fim de reconstruir em toda sua veracidade e realidade os problemas vitais que movem todos os indivíduos. A esse respeito, o autor escreve:

Em vista da incompletude de meus resultados analíticos, não me resta senão seguir o exemplo daqueles pesquisadores que têm a felicidade de trazer à luz, após longas escavações, os inestimáveis, ainda que mutilados, restos da antiguidade. Completei o incompleto com os melhores modelos que me eram conhecidos de outras análises, mas, tal como um arqueólogo consciencioso, não deixei de declarar em nenhum caso onde minha construção se aplica ao autêntico. (Freud, 1901/1999a, pp. 169-170)

Tal como um cuidadoso arqueólogo, Freud toma os restos mutilados da análise de Dora e consegue formar uma imagem que os ultrapassa. A clínica de outros pacientes lhe fornece as peças que faltavam para completar o desenho. Mas, seguindo o exemplo do arqueólogo, que não poderia reconstruir uma peça sem formar para si a visão de que o mesmo princípio de construção está em outras peças de que dispõe também fragmentariamente, o teórico da psicanálise não poderia passar de um caso a outro se não percebesse que se trata, em todos eles, dos mesmos pressupostos, ou, ainda, que a mesma regra de construção de um vigora nos casos em geral. Saber delinear os contornos do que está além de nossa vista: eis aí um procedimento bastante comum nos textos de Freud. Das análises de seus pacientes e de si próprio, apreendeu os contornos e as leis do funcionamento psíquico mais geral; no neurótico adulto, soube ver a criança e o selvagem; na fantasia, soube encontrar os verdadeiros anseios dos seres humanos; nos restos de um passado petrificado, soube encontrar o núcleo dos anseios vitais; conseguiu ler os caracteres destituídos de significado e propor para eles uma tradução plena de significado.

Em outro texto, publicado anos antes do caso Dora, Freud também se vale da mesma metáfora arqueológica e a apresenta em seus detalhes mais ricos:

Suponham que um investigador viajante chegue a uma região pouco conhecida, onde seu interesse é despertado por um campo em ruínas, com restos de muro, fragmentos de colunas, de tábuas com caracteres apagados e ilegíveis. Ele pode contentar-se em contemplar o que aflora livremente, em seguida inquirir os que habitam nas proximidades, talvez habitantes semibárbaros, acerca do que sua tradição manifesta sobre a história e significado daqueles restos monumentais, anotar suas explicações e - continuar viagem. Mas ele pode proceder também de outro modo: pode levar consigo picaretas, pás e enxadas, convocar os vizinhos para o trabalho com esses instrumentos, demarcar com eles o campo de ruínas, remover o entulho e revelar os restos perceptíveis ou enterrados. Se o êxito recompensa seu trabalho, então os descobrimentos esclarecem a si mesmos; os restos de muro pertencem a circunvalação de um palácio ou casa do tesouro, um templo que se completa das colunas em ruínas, as numerosas inscrições encontradas, bilíngues nos casos favoráveis, desvelam um alfabeto e uma língua, e cuja decifração e tradução oferecem aberturas inesperadas sobre os acontecimentos do tempo passado, em cuja memória foram erguidos aqueles monumentos. Saxa loquuntur!2 (Freud, 1896/1999c, pp. 426-427)

Certamente o trabalho arqueológico tomado aqui como exemplo não é o mesmo que o filosófico anteriormente apresentado, que com seu robe de chambre e seu gorro de dormir tenta tapar as lacunas do mundo. Esse trabalho de completar o incompleto com os melhores modelos tirados de outras análises não produz sistema algum de pensamento, isto é (e vale a pena retomarmos a citação), "uma construção intelectual tal que solucione de maneira unitária todos os problemas de nossa existência com base em uma hipótese que se ponha acima de qualquer outra". Quando afirmamos que Dora é um modelo exemplar, temos de ter em vista que esse modelo não é único: ele será exposto também no pequeno Hans, em Schreber, no Homem dos Lobos, no Homem dos Ratos e em tantos outros casos menores e em tantas outras interpretações de sonhos. E como não mencionar o personagem principal e mítico - o Édipo?

Todos eles apontam para um funcionamento anímico comum à espécie, contudo, não exploram as infinitas possibilidades da existência humana particular. Vale lembrar que, se o inconsciente não se esgota no tornar-se consciente e a interpretação não alcança o umbigo das formações inconscientes, Freud também está impedido de deixar tudo às claras, esgotando o caráter fragmentário da análise. Do contrário, teria de recusar os pressupostos de A interpretação dos sonhos.

 

Filosofia e psicanálise

Ora, não haveria nesse procedimento tão comum da escritura de Freud um parentesco com a filosofia? Mesmo que lacunar, o que se expõe não é uma ideia laboriosamente construída? Se Binswanger afirma que, "assim como a planta original de Goethe não é uma planta, mas uma ideia, como Schiller declarou em sua famosa conversa com Goethe, e para espanto deste, assim também o homem original freudiano não é um homem real, mas uma ideia" (Binswanger, 1970, p. 206), podemos corrigir sua sentença da seguinte maneira: o homem original freudiano, mesmo sendo uma ideia, é um homem real, e talvez a realidade mais significativa e impositiva que se pode experimentar. Uma realidade que se impõe sobre a materialidade dos fatos, capaz de produzir medos, alucinações, esquecimentos, recordações, lapsos e tantas outras coisas. Como construção de uma ideia, há muito de filosófico no procedimento de Freud. Uma ideia que, contudo, não nos aliena do mundo, mas nos enraíza no que ele tem de mais real e verdadeiro.

Desse ponto de vista, seria possível, então, uma filosofia da psicanálise? Se há algo de filosófico no procedimento analítico e na construção conceitual de Freud, sem o que jamais seria possível propor conceitos fundamentais para o tratamento psíquico, tais como inconsciente, pulsão, processo primário, fantasia, censura etc., não podemos, por outro lado, desconsiderar que esses conceitos inundaram a filosofia e se tornaram tópicos de sua investigação. Não uma investigação que vise pôr o filósofo na atuação direta no mundo, tornando-se agente da clínica psicanalítica, mas levá-lo a enfrentar esses conceitos para tornar claros os seus pressupostos e fundamentos.

Mas, sobre isso, o leitor poderia, por fim, indagar-nos se quando Freud atua na clínica já não estaria, ao mesmo tempo, formulando esses esclarecimentos na forma de uma metapsicologia. Nós não poderíamos discordar dele. Seria então inconsequente arriscar que primeiro o autor faz clínica, para depois teorizar sobre ela. Ou, dito de outro modo, que partiria dos problemas do homem no mundo para depois construir a ideia geral sobre ele. Nesse ponto, as figuras do filósofo e do psicanalista parecem embaralhar-se, não sendo possível separá-los de maneira radical sem cair novamente em conclusões artificiais e, por que não dizer, absurdas.

 

Referências

Aranha, M. L. A. (2009). Filosofando: Introdução à filosofia. São Paulo: Moderna.         [ Links ]

Binswanger, L. (1970). La conception freudienne de l'homme. In L. Binswanger, Discours, parcours, et Freud: Analyse existencielle, psychiatrie clinique et psychanalyse. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Freud, S. (1999a). Bruchstuck einer Hysterie-Analyse. In S. Freud, Gesammelte Werke. Bd. V. Frankfurt am Main: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1901)        [ Links ]

Freud, S. (1999b). Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuhrung in die Psychoanalyse. In S. Freud, Gesammelte Werke. Bd. XV. Frankfurt am Main: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Freud, S. (1999c). Zur Ätiologie der Hysterie. In S. Freud, Gesammelte Werke. (Vol. 1). Frankfurt am Main: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1896)        [ Links ]

Freud, S. (2006a). La etiología de la histeria. In S. Freud, Obras completas. Vol. 3. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1896)        [ Links ]

Freud, S. (2006b). Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis. In S. Freud, Obras completas (Vol. 22). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Schopenhauer, A. (2005). O mundo como vontade e como representação (Tomo 1. J. Barboza, trad., apresentação, notas e índices). São Paulo: Editora da Unesp.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/11/2016
Aceito em: 6/12/2016

 

 

1 Segundo a edição comentada das Obras completas de Freud editada pela Amorrortu, esse trecho é uma citação do Die Heimkehr, LVIII, de H. Heine (Freud, 1932/2006b, p. 148, n. 2).
2 As pedras falam! Tradução do latim sugerida pela edição argentina. Cf. S. Freud, La etiología de la histeria, A. E. (Vol. 3, p. 192).

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