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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA: FILOSOFIA DA PSICANÁLISE

 

O discurso psicanalítico e a filosofia

 

Psychoanalytic speech and philosophy

 

El discurso psicoanalítico y la filosofía

 

Le discours psychanalytique et la philosophie

 

 

Janaina Namba

Departamento de Filosofia e Metodologia da Ciência da Universidade Federal de São Carlos (DFMC-UFSCAR), São Carlos. jnambapimenta@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto pretende apontar algumas possíveis relações entre o discurso psicanalítico e a filosofia. Trata-se, em especial, de mostrar como uma leitura exterior e alheia, que a fenomenologia de um Ludwig Binswanger, um Jean Hyppolite, um Paul Ricœur e sobretudo um Merleau Ponty fazem do discurso psicanalítico, acaba por recortar e deturpar o discurso psicanalítico.

Palavras-chave: psicanálise freudiana, fenomenologia, sexualidade, lembrança, sonho


ABSTRACT

This paper's purpose is to demonstrate some possible relations between psychoanalytic speech and Philosophy. In this paper, the author's main focus is on the way the psychoanalytic speech turns out to be misunderstood and incomplete by the outside, "unconnected" reading and interpretation made by authors like Ludwig Binswanger, Jean Hyppolite, Paul Ricœur, and, especially, Merleau-Ponty, and their Phenomenology.

Keywords: Freudian Psychoanalysis, Phenomenology, sexuality, dream, memory


RESUMEN

Este texto pretende mostrar algunas relaciones posibles entre el discurso psicoanalítico y la filosofía. En particular, mostrar como la lectura exterior y ajena que hace la fenomenología de Ludwig Binswanger, Jean Hyppolite, Paul Ricœur y especialmente Merleau-Ponty acaba por recortar y tergiversar el discurso psicoanalítico.

Palabras clave: psicoanálisis freudiano, fenomenología, sexualidad, sueño, recuerdo


RÉSUMÉ

Ce texte vise à montrer quelques possibles relations entre le discours psychanalytique et la philosophie. Il s'agit notamment de montrer comment une lecture extérieure et éloignée, que la phénoménologie d'un Ludwig Binswanger, d'un Jean Hyppolite, d'un Paul Ricœur et surtout d'un Merleau-Ponty font de la psychanalyse, finit-elle par couper et par déformer le discours psychanalytique.

Mots-clés: psychanalyse freudienne, phénoménologie, sexualité, rêve, mémoire


 

 

Uma frase bastante conhecida de Lacan diz que "não há relação sexual". Curiosa afirmação, vinda de um psicanalista, mas que não vai parecer tão estranha, se considerarmos que ela não se refere ao ato de relacionar-se sexualmente, mas sim à relação, isto é, o encontro entre os sexos - evento que implicaria, para Lacan, a combinação de elementos que, na verdade, se encontram isolados, por uma clivagem estrutural entre o homem e a mulher, no interior da espécie humana (Miller, 1987, p. 59).

Haveria muito a dizer a respeito dessa frase extraordinária. O que faremos aqui é bem menos que isso, tomando-a como ponto de partida para elucidar as relações entre discurso filosófico e discurso psicanalítico, que, nos parece, se tornarão compreensíveis se for observado o modo pelo qual cada um deles aborda um mesmo objeto - a sexualidade -, ou melhor, o constitui de maneira própria. Para tanto, partiremos da obra de Freud "Três ensaios sobre sexualidade" (1905), e, em seguida, passaremos de maneira breve por alguns momentos importantes da recepção de Freud pela fenomenologia.

Freud inicia o primeiro ensaio, dos "Três ensaios sobre a sexualidade", intitulado "As aberrações sexuais", com uma referência científica: "a existência de necessidades sexuais no homem e no animal é um fato expresso na biologia pela suposição de uma pulsão sexual" (Freud, 1905/2004, p. 123), que a ciência habitualmente denomina como libido. No texto de Freud, é comum encontrar referências científicas como a libido, entremeadas a menções à sabedoria popular, pois, como explica o autor, "a opinião popular tem representações bem precisas acerca da natureza e das propriedades dessa pulsão sexual" (Freud, 1905/2004, p. 123). O que podemos já considerar como um indício da orientação do saber psicanalítico. Pois qual é o propósito de Freud, ao recorrer a essa fonte inusitada para a constituição de um saber que se pretende científico, situando-a ao lado de concepções médicas consagradas? Nas palavras de Monzani, nada menos que "uma longa e paciente desmontagem" do conceito de sexualidade circulante, seja no meio científico, seja na concepção popular (Monzani, 1989/2013, p. 33). No entender de Freud, tanto a biologia quanto a psiquiatria do século XIX, representada por autores como Krafft-Ebbing, Havelock Ellis, Moebius e outros, consideram a pulsão sexual como um equivalente do instinto natural, teleologicamente orientado para a reprodução dos indivíduos e a manutenção da espécie (instinto essencialmente heterossexual, portanto). Nessa concepção, o que não é orientado para uma reprodução biológica está fora do espectro da sexualidade considerada normal, e, consequentemente, as aberrações sexuais incluiriam a sexualidade infantil e a senil, além dos consagrados desvios como homossexualismo e perversões.

Ao diferenciar pulsão de instinto, Freud acautela-se contra essa confusão, e toma a sexualidade como um fenômeno desvinculado de outra finalidade além daquelas envolvidas em sua própria manifestação (no caso, o prazer e o desprazer). Essa estratégia não surpreende, pois, como observa Birman, é necessário a Freud, para fundamentar uma pesquisa psicanalítica, observar os limites históricos impostos tanto à prática quanto à teoria do novo saber, de modo que se torne possível superá-los (Birman, 1993, p. 13).

Para realizar o desmonte da noção de sexualidade das teorias científicas da época, Freud propõe, nesse primeiro ensaio, por meio dos conceitos de meta e objeto (definidos popularmente) que, para o ser humano, não haveria um objeto naturalmente fixado, ou seja, a pulsão sexual não é um equivalente exato do instinto sexual natural voltado para a reprodução. Ao contrário, Freud mostra uma ampliação do campo da sexualidade ao considerar que ela existe desde a infância e comporta toda espécie de desvios, ao longo do amadurecimento dos indivíduos. Nas palavras de Monzani,

a sexualidade deixa de ser algo dado, pronto e acabado, que na espécie humana se desenvolve apenas após o advento da puberdade, para tornar-se agora o resultado de uma síntese, em que diferentes pulsões (parciais, fragmentadas), provenientes de diversas zonas erógenas, serão progressivamente ativadas e se integrarão para dar essa forma final que conhecemos. (1989/2013, p. 33)

Dessa forma, no segundo dos "Três ensaios", a sexualidade infantil é apresentada como fragmentada, proveniente de diversas zonas erógenas, mas que, apesar de uma unificação relativamente precoce, se desenvolve desde a satisfação das necessidades nutritivas, isto é, desde o início da vida o influxo de leite no ato de mamar produz um "efeito marginal" pela sensação de prazer (Monzani, 1989/2013, p. 34). Isso significa que há o surgimento de um prazer outro que a satisfação da fome. Descola-se, assim, da satisfação da necessidade um prazer local pela estimulação da região oral. Uma das consequências desse descolamento é que a região oral será elevada à categoria de zona erógena. Assim como ocorre na região oral, a região anal também é uma zona erógena, pois dela se descolam sensações prazerosas, ocasionadas pela retenção e evacuação das fezes. Freud estende ainda a erogenidade a todas as regiões corpóreas, bem como a qualquer atividade humana que possa dar vazão indireta à sexualidade. Isso porque além do prazer proveniente das zonas erógenas, em que há uma satisfação fisiológica, o contato do corpo da criança com a mãe, ou um substituto que preste cuidados gerais e de higiene, excita órgãos sensoriais que se tornam zonas erógenas.

Freud opõe-se assim às concepções de sexualidade vigentes na psiquiatria e na biologia de sua época, ao propor a existência de uma sexualidade infantil governada por pulsões sexuais parciais que transformam quaisquer regiões corporais em zonas erógenas. Pode-se dizer, com Monzani, que seu mérito não se restringe apenas a apontar para o fato de que as crianças têm algo como uma vida sexual, mas também mostra que a sexualidade já existia onde não se pensava que estivesse, isto é, faz um recuo temporal e desvincula a sexualidade dos órgãos genitais, tanto pelo fato de que ela se apresenta precocemente na infância quanto pelo fato de que ela não tem uma finalidade instintiva destinada à reprodução e à manutenção da espécie. Portanto, o adjetivo sexual adquire uma nova significação, ampliada, que ultrapassa o conceito clássico de sexualidade (Monzani, 1989/2013, p. 34).

Sabe-se, no entanto, que os adversários de Freud desde sempre contestam o "caráter científico da psicanálise" por considerarem que há carência de validação estatística dos procedimentos experimentais. Nas palavras de Krafft-Ebing, a psicanálise seria um "conto de fadas científico", a respeito do papel da sexualidade na etiologia da histeria (Birman, 1993, p. 15). É verdade que o Projeto para uma psicologia científica, em que Freud oferece diversas especulações de caráter neurológico, busca por uma adequação aos padrões de cientificidade, e esboça uma consideração quantitativa da economia psíquica. Insatisfeito com essa primeira tentativa, Freud passou a utilizar outros modelos teóricos, adaptados com base em disciplinas como a antropologia, a arqueologia, a história e mesmo a filosofia. Ele próprio diz, numa carta a Fliess, que ao propor uma metapsicologia estaria se aproximando dos conhecimentos filosóficos, pelos quais tanto ansiara em sua juventude (Freud, 1896/1986, p. 180). A nos fiarmos em Birman, contudo, Freud teria mantido, ao longo de toda sua obra, "uma linguagem fisicalista", isto é, uma linguagem que pudesse comunicar a psicanálise em meio a essa retórica científica, mediante a qual "o discurso freudiano esperava legitimar seu modelo originário do aparelho psíquico, a teoria da sexualidade e sua leitura sobre a etiologia das neuroses" (Birman, 1994, p. 32). Ou seja, a manutenção de uma linguagem mecanicista seria uma tentativa de validar a jovem ciência que se instaurava fora do campo científico.

Em que medida a utilização dessa retórica implicaria uma adesão da psicanálise nascente a um cientificismo? Uma boa maneira de responder a essa questão é ir a um texto de Binswanger, intitulado "A concepção freudiana de homem à luz da antropologia". Nesse ensaio, Binswanger defende a ideia de que Freud "articula uma concepção naturalista do homem", em oposição às representações transmitidas seja na idade antiga (homo æternus, homo cælestis), seja na idade moderna (homo existencialis) (Monzani, 1990, p. 113). Isto é, o homem seria um objeto natural e, portanto, a psicanálise foi constituída com base nas Naturwissenschaften (ciências da natureza). O conceito de corpo pulsional estaria no centro da nova ciência, e sua característica básica seria o mecanicismo, ou a concepção do corpo como máquina. O corpo seria um produto das pulsões, que agem sobre ele e o constituem, a ponto de moldar as concepções morais do homem, ou o que Binswanger chama de "valores superiores". Estes últimos seriam explicados pelos "valores inferiores": o princípio da cultura, assim como o da bondade, seria proveniente do ódio, o do amor, da hostilidade, e assim por diante. Esses valores não são afetados por nenhuma positividade originária, espontânea, ao contrário, são potências inibidoras e restritivas, de modo que a mudança é sempre feita com base em uma coerção. As pulsões, conceito-limite, "infiltram-se no psíquico e o transformam num órgão. A necessidade substitui a liberdade, e o mecanicismo toma o lugar da reflexão e da decisão" (Monzani, 1990, p. 115). Em suma, a redução psicanalítica praticamente privaria o homem de sua subjetividade. O ser humano seria o resultado de um jogo de forças cegas internas e externas que se chocam entre si; o aparelho psíquico se reduziria a um órgão exclusivamente mecânico, destituído de sentido e finalidade.

A interpretação de Binswanger é sem dúvida interessante, mas cabem algumas observações críticas a seu respeito. Se, por um lado, é possível encontrar na teoria freudiana esse jogo de forças cegas, por outro, não se pode dizer que o aparelho psíquico é apenas um reflexo dessa submissão e que as pulsões, seu principal motor, tenham sua importância minimizada por representarem apenas necessidades (Monzani, 1990, p. 116). Como vimos, com a ampliação da concepção de sexualidade, o prazer que se descola da satisfação das necessidades fisiológicas torna-se sexual, de modo que o desenvolvimento sexual e pulsional encontra-se diretamente relacionado ao desenvolvimento psíquico e do próprio pensamento, dando assim outro sentido para esse jogo de forças que envolve o psiquismo. Binswanger, ao retirar o sentido das pulsões, as estaria privando de sua característica qualitativa e, portanto, de sua capacidade de serem representadas psiquicamente. Além disso, a investigação freudiana é marcada pela busca do sentido e das significações ocultas, a serem decifradas pelo trabalho de interpretação; ou, nas palavras de Monzani, "decifração e interpretação constituem o essencial desse trabalho" (Monzani, 1990, p. 118). Quando muito, o que se pode afirmar é que o sentido é deslocado, pela psicanálise, do sujeito como um dado prévio, para o sujeito como resultado de um processo que o antecede e o perpassa.

É o que percebeu Jean Hyppolite em Psicanálise e filosofia (Ensaios de psicanálise e filosofia), que chama atenção para esse aspecto do discurso psicanalítico: a elaboração do sentido no psiquismo, de modo que uma significação apareça sobretudo no diálogo entre o analista e o analisando. E o que significa dizer que o trabalho analítico tem como essência a decifração de um sentido oculto, para o próprio paciente, ou analisando? Ora, desde o início, a psicanálise concebe que aquilo que se encontra oculto é o inconsciente, são as representações sexuais infantis que foram recalcadas, pois tiveram seu acesso à consciência negado, e que fazem parte da formação dos sintomas neuróticos. Como adverte Freud no prólogo de A interpretação dos sonhos (1900), "o sonho é o primeiro termo de uma série de produtos psíquicos anormais; outros de seus termos são a fobia histérica, as ideias obsessivas e as delirantes", e, por razões práticas, o psicanalista ocupa-se desses últimos. Apesar de o sonho não ter, porém, uma importância prática como a dos sintomas neuróticos, "tanto maior é seu valor teórico como paradigma" (Freud, 1905/2012, p. 3). Dessa forma, o sonho também é uma formação psíquica dotada de sentido e sua aparente ausência de sentido se deve a outras concepções que restringiam o psíquico apenas ao aspecto da consciência. Na Interpretação, os fenômenos oníricos são considerados em seus mais diversos aspectos; quanto às suas fontes, o material, o trabalho do sonho, etc. Logo no segundo capítulo, Freud expõe seu método interpretativo, com base na interpretação de um sonho próprio que tomaria como paradigmático. Com isso, Freud demarca o território do inconsciente e aponta o modo de trabalho para que esse inconsciente possa ser desvelado. Dessa maneira, o sonho se torna o paradigma da própria interpretação, na medida em que se apresenta numa espécie de escrita cifrada para a consciência, uma vez que é regido por leis inconscientes.

Mas é no sétimo e último capítulo dessa obra que Freud expõe um modelo de aparelho psíquico. Nesse capítulo, Freud apresenta os processos psíquicos com base em sua localização e em suas relações dinâmicas e econômicas no interior do aparelho psíquico. Ainda que o psiquismo tenha o sistema nervoso como substrato anatômico, Freud adverte que não se deve cair na tentação de determiná-lo como se ele fosse anatômico, e sugere, em vez disso, que utilizemos uma analogia com um aparelho visual, como um microscópio ou uma máquina fotográfica. Ou seja, justamente no capítulo metapsicológico, no momento em que a teoria é apresentada de maneira sistemática, Freud recorre a uma metáfora mecanicista de implicações fisiológicas, assim como fizera no Projeto para uma psicologia científica. Mais uma vez, põe-se a questão: quais os limites dessa assimilação?

Pode ser interessante recorrer aqui a Paul Ricœur, que na obra Da interpretação (De l'interpretation) propõe que o discurso freudiano se estruturaria em duas ordens: uma explicativa, a outra hermenêutica, ou interpretativa. Para isso, identifica, na formação da teoria psicanalítica, três momentos que lhe parecem fundamentais: o Projeto (1895), a Interpretação (1900) e os textos de Metapsicologia (ao redor de 1915). Para Ricœur, o Projeto baseia-se num modelo exclusivamente teórico-explicativo. A representação é mecanicista, e, se existe algum traço de interpretação, ela não afeta a articulação das teses. Já na Interpretação dos sonhos, as relações entre um modelo explicativo e um modelo hermenêutico se invertem, isto é, a explicação fica inteiramente subordinada à interpretação, salvo no Capítulo VII. Isso leva Ricœur a dizer que, ainda herdeiro do Projeto, esse "capítulo seria um pouco exterior à obra". Os textos de Metapsicologia seriam o momento em que "essa problemática atinge seu ponto de maturidade" (Monzani, 1990, p. 123), de modo que, nos textos teóricos da psicanálise haveria um ponto de equilíbrio entre a explicação e a hermenêutica.

De fato, essa interpretação é perspicaz, e altamente sugestiva. No entanto, como observa Monzani, Ricœur parece ter deixado de lado, ao expor suas proposições, o aspecto energético do aparelho psíquico. Nesse caso, "a energia está confinada ao campo do somático", e dessa forma, diferentemente da posição de Binswanger, a psicanálise estaria destinada apenas a "operar concatenações de sentido" (Monzani, 1990, p. 123). A energia é, contudo, bem mais do que isso: ela é o afeto que compõe as pulsões, é a quantidade de energia que se difunde pelas inscrições mnêmicas, e, portanto, é a quantidade de energia, ou o quantum de afeto que torna patogênica uma lembrança esquecida.

Vimos até aqui como algumas interpretações da teoria freudiana, oriundas do campo da fenomenologia, atribuem características ao seu discurso que acabam por excluir alguns preceitos importantes da teoria, seja pelo viés mecanicista, seja pelo viés da hermenêutica, na tentativa de reduzir esse saber, que se pretende original, a uma posição filosófica tradicional. Monzani chama atenção para essas leituras do discurso freudiano, feitas "através de redes significativas e de critérios que são estranhos a esse próprio discurso ... o que se fez sempre foi aplicar os esquemas de um sistema filosófico alheio ao discurso em questão" (Monzani, 1990, p. 126). A exigência imposta pela psicanálise é bem diferente: ao enraizar-se em diversos saberes para constituir-se enquanto disciplina teórico-clínica, ela acaba por construir um discurso particular, alheio, portanto, ao discurso filosófico. Os filósofos questionam o discurso psicanalítico no âmbito da própria filosofia, sempre com a mesma consequência: a "deformação regular" do discurso freudiano (Monzani, 1990, p. 126). Mas quais contribuições teria a psicanálise a dar à filosofia?

Retomaremos nesse ponto o texto de Hyppolite para mostrar como a fenomenologia apropria-se da ampliação da noção de sexualidade em psicanálise, e, em seguida, comentaremos brevemente uma passagem da Fenomenologia da percepção, de Merleau-Ponty, em que ficam claras as consequências dessa apropriação para o discurso filosófico acerca da sexualidade.

Para Hyppolite, a psicanálise propicia ao sujeito entrar em contato com um sentido que ele mesmo desconhece, pois se encontra oculto. Ela contesta assim o primado da consciência. No âmbito da linguagem, isso significa que há uma separação entre significante e significado, de modo que a consciência encontra-se radicalmente cortada de seu sentido. O trabalho da psicanálise seria então o da interpretação de uma "totalidade significativa", isto é, o de reintegrar o sentido à consciência. No entanto, Hyppolite vê, no próprio discurso psicanalítico, uma cisão entre método e doutrina, e, consequentemente, uma cisão entre o "materialismo da energia e a análise intencional", de modo que faltaria à psicanálise uma "dialética" que integrasse essas esferas (Monzani, 1990, p. 119). É o que também afirma Merleau-Ponty:

Tratar a sexualidade como uma dialética ... não é reconduzir a história de um homem à história de sua consciência ... a dialética é a tensão de uma existência em direção a outra que a nega, mas sem a qual ela não se sustenta. (1994, pp. 231-232)

Ou seja, ao tratar a sexualidade como uma dialética, Merleau-Ponty considera que a percepção erótica seja um tipo de percepção não intelectual e que, portanto, não seja pura consciência de algo; ao contrário, ela é uma intencionalidade cega, que visa outro corpo. Em outras palavras, na compreensão erótica há um desejo sexual que visa a ligar um corpo ao outro e que "segue o movimento geral da existência" (Merleau-Ponty, 1994, p. 217). Esse movimento da sexualidade seria dialético porque o corpo na experiência sexual é ambíguo, encontra-se na posição de sujeito que deseja outro corpo, ao mesmo tempo que é objeto do desejo desse mesmo corpo que lhe é alheio. Mas o sujeito que deseja o outro corpo, na medida em que o toma como objeto, já o destitui da condição de sujeito, tornando-o desinteressante, excluindo-o da percepção erótica (Merleau-Ponty, 1994, p. 231). Existe aí uma tensão, o pendor de uma existência por outra, que a nega, isto é, uma negação do outro ao mesmo tempo que o afirma através do desejo. Assim, para Merleau-Ponty, "a abertura para a existência de um outro estaria em todas as partes, inclusive no próprio desenvolvimento da sexualidade". Aparentemente, Merleau-Ponty acompanharia Freud, generalizando a noção de sexualidade. Ele considera, contudo, um erro atribuir às representações sexuais um papel central no inconsciente. Isso porque a sexualidade está constantemente presente, como uma atmosfera que envolve o corpo e a própria existência (Merleau-Ponty, 1994, p. 232).

Portanto, se Merleau-Ponty parece admitir uma ampliação da noção de sexualidade para a existência como um todo, o faz deixando-a como uma presença na atmosfera que viria a fazer parte do movimento dialético entre os corpos que se atraem e se repudiam. Ora, isso não levaria Merleau-Ponty a uma concepção mecanicista do que é a sexualidade, assim como Binswanger concebeu o homem à luz de uma teoria freudiana? Seriam destituídas de sua existência as representações sexuais recalcadas inconscientes? E, dessa forma, não seria o psíquico destituído de sentido?

Do ponto de vista fenomenológico, as sensações sexuais corporais resgatam sensações que estão aquém da representatividade e fazem parte de uma bruma individual pela qual percebemos o mundo. Isto é, a sexualidade não é um ato da consciência, ela é uma atmosfera indefinida, de modo que existência e sexualidade se confundem. E, se isso ocorre, é porque há na existência um princípio de indeterminação estrutural. Nas palavras de Merleau-Ponty, "se a existência se difunde na sexualidade, reciprocamente a sexualidade se difunde na existência ... de modo que é impossível caracterizar uma decisão ou um ato como sexual ou não sexual" (Merleau-Ponty, 1994, p. 234). Essa reciprocidade entre o que é sexual e não sexual é uma operação por meio da qual o que não tinha sentido ganha um sentido ou aquilo que tinha um sentido sexual ganha uma significação mais geral. Portanto, para Merleau-Ponty, com base no princípio de indeterminação há uma reciprocidade entre existência e sexualidade que se revela pela solidariedade entre todas as funções corporais. Essas funções tornam-se significativas à medida que se põem em relação umas com as outras. Nem por isso Merleau-Ponty considera que a psicanálise não tenha uma contribuição a dar à fenomenologia. Ao contrário, ela veio a contribuir ("sem sabê-lo"), ao afirmar que todo ato humano tem um sentido, como bem viu Hyppolite.

Não vamos examinar os pormenores e implicações dessa análise. Mas cabe ao menos lembrar que o sentido é desvelado, na psicanálise, por um método de interpretação decorrente de uma teoria que conjuga processos psíquicos conscientes e inconscientes. E é no inconsciente, justamente, que repousam as representações sexuais e recalcadas, contrariamente ao que propõe Merleau-Ponty. "O inconsciente, tal como descrito por Freud, não se esgota no tornar-se consciente. É de sua natureza a obscuridade das profundezas" (Soria, 2016, p. 114): Portanto, parece ter razão a análise de Foucault, que, numa entrevista concedida ainda nos anos 60, viu que o problema da fenomenologia em geral com a psicanálise é o privilégio concedido por esta a um inconsciente que ante-cede e condiciona toda subjetividade (Foucault, 1994/2001, p. 682). Na crítica a Freud, tratar-se-ia, afinal, de um último empenho em preservar as prerrogativas do sujeito e da consciência. E nessa medida - arremata Foucault - o estruturalismo desponta como filosofia tributária da psicanálise, na medida em que relega a processos inconscientes - pouco importa se em termos freudianos ou lévi-straussianos - a produção do sentido, concedendo à subjetividade o estatuto de um efeito frágil e provisório de estruturas que a constituem e a condicionam. Desnecessário dizer que essas palavras foram ditas num momento em que a psicanálise começara a reagir, por conta própria, e graças ao empenho de Lacan, às críticas da fenomenologia. Esse fenômeno - de consequências consideráveis para o pensamento contemporâneo - é um bom exemplo de como a psicanálise mostrou-se à altura de, nas palavras de Birman, "considerar seriamente as questões que lhe são lançadas pelos outros saberes, repensando-as em seu espaço teórico próprio e com sua linguagem conceitual" (Birman, 1993, p. 24).

 

Referências

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Recebido em: 30/11/2016
Aceito em: 6/12/2016

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