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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dic. 2016

 

SESSÃO DE CINEMA

 

O reflexo dos espelhos em The Dreamers

 

The reflection of mirrors in The Dreamers

 

El reflejo de los espejos en The Dreamers

 

La réflexion des miroirs dans Innocents (The Dreamers)

 

 

Andrea Sabbadini

Membro da Sociedade Britânica de Psicanálise. Diretor do Festival Europeu de Filmes Psicanalíticos, 38 Berkeley Road, London N8 8RU, Londres. a.sabbadini@gmail.com

 

 


RESUMO

Os espelhos, com suas conotações narcísicas, são objetos significativos em muitas produções culturais, da literatura à pintura. Como ilustração, concentro-me em uma sequência de 8 minutos do filme The Dreamers (Os sonhadores) (2003), de Bernardo Bertolucci. Complementando os diálogos entre os três personagens principais do filme, os cinco espelhos na cena do banheiro fornecem uma perspectiva intrigantemente múltipla tanto para eles como para nós, espectadores. Em consonância com as teorias de Lacan e Winnicott, os próprios filmes podem ser vistos como espelhos nos quais, em busca de um senso de identidade, podemos projetar aspectos de nós mesmos.

Palavras-chave: espelho, identidade, cinema, Bertolucci, The Dreamers, Winnicott


ABSTRACT

Mirrors, with their narcissistic connotations, are significant objects in many cultural productions, from literature to painting. As an illustration, I focus on an eight-minute sequence from the movie The Dreamers (2003), directed by Bernardo Bertolucci. The five mirrors in the bathroom scene provide an intriguingly multiple perspective to both them (mirrors) and us (audience), by complementing the dialogues between the three main characters of the movie. According to Lacan's and Winnicott's theories, films themselves could be seen as mirrors on which we, when searching for a sense of identity, can project aspects of ourselves.

Keywords: mirror, identity, movies, Bertolucci, The Dreamers, Winnicott


RESUMEN

Los espejos, con sus connotaciones narcisistas, son objetos significativos en muchas producciones culturales desde la literatura hasta la pintura. Como ilustración, me centraré en una secuencia de 8 minutos de la película The Dreamers (2003), de Bernardo Bertolucci. Complementando los diálogos entre los tres personajes principales de la película, los cinco espejos de la escena del cuarto de baño ofrecen una perspectiva intrigante y múltiple tanto para ellos como para los espectadores. En consonancia con las teorías de Lacan y Winnicott, las películas podrían ser vistas como espejos sobre los cuales podemos proyectar aspectos nuestros en busca de un sentido de identidad.

Palabras clave: espejo, identidad, cine, Bertolucci, The Dreamers, Winnicott


RÉSUMÉ

Les miroirs, avec leurs connotations narcissiques sont des objets importants dans de nombreuses productions culturelles, de la littérature à la peinture. A titre d'illustration, je me concentre sur une séquence de huit minutes du film Innocents (The Dreamers, 2003), Bernardo Bertolucci. Complétant le dialogue entre les trois personnages principaux du film, les cinq miroirs dans la scène de la salle de bains offrent une perspective intrigante, multiple, à la fois pour eux et pour nous, les spectateurs. Conformément aux théories de Lacan et Winnicott, les films eux-mêmes peuvent être considérés comme des miroirs sur lesquels nous pouvons faire la projection de nos propres aspects, en recherchant un sens d'identité.

Mots-clés: miroir, identité, cinéma, Bertolucci, The Dreamers, Winnicott


 

 

 

Os espelhos ocupam um espaço complexo e desempenham uma importante função em muitas produções culturais. Numa abordagem superficial abordaremos essa presença, tão rica, mencionando aqui a mitologia grega, com a lagoa imóvel em que Narciso apaixonou-se pelo reflexo de seu próprio corpo e como Perseu usou o escudo protetor para desviar o olhar paralisante da Górgona Medusa;1 os contos de fadas, como Branca de Neve (Irmãos Grimm e Walt Disney), apresentam o espelho como instigador da inveja destrutiva; na literatura inglesa temos Alice através do espelho (Lewis Carroll), O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde); ou inúmeras obras-primas das artes figurativas ocidentais, desde As meninas (Velázquez) e O retrato de Arnolfini (Van Eyck) às pinturas surrealistas de Magritte e as grandes esculturas ao ar livre de Anish Kapoor, como Cloud Gate, em Chicago.

Espelhos em filmes, e seria suficiente mencionar aqui os nomes de Bergman e Tarkowsky, sempre desempenham uma função ambígua. Eles oferecem aos espectadores uma nova perspectiva sobre as imagens projetadas na tela, enquanto, ao mesmo tempo, as representam em um espaço emocional mais distante e, portanto, mais inacessível. As palavras de Jonathan Miller sobre o papel dos espelhos na arte aplicam-se igualmente aos filmes:

Quando os espelhos são representados nas pinturas [ou nos filmes], a situação se torna intrigantemente complicada, porque a realidade virtual do quadro inclui uma segunda ordem de realidade virtual na forma de uma reflexão pintada. (Miller, 1998, p. 10)

Além disso, a própria tela do cinema pode ser vista como um espelho especial que, ao nos mostrar objetos de identificação, idealização e denigração, permite-nos projetar sobre ele diferentes aspectos de nós mesmos.

Focalizarei aqui minha lente psicanalítica na sequência de 8 minutos da cena do banheiro de Os sonhadores, que considero o episódio central desse filme e o ponto de virada de sua narrativa. Em particular, sinto-me intrigado pela função dos cinco espelhos incluídos nessa cena e nas múltiplas perspectivas que proporcionam aos espectadores, bem como aos personagens principais do filme: Theo (interpretado por Louis Garrel), sua irmã gêmea Isabelle (Eva Green) e seu amigo americano Matthew (Michael Pitt), e como eles são atraídos para uma perigosa ligação incestuosa.

Ao oferecer reflexões complexas sobre as relações dos protagonistas (e distorções, à medida que os objetos que estão sendo refletidos nunca são idênticos às imagens refletidas), esses espelhos constituem um suporte visualmente impressionante aos diálogos dos personagens. Estes, em sua maioria improvisados, centram-se em questões de voyeurismo na Cena Primordial, bem como no próprio cinema e na construção da identidade dentro de um cenário triangular e, portanto, edipiano.

No início, vemos um espelho oval no fundo, posicionado acima do lavatório em que Isabelle está se arrumando. Mais perto da câmera estão Matthew e Theo fumando droga e discutindo sobre a guerra do Vietnã. Em seguida, três espelhos retangulares, dispostos lado a lado para formar algo parecido com um tríptico tendo conotações iconológicas sagradas, são introduzidos acima da banheira no momento em que os meninos começam a falar sobre a função do cinema. Matthew diz:

Um cineasta é como um Peeping Tom,2 um voyeur. É como se a câmera fosse um olho mágico para o quarto de seus pais. E você espia neles, você é nojento, sente-se culpado, mas não consegue parar de olhar. Transformar os filmes em crimes, e diretores em criminosos.

Os voyeurs, que eu descreveria como pervertidos, em vez de criminosos, não são apenas os cineastas, mas também os amantes do cinema, como nós, que desfrutamos de suas produções. A menção de Peeping Tom é uma referência ao título do filme de Michael Powell de 1960, A tortura do medo (Peeping Tom), um dos filmes clássicos em escopofilia, ao lado de Janela indiscreta (Hitchcock, 1954) e Não amarás (Kieslowski, 1988).

Vale a pena notar que Matthew, no curso da mesma conversa e quase sem perceber o que está fazendo, cria uma espécie de lente com as bolhas de sabão, seus olhos espiam através de seus dedos. Theo, no entanto, parece afastar brevemente seu olhar e fechar seus próprios olhos na frente dessa suave câmera improvisada. Lembro-me aqui do afresco de Masaccio na Cappella Brancacci, em Florença, em que Adão, ao ser expulso do Jardim do Éden, cobre os olhos, enquanto Eva usa suas mãos para esconder seus seios e genitais. Ele não quer ver, ela não quer ser vista. Mas vemos o que devemos, e, sempre que nos recusamos ou deixamos de fazê-lo, estamos condenados a pagar um preço por isso. É com essa premissa, sobre o processo de repressão, que a psicanálise construiu suas próprias bases. Talvez seja irônico que quem quebra um espelho, para não se ver nele, acaba por se ver refletido mil vezes nos fragmentos quebrados.

Nesse ponto, Isabelle, que já observamos antes, movimentando-se no banheiro atrás de Matthew e Theo, sobe na banheira e se põe entre os dois (ao contrário de Eva, essa Eva não se importa de ser vista nua por eles...). Seus rostos estão claramente refletidos no espelho triplo - o dela no meio, o deles em ambos os lados. Então, como a câmera nos apresenta a mesma cena de outro ponto de vista, nossa atenção é atraída de volta para o espelho oval no fundo, dessa vez refletindo, para nós, apenas alguns azulejos pretos e brancos do banheiro. Isso acontece quando, por um longo momento de paz, os três se deitam em silêncio, como bebês felizes em um banho amniótico, relaxados depois da fumaça da droga, com os olhos fechados... Enquanto isso, nós, os espectadores, ficamos com as notas não diegéticas de Hey Joe (Jimmi Hendrix), cantada pelo próprio Michael Pitt.

É a calmaria antes da tempestade? (Tudo bem, talvez seja apenas uma tempestade na banheira, mas também não é uma tempestade em copo d'água...) A ação culmina quando Theo abre o ralo e os três personagens saem do banho, Isabelle perguntando a Matthew se ele lhes daria "uma prova de seu amor". A câmera mostra-nos, então, o quinto grande espelho, que ocupa quase uma parede inteira do banheiro.

Agindo com a determinação de um casal perverso, ou de pais imaturos que não permitem que os filhos cresçam, Theo aplica creme de barbear no pelo púbico de Matthew, e Isabelle prepara-se para raspá-lo com uma navalha. Matthew, finalmente, se rebela:

Vocês são dois loucos!... É isso que vocês chamam de prova de amor? Transformando-me em uma aberração?... Você quer raspar meus pelos púbicos? Querem que eu seja um garotinho para vocês? Pensem nisso. Pensem...

Eu acredito que os próprios filmes, e The Dreamers não é nenhuma exceção, podem ser considerados como espelhos em que procuramos um sentido de nossa própria identidade. Tal busca é baseada em processos identificatórios em relação às situações apresentadas pela narrativa do filme e de seus persona-gens. "O self se encontra", escreve Winnicott (ecoando o conceito lacaniano de l'étage du miroir3), "nos olhos e na expressão facial da mãe e no espelho que pode vir a representar o rosto da mãe" (1971, p. 271). Se falharmos em nossa busca é porque temos a esperança teimosa e ilusória de que podemos transformar o mundo que nos rodeia por meio de nossas próprias fantasias; que podemos nos tornar os criadores, com a ajuda estimulante dos objetos que nos são apresentados, do universo que desejamos e, com ele, de nossas próprias imagens, projetando na tela/espelho diante de nós uma espécie de, em grande parte inconsciente, filme. Mas os espelhos também oferecem uma oportunidade para encontrar a si mesmo, o senso de identidade individual. A resposta de Winnicott à pergunta "o que o bebê vê quando olha para o rosto da mãe?" é "o que o bebê vê é ele mesmo" (1967, p. 112). Paralelamente à função materna do processo de espelhamento, a presença de óculos no filme de Bertolucci também aponta para aquele momento de separação e individuação (para usar a expressão de Margaret Mahler) quando Matthew finalmente percebe a sedução colusiva da folie-à-deux4 dos gêmeos, e em vez de continuar a aceitar seus jogos humilhantes, que o reduziriam a uma criança pré-púbere impotente, ele se rebela contra a perversidade deles, recusando-se a deixar que eles (simbolicamente) o castrem.

Em vez de cair, ou melhor, de ficar na desejada folie-à-trois, ele tenta se encaixar entre os gêmeos convidando a relutante Isabelle para um programa - pedindo-lhe para agir, uma vez, sem contar com a aprovação de seu irmão. "Não olhe para Theo. Isabelle, você não precisa de sua permissão", diz Matthew, sem saber que tal movimento inevitavelmente terá consequências dramáticas.

Os espelhos centram nossa atenção nos aspectos narcisistas daqueles que olham para eles. Lembro-me aqui de um paciente que, temendo ser homossexual, se desnudava e se colocava diante de um grande espelho, cujo propósito era verificar se a visão de um homem nu (ele mesmo) o excitava; se tivesse uma ereção, teria de chegar à conclusão de que era gay...

Encerrado em seu mundo pequeno-burguês, pseudointelectual - em que a cultura é identificada com a lembrança da linha de um filme antigo e a política, com a exibição de um cartaz do presidente Mao -, os gêmeos franceses e seu refém voluntário são literalmente aprisionados dentro de um espaço claustrofóbico, em que os espelhos os refletem, e a nada mais que eles, de volta para si mesmos. Nenhuma janela é visível aqui, o que lhes daria (e a nós, espectadores) algum acesso ao mundo externo. Somente no final, quebrada por uma pedra presumivelmente lançada por algum manifestante, uma janela tomará o centro do palco: nossos anti-heróis serão obrigados a percorrer as ruas de Paris e perceber que, lá fora, é o mês de maio de 1968.

Durante a pré-produção de The Dreamers, eu tinha perguntado a Bertolucci sobre o que o filme seria, e ele respondera laconicamente: "É sobre uma pedra que quebra uma janela...". Ele também poderia ter respondido: "É sobre uma pedra quebrando um espelho...".

 

Referências

Bertolucci, B. (2003). The Dreamers. Londres: Recorded Picture Company.         [ Links ]

Graves, R. (1995). The Greek Myths: 1. Harmondsworth: Pelican.         [ Links ]

Hitchcock, A. (1954). Rear Window (Janela indiscreta). Los Angeles: Paramount Pictures.         [ Links ]

Kieslowski, K. (1988). Krótki film o milosci (Não amarás). Polônia: Zespol Filmowy "Tor".         [ Links ]

Miller, J. (1988). Introdução. In Catálogo da exposição "On Reflection". Londres: National Gallery.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1989). Basis for self in body. In C. Winnicott, R. Shepherd & M. Davis (Eds.) Psycho-Analytic Explorations. Cambridge, MA: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971). The location of cultural experience. In Playing and Reality. Londres: Tavistock. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

 

 

Rcebido em: 14/11/2016
Aceito em: 14/11/2016

 

 

Tradução de Mireille Bellelis
1 "A Medusa tinha serpentes em vez de cabelos, dentes enormes, língua protuberante e um rosto tão feio, que todos os que olhavam para ele ficavam petrificados de medo. Atena advertiu Perseu de que nunca olhasse para a Medusa diretamente, apenas para seu reflexo, e lhe deu um escudo tão polido, que brilhava [...] Perseu fixou seus olhos no reflexo do escudo, Atena guiou sua mão, e ele cortou a cabeça da Medusa com um golpe da foice" (Graves, 1955, pp. 238-239).
2 Diz a lenda que a bela Lady Godiva ficou sensibilizada com a situação do povo de Coventry, que sofria com os altos impostos estabelecidos por seu marido. Lady Godiva ter-lhe-á apelado tanto no sentido de resolver esse problema, que ele acordou conceder estabelecendo uma condição: que ela cavalgasse nua pelas ruas de Coventry. Ela aceitou a proposta, e Leofric mandou que todos os moradores da cidade se fechassem em suas casas até que ela passasse. Diz a lenda que somente uma pessoa, Peeping Tom, ousou olhá-la, e ficou cego em consequência disso. Ao final da história, Leofric reduz os impostos, assim mantendo sua palavra (N. T.).
3 A fase do espelho. (N. T.)
4 A expressão folie-à-deux é definida como um transtorno mental idêntico ou semelhante que afeta dois ou mais indivíduos, geralmente membros de uma mesma família. (N. T.)

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