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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

RESENHAS

 

Devolução de crianças adotadas um estudo psicanalítico

 

 

Cynthia Peiter

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Membro do Departamento de Formação em Psicanálise Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia pela USP, e autora do livro Adoção - vínculos e rupturas do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni, 2011, São Paulo. cynthia.p@terra.com.br

 

 

 

Autora: Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2015
Resenhado por: Cynthia Peiter, São Paulo

 

Entre ato e fantasia

O recente livro de Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi convida-nos a um aprofundamento psicanalítico de tema bastante polêmico - a devolução de crianças adotadas. Deste modo, corajosamente inaugura um campo de pesquisas sobre problemática que desperta uma mescla de reações como inquietude, estranhamento, descrédito e indignação, sentimentos que adquirem diferentes intensidades, dependendo de como as experiências de abandono e rejeição ressoam em cada sujeito, diz ela.

A própria aproximação ao tema como pesquisadora trazia peculiaridades. Um assunto pouco explorado, e de certa forma evitado pelos profissionais, remete a um aspecto incômodo da área de adoção de crianças, o que pode justificar a necessidade de negação sobre a relevância de sua ocorrência, observada pela autora ao iniciar sua pesquisa.

A devolução leva-nos a pensar imediatamente em algum tipo de fracasso: seria um fracasso da criança, um fracasso dos procedimentos de adoção, um fracasso dos pais? Não sabemos. Mas na observação da autora todos aqueles que participaram do processo ligado à devolução, sejam os adotantes, a criança ou o profissional que, em sua prática, depara-se com ela, viverão sentimentos de rejeição e frustração.

Diante de um cenário no qual a adoção tem sido incentivada como possível solução tantas vezes idealizada para desordens sociais, como o abandono de crianças, ou até mesmo como forma de contornar as dificuldades com a procriação biológica, a autora ousa tocar em tema angustiante, estimulando-nos a pensar e refletir sobre um universo causador de repulsa, do qual tendemos a nos esquivar.

A adoção de crianças tem caráter irrevogável, vale ressaltar. Adotar uma criança tem as mesmas prerrogativas de se ter um filho biológico - mesmos deveres perante a lei. Seu caráter de irrevogabilidade, entretanto, não é suficiente para impedir que rompimentos de vínculo nefastos possam ocorrer. Destaca a presença de "retrocessos e vicissitudes em todas as relações de cunho afetivo" (p. 20). É, porém, na esfera mesma do "cunho afetivo" que de fato ocorrem dramáticas situações de devolução de crianças adotadas.

Maria Luiza vai eleger três eixos articuladores, em torno dos quais se apoia para refletir sobre os insucessos da colocação de crianças para adoção no que toca aos movimentos psíquicos vividos pelos adotantes, e o modo pelo qual se apresentam em algumas situações clínicas com as quais ela deparou e que relata extensivamente. Assim, a leitura nos mostra como fantasias dos pais com relação à origem da criança, as fantasias de roubo e experiências de inquietante estranheza, da ordem do sinistro freudiano, são exploradas como articuladores sobre os quais se vai estruturar o que ela denominou "fantasias de devolução". Dá destaque ao fato de que a presença de infertilidade pode ser um elemento intensificador de tais fantasias, tomando a forma de uma ferida aberta.

A devolução do filho adotado, de acordo com sua experiência, pode surgir em diferentes níveis no processo adotivo. Pode estar presente como uma fantasia, um risco ou ameaça, e até culminar em sua manifestação mais dramática, como um ato. A autora vai compreender essa fantasia de devolução como algo inerente à experiência adotiva, fazendo parte da estrutura vincular dessas famílias que se constituem com base em uma outra história interrompida na vida dessa criança.

A origem da criança é enfatizada como elemento perturbador para todos os personagens dessa trama familiar, assombrando a família em diferentes momentos e em diferentes intensidades.

Na qualidade de boa leitora de Freud, Maria Luiza elege este autor como sua referência principal para a sustentação de como as fantasias sobre origem entram em cena nessa problemática.

A curiosidade pelas origens surge, ao longo do desenvolvimento de toda criança, como um modo de dar sentido a sua pequena existência. Essa pesquisa trará, entretanto, conformações peculiares da experiência adotiva, pois os primórdios da vida da criança situam-se fora de seu contexto familiar, e remetem a outros pais.

A delicada questão da história da criança lembra a existência de uma origem estranha aos pais adotivos, e, deste modo, ocupa um lugar de exterioridade no imaginário parental, abrindo caminhos para fantasias de retorno àquele lugar. Será nesse âmbito que o tema das origens em algum momento se enlaça com a eventualidade da devolução do adotado, fantasiada ou posta em ato, afirma a autora.

Giberti (1992) também concorda que uma ideia de retorno seja uma fantasia intrínseca da adoção, e que pode ter sua contrapartida em autoacusações de roubo, que configura outro tipo de fantasia comumente encontrada em alguns contextos da adoção. Alguns pais adotivos experimentam de modo angustiante a fantasia de haverem retirado a criança do convívio familiar original, de não terem dado oportunidades para que a mãe biológica pudesse ficar com ela, ou até mesmo de que exija a criança de volta - como se a adoção configurasse uma espécie de apropriação indevida da criança. De modo que a fantasia de roubo pode expressar-se pelo seu oposto, ou seja, pelo temor de que os pais biológicos exijam a devolução da criança. De modo explícito ou às avessas, parece que a fantasia de roubo encontra nas fantasias de devolução uma contrapartida.

Freud percebe o valor de realidade das fantasias quando descobre em determinado momento que já não se pode mais confiar em quais cenas tiveram lugar e quais seriam apenas imaginadas de modo inconsciente. As considerações freudianas a respeito das fantasias originárias ganham importância fundamental nesse estudo, visto que nesse contexto a questão das origens é uma fonte de enigmas e fantasias específicas. O coito fecundante que originou a criança está referido a outra dupla de pais, significando uma equação enigmática, tanto para a criança como para seus pais adotivos. Na devolução percebe-se um jogo de forças presente, e as fantasias da origem do adotado funcionam como um polo para o qual convergem as angústias parentais.

A presença de outros na origem da criança adotada leva a autora a retomar o fenômeno do Estranho freudiano como interessante articulador teórico. Quando a família fica impossibilitada de apropriar-se da criança no lugar de filho legítimo, ela passa a ser sentida como algo alheio, tocando em aspectos inconscientes dos pais adotivos, que não tiveram espaço para o processamento psíquico. À medida que a singularidade da criança vai se apresentando como inquietante alteridade, torna-se estrangeira e sinistra. Citando novamente Giberti, nos diz que

a manifestação do estranho faz do filho adotado aquele que, com sua presença, faz lembrar o ausente ... o sentimento de estranheza é o oposto do sentimento de identificação e pode-se compreender que, nessa situação, faltará aos pais adotivos a possibilidade de identificar-se com a criança enquanto filho, em um movimento de apropriação que o reconheça enquanto tal, e tornando-se uma ameaça em alguns casos. (Giberti, 1992, p. 63)

Como observa Maria Luiza, a presença de infertilidade não suficientemente enlutada no casal adotivo pode trazer maiores complicações quando a presença do filho adotivo surge como um incômodo revelador da incapacidade dos pais de procriar biologicamente. Como a autora nos lembra, a adoção é um modo de filiação que envolve importantes perdas. Por um lado, há uma criança que teve seus vínculos biológicos ou afetivos rompidos. Por outro, podemos encontrar pais adotivos que precisaram, mais ou menos dolorosamente, abrir mão do sonho de ter um filho biológico. Alinhada ao pensamento de Giberti e Gore (1992), Maria Luiza observa que o abandono de filhos e a infertilidade são considerados desordens, as quais a cultura tentará ultrapassar por meio de uma nova filiação simbólica.

Mas, caso a origem do filho não ganhe condições de elaboração psíquica, pode estranhamente retornar como elemento perturbador, vindo a ameaçar um novo vínculo de filiação.

Como a experiência tem demonstrado, narrativas sobre a origem da criança são valiosas no decorrer de um delicado processo elaborativo que poderá dar sentidos à existência da criança adotada. Mas pode, paradoxalmente, tornar-se um difícil obstáculo a ser ultrapassado e simbolizado, caso os pais estejam impossibilitados de ajudar a criança nessas narrativas. De acordo com o que a autora refere em um de seus casos, a história da criança surgia como um elemento de exterioridade ao núcleo familiar, ou como "uma inexorável alteridade, sem espaço para o surgimento da paternidade/maternidade simbólica" (p. 57).

Os casos clínicos são apresentados fazendo trabalhar os eixos articuladores teóricos como se mostram no discurso dos adotantes entrevistados, deixando-nos perceber o modo pelo qual os eixos escolhidos perpassam as histórias escutadas, levando-as a ganhar sentidos.

Mas, para além do entendimento de casos tão elucidativos, escolho destacar a experiência da pesquisadora diante desses casais, quando descreve o processo de dolorosamente ouvir relatos pungentes que não a deixam impassível, levando-a a experimentar intensas movimentações afetivas - angústias inomináveis e avassaladoras que permeiam essa problemática, aliadas a fortes sentimentos de culpa que inundavam o setting. A autora alerta para o risco de que, diante da intensidade dos sentimentos provocados, o profissional sinta-se convocado a rapidamente assumir posições acusadoras, condenadoras e culpabilizadoras, abandonando possibilidades de intervenção ainda possíveis. Conforme ela descreve, a necessidade desses casais de falar e de serem escutados por um interlocutor sensível é crucial. A pesquisa conduzida nos mostra como esta escuta pode tornar-se instrumento de grande utilidade na abordagem dessas situações, tão dramáticas.

Fica em destaque a importância de considerar o trabalho de acompanhamento aos candidatos à adoção como campo de escuta e de favorecimento de processos elaborativos que, quando silenciados, podem tornar-se atos. Sua experiência na escuta desses casais lhe mostra que, ao serem acolhidos em suas angústias, os casais podem expressar alívio e até satisfação em constatar que devolver não precisa ser a única ou a última saída para ultrapassar os intensos conflitos com a criança. E, esperançosamente, nos diz que "a palavra poderá reverter o ato da devolução".

 

Referências

Giberti, E. (1992). La adopción. Buenos Aires: Sudamericana.         [ Links ]

Giberti, E. e Gore, S. C. (1992). Adopción e silencios. Buenos Aires: Sudamericana.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/10/2016
Aceito em: 25/10/2016

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